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EDICOES ANTERIORES SOBRE OS PORQUES E COMOS DA HISTORIA [ENSAIO] J DIEGO PEREZ 25 DE JUL. DE 2022 93), DG Share SOBRE 0S PORQUES E COMOS DA HISTORIA gh” [MAGAZINE] E noite. Alimentado, asseado e algo fatigado pelo dia de trabalho constituido em ler e fichar o admirdvel Mito y Archivo: una teoria de la narrativa latinoamericana (2000) do critico e professor cubano Roberto Gonzélez Echevarria (voltemos, logo mais, sobre esse assunto), me distancio do mundo académico de criticos ¢ livros para me engendrar em planos de como aproveitar o pouco tempo que me resta de uma quarta~ feira monétona de uma forma um pouco mais descontraida. Abro entio 0 catélogo da Netflix e navego por breves minutos pelas infinitas produgées até que me deparo com a quarta temporada de Hip-Hop Evolution (2016 -) e jd no primeiro episédio me sinto fisgasdo. Produzida pelos diretores Darby Wheele e Rodrigo Bascuiian, e apresentada pelo rapper Shadrach “Shad” Kabango, a série documental tem como foco central, como seu préprio titulo sugere, a “evoluc&o” histérica do hip-hop enquanto género musical e fenémeno cultural. Dessa forma, vemos ao longo das suas temporadas, os deslindes de uma complexa histéria que torna o som de um grupo particular de nova-iorquinos em um dos maiores géneros musicais de todos os tempos: desde a sua genealogia nos guetos nova iorquinos dos anos 1970; os estigmas sociais do gangsta rap em principios dos anos 1990; a fatal rivalidade entre as costas Leste e Oeste; 0 surgimento do Sul na cena; ¢, por fim, a ascensio metedrica do rap a partir do fim dos anos de 1990 e inicio dos 2000, transformando-se no género musical inescapavel da indtistria musical americana no século XXI. Apesar do ‘desfecho’ grandiloquente dessa Histéria ao fim da quarta temporada, estampado com o inegavel sucesso de rappers bilionarios da atualidade, o que mais me parece chamar & ateng&o nessa “evolucao” é a forma como pequenas histérias, a0 longo dessa longa e intrincada trajetéria, puderam contribuir significativamente para transformar a vida de pessoas e, por sua vez, o modo como nos expressamos culturalmente, ainda que esses atos elementares se dessem quase que por acidentes histéricos. Uma dessas histérias (logo a do primeiro episddio, para ser mais preciso), me leva além dos capitulos que vejo na Netflix. Pauso. Abro abas no celular, ligo o PC e, desvelando relatos, pesquisas ¢ reflexdes, me pego investigando a origem de algo ainda mais fascinante do que pude conceber a um primeiro momento. Mas estou me adiantando. Comecemos do comego, em 1986, quando um duo de rap pouco conhecido do Queens chamado The Showboys decidiu samplear o tema de abertura da série policial da década de 1950, Dragnet Opening and Closing Theme 1951 - 1959 and 1967 - 1970 Nao nos custa pensar o porqué desta abertura a la noir ter cativado a dupla Orville “Can Can” Hall e Phillip “Phil Dog” Price, adolescentes ha época, ao ponto de se inspirarem para fazer a sua storytelling rap, isto é, um rap em forma de narrativa que, assim como outras formas de rap daquele tempo, retratava aspectos de violéncia presenciados no cotidiano suburbano: “Quando alguém saia com algo quente, isso o encorajava a fazer algo melhor”, acrescenta Hall, que se apresentou sob o nome de Can Can. "Est4vamos pensando: ‘Que porra poderfamos encontrar para fazer uma histéria [usando o rap]?"" “Eu estava saindo de casa e ouvi Dragnet na TV”, diz Hall sobre o momento eureka por tras do que se tornaria o sucesso duradouro dos Showboys. (Dragnet foi um programa de detetive clissico da década de 1950 - e mais tarde um filme estrelado por Dan Aykroyd e Tom Hanks ~ com uma mtsica tema distinta.) “Quando eu ouvi Dragnet, eu realmente comecei a mandar o beatbox para “The Show”. Nés entramos no Jeep ¢ Phil comecou a batucar no painel, porque ele um tampo 0co, e essa parada era insana” 20 minutos depois, o “Drag Rap” dos Showboys estava pronto (HAL! MEADOWS-INGRAM, 2018). ; PRICE apud Ao ser estruturada como se fosse de fato fosse um episédio de Dragnet (mimetizando desde as palavras iniciais da abertura 2 até o break comercial) “Drag rap” surpreende - para além da inventiva forma - ao narrar uma disputa de territdrio entre dois Iideres de gangues do Queens sob o sample do tema de Dragnet junto a um instrumental contagiante de 808 3, fazendo o produto final dessa produgdo uma musica extremamente dangante: Curiosamente, no entanto, “Drag rap” passou totalmente despercebida na cena nova- iorquina e entrou em certo esquecimento apés o seu langamento... até encontrar no sul estadunidense uma vida nova, inclusive sob um novo nome: “Triggerman”. Com uma cena emergente em fins dos anos de 1980, o rap de Nova Orleans teve, em seu principio, uma “evolugio natural” de sua sonoridade ao beber, como diré 0 apresentador de Hip-Hop Evolution, dos ritmos tradicionais da cidade como 0 jazz e 0 ragtime. Um exemplo claro desse fendmeno pode ser visto em miisicas como “Buck Jump Time” (1987) de DJ Mannie Fresh e Gregory D. Mas o caminho dessa “evolugao” toma uma mudanga drastica de percurso com a chegada quase acidental de “Drag Rap” & NOLA. “Esta batida crucial muda a cidade. Todo mundo esta tocando, [...] © que eu nao sabia era que esse era o comeco do bounce music” (HIP-HOP, 2020), elucida Mannie Fresh, importante DJ produtor da cena de NOLA, ao falar da disseminagio avassaladora de “Triggerman” por toda a cidade. Em consonancia com Mannie Fresh, DJ Jimi admite que, enquanto trabalhou na casa de show Big Man Lounge, “nés sempre tivemos ess som em rotagao tocando aqui. Eu era o DJ. Realmente, nao era nada além de “Triggerman’. Foi horas e horas desse som em loop” (HIP-HOP, 2020). “Triggerman” (nome que referencia um dos lideres de gangue na miisica) se tornara uma coqueluche ao chegar a Nova Orleans e esta sensagao logo comegou a influir em novas miisicas produzidas pelos musicos locais como, por exemplo, “Where Dey At?” de MC T Tucker e Dj Irv em 1991 que, mudando apenas a letra, se utilizava do mesmissimo instrumental de “Drag Rap”, coisa que também o fez DJ Jimi em 1992 com “Where Dey At?” (sim, além de usar o mesmo loop de Drag Rap a miisica tinha o léntico de sua predecessora), Dj Jubilee com “Do The Jubilee All” em 1993 e ssivamente. Todas extremamente populares nao apenas em Nova Orleans, mas em todo o Sul estadunidense: © que nasceria da esquecida producao dos Showboys que, por sua vez, surgira a partir da outdated versio de abertura de uma série de televisio policial, Dragnet, que, por sua vez, (surprise, surprise) surgira de um plagio 4, seria muito mais do que apenas uma moda passageira, conformando-se em todo um (sub)género musical vivo e influente até os dias de hoje conhecido como bounce music: DJ Irv "Where Dey At?" foi um sucesso underground que introduziu NOLA ao infeccioso sample de "Triggerman" e a cidade nao se cansou disso. Porque, em algum lugar entre o estrondoso 808s ¢ a percussao staccato, a cidade encontrou mais do que um album especial. Eles encontraram o bounce music (HIP-HOP, 2020). Para se ter uma ideia do espantoso raio de influéncia de “Triggerman”, o WhoSampled, site especializado em catalogar os samples utilizados na industria musical, conta pelo menos 156 miisicas baseadas diretamente na produgio, as vezes ipsis litteris longo destes tiltimos 30 anos. Isto se nao considerarmos todas as muisicas inspiradas, baseadas ou remixadas sobre aquela uma faixa feita com um “simples” bassline de 808 e um recorte de um tema de série de TV) ao ponto de Big Freedia, maior representante do género na atualidade, ser taxativo ao dizer que “Se tem a batida do Triggerman, é Bounce!” (FREEDIA apud MEADOWS-INGRAM, 2018). Qual o exercicio de reflexao histdrica gostaria que exercitemos aqui, leitor? Sei que o trabalho de se indagar sobre os porqués dos fendmenos histdricos pode ser um trabalho ingrato: “Por que Dragnet inspirou os The Showboys?” “Por que ‘Drag Rap’ e nao outra musica teve tanto impacto sobre aquela sociedade?”, “Por que The Showboys nao se inspiraram em outra vinheta musical?”, “Por que, se a mi envolvente, a mesma nio vingou desde o principio, ainda no Queens? E 0 que teria acontecido nesse caso?” Contudo, em qué contribuimos a Histéria ao considerarmos © que poderia ter acontecido? Acredito que me mais interessante seria se nos perguntdssemos sobre o “Como?” dessa hist6ria. E uma resposta (sempre parcial, como toda Histéria, mas nem por isso menos instigante) para essa pergunta é “Através do artificio de samplear”, Com 0 desenvolvimento da tecnologia na indtistria musical na segunda metade do século XX, o sampleador. i.e., um aparelho que retira de um arquivo de audio uma pequena amostra (sample em inglés) para entao manipulé-la e transformé-la - alterando 0 tom, cortando-o em pedagos e remontando-a e repetindo-a em um loop,- em algo novo, se tornou mais acessivel e popular entre os produtores musicais a partir da década de 19806. Isso possibilitou que o nascente hip-hop, que ja se utilizada de trechos de funk, soul ou jazz (nos quais hé uma base de percussio chamada break) em apresentagdes ao vivo de DJs, se libertarsse de sua exclusivamente performatica e se tornar de fato o género musical como hoje 0 conhecemos. Assim, nao somente o bounce, mas o rap em sua totalidade é devedor desta técnica como explica Nate Patrin em seu livro Bring That Beat Back: How Sampling Built Hip-Hop (2020) em que advoga pela revolugio que a técnica causou na musica ao criar uma forma reconhecer, compreender, renovar e transformar uma linguagem coletiva da Historia musical ao subtrair um pequeno fragmento sonoro, de meméria, do espaco € tempo e recontextualizé-lo e reinterpreté-lo, concebendo-o em novas sonoridades, novas memérias: Isso ¢ 0 que o sampling pode trazer 4 musica: uma narrativa subterranea de géneros e geracdes que atravessam o tempo, ideias e interpretagdes musicais refratando umas &s outras, tudo a servigo de uma forma de arte referencial que vocé realmente nao precisa entender a referéncia para desfrutar (PATRIN, 2020, p. 259). Me parece precioso pensar como uma ferramenta e técnica supostamente simples péde de igual maneira transformar a expresso musical de uma sociedade a partir de um cotidiano e ordinério elemento da cultura popular americana como também mudar todo o curso da historia da musica. Mais precioso ainda é pensar que, ao fim dos anos de 1990, jd passado o frisson da era de ouro do sampling no rap e chegada a maturidade desse oficio, a cultura do sampling se tornou mais autoconsciente de si para seguir lembrando, redescobrindo e renovando essa mesma histéria musical: E sobre onde a cultura sample realmente comegou a se tornar autoconsciente: nfo apenas como parte integrante da produso de hip-hop, mas como um baluarte im contra o esquecimento e um exercicio de descoberta (ou redescoberta, por ai dizer). Enquanto alguns icones do hip-hop estavam a caminho de se tornarem magnatas da midia no final dos anos 90, outro segmento de artistas pretendia se tornar um tipo diferente de formador de opiniao: o curador, 0 arquivista, o antiquario (PATRIN, 2020, p. 193). Um fendmeno muito parecido aconteceu na literatura latino-americana como um Roberto Gonzilez bem observou e expés com brilhantismo o seu conceito de Arquivo livro em seu Mito y Archivo - tenha sido Gonzalez Echeverria a qual me referi no comeco desse texto. Outro intelectual a falar do assunto fora Angel Rama com sua Transculturacién narrativa en América Latina (2008) ao dizer que “as culturas sio invengées seculares e massivas que fazem do escritor um produtor que trabalha com as obras de imimeros homens. Um compilador, com diria Roa Bastos”. (RAMA, 2008, p. RAMA, 2008, p. 24), embora, para efeitos praticos, deixemos a reflexao sobre o trabalho desses pensadores para outro momento. Por hora, recordo metaforicamente das palavras do escritor argentino Juan José Saer quando afirmou que "Sempre dizem que é muito dificil transformar a sociedade, e eu sustento que mudando dois ou trés valores transforma-se a sociedade" (SAER, 2005, p. 172) para dizer: se se muda dois ou trés aspectos do oficio de um artista vocé pode mudar toda uma forma de arte. PARA SE APROFUNDAR: * “Na batida do bounce”. Primeiro episddio da quarta temporada da série Hip- Hop Evolution. Disponivel na Netflix. * “N.E.R.D.'s hit song ‘Lemon’ owes a lot to New Orleans bounce” (2018), episddio da série Earworm (em inglés) do canal Vox. Disponivel no Youtube; * “The Evolution of Bounce, From ‘Triggaman’ to ‘Nice for What™ (2018), video produzido pela Complex News (em inglés). Disponivel no Youtube; * “The Showboys: 0 som esquecido de Nova York que mudou o rep do Sul para sempre” (2018) texto de Benjamin Meadows-Ingram (traduzido para o portugués), originalmente safdo na RedBull Academy. Disponivel em Portal Rep; Bring That Beat Back: How Sampling Built Hip-Hop (2020), livro de Nate Patrin (em inglés). Vocé pode conferir uma prévia do livro no Kindle. “Quando solicitado a criagdo de uma musica tema para um novo programa de radio da policia chamado Dragnet, Schumann escreveu a famosa abertura de quatro notas, uma frase musical que hoje é uma das mais reconhecidas em todo o mundo. O tema foi usado no programa de televisio de 1951 Dragnet, na versio para tela de 1954, e posteriormente s de TV nos anos 1960 ¢ em 2003. Schumann ganhou um prémio Emmy por seu tema Dragnet, o primeiro concedido na televisio a um compositor” (HISCHAK, 2015, p. 604), “The rhymes you're about to hear are true/ MC's names have been changed to protect the innocent” “As rimas que vocé esta prestes a ouvir sao verdadeiras/ os nomes dos MCs foram alterados para proteger os inocentes” (THE SHOWBOYS, 1986). Nome de uma série de linhas de baixo e percussdo em referéncia ao sintetizador Roland TR-808 Rhythm Composer bastante utilizado na década de 1980. “O eélebre compositor de cinema Miklds Rézsa processou Schumann, alegando que ele mesmo havia usado as mesmas quatro notas em sua partitura para o filme de 1946 The Killers. © proceso e o contraprocesso de Schummann receberam muita publicidade e os musicélogos apontaram que as mesmas quatro notas podem ser encontradas em varias pecas de misica clissica. O processo foi resolvido fora do tribunal com ambas as partes recebendo royalties do tema Dragnet” (HISCHAK, 2015, p. 604). Ironicamente, The Showboys, que samplearam o tema e Dragnet, reclamam da forma como, ao longo dos anos, 0 royalties e as vendas de “Drag rap” se tornaram brumosos na industria musical: ““E uma béngio saber que contribuimos para o hip-hop nesse nivel’, continua ele. [Mas] quantos discos Triggerman realmente vendeu? Quantas pessoas realmente samplearam Triggerman? Todo mundo sabe disso, mas nés simplesmente nao sabemos. Mesmo apenas para 0 nosso legado, acho que seria algo fenomenal saber.” (HALL apud MEADOWS- INGRAM, 2018). Sobre a similitude escrachada de “Do The Jubilee” com “Where Dey At?”, Mannie Fresh dird que: “DJ Jubilee saiu com essa, Mesma musica. Idéntica. [risos] O que ¢ legal no bounce. Se vocé nao entende, vocé fica tipo, ‘Bem, por que tudo tem a mesma maldita batida? Essa mtisica nao tocou’ E, vocé sabe, mas é assim que ¢. Esta cidade apenas pega algo e vai nessa” (HIP-HOP, 2020). oO 3 Likes Comments D (write a comment © 2024 Diego Cardoso Perez, [MAGAZINE] ISSN 2965-582X : Privacy: Terms - Collection notice Substack is the home for great writing

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