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SALVAÇÃO

CONTORNOS
SOTERIOLÓGICOS
ADVENTISTA

EDITORES
MARTIN F. HANNA - DARIUS W. JANKIEWICZ - JOHN W. REEEVE
ÍNDICE
INTRODUÇÃO........................................................................................................... 9
UMA NOTA DOS EDITORES.............................................................................. 10

SEÇÃO 1
O PLANO DE DEUS EM CRISTO: A SALVAÇÃO É PARA TODOS? 13

HISTÓRICO DO RELACIONAMENTO ENTRE O LIVRE-ARBÍTRIO


CAPÍTULO 1 - HUMANO, O CARÁTER DE AMOR DE DEUS E O GRANDE
CONFLITO –
Nicholas P. Miller......................................................................... 14

JACÓ ARMÍNIO, A NATUREZA DE DEUS, E AS RAÍZES DA


TEOLOGIA DO LIVRE-ARBÍTRIO................................................ 15
HUGO GROTIUS E O GOVERNO MORAL DE DEUS.................... 18
A INFLUÊNCIA DE GROTIUS NA INGLATERRA E NO INÍCIO DA
AMÉRICA.................................................................................. 20
A TEOLOGIA DO NEW HAVEN E O PRESBITERIANISMO DA
NEW SCHOOL: NATHANIEL TAYLOR, ALBERT BARNES E A
MATRIZ DO ADVENTISMO....................................................... 23
CONCLUSÃO: O PATRIMÔNIO VIVO DO LIVRE-ARBÍTRIO E DO
GOVERNO MORAL...................................................................

CAPÍTULO 2 - O AMOR NA GUERRA: O CONFLITO CÓSMICO –


Norman R. Gulley ........................................................................ 25

O ÂMBITO CÓSMICO DO AMOR DE DEUS............................... 27


AS PROVAÇÕES DE JÓ: POR TRÁS DO CENAS DO CONFLITO
CÓSMICO................................................................................. 28
ISAÍAS 14 E EZEQUIEL 28: REIS REBELDES................................ 30
APOCALIPSE 12: GUERRA NO CÉU E NA TERRA....................... 32
CALVÁRIO: A BATALHA DECISIVA............................................. 35

CAPÍTULO 3 - A PRECIÊNCIA E A LIBERDADE DA SALVAÇÃO –


Martin F. Hanna........................................................................... 38

SERMÃO DE PEDRO NO PENTECOSTES.................................... 43


CARTAS DE PEDRO AOS ELEITOS PRÉ-CONHECIDOS................ 45
CARTA DE PAULO AOS ROMANOS........................................... 48
Presciência em Romanos 8:29.......................................... 49
Presciência em Romanos 11:2.......................................... 51
CONCLUSÃO............................................................................. 56

CAPÍTULO 4 - ELEIÇÃO DIVINA E PREDESTINAÇÃO: UMA PERSPECTIVA


BÍBLICA -
Hans K. LaRondelle e John K. McVay...........................................
58

A DIVINA ELEIÇÃO DE ISRAEL NO ANTIGO TESTAMENTO........ 58


A Resposta de Israel para Escolher o Senhor.................... 60
A Teologia do Remanescente Profético............................ 61
O Messias como o Escolhido............................................. 62
ELEIÇÃO E PREDESTINAÇÃO NO NOVO TESTAMENTO............ 63
Testemunho de Jesus........................................................ 64
Testemunho de Pedro....................................................... 66
O testemunho de Paulo 68
UM QUADRO BÍBLICO-TEOLÓGICO PARA COMPREENDER A
ELEIÇÃO E A PREDESTINAÇÃO.................................................. 75
Eleição e Predestinação no Grande Conflito..................... 75
Padrões de Eleição, Predestinação e Salvação no Antigo
e no Novo Testamento...................................................... 76
Deus Oferece Salvação a Todos......................................... 76
A Importância da Escolha Humana.................................... 77
O Propósito da Revelação Divina Sobre Eleição e
Predestinação..................................................................... 77
As Limitações do Conhecimento Humano......................... 78

SEÇÃO 2
O PROBLEMA DO PECADO: OS HUMANOS NASCEM PRECISANDO DE UM 80
SALVADOR?

CAPÍTULO 5 - O PECADO E A NATUREZA HUMANA: CONTEXTO HISTÓRICO -


Darius W. Jankiewicz.................................................................... 81

CONSIDERAÇÕES DE SÉCULOS ANTERIORES SOBRE O


PECADO ORIGINAL E DA NATUREZA HUMANA........................ 82
A CONTROVÉRSIA PELAGIANA.................................................. 87
A IGREJA MEDIEVAL.................................................................. 90
A REFORMA MAGISTERIAL....................................................... 93
A ERA PÓS-REFORMA............................................................... 95

CAPÍTULO 6 - ORIGEM DO PECADO E SALVAÇÃO DE ACORDO COM GÊNESIS


3: UMA TEOLOGIA DO PECADO -
Jiří Moskala.................................................................................. 102

ANATOMIA DO PECADO ORIGINAL E A DINÂMICA DA


TENTAÇÃO (Gn 3:1-6): OBSERVAÇÕES EXEGÉTICAS................. 101
DEFINIÇÕES DE PECADO........................................................... 106
CONSEQUÊNCIAS DO PECADO DE ACORDO COM GÊNESIS
3................................................................................................ 110
A SOLUÇÃO DE DEUS................................................................ 113
CONCLUSÃO.............................................................................. 117
CAPÍTULO 7 - A NATUREZA DO PECADO: COMPREENDENDO SEU CARÁTER E
COMPLEXIDADE
Roy Adams.................................................................................... 120
120
PECADO - GERAL E UNIVERSAL.................................................
PECADO - ESPECÍFICO E PARTICULAR....................................... 122
INSIGHTS DO GRANDE TESTEMUNHO DE DAVI........................ 123
Além do Paralelismo Hebraico.......................................... 123
A Complexidade do Pecado............................................... 126
CONCLUSÃO............................................................................. 129

CAPÍTULO 8 - A NATUREZA PECAMINOSA E A INCAPACIDADE ESPIRITUAL -


George R. Knight........................................................................... 130

CONTAMINAÇÃO, DEPRAVAÇÃO E INCAPACIDADE.................. 130


PERSPECTIVAS TEOLÓGICAS RELACIONADAS À DEPRAVAÇÃO
TOTAL E INCAPACIDADE ESPIRITUAL........................................ 135
PERSPECTIVAS ADVENTISTAS DO SÉTIMO DIA SOBRE
DEPRAVAÇÃO E CAPACIDADE ESPIRITUAL................................ 138

SEÇÃO 3
A SALVAÇÃO DE JESUS: UMA SOLUÇÃO PERFEITA? 140

CAPÍTULO 9 - ANTECEDENTES HISTÓRICOS E TEOLÓGICOS DA DOUTRINA DA


EXPIAÇÃO -
Denis Fortin.................................................................................. 141

SEM EXPLICAÇÃO SIMPLES....................................................... 141


TEORIAS DA EXPIAÇÃO............................................................. 142
A Teoria do Resgate: Expiação como Vitória sobre as
Forças do Pecado e do Mal................................................. 142
A Teoria da Satisfação: Expiação como Compensação ao
Pai....................................................................................... 144
A Teoria da Influência Moral: Expiação como
Demonstração do Amor de Deus........................................ 146
A Teoria Sociniana: Expiação como Exemplo...................... 148
A Teoria Governamental: A Expiação como
Demonstração da Justiça Divina......................................... 149
CONCLUSÃO.............................................................................. 151

CAPÍTULO 10 - EXPIAÇÃO: REALIZADA NA CRUZ


Jon Paulien................................................................................... 152

A PALAVRA EXPIAÇÃO EM INGLÊS........................................... 152


EXPIAÇÃO NA BÍBLIA................................................................ 153
Expiação Traduzida em Palavras Gregas e Hebraicas........ 153
A Linguagem da Expiação no Novo Testamento................ 155
Significado Estendido da Palavra Grega Katallassd............ 156
Reconciliação no Novo Testamento................................... 156
Conclusão........................................................................... 160
O PROBLEMA DA METÁFORA................................................... 161
POR QUÊ A CRUZ?.................................................................... 162
A Cruz Como Sacrifício....................................................... 163
A Cruz como Resgate ou Redenção................................... 165
A Cruz como Hiasterion..................................................... 166
A Cruz como Absolvição no Tribunal (Justificação)........... 168
A Cruz Como Vitória Sobre Satanás/Pecado/Mal............. 169
A Cruz como Revelação do Caráter de Deus..................... 170
A Cruz como Padrão/Modelo............................................ 171
A cruz como uma nova aliança.......................................... 172
CONCLUSÃO............................................................................. 173

CAPÍTULO 11 - O SIGNIFICADO DO MINISTÉRIO DE INTERCESSÓRIO DE JESUS


CRISTO EM NOME DA HUMANIDADE NO SANTUÁRIO
CELESTIAL -
Jiří Moskala................................................................................... 175

UM QUEBRA-CABEÇA DIFÍCIL................................................... 176


A AFIRMAÇÃO BÍBLICA............................................................. 176
O QUE A INTERCESSÃO DE CRISTO NÃO SIGNIFICA.................. 177
PRÉ-REQUISITO NECESSÁRIO.................................................... 178
O MINISTÉRIO DUPLO DE CRISTO............................................. 179
CONOTAÇÕES LINGUÍSTICAS.................................................... 180
QUAL O SIGNIFICADO DO MINISTÉRIO DE INTERCESSÓRIO DE
JESUS CRISTO EM NOSSO NOME?............................................ 182
Cristo e o Pai se encontram para Ajudar........................... 182
Cristo Salva........................................................................ 184
Cristo Muda e Transforma................................................ 186
Cristo Vindica / Defende Seu Povo................................... 187
CONCLUSÃO............................................................................. 188

CAPÍTULO 12 - UNIDOS PARA SEMPRE NO NOVO CÉU E NA NOVA TERRA DE


DEUS -
Roy E. Gane.................................................................................. 190

RESTAURAÇÃO RELACIONAL E RECONCILIAÇÃO COM 193


DEUS.........................................................................................
Em Escatologia................................................................... 193
Por Comparação com a Ordem do Início da Criação e a
Queda................................................................................ 196
RECONCILIAÇÃO COM OS HUMANOS...................................... 197
Em escatologia.................................................................. 197
Por Comparação com a Ordem do Início da Criação e a
Queda................................................................................ 198
RESTAURAÇÃO FÍSICA............................................................... 199
Em Escatologia................................................................... 199
Por Comparação com a Ordem do Início da Criação e a
Queda................................................................................ 201
CONCLUSÃO.............................................................................. 202

SEÇÃO 4
GRAÇA MARAVILHOSA: OS CRENTES PODEM GANHAR SUA SALVAÇÃO? 204

CAPÍTULO 13 - GRAÇA: UMA BREVE HISTÓRIA


John W. Reeve.............................................................................. 205

GRAÇA MAIS MÉRITO............................................................... 206


AGOSTINHO E A CONTROVÉRSIA PELAGIA............................... 210
DOIS TIPOS DE SEMIPELAGIANISMO........................................ 212
GRAÇA NA IDADE MÉDIA.......................................................... 216
O PROTESTO PARA RECONFIRMAR A GRAÇA DE DEUS............ 217
Lutero e Calvino: Monergismo Novamente; Graça
Comum............................................................................. 218
Jacó Armínio: Graça Preventiva, Escolha Fortalecida....... 220
John Wesley, Santificação sem Perfeccionismo............... 220
Ellen White, Steps to Christ [Caminho a Cristo]:
Sinergismo Capacitado por Deus...................................... 222
CONCLUSÃO............................................................................. 223

CAPÍTULO 14 - A GRAÇA QUE VEM ANTES DAQUILO QUE DIZEMOS SER GRAÇA
George R. Knight..........................................................................
225
O PROBLEMA E A NECESSIDADE............................................... 225
AS CARACTERÍSTICAS DA GRAÇA PREVENIENTE....................... 227
A FUNÇÃO DA GRAÇA PREVENIENTE COMO O ESPÍRITO
SANTO ABRE A POSSIBILIDADE DE CONVERSÃO...................... 231
BENEFÍCIOS RESULTANTES DA GRAÇA PREVENIENTE.............. 232
ADVENTISMO E GRAÇA PREVENIENTE..................................... 233

CAPÍTULO 15 - A GRAÇA QUE JUSTIFICA E SANTIFICA -


Ivan T. Blazen............................................................................... 236

O SIGNIFICADO DA JUSTIFICAÇÃO............................................ 236


Antecedentes Forenses e um Novo Relacionamento........ 236
A Justiça de Deus............................................................... 237
Justificação como Absolvição............................................. 238
Justificação como Atribuição de Justiça............................. 238
Justificação como Perdão Divino....................................... 239
Justificação como Vida Escatológica e Nova Criação......... 240
Justificação como Troca de Senhorios............................... 241
O SIGNIFICADO DA SANTIFICAÇÃO........................................... 241
Um Novo Relacionamento e Status................................... 242
Crescimento Moral em Bondade....................................... 243

CAPÍTULO 16 - A GRAÇA DA PERFEIÇÃO CRISTÃ -


Hans K. LaRondelle e Woodrow W. Whidden............................. 245

PERFEIÇÃO CRISTÃ COMO INCORPORADA NA SOTERIOLOGIA 245


DO NOVO TESTAMENTO...........................................................
Fase 1: Perfeição como Justificação pela Fé Somente........ 247
Fase 2: Perfeição como Fruto da Santificação.................... 247
Fase 3: Nenhum Ato de Premeditação Pecaminosa e
Atitudes de Desculpa para Pecar........................................ 249
Fase 4: Lealdade sem Pecado na Crise Final da História
Cristã................................................................................... 250
Fase 5: Natureza e Caráter Sem Pecado na Segunda
Vinda: Sem Pecado na Glorificação.................................... 250
Fase 6: Crescimento Dinâmico na Graça por Toda a
Eternidade.......................................................................... 250
RESUMO................................................................................... 251

SEÇÃO 5
ABENÇOADA SEGURANÇA: OS CRENTES PODEM TER CERTEZA SOBRE SUA 252
SALVAÇÃO?

CAPÍTULO 17 - DOS APÓSTOLOS AO ADVENTISMO: UMA BREVE HISTÓRIA


SOBRE A SEGURANÇA DA SALVAÇÃO -
Jerry Moon e Abner Hernandez-Fernandez................................. 253

A SEGURANÇA DA SALVAÇÃO NA IGREJA PRIMITIVA............... 253


AGOSTINHO E A SEGURANÇA DA SALVAÇÃO........................... 255
A VISÃO CATÓLICA ROMANA E A SEGURANÇA DA
SALVAÇÃO................................................................................. 257
LUTERO E A SEGURANÇA DA SALVAÇÃO.................................. 259
CALVINO E A SEGURANÇA DA SALVAÇÃO................................ 261
ARMÍNIO E A SEGURANÇA DA SALVAÇÃO................................ 264
JOHN WESLEY E A SEGURANÇA DA SALVAÇÃO........................ 267
UMA VISÃO ADVENTISTA DA SEGURANÇA DA SALVAÇÃO....... 270
CONCLUSÃO.............................................................................. 276

CAPÍTULO 18 - O VENTO E O "VENTO SANTO"; SEGURANÇA DA SALVAÇÃO


Jo Ann Davidson........................................................................... 278
CAPÍTULO 19 - SEGURANÇA DA SALVAÇÃO: A DINÂMICA DA EXPERIÊNCIA
CRISTÃ -
Woodrow W. Whidden................................................................ 289

SECURITAS, DESPERATIO, E CERTITUDO ............................... 290


OS RECURSOS GRACIOSOS PARA O CERTITUDO GENUÍNO... 291
Categoria A Priori............................................................. 291
Categoria A Posteriori...................................................... 292
Implicações dos Fatores A Priori e A Posteriori............... 293
Outros Fatores Complicadores da Experiência Cristã...... 294
ELEIÇÃO, “UMA VEZ SALVO SEMPRE SALVO” E SEGURANÇA 295
Algumas Observações Preliminares sobre Eleição
Irresistível........................................................................ 295
A Racionalidade Básica da Doutrina “Uma Vez Salvo,
Sempre Salvo”.................................................................. 297
Uma Resposta Arminiana................................................ 298
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE A
PERSEVERANÇA...................................................................... 300
Uma Crítica Cautelosa da Perseverança Irresistível......... 301
A ÊNFASE NA SANTIFICAÇÃO DESTRÓI A SEGURANÇA?........ 302
CONCLUSÃO........................................................................... 304

CAPÍTULO 20 - SEGURANÇA NO JULGAMENTO -


Richard M. Davidson.................................................................... 305

CRISTO É NOSSO SUBSTITUTO............................................... 307


CRISTO É NOSSO REPRESENTANTE JURÍDICO/ADVOGADO... 309
CRISTO É A PRINCIPAL TESTEMUNHA EM NOSSO NOME..... 310
CRISTO É O NOSSO JUIZ......................................................... 310
CRISTO É O NOSSO PURIFICADOR.......................................... 311
CRISTO É O NOSSO VINDICADOR........................................... 316
A VINDICAÇÃO DE DEUS........................................................ 318
EPÍLOGO.................................................................................................................. 321
CONTRIBUINTES........................................................................................................ 323
CONTRIBUINTES EDITORIAIS........................................................ 323
OUTROS AUTORES CONTRIBUINTES............................................ 323
INTRODUÇÃO

A salvação da humanidade tem sido o propósito singular de Deus desde a


eternidade. Desde suas páginas introdutórias, as Escrituras testificam a determinação
de Deus de restaurar o relacionamento íntimo com Seus filhos rebeldes e Seu desejo de
devolver o universo à sua condição imaculada e sem pecado. Para um crente cristão, o
estudo do tema da salvação, conforme apresentado nas Escrituras, representa a busca
mais gratificante e alegre. O estudo da salvação não é, porém, isento de dificuldades.
Isso ocorre porque a Bíblia nos apresenta uma descrição da salvação que é simples
e complexa. Por um lado, em todo o Antigo Testamento, Deus parece tomar a iniciativa
ao convidar os humanos a responder à Sua oferta de salvação e fornecer-lhes os meios
para permanecerem dentro dos limites da aliança. Eventualmente, inaugurando a era
do Novo Testamento, Deus envia Seu Filho Jesus, que proclama o início do Reino de
Deus. A mensagem da salvação parece ser bastante simples: “Quem crê no Filho”, disse
Jesus, “tem a vida eterna” (Jo 3:36, NVI). Ecoando as palavras de Jesus, o apóstolo João
escreveu: “Crê no nome do Filho de Deus, para que saibas que tens a vida eterna” (1Jo
5:13, NASB).
Por outro lado, a história da salvação humana é parte de um drama cósmico
imensamente complexo descrito por Paulo como “o mistério da piedade” (1 Tm 3:16,
NKJV). Esse mistério envolve a encarnação de Cristo, o enigma de Sua natureza e Sua
vida exemplar de autossacrifício que levou à morte sacrificial na cruz. O mistério se
compõe ao contemplar Sua miraculosa ressurreição e ascensão ao céu, onde Ele agora
está sentado à direita de Deus, ministrando à humanidade. Como resposta à iniciativa
de Deus, os escritores bíblicos chamam os humanos a reconhecerem sua própria
pecaminosidade e se deixarem levar pelo Espírito Santo ao arrependimento, confissão,
justificação, santificação por meio de discipulado fiel e, finalmente, glorificação. Assim,
o que as Escrituras têm a dizer sobre a salvação está longe de ser simples, pois envolve
uma interação complexa entre Deus e os seres humanos manchados pelo pecado.
Acrescentada a esta dificuldade está a sempre presente questão do envolvimento
humano no processo de salvação. Até onde se estende, se é que se estende? Deus faz
tudo, reduzindo os humanos a meros espectadores na batalha cósmica entre o bem e o
mal? Ou Ele torna a salvação possível, deixando toda a iniciativa para os humanos
trabalharem em sua salvação? Ao contemplar a extensão do dano que Adão e Eva
legaram a seus descendentes, outras dificuldades aparecem no horizonte soteriológico.
Os humanos nascem no mesmo estado espiritual que seus primeiros pais antes de
pecarem? Eles carregam apenas as consequências físicas da Queda? Ou a natureza
espiritual da humanidade também é prejudicada para que todos os humanos nasçam
pecadores?
Essas e muitas outras questões relacionadas à doutrina da salvação têm sido
debatidas ao longo da história; às vezes, respostas diversas levaram a divisões, cismas,

9
excomunhões, anátemas, guerras e derramamento de sangue. Hoje, os cristãos
continuam divididos sobre essas questões. Portanto, a fim de introduzir este volume e
ajudar o leitor a compreender sua intenção, o que segue é um breve panorama da
história da soteriologia cristã.
Os primeiros cristãos pós-apostólicos não se concentraram muito na doutrina da
salvação. Em geral, no entanto, eles tendiam a supor que a Queda não danificou a
natureza humana muito severamente, deixando os seres humanos com a capacidade
natural de cooperar com Deus no processo de salvação. Muitos acreditavam que a
imagem de Deus acabaria sendo restaurada nos humanos por meio de um fiel
seguimento de Jesus, bem como por meio de suas boas obras. Isso eventualmente
resultaria em “divinização”, ou theosis, um tornar-se como Deus. O propósito de tal
processo era a unificação do crente com a natureza divina de Cristo a tal ponto que os
efeitos do pecado sobre a natureza humana seriam apagados, permitindo assim que o
crente alcançasse um estado de perfeição.
As primeiras discussões sobre salvação chegaram ao auge no século IV e resultaram
no que é conhecido como a Controvérsia Pelagiana. Essa controvérsia foi disputada
principalmente entre os seguidores de Pelágio e Agostinho, que tinham opiniões
diversas sobre a natureza da humanidade. Pelágio ensinou que os humanos nascem
perfeitos e, portanto, podem obedecer perfeitamente aos mandamentos de Deus.
Agostinho, por outro lado, abraçou uma compreensão sombria da natureza humana:
não há nada de bom na natureza humana, e os humanos não têm capacidade de
responder à iniciativa de Deus. Deus, portanto, tem que lidar com o pecado por Sua pura
graça e sem envolvimento humano. O pelagianismo, com sua ênfase na bondade
humana, e o agostinianismo, com sua ênfase na maldade humana e, portanto, na
incapacidade inata de cooperar com Deus, formam dois suportes de livros da
soteriologia cristã tradicional. Todas as outras soteriologias se encontram em algum
lugar entre essas duas visões.
A compreensão católica da salvação que surgiu durante a Idade Média rejeitou
ambos os extremos e se transformou em uma soteriologia que abraçava tanto a graça
quanto as obras. Enquanto Deus inicia o processo de salvação pela graça, esperava-se
que os humanos respondessem por suas boas obras, que eram então creditadas a eles
como mérito. Este sistema de mérito humano eventualmente contribuiu para muitos
abusos e resultou no surgimento da Reforma do século XVI, que rejeitou a síntese
católica de obras de graça e tentou retornar ao Evangelho como ensinado pelos
apóstolos. No entanto, em vez de retornar ao entendimento apostólico da salvação, e
em sua reação exagerada ao catolicismo, reformadores como Lutero, Zuínglio e Calvino
retornaram ao ensino de Agostinho e abraçaram o conceito de predestinação
incondicional. Eles proclamaram que, após a queda, os humanos perderam a capacidade
de responder livremente à iniciativa de salvação de Deus. Essa situação só poderia ser
corrigida pela eleição arbitrária de Deus de alguns humanos para a salvação. Desta
forma, os reformadores foram capazes de sustentar que a salvação era uma “pura
dádiva” de Deus, sem qualquer indício de envolvimento humano – nem mesmo a

10
possibilidade de fazer uma escolha. A salvação, afirmavam eles, não poderia depender
da escolha humana.
Enquanto o ramo luterano da Reforma eventualmente rejeitou essas ideias e
abraçou a compreensão da salvação humana baseada na graça de Deus e na resposta
humana livre à iniciativa de Deus, o ramo reformado da Reforma continuou a ser cada
vez mais entrincheirado no predestinacionismo incondicional. Uma correção desse
curso ocorreu há pouco mais de quatrocentos anos, em 1610, quando um grupo de
pregadores e teólogos holandeses publicou um documento no qual responderam às
acusações de heresia levantadas contra os ensinamentos do notável teólogo reformado
Jacob Arminius. Este documento encapsulava os ensinamentos soteriológicos
arminianos em cinco pontos e, posteriormente, ficou conhecido como The
Remonstrance [A Remosntrância]. Nos anos que se seguiram, os ensinamentos de The
Remonstrance tornaram-se um ponto de encontro para aqueles que estavam
insatisfeitos com o calvinismo tradicional. Em 1618, durante o Sínodo de Dort, teólogos
calvinistas lutaram contra a soteriologia arminiana apresentada em The Remonstrance
e formularam sua própria resposta aos cinco pontos do arminianismo. Isso acabou se
tornando conhecido como os cinco pontos do calvinismo, também conhecido como
TULIP (Depravação Total, Eleição Incondicional, Expiação Limitada, Graça Irresistível e
Perseverança dos Santos).
Décadas e séculos subsequentes testemunharam uma onda de conflitos entre
muitos grupos religiosos cristãos protestantes que traçaram suas raízes teológicas ao
calvinismo, luteranismo ou arminianismo, resultando em uma miscelânea de
soteriologias. O Metodismo do século XVIII, que defendeu o pensamento arminiano,
formou o contexto teológico imediato para o surgimento da soteriologia adventista do
sétimo dia no século XIX. A compreensão adventista do sétimo dia da salvação está
enraizada nas Escrituras e encontra-se claramente dentro da vertente da Reforma
Protestante do século XVI, que foi refinada pelo Arminianismo clássico e pelo
movimento Wesleyano.
UMA NOTA DOS EDITORES
Estando conscientes das várias vertentes soteriológicas existentes na teologia
protestante, nós, como teólogos adventistas, temos um grande interesse em questões
relacionadas a uma compreensão bíblica da natureza humana, livre-arbítrio, graça de
Deus, expiação e predestinação. Em reconhecimento ao 400º aniversário da
Remonstração em 14-17 de outubro de 2010, o Seminário Teológico Adventista do
Sétimo Dia organizou um simpósio internacional dedicado ao estudo dessas importantes
questões. A ideia para este livro nasceu durante esse simpósio. O que você tem agora
em suas mãos é resultado de uma estreita colaboração de muitos estudiosos adventistas
que desejam apresentar uma compreensão bíblica da salvação.
Honrando nossas raízes soteriológicas arminianas, geralmente organizamos este
livro de acordo com os cinco pontos do Arminianismo: Eleição Condicional, Expiação
Ilimitada, Depravação Total, Graça Resistível e Certeza/Santificação Cristã. Ajustamos a

11
ordem dos cinco pontos apresentando o problema do pecado antes de apresentar a
solução da expiação. Desta forma, a cruz de Cristo constitui a peça central “quiástica”
de nossa apresentação da soteriologia protestante adventista. A primeira parte introduz
o livro e trata da questão do grande conflito, presciência e predestinação de Deus. A
segunda parte trata do problema do pecado e da natureza humana. Na terceira parte,
os autores apresentam a compreensão bíblica da obra de Cristo. A quarta parte explora
o tema da graça de Deus. A quinta e última parte é dedicada à certeza da salvação.
Como em qualquer trabalho colaborativo, é de se esperar que o leitor encontre
diferenças significativas no estilo de apresentação e, às vezes, nas abordagens. É
impossível que um volume como este seja tão unificado e bem integrado como uma
obra de um único autor. Ao invés de uma responsabilidade, no entanto, esta é, em nossa
opinião, uma força deste livro, pois cada autor traz seu dom individual, perspectiva e
personalidade para este projeto, permanecendo sob o guarda-chuva maior do
Arminianismo. Isso também sugere que haverá um certo grau de sobreposição entre
várias contribuições. Optamos por permitir a sobreposição por dois motivos: primeiro,
cada autor aborda o material de um ângulo diferente; segundo, enquanto alguns leitores
podem optar por ler este livro de capa a capa, o cenário mais provável é que os leitores
leiam primeiro os capítulos de seu interesse. Portanto, sobreposições ocasionais não
representam um problema significativo.
Esperamos e oramos para que este livro, resultado de muitos anos de reflexão e de
minuciosa pesquisa bíblica e histórica, se revele um recurso inestimável para todos,
especialistas e não especialistas, interessados na compreensão adventista da doutrina
bíblica ensinando sobre a doutrina da salvação.

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SEÇÃO 1
O PLANO DE DEUS EM CRISTO:
A SALVAÇÃO É PARA TODOS?

A doutrina cristã da salvação inclui a verdade sobre o que Deus planejou para nossa
salvação. Visto que Deus é onisciente, conhecendo todas as coisas, Ele antecipou o
problema do pecado e Seu plano para resolvê-lo antes de criar seres livres que
pudessem cair no pecado. A Bíblia se refere a este plano em termos do mistério revelado
do propósito eterno de Deus (Efésios 1:9; 3:11).
No entanto, os cristãos chegaram a conclusões diferentes sobre a natureza do
mistério do plano de Deus. Essas várias conclusões envolvem respostas diferentes para
as seguintes perguntas: Como a imperfeição do pecado pode vir a existir no universo
criado por um Deus perfeito e sem pecado? Como os seres criados podem ser livres para
pecar ou receber a salvação se Deus de antemão conheceu e planejou, ou predestinou,
tudo o que eles fariam antes de criá-los? Essas e outras questões relacionadas são
abordadas nesta seção deste livro.
Quatro autores apresentarão estudos históricos e bíblicos do plano de salvação de
Deus. O primeiro capítulo, de autoria de Nicholas Miller, fornece uma visão histórica das
visões cristãs sobre a natureza do plano de Deus. O segundo capítulo, escrito por
Norman R. Gulley, apresenta o plano de salvação no amplo contexto da controvérsia
cósmica entre Cristo e Satanás. No terceiro capítulo, Martin Hanna apresenta um estudo
do papel da presciência de Deus em Seu plano pré-criação para restaurar e preservar a
liberdade por meio da salvação. Finalmente, o quarto capítulo, de Hans LaRondelle e
John McVay, é um estudo do papel da predestinação e eleição de Deus em Seu plano de
salvação pré-criação.

13
CAPÍTULO 1
HISTÓRICO DO RELACIONAMENTO ENTRE O LIVRE-
ARBÍTRIO HUMANO, O CARÁTER DE AMOR DE DEUS E O
GRANDE CONFLITO
Nicholas P. Miller

Os adventistas gostam de pensar que uma das contribuições únicas que a Igreja deu
ao pensamento cristão é o tema do Grande Conflito. Isso se refere ao conflito entre Deus
e Satanás que gira em torno da sabedoria e caráter de Deus e as acusações de Satanás
de que Deus é arbitrário, injusto e, em última análise, egoísta.
É verdade que os adventistas fizeram do Grande Conflito um tema e foco de seu
pensamento inigualável em outras denominações. Mas a estrutura maior do motivo
antecede o nascimento da Igreja Adventista em vários séculos. De fato, os insights
teológicos que formam seus contornos básicos na era moderna remontam pelo menos
ao início do século XVII. Foi quando os Remonstrantes holandeses – seguidores e
apoiadores do famoso teólogo Jacó Armínio – pegaram concepções do livre-arbítrio
humano e da presciência de Deus e as relacionaram com a natureza e o governo de
Deus.
Os capítulos desta seção exploram as vertentes teológicas do livre-
arbítrio/presciência/caráter de Deus para fazer um argumento convincente de que há
um forte fundamento bíblico para o entendimento adventista da liberdade básica de
todos os humanos, iluminados pela graça preveniente, escolher um Deus de amor. A
presciência de Deus do destino eterno das pessoas não compele nem determina seu
destino e, portanto, é consistente com a liberdade dada pelo amor verdadeiro, como
mostrado em uma controvérsia entre o bem e o mal.
Este capítulo histórico mostrará quão intimamente relacionados estavam os tópicos
individuais de liberdade, conhecimento divino e a revelação do caráter amoroso de Deus
em seu desenvolvimento histórico. Ver o desenvolvimento inicial e a inter-relação entre
o livre-arbítrio humano e o tema do Grande Conflito revelará como esse tema pode
desempenhar um papel maior na formação e até mesmo na correção de outras crenças
adventistas. A demonstração das raízes comuns do tema com outras denominações
permite que o Grande Conflito seja usado como uma ponte eficaz para alcançar outros
cristãos com a mensagem adventista.

14
JACÓ ARMÍNIO, A NATUREZA DE DEUS, E AS RAÍZES DA TEOLOGIA DO LIVRE-
ARBÍTRIO
Para construir esta ponte, é necessário voltar para perto do alvorecer da Reforma
Protestante. Foi no final do século XVI que Jacó Armínio, o grande teólogo holandês,
lançou uma modificação da teologia calvinista que preparou o terreno para o tema do
Grande Conflito. Armínio forneceu uma nova leitura da tradição calvinista para permitir
o genuíno livre-arbítrio humano e a possibilidade de salvação para todos os que
cressem. Desde então, a teologia arminiana se tornou sinônimo de rejeição da
predestinação humana, expiação limitada e soberania arbitrária de Deus.
Esta identificação de Armínio com a teologia do livre-arbítrio é um tanto infeliz, uma
vez que faz parecer que as concepções da liberdade humana são uma adição de terceira
ou quarta geração ao pensamento protestante. Alguns afirmam que uma visão do livre-
arbítrio é, portanto, uma corrupção do protestantismo verdadeiro e original. Mas essa
posição ignora os protestantes anteriores que abraçaram a ideia da liberdade humana
desempenhando um papel na salvação, incluindo o teólogo luterano Philip Melanchthon
e todo o movimento anabatista evangélico.
Os primeiros reformadores magisteriais líderes, Lutero e especialmente Calvino,
reagiram contra uma tendência da escolástica medieval de subestimar a gravidade da
queda da humanidade no pecado e de exagerar a capacidade humana de conhecer e
fazer o bem. Ambos os homens estavam lutando para mover a igreja de uma posição
pelagiana, que sustentava que os humanos poderiam escolher se tornar melhores, para
uma que entendesse a absoluta necessidade da graça de Deus para trazer qualquer
melhoria real. Ao evitar a vala teológica de enfatizar demais a justiça humana, porém,
eles caíram na vala oposta de enfatizar demais o desamparo humano e a arbitrariedade
de Deus.1
Nem Lutero nem Calvino, entretanto, fizeram da predestinação a preocupação
central de suas teologias. Lutero foi rápido em dizer que a predestinação só tinha a ver
com o Deus oculto, o deus absconditus, e que os cristãos deveriam se concentrar nas
escolhas e na graça que o Deus revelado prometeu a todos. Nem Lutero nem Calvino
usaram o termo dupla predestinação. Foi cunhado por teólogos posteriores para
transmitir a ideia de que Deus cria algumas pessoas que Ele salvará e cria outras que Ele
pretende condenar. Essa doutrina severa não foi expressa nesses termos por Lutero ou
Calvino, mas foi uma adição posterior pelos sucessores de Calvino em Genebra,
Theodore Beza e outros, que a viam como uma extensão lógica de suas crenças.
O luteranismo não é conhecido por suas doutrinas estritas de eleição e soberania,
em grande parte por causa da influência de Melanchthon. Também um reformador de
primeira geração, Melanchthon estava disposto a permitir que o enigma da presciência
divina e da liberdade humana ficasse sem solução, em vez de insistir que não havia livre-
arbítrio. Por influência de Melanchthon, o luteranismo tomou um caminho mais

1
Gerhard O. Forde, The Captivation of the Will: Luther v. Erasmus on Freedom and Bondage, ed. Steven
Paulson (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2005), 37.

15
moderado em relação à predestinação, com uma rejeição geral das noções de dupla
predestinação e alguma abertura à escolha humana.2
Mas havia outros reformadores de primeira geração que estavam ainda mais
determinados do que Melanchthon a defender a escolha humana em matéria de
salvação, principalmente os anabatistas. Em 1526, o anabatista Hans Denck, sem dúvida
provocado pelo debate Lutero/Erasmo sobre o testamento ocorrido no ano anterior,
expôs suas próprias opiniões sobre a liberdade humana. O título do trabalho de Denck
revela sua verdadeira preocupação – se Deus é a causa do mal. Neste livro, Denck tratou
do problema do mal e do livre-arbítrio. Ele evita a vontade totalmente cativa de Lutero
e a vontade humanista/pelagiana de Erasmo. Ele argumentou que “a salvação está no
homem, mas não nele”, e que, embora o homem naturalmente não pudesse escolher
se opor ao mal, ele tinha a capacidade de se submeter a Deus. Assim, o mal foi resultado
do fracasso escolhido do homem em se submeter a Deus e não pode ser atribuído a
Deus.3
Influenciado por Denck, o líder anabatista Balthasar Hubmaier escreveu suas
próprias obras sobre a natureza humana e a salvação.4 Hubmaier acreditava na Queda
e na natureza e alma humana pecaminosa.5 Mas ele afirmou que “quem nega a
liberdade da vontade humana, nega e rejeita mais da metade das Sagradas Escrituras”.6
Não só todas as pessoas têm a capacidade de escolher a Deus, uma vez que essa escolha
foi feita, elas ganharam a capacidade através do poder de Cristo de escolher o bem.
“Iluminada pelo Espírito Santo, [a alma] ... agora volta a conhecer o que é bom e o que
é mau. Recuperou a liberdade perdida. Ele pode agora livre e voluntariamente ser
obediente ao espírito contra o corpo e pode querer e escolher o bem... ”,7
Os pontos de vista de Hubmaier e Denck sobre o livre-arbítrio humano passaram a
caracterizar geralmente os pontos de vista dos anabatistas evangélicos, incluindo
aqueles na Áustria e na Holanda, onde Menno Simons articulou pontos de vista
semelhantes. Esses anabatistas evangélicos representam uma antiga herança
protestante de livre-arbítrio que é tão antiga quanto os ensinamentos de Lutero e
antecede os escritos de Calvino em mais de uma década.8

2
Timothy Wengert, ‘“We Will Feast Together in Heaven Forever’: The Epistolary Friendship of John Calvin
and Philip Melanchthon,” in Melanchthon in Europe: His Work and Influence Beyond Wittenberg, ed.
Karin Maag (Grand Rapids, MI: Baker, 1999), 26-29.
3
George Huntson Williams, The Radical Reformation, 3rd ed. (Kirksville, MO: Truman State University
Press, 2000), 257-258.
4
Ibid., 257n28.
5
Hubmaier tinha uma visão incomum do espírito humano não participar da Queda, mas isso não
significava nada e não poderia operar até que a alma caída recebesse a regeneração por meio de Cristo.
Ibid., 335.
6
Henry Clay Vedder, Balthasar Hubmaier: The Leader of the Anabaptists (New York: G. Putnams Sons,
Knickerbocker, 1905), 197.
7
Balthasar Hubmaier, “On Free Will,” in Spiritual and Anabaptist Writers, George H. Williams, ed.
(Philadelphia, PA: The Westminster Press, 1962), 124
8
Cornelius J. Dyck, ed., An Introduction to Mennonite History: A Popular History of the Anabaptists and
the Mennonites, 3rd ed. (Scottdale, PA: Herald, 1993), 142; C. Arnold Snyder, Anabaptist History and
Theology: An Introduction (Kitchener, ON: Pandora, 1995), 89-90.

16
Após meados do século XVI, Beza e outros começaram a intensificar a ênfase das
igrejas reformadas na predestinação e na soberania de Deus. A ênfase aumentada da
doutrina da eleição despertou preocupações sobre o livre-arbítrio humano e a relação
de Deus com o mal nos círculos teológicos fora da comunidade anabatista. Um desses
espectadores preocupados foi Jacó Arminius, pastor e professor reformado, que
começou seu ministério em Amsterdã no final da década de 1580.
Armínio teve contato com anabatistas menonitas na Holanda, e sua própria igreja
o encarregou de debater publicamente e refutar alguns “hereges” menonitas. Embora
Armínio nunca tenha se recusado explicitamente a refutar os menonitas, ele atrasou
continuamente o projeto. Eventualmente, o consistório percebeu que ele nunca faria
isso. Armínio diferia dos menonitas sobre o batismo e a natureza da igreja. Mas parece
que seus pontos de vista sobre a outra “heresia” anabatista, a da relação entre graça,
predestinação e livre-arbítrio, eram semelhantes aos deles.
Armínio também foi exposto aos pontos de vista de Melanchthon sobre
“predestinação condicional”.9 Foi neste contexto que Armínio desenvolveu uma
releitura cuidadosa do calvinismo. Ele afirmou os credos reformados existentes sobre o
pecado e a salvação, mas o fez de uma maneira que permitiu a livre escolha humana
genuína em aceitar a salvação. Sua razão para fazê-lo não foi principalmente por causa
de uma preocupação com a dignidade humana, importância ou liberdade. Em vez disso,
sua principal preocupação era a mesma dos primeiros anabatistas – a glória de Deus
vista em Seu caráter. Ele pretendia preservar o caráter de Deus da infâmia e calúnia que
Ele havia criado, ordenado ou autor do pecado e do mal.
Como o historiador da igreja Roger Olson coloca, “a objeção mais forte de Armínio
foi que” a predestinação incondicional é “'prejudicial à glória de Deus' porque 'destas
premissas deduzimos, como uma conclusão adicional, que Deus realmente peca... o
único pecador... que o pecado não é pecado.” Armínio nunca se cansou de argumentar
que a forte doutrina calvinista da predestinação não pode ajudar a tornar Deus o autor
do pecado, e se Deus é o autor do pecado, então o pecado não é verdadeiramente
pecado porque tudo o que Deus cria é bom.”10
Tanto Lutero quanto Calvino eram voluntaristas - eles abraçaram a visão de que
certo e bom são, por definição, tudo o que Deus faz ou decreta. Em última análise, é
uma posição que o poder de Deus corrige.11 Armínio era um antivoluntarista. Ele
acreditava que Deus escolheu fazer o bem e o certo porque era bom e certo - não que
Ele fosse medido por algum padrão externo, mas que o bem e o certo existiam como
parte de Sua própria natureza. Ao criar o mundo e a humanidade, Ele incorporou essas
verdades na própria criação. Enquanto caído, a criação de Deus ainda contém traços
dessa natureza divina.

9
Carl Bangs, Arminius: A Study in the Dutch Reformation (Eugene, OR: Wipf and Stock, 1985), 169-171,
193-194.
10
Roger E. Olson, The Story of Christian Theology: Twenty Centuries of Tradition & Reform (Downers
Grove, IL: InterVarsity, 1999), 467.
11
Olson, The Story of Christian Theology, 387-388 (Luther), 410-411 (Calvin).

17
Armínio postulou uma conexão clara entre o ser de Deus e os seres que Ele criou.
Ele escreveu que Deus “é o maior Ser e o único grande; pois ele é capaz de subjugar ao
seu domínio até mesmo nada, para que se torne capaz do bem divino pela comunicação
de si mesmo”.12 Essa comunicação permitiria que seres menores entendessem e
tivessem conhecimento real da essência do Ser divino. “Em primeiro lugar, ele é
chamado de ‘Ser em si’”, escreveu ele, “porque se oferece ao entendimento como
objeto de conhecimento”.13
Armínio reconheceu que a lacuna entre o Ser divino e o ser criado é enorme, até
mesmo “infinita”, e o fato de que meros seres nunca podem ser elevados à “igualdade
divina com Deus”. Mas, apesar dessa lacuna e distância, e reconhecendo que “a mente
humana é finita por natureza”, Armínio acreditava que ela é “uma participante do
infinito – porque apreende o Ser Infinito e a Verdade Principal, embora seja incapaz de
compreendê-los”.14
Em outras palavras, Armínio acreditava que os humanos eram capazes de conhecer,
pelo menos em parte, Deus como Ele realmente é. Isso deve ser verdade para os
humanos façam escolhas significativas sobre aceitar e seguir a Deus. Se o verdadeiro
conhecimento sobre Deus não é possível, então a escolha real sobre Deus também não
é possível. Assim, quando Cristo revelou Deus, Ele nos mostrou coisas verdadeiras sobre
a natureza real de Deus. Não há naturezas contrárias e ocultas escondidas por trás dessa
natureza revelada.
Quanto à natureza de Deus, Armínio foi muito claro: “É digno de receber adoração,
por causa de sua justiça; que está qualificado para formar um julgamento correto dessa
adoração, por causa de sua sabedoria”.15 É a revelação dessa natureza que torna a
escolha humana significativa e, portanto, possível.
HUGO GROTIUS E O GOVERNO MORAL DE DEUS
Foi em busca dessa reivindicação da natureza “digna” de Deus que a história dos
Remonstrantes holandeses, partidários de Armínio, se desenrolou na Holanda. Como os
guardiões da ortodoxia calvinista estavam ansiosos para esmagar essas ideias
“progressistas” sobre Deus, depois que Armínio morreu em 1609, seus seguidores
redigiram um protesto, uma petição, contra a ortodoxia oficial da igreja estatal. Os cinco
pontos dos Remonstrantes afirmavam eleição condicional (Deus escolheu todos
condicionados ao exercício de sua fé), expiação ilimitada (Cristo morreu por todos),
depravação (a imagem de Deus na humanidade caída é manchada, mas não obliterada),
graça preveniente (A graça libertadora de Deus está disponível para todos) e escolha
contínua (oposição a uma vez salvo, sempre salvo).
Esses pontos têm implicações óbvias para a teodiceia. Em particular, as noções de
eleição condicional e expiação ilimitada - a visão de que Deus criou um caminho para

12
Jacob Arminius, Works of Jacob Arminius, vol. 1 (Montoursville, PA: Lamppost Books, 2009), 12.
13
Ibid., 13.
14
Ibid.
15
Arminius, Works of Jacob Arminius, vol. 1,15.

18
que todos sejam salvos, e a escolha está em suas mãos quanto a responder à graça que
Ele deu - pintam um quadro de Deus isso é muito diferente da visão calvinista de que a
expiação de Cristo foi feita apenas para um eleito arbitrariamente escolhido.
Um dos Remonstrantes, um pensador talentoso chamado Hugo Grotius, elaborou
as ideias da natureza de Deus, a expiação geral e a liberdade humana em uma concepção
mais ampla conhecida como o governo moral de Deus. Grotius, um nome bem
conhecido nos círculos jurídicos, é considerado o pai do direito internacional, do direito
da guerra e da paz e das concepções protestantes do direito natural. Em sua época, ele
era igualmente famoso por esses escritos teológicos.16
Grotius foi condenado e preso por calvinistas estritos por apoiar Armínio e suas
crenças sobre a liberdade da vontade e a predestinação condicional. Ele escapou de uma
vida de prisão escondendo-se em um baú que supostamente carregava seus livros para
fora da prisão. Mas ele só escapou depois de ter escrito uma defesa do cristianismo
intitulada The Truth of the Christian Religion [A verdade da religião cristã]. É considerado
o primeiro livro da apologética moderna e explica e justifica a Bíblia e o cristianismo em
comparação com outras religiões do mundo.17
Ele também escreveu outro livro intitulado Concerning the Satisfaction of Christ, no
qual explorou as teorias da expiação de Cristo à luz do governo moral de Deus que a
teologia do livre-arbítrio de Armínio trouxe à luz. Grotius trouxe sua formação jurídica
para sustentar, construindo o que veio a ser conhecido como a teoria do governo moral
da expiação.18 (Isso às vezes é confundido com a teoria da influência moral da expiação,
mas as duas são ideias muito separadas.)
A teoria do governo moral da expiação é melhor compreendida em relação às visões
anteriores. Não tanto os deslocou, mas os esclareceu, refinou e reafirmou. Anselmo
havia argumentado que Cristo deve morrer no lugar da humanidade para satisfazer a
honra prejudicada de Deus. Calvino modificou isso um pouco para tornar a necessidade
da substituição de Cristo uma resposta à lei ofendida e à santidade de Deus. A morte de
Cristo proporciona satisfação à santidade, lei e justiça de Deus ofendidas, pois de alguma
forma, misteriosamente, nossa culpa, pecado e punição são transferidos para Cristo.19
Grotius não negou que a honra, santidade, justiça e lei de Deus estivessem
implicadas na expiação. Ele aceitou que estes foram de fato violados e ofendidos pelo
pecado. Em vez disso, ele respondeu à pergunta sobre por que Deus não podia perdoar
essa violação simplesmente aceitando a genuína tristeza e arrependimento do pecador.
Visto que os humanos podem perdoar sem exigir sacrifício ou sofrimento, por que Deus

16
J. B. Schneewind, The Invention of Autonomy: A History of Modern Moral Philoso¬phy (New York:
Cambridge University Press, 1998), 66-67.
17
Schneewind, The Invention of Autonomy, 68.
18
Hugo Grotius, A Defence of the Catholic Faith Concerning the Satisfaction of Christ Against Faustus
Socinus, trans. Frank Hugh Foster (Andover: Warren F. Draper, 1889).
19
Frank H. Foster. “A Brief Introductory Sketch,” ibid., xi-xiv.

19
não pode? Esta era a pergunta que Faustus Socinus estava fazendo, e à qual Grotius
respondeu.20
Deus não podia meramente perdoar livremente o pecador, apontou Grotius,
porque não era Seu papel meramente como uma Deidade individual ofendida que
estava envolvida. Em vez disso, envolvia Seu papel como Governante do universo – um
universo que só pode funcionar em paz e segurança de acordo com certos princípios de
equidade e justiça.
Essa mudança de Deus como Ser ofendido para Deus como Governante ofendido
significa que, ao fazer cumprir Sua lei, Ele não está fazendo isso por algum sentimento
pessoal de ressentimento, orgulho ou glória prejudicada. Em vez disso, Ele está agindo
em favor do bem de todos os seres do universo que dependem da estabilidade, justiça
e moralidade de Seu governo. Ao defender Sua honra, Seu caráter, Ele defende, como
Governante do Universo, aquilo que permite que o próprio universo tenha ordem,
estabilidade, segurança, paz e, claro, amor.21
Grotius aplicou esses insights sobre o governo de Deus para ajudar a explicar alguns
dos mistérios que cercam a expiação. Mas a estrutura que ele criou ao fazê-lo ajudou a
fornecer um fundamento e uma base para lidar também com muitas outras questões,
como a relação de Deus com o pecado, o mal, a justiça e a injustiça. No governo moral
de Deus, Grotius articulou a estrutura básica necessária para uma exposição maior de
um tema do Grande Conflito.
Por que Deus deve mostrar que Ele é um governante justo, não arbitrário? Porque
Ele se importa com as opiniões e a boa vontade do universo que está olhando. Ele está
disposto a ter Seu governo e Suas leis, que refletem Seu caráter, examinados e avaliados
por Seus seres criados. Esta compreensão da soberania e justiça de Deus em relação ao
livre-arbítrio humano foi a chave que abriu a porta para o governo moral de Deus; o
governo moral de Deus foi, por sua vez, a chave que abriu a porta para o tema maior do
Grande Conflito, a estrutura teológica do adventismo. Mas como esses insights sobre o
governo de Deus e o livre-arbítrio humano chegaram aos primeiros adventistas?
A INFLUÊNCIA DE GROTIUS NA INGLATERRA E NO INÍCIO DA AMÉRICA
Grotius exerceu influência significativa na arena teológica por algum tempo. John
Milton, quando estava em turnê pela Europa em 1638, ficou com Hugo Grotius em Paris
por um período. Embora Milton tivesse uma forte formação calvinista e puritana, ele
emergiu como um crente no livre-arbítrio, na expiação ilimitada e, definitivamente, no
governo moral de Deus. Seu Paradise Lost [Paraíso Perdido], é claro, foi escrito com o
propósito específico de “justificar os caminhos de Deus aos olhos dos homens”. A defesa
de Milton dos caminhos e julgamentos de Deus não é um ideal calvinista, que teria
enfatizado a soberania de Deus. É, no entanto, uma visão muito arminiana/grotiana do
governo moral de Deus do mundo.

20
Ibid., xv.
21
Ibid., xvi.

20
Samuel e Susanna Wesley, pais de John Wesley, o fundador do Metodismo, eram
defensores do Arminianismo Anglicano. O comentarista bíblico favorito de Samuel era
Hugo Grotius, e ele recomendou suas obras a John. Os escritos de Grotius tornaram-se
um grande recurso teológico para Wesley e seus amigos na Universidade de Oxford.22
Através de Wesley, o Metodismo veio a herdar tanto os pontos de vista de Armínio
sobre a graça preveniente e a liberdade da vontade, quanto os pontos de vista de
Grotius sobre o governo moral de Deus. Richard Watson, o sistematizador teológico
metodista, escreveu em 1823 que “a existência de uma Lei Divina, obrigatória para o
homem, não é posta em dúvida por qualquer um que admita a existência e o governo
de Deus... o fato da extensão e severidade da punição denunciada contra todas as
transgressões da lei de Deus, porque isso é ilustrativo do caráter de Deus; tanto com
referência à sua santidade essencial quanto aos seus procedimentos como Governador
do Mundo.”23
Esta introdução do caráter de Deus ajuda a responder a um dos enigmas mais
complicados da posição antivoluntarista arminiana. Se a vontade e o poder de Deus não
definem Deus, mas Deus só faz aquelas coisas que são boas, então Deus está de alguma
forma obrigado a uma lei ou moral superior a Ele mesmo? Existe algo maior que Deus?
O enigma é resolvido se as leis pelas quais Ele está vinculado são os princípios reais de
Seu próprio caráter e natureza.
É de grande interesse notar que aqueles que defendiam a liberdade de escolha
humana e o fato do governo moral de Deus também começaram a buscar liberdades
civis e esperar padrões mais elevados de moralidade dos governos humanos. Os
metodistas eram contra a escravidão quase desde suas origens modernas. William
Wilberforce, o grande parlamentar britânico que acabou com o comércio de escravos
britânico, foi criado como metodista quando jovem. Mais tarde na vida, após sua
conversão adulta, ele se associou a ministros não-conformistas, incluindo metodistas,
que se opunham à escravidão. No meio de sua luta contra o tráfico de escravos,
Wilberforce recebeu o que pode ter sido a última carta que John Wesley escreveu,
encorajando-o a fazer todo o possível para acabar com o tráfico de escravos.24
Os metodistas americanos votaram em 1784 para expulsar os membros que
compravam e vendiam escravos. Mais tarde, eles cederam à pressão política e
econômica para aceitar a escravidão no sul. Mas sob as influências revigorantes do

22
Veja Richard P. Heitzenrater, ed., Diary of an Oxford Methodist: Benjamin Ingham, 1733-34 (Durham,
NC: Duke Univ. Press, 1985).
23
Richard Watson, Theological Institutes; or a View of the Evidences, Doctrines, Morals, and Institutions
of Christianity, vol. 1 (New York: J. Emory and B. Waugh, 1831), 254, emphasis added.
24
Em sua carta, Wesley escreveu: “A menos que o poder divino o tenha levantado para ser como Atanásio
[contra o mundo] em se opor àquela execrável vilania que é o escândalo da religião, da Inglaterra e da
natureza humana. A menos que Deus o tenha levantado exatamente para isso, você será desgastado pela
oposição de homens e demônios. Mas se Deus é por você, quem será contra você? Todos eles juntos são
mais fortes que Deus? Ó, não te canses de fazer o bem! Vá em frente, em nome de Deus e na força de seu
poder, até que mesmo a escravidão americana (a mais vil que já viu o sol) desapareça antes dela ”, John
Wesley para William Wilberforce, 24 de fevereiro de 1791, citado em Eric Metaxas, Amazing Grace:
William Wilberforce and the Heroic Campaign to End Slavery (Toronto, ON: HarperCollins, 2007), 144.

21
Segundo Grande Despertar, eles mais uma vez renovaram seus compromissos de se
opor à escravidão. Em 1844, a Igreja Metodista Americana expulsou os grupos que
pertenciam a igreja que continuavam a apoiar a escravidão.
Curiosamente, essa postura antiescravagista veio a ser compartilhada por outro
ramo da influência moral do governo de Deus que veio para a América. Este ramo,
ironicamente, desenvolveu-se dentro das igrejas reformadas, tornando-se um
movimento de renovação dentro do Congregacionalismo e Presbiterianismo Americano.
A teologia de Grotius tinha raízes profundas no puritanismo americano. As obras de
Grotius foram lidas na Nova Inglaterra já na década de 1650, e uma cópia de Satisfaction
estava na Harvard College Library em 1723. Grotius também era frequentemente citado
nos escritos do puritano Richard Baxter, que era amplamente lido na Nova Inglaterra.25
Seria uma história separada traçar a maneira pela qual os teólogos da Nova
Inglaterra rejeitaram amplamente o Arminianismo em termos de vontade e
predestinação, mas foram influenciados e eventualmente abraçaram noções do
governo moral de Deus em relação à expiação.26 Essa combinação de predestinação e
governo moral de Deus era uma coalizão de pensamento instável. Mas enquanto durou,
seus proponentes introduziram a importância do caráter de Deus na definição das leis
de Seu universo.
O ministro da Nova Inglaterra, Samuel Hopkins, escreveu que a lei de Deus é “uma
regra de justiça eterna e inalterável que não pode ser revogada ou alterada...
consistente com seu caráter, sua perfeita retidão e justiça”. Fazer isso “poria fim a todo
governo moral perfeito... e daria pleno alcance ao reino de rebelião, confusão e miséria
para sempre”.27 Nos escritos de Hopkins, a necessidade de manter “a lei torna-se mais
evidente e fundamentada em um pensamento mais profundo do que o alcançado por
Grotius, que negligenciou afirmar a relação existente entre o governo e o caráter de
Deus”.28
É notável que os teólogos da Nova Inglaterra que abraçaram e desenvolveram a
teologia do governo moral estavam, como seus primos arminianos, também envolvidos
na defesa contra a escravidão. A geração anterior de puritanos não havia falado muito
sobre a escravidão. De fato, o Sr. Jonathan Edwards possuía escravos e escreveu em
defesa da prática. Mas o governo moral de Deus elevou as posições de todos os
humanos, tornando-os todos participantes de um exame do governo celestial. Assim, a
todos era devido um tratamento razoável e justo nesta terra. E se o governo de Deus
operasse de maneira moral, como os governos humanos poderiam ser dispensados de

25
Foster, “Historical Introduction,” A Defense of the Catholic Faith, xliv
26
Ibid., xliii-lvi.
27
Ibid., xlviii. .
28
Ibid., xlix

22
fazê-lo?29 Tanto Hopkins quanto seu aliado moral do governo, Jonathan Edwards Jr.,
escreveram grandes tratados contra a escravidão e o comércio de escravos.30
Mas a tensão entre um compromisso com a predestinação, que elevava os aspectos
arbitrários de Deus, e o governo moral de Deus, que se concentrava em Sua justiça,
estava levando a teologia reformada a um ponto de crise. Esse momento veio na
ascensão da teologia de New Haven e do presbiterianismo da New School nas décadas
de 1820 e 1830. Esses movimentos criaram muito do contexto teológico imediato e da
matriz do adventismo primitivo.
A TEOLOGIA DO NEW HAVEN E O PRESBITERIANISMO DA NEW SCHOOL: NATHANIEL
TAYLOR, ALBERT BARNES E A MATRIZ DO ADVENTISMO
O teólogo no centro desses novos movimentos foi Nathaniel Taylor, professor de
teologia na Universidade de Yale de 1822 a 1858. Taylor era um professor
congregacionalista biblicamente conservador e devoto de dentro da tradição
reformada. Mas ele se baseou nos insights de Edwards Jr. e Hopkins, e seguiu a teoria
do governo moral de Deus até suas conclusões lógicas. Ou seja, ele acreditava e ensinava
que um Deus verdadeiramente moral daria oportunidade para que todos fossem salvos.
Os ouvintes de Taylor atestaram tanto sua piedade quanto sua paixão pelo governo
moral de Deus. Como se disse, “O Governo Moral de Deus foi o grande pensamento do
intelecto do Dr. Taylor e o tema favorito de suas instruções em teologia. Ocupava sua
mente mais do que qualquer outro assunto... Esse objeto dirigia todos os seus estudos.
Todas as suas investigações tiveram como ponto de partida este tema central.” Outro
ex-aluno disse: “durante a palestra, sua voz muitas vezes tremia, e às vezes as lágrimas
começavam, especialmente quando se falava do governo moral de Deus”.31
Para Taylor, foi uma compreensão da absoluta moralidade e justiça do governo de
Deus que se opôs às alegações do alto calvinismo de que apenas uns poucos eleitos
tiveram a oportunidade de salvação. Ele veio a abraçar uma visão geral da expiação: que
Cristo morreu por todos. Para Taylor, essas eram as boas novas do governo moral de
Deus. Como ele colocou: “Que... a impressão seja completa, forte, inqualificável em toda
mente culpada, que Deus em sua lei, e Deus nos convites de sua misericórdia, significa
exatamente o que ele diz. Que a sinceridade plena de um Deus redentor, como o sol no

29
Uma boa discussão dos argumentos de Edwards Jr. e Hopkins pode ser encontrada em “Edwardeanism,
Governmental Atonement Theology, and Slavery”, de Andrew Blosser, abril de 2013; este é um artigo
ainda não publicado submetido ao meu curso de Seminário em História do Pensamento Religioso
Americano na Universidade Andrews.
30
Jonathan Edwards, Jr., “The Injustice and Impolicy of the Slave Trade, and of Slavery”, em The Works of
Jonathan Edwards, vol. 2, ed. Bruce Kuklick (Nova York: Garland, 1987); Samuel Hopkins, “A Dialogue
Concerning the Slavery of the Africans”, em The Anti¬Slavery Crusade in America, ed. J. Mcpherson e W.
Katz (Nova York: Arno Press 1969).
31
Quoted in Douglas A. Sweeney, Nathaniel Taylor, New Haven Theology, and the Legacy of Jonathan
Edwards (New York: Oxford University Press, 2003), 91.
.

23
meio do céu, seja feita para derramar seus raios derretidos sobre a mente escura e
culpada do pecador contra Deus”.32
Taylor ensinava regularmente um curso chamado Governo Moral de Deus, e essas
palestras eram reunidas e colocadas em um volume com o mesmo nome. Ele influenciou
uma geração de pastores e teólogos presbiterianos, incluindo homens como Charles
Finney, o grande evangelista do Segundo Grande Despertar, e Albert Barnes, o
comentarista bíblico.
Albert Barnes foi julgado por heresia por causa de sua adoção dos princípios da New
School [Nova Escola] de expiação ilimitada e liberdade da vontade. Ele também escreveu
duas grandes obras contra a escravidão no período que antecedeu a Guerra Civil. Finney
foi o evangelista do movimento do governo moral, mas Barnes foi o expositor/escritor
cujos comentários, que encapsulavam vigorosamente a teoria do governo moral,
tiveram um impacto popular amplo e duradouro. Estima-se que suas Notas sobre o Novo
Testamento tenham vendido quase um milhão de cópias quando Ellen White morreu
em 1915. Este é um número notável para um comentário daquela época ou de qualquer
época e mostra a amplitude de sua influência.33
Em seu comentário sobre Romanos 3:26 – “para que ele seja justo e justificador
daquele que crê em Jesus” (KJV) – Barnes expõe claramente a teoria do governo moral.
“Este versículo contém a substância do evangelho”, argumenta Barnes. “Refere-se ao
fato de que Deus manteve a integridade de seu caráter como governador moral; que ele
havia mostrado a devida consideração à sua lei e à penalidade da lei, por seu plano de
salvação. Se ele perdoasse os pecadores sem expiação, a justiça seria sacrificada e
abandonada. ... Ele é, em toda essa grande transação, um governador moral justo, tão
justo para com sua lei, para si mesmo, para seu Filho, para o universo, quando perdoa,
como quando envia o pecador incorrigível para o inferno. ...”34
Ellen White era herdeira de uma perspectiva do governo moral de Deus, tanto por
meio de suas raízes metodistas quanto por seu conhecimento dos comentários de
Barnes, pelos quais ela tinha profundo apreço. Em janeiro de 1900, ela escreveu para
seu filho Edson, pedindo que sua biblioteca fosse enviada para a Austrália. 35 “Enviei
quatro ou cinco grandes volumes das notas de Barnes sobre a Bíblia. Eu acho que eles
estão em Battle Creek em minha casa agora vendida, em algum lugar com meus livros...
Talvez eu nunca mais visite a América, e meus melhores livros devem vir a mim quando
for conveniente.”36

32
Nathaniel Taylor, "The Peculiar Power of the Gospel on the Human Mind,” 23-24, quoted in Sweeney,
Nathaniel Taylor, 91
33
T. H. Olbricht, “Barnes, Albert (1798-1870),” in Historical Handbook of Major Bib¬lical Interpreters, ed.
Donald K. McKim (Downers Grove, IL: Intervarsity, 1998), 281-284. .
34
Albert Barnes, Barnes Notes on the New Testament, ed. Ingram Cobbin (Grand Rapids, MI: Kregel, 1976),
573-574.
35
Arthur White, Ellen G. White, Vol. 4, The Australian Years, 1891-1900 (Hagerstown, MD: Review and
Herald, 1983), 448.
36
Ibid., Letter 189 (January 1,1900), emphasis added

24
Isso não significa negar os frutos de seu próprio estudo bíblico e visões, que
expandiram e aumentaram a ênfase de que o governo de Deus foi construído sobre
fundamentos puros de amor. Ela desenvolveu a doutrina aumentando sua ênfase no
amor de Deus, transformando-a no que poderia ser chamado com precisão de governo
moral de amor e graça de Deus. “O amor de Deus é representado em nossos dias como
sendo de tal caráter que O proibiria de destruir o pecador. ... Em nenhum reino ou
governo cabe aos transgressores da lei dizer que punição deve ser executada contra
aqueles que transgrediram a lei... Deus é um governante moral, bem como um Pai”.37
Da mesma forma, “é sofisma de Satanás que a morte de Cristo trouxe graça para
tomar o lugar da lei. A morte de Jesus não mudou ou anulou, ou diminuiu nem um
pouco, a lei dos dez mandamentos.
Essa preciosa graça oferecida aos homens através do sangue do Salvador,
estabelece a lei de Deus. Desde a queda do homem, o governo moral de Deus e Sua
graça são inseparáveis. Eles andam de mãos dadas em todas as dispensações.”38
Referências semelhantes a Deus como governador e governante moral da humanidade
podem ser encontradas em todos os escritos de Ellen White.
CONCLUSÃO: O PATRIMÔNIO VIVO DO LIVRE-ARBÍTRIO E DO GOVERNO MORAL
Mas que diferença faz para a abordagem adventista da teodiceia ver essa profunda
herança histórica na noção do governo moral de Deus? A teologia adventista precisa de
um foco, um tema. Às vezes é sugerido que esse tema é o Grande Conflito entre Cristo
e Satanás e a batalha sobre Seu caráter de amor. Isso sugere que a teodiceia está no
centro do que é o adventismo.
A teodiceia do amor de Deus no Grande Conflito é um tema muito bom e é
compatível com o tema do governo moral do amor de Deus. Nos dias de hoje, o termo
amor tornou-se ambíguo e vago. Desde que os Beatles cantaram “All you need is love”,
o conteúdo cultural da palavra amor mudou de uma palavra de princípio, com valor
moral, para uma palavra baseada em sentimento e emoção e amplamente desprovida
de elementos de princípios.
Mesmo em seus dias, Ellen White advertiu sobre a corrupção do amor do
Espiritismo. “O amor é considerado”, escreveu ela, “como o principal atributo de Deus,
mas é rebaixado a um sentimentalismo fraco, fazendo pouca distinção entre o bem e o
mal. A justiça de Deus, Suas denúncias do pecado, os requisitos de Sua santa lei, são
todos mantidos fora de vista”.39 Desde sua época, essa tendência de sentimentalizar o
amor se agravou. A maneira como a igreja moderna lida com esse tema tem sido
enfraquecida pelo insípido conceito de amor na cultura contemporânea. Os aspectos
passivos, agradáveis e gentis do amor praticamente inundaram as virtudes heroicas,
ativas, protetoras, que buscam responsabilidades e do amor.

37
Ellen White, Last Day Events (Boise, ID: Pacific Press, 1992), 241.
38
Ellen White, God’s Amazing Grace (Washington, DC: Review and Herald, 1973), 144.
39
Ellen White, The Great Controversy (Mountain View, CA: Pacific Press, 1907), 558.

25
Hoje em dia, o caráter de amor de Deus é usado para argumentar a favor da
aceitação da prática homossexual na igreja, de evitar doutrinas difíceis como o santuário
e 1844 (o centro das atividades atuais do governo moral de Deus), a rejeição do
substitutivo/forense elementos da expiação (um elemento indispensável da
compreensão do governo moral da expiação), e evitar a responsabilidade em questões
de estilo de vida e doutrina. Muitas pessoas são incapazes de ver o desafio central que
conceitos como evolução teísta ou criação de dia/era, com sua confiança no sofrimento
e na morte como parte de uma “boa” criação, fazem para a compreensão adventista do
governo moral de amor de Deus.
Mas se o governo moral de amor de Deus é o princípio organizador da fé adventista,
então autoridade e justiça se tornam essenciais para uma concepção adequada de amor,
seja amor humano ou amor de Deus. É neste contexto que a doutrina adventista do
julgamento divino e a importância da responsabilidade humana em assuntos espirituais
podem ser entendidas como uma expressão do caráter de amor de Deus. É quando essas
expressões ativas de amor são vistas em sua verdadeira luz, como aspectos igualmente
do amor de Deus, que o universo pode se tornar eternamente seguro.
Então, “todo o universo terá se tornado testemunha da natureza e dos resultados
do pecado. E seu extermínio total, que no princípio teria trazido temor aos anjos e
desonra a Deus, agora reivindicará Seu amor e estabelecerá Sua honra diante de um
universo de seres que se deleitam em fazer Sua vontade, e em cujo coração está Sua lei.
. ... Uma criação testada e provada nunca mais se desviará da fidelidade Àquele cujo
caráter foi plenamente manifestado diante deles como amor insondável e sabedoria
infinita.”40
Em última análise, o enigma do livre-arbítrio humano e da eterna liberdade do
pecado é explicado pelo poder da revelação do Grande Conflito do amor de Deus e da
justiça de Seu governo. Esses temas foram fortemente entrelaçados à medida que se
desenvolveram na Reforma Protestante, e mantê-los intimamente conectados ajudará
o adventismo a lidar de forma mais eficaz com seus atuais desafios e oportunidades
doutrinários e evangelísticos.

40
White, The Great Controversy, 504.

26
CAPÍTULO 2
O AMOR NA GUERRA: O CONFLITO CÓSMICO
Norman R. Gulley

O amor é mais do que um atributo de Deus - é a Sua natureza. João diz: “Deus é
amor” (1Jo 4:8, 16). As três Pessoas da Trindade eterna e auto-existente sempre
experimentaram uma história interior de amor recíproco. De eternidade em eternidade,
seu amor um pelo outro nunca muda (cf. Ml 3:6). O Pai não é menos amoroso do que
Cristo ou o Espírito. Ele é chamado de “Pai da compaixão” (2Co 1:3). João exclama:
“Vede que grande amor o Pai nos concedeu, que fôssemos chamados filhos de Deus!”
(1Jo 3:1). “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito,
para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3:16). Cristo
disse: “Quem me vê a mim vê o Pai” (Jo 14:9)1
O ÂMBITO CÓSMICO DO AMOR DE DEUS
É inexplicável como tal Deus de amor teria uma controvérsia contra Ele quando Seus
cidadãos não sabiam nada além de Seu amor por eles.
David Hume expressou bem o problema: “Ele está disposto a prevenir o mal, mas
não é capaz? então ele é impotente. Ele é capaz, mas tem não tem vontade? então ele
é malévolo. Ele é capaz e disposto? de onde vem o mal?”2 No entanto, em meio a essa
rebelião, a resposta de Deus é uma guerra de amor. O amor de Deus na guerra responde
à guerra de Satanás contra o amor. A metanarrativa das Escrituras é a controvérsia
cósmica. É a estrutura final na qual todas as ideias e histórias nas Escrituras são melhor
compreendidas.3
Após o início da guerra cósmica, o amor motivou a missão trinitária de salvar o
mundo. “Pois vocês conhecem a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico,
por amor de vós se fez pobre, para que pela sua pobreza enriquecêsseis” (2Co 8:9). “Ele
[Cristo] veio para os seus e os seus não o receberam” (Jo 1:11, NKJV). Não é à toa que
ele gritou: “Jerusalém, Jerusalém, tu que matas os profetas e apedrejas os que te são

1
Salvo indicação em contrário, todas as referências bíblicas são da BÍBLIA SAGRADA, NOVA VERSÃO
INTERNACIONAL®, NIV® Copyright © 1973,1978,1984,2011 por Biblica, Inc.® Usado com permissão. O
itálico nas citações das Escrituras representa a ênfase acrescentada pelo autor. Para mais informações
sobre o amor de Deus, veja Norman R. Gulley, Systematic Theology: God as Trinity, vol. 2 (Berrien Springs,
MI: Andrews University Press, 2011); também John C. Peckham, The Love of God: A Canonical Model
(Downers Grove, IL: Inter Varsity, 2015).
2
Veja David Hume, Dialogues Concerning Natural Religion, Part X, The English Philoso¬phers From Bacon
to Mill, ed. Edwin A Burtt (London: The Modern Library, 1939), 186.
3
Richard M. Davidson, “Cosmic Metanarrative for the Coming Millennium,” Journal of the Adventist
Theological Society 11/1-2 (2000): 102-119. Norman R. Gulley, Systematic The¬ology: Prolegomena, vol.
1 (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 2003), 421-453.

27
enviados, quantas vezes desejei reunir teus filhos, como a galinha ajunta seus pintinhos
debaixo das asas, e tu não quiseste”. (Mt 23:37). O mesmo amor de coração por Seu
povo é encontrado no Antigo Testamento. A respeito de Efraim, Ele diz: “meu coração
anseia por ele; tenho grande compaixão dele’, declara o Senhor” (Jr 31:20).
A missão de Cristo afeta somente a raça humana ou há dimensões mais amplas a
serem consideradas? Existe um contexto cósmico que precisa ser entendido? A Bíblia
fornece uma “grande teoria unificadora”?4 A maioria dos teólogos vê o Calvário como
Cristo morrendo pelos humanos para que eles possam ir para o céu. 5 Mas há mais.
Colossenses ensina que Cristo criou todas as coisas no céu e na terra (Cl 1:16), e que
“nele [Cristo] todas as coisas subsistem” (Cl 1:17). “Pois agradou a Deus que nele
habitasse toda a sua plenitude e, por meio dele, reconciliasse consigo todas as coisas,
quer as da terra, quer as do céu, fazendo a paz pelo seu sangue, derramado na cruz” (Cl
1:19-20) Nesta passagem, Paulo indica claramente que a morte de Cristo tem
implicações cósmicas que se estendem além da salvação dos humanos. Em algum
sentido importante, o Calvário reconcilia o universo.
Esta missão mais ampla do Calvário inclui também a igreja, pois Paulo exclama:
"Parece-me que Deus nos colocou em exibição, apóstolos no final da procissão, como
os condenados a morrer na arena. Fomos feitos um espetáculo para todo o universo,
tanto aos anjos como aos seres humanos” (1Co 4:9). principados e potestades nas
regiões celestiais, segundo o eterno propósito que realizou em Cristo Jesus, nosso
Senhor” (Ef 3:10-11; cf. 6:12) Por que o Calvário e a igreja são de tão grande interesse
para o povo? universo inteiro?” Algumas respostas a esta pergunta são encontradas no
registro bíblico das experiências de Jó.
AS PROVAÇÕES DE JÓ: POR TRÁS DO CENAS DO CONFLITO CÓSMICO
O livro de Jó dá uma visão extraordinária dos bastidores deste mundo, mostrando
a interação entre Deus e Satanás. O autor abre a cortina para revelar a luta cósmica
envolvendo os humanos e, ao mesmo tempo, transcendendo a história humana.6
O livro de Jó começa em uma reunião especial convocada na presença de Deus, em
algum lugar do universo. “Um dia os anjos vieram apresentar-se perante o Senhor, e
Satanás também veio com eles” (Jó 1:6). Esta poderia ter sido uma reunião de diferentes
líderes dos planetas habitados em todo o universo. Deus perguntou a Satanás de onde
ele veio, e ele respondeu: “De perambular por toda a terra, indo e voltando sobre ela”
(Jó 1:7).
Esta reunião ocorreu muito depois da queda dos humanos no Éden, quando Satanás
se tornou o líder deste mundo e, aparentemente, representou o planeta nesta reunião.

4
Philip Yancey, Where Is God When It Hurts? (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1990), 79.
5
Alguns dos teólogos que se movem em direção a uma metanarrativa mais ampla incluem Orígenes,
Agostinho, João Calvino, João Milton, C. S. Lewis, Gregory Boyd e Lewis Chafer. Para mais sobre este tema,
ver Gulley, Systematic Theology: Prolegomena, 398-416.
6
Jiri Moskala, “The God of Job and Our Adversary? Journal of the Adventist Theological Society 15/1
(Spring 2004): 104-117.

28
Mais tarde, ele tentou a Cristo oferecendo-Lhe os reinos deste mundo (Lc 4:5-7). Assim,
Cristo o chama de “príncipe deste mundo” (Jo 12:31; 16:11); Paulo o chama de “o deus
deste mundo” (2Co 4:4, ESV), e João diz: “o mundo inteiro está sob o domínio do
maligno” (1Jo 5:19).7
Este é o contexto em que Satanás veio à reunião convocada por Deus. Satanás
estava lá como representante da terra, tendo arrancado essa posição de Adão, que
capitulou a ele e caiu em pecado (Gn 3). Nesse momento, o Senhor falou a Satanás,
chamando a atenção para Seu servo Jó com as seguintes palavras: “Não há ninguém na
terra como ele; ele é irrepreensível e reto, um homem que teme a Deus e evita o mal”
(Jó 1:8). Satanás respondeu com a afirmação de que Jó serviu a Deus porque todas as
suas necessidades foram supridas (1:9-11). Portanto, Deus permitiu que Satanás
testasse Jó, mas o proibiu de tocar o corpo de Jó (v. 12). Então, “outro dia os anjos
vieram apresentar-se perante o Senhor, e Satanás também veio com eles para
apresentar-se perante ele” (2:1). Nessa ocasião, o Senhor repetiu Sua avaliação anterior
de Jó, acrescentando: “E ele ainda mantém a sua integridade, embora você me incitasse
contra ele para arruiná-lo sem motivo” (2:3). Satanás desafiou Deus a “‘Estenda a mão
e ferirá a carne e os ossos dele, e ele certamente o amaldiçoará na sua face’” (2:5). Como
na primeira reunião, Deus permitiu a prova proposta por Satanás, desta vez proibindo-
o de tirar a vida de Jó (2:6).
Aqui está uma visão de uma luta entre Deus e Satanás sobre Jó como um caso de
teste. Tanto Deus quanto Satanás parecem ter interesse em testar Jó; na verdade, foi
Deus quem chamou a atenção para Jó em primeiro lugar. O fato deste caso de teste ter
sido mencionado em grandes reuniões pode sugerir que o universo está envolvido na
mesma questão.
Jó era diferente de Satanás e seus anjos, pois permaneceu fiel a Deus,
“irrepreensível, “reto”, um homem de “integridade”, que “evitava o mal”. Nos
bastidores, o debate se acirra, questionando se Deus é digno de fidelidade das criaturas.
A rebelião de Satanás e seus anjos sugere que eles pensavam que Deus não era digno
de sua lealdade. Por que mais eles se rebelariam? Mas Jó permaneceu leal a Deus. Isso
indica que a liberdade de escolha da criatura é concedida aos seres criados. Também
indica que Deus não decide pelos seres criados, mas permite que eles decidam. Deus é

7
Porque muitos participaram desta reunião, isso sugere que Deus tem muitos planetas habitados, o que
significa que a controvérsia cósmica envolve muito mais do que apenas o céu ea terra. O fato de que
apenas alguns anjos e todos os seres humanos pecaram contra Deus é a razão para o foco bíblico no céu
e na terra. Estes são os dois níveis de rebelião das criaturas. Como nunca, isso não sugere que não haja
outros mundos habitados interessados na controvérsia cósmica. Cristo criou mundos (aionas, plural, Hb.
1:2, traduzido "mundos" em KJV e NKJV, e "universo" em Phillips e NIV), e é provável que Ele criou seres
inteligentes nesses mundos como Ele fez na terra. (Veja James Strong, A Concise Dictionary of the Words
in the Greek Testament, com Suas Renderizações na Versão Autorizada em Inglês [Mclean, VA:
Macdonald, n.dj, 9.) Dado que Deus é eterno e ama os seres criados, poderia haver inúmeros planetas
povoados em Seu vasto universo interconectado. A profundidade de seu interesse na controvérsia
cósmica não deve ser subestimada.

29
amor, então Ele não criou robôs. Ele é um Deus da aliança que anseia por um
relacionamento de amor com todos os seres criados (Dt 5:29).
ISAÍAS 14 E EZEQUIEL 28: REIS REBELDES
Quase todos os eruditos contemporâneos limitam Isaías 14 e Ezequiel 28 ao
histórico rei da Babilônia (Is 14:4) e ao histórico rei de Tiro (Ez 28:2,12).8 No entanto, há
necessidade de reconsiderar o significado tipológico mais profundo desses capítulos.9
Ao examinar seu significado hermenêutico completo (particularmente Is 14:12-15 e Ez
28:13-17), fica claro onde e por que o mal começou, e a promessa de aniquilação de seu
líder. Aqui se obtém uma visão dos dois lados da controvérsia cósmica onde o amor de
Deus está em guerra.
Os dados nas passagens exigem uma interpretação que transcende uma aplicação
local aos reis humanos. Por exemplo, o rei local da Babilônia nunca esteve no céu no
trono de Deus (Is 14:12-13), nem o rei local de Tiro residiu no Éden ou apareceu como
um querubim guardião no trono do céu (Ez 28: 13-14). Em ambas as passagens, os reis,
por causa do orgulho (Is 14:13-14; Ez 28:17), são expulsos do céu (Is 14:12; Ez 28:16), e
no final serem aniquilados (Is 14:15-20; Ez 28:18). Além disso, diz-se que o rei de Tiro foi
perfeito até que o pecado foi encontrado nele (Ez 28:15), o que não pode ser dito de
nenhum ser humano desde a Queda (Sl 51:5; Rm 5:16-18). Portanto, isso se refere a um
ser criado que ainda não havia pecado.
Além de Deus, Adão e Eva, o único ser mencionado nas Escrituras como estando no
Éden é Satanás (Gn 3:1-6; Ap 12:9). É sua queda na rebelião que é descrita da seguinte
forma: “Você foi ungido como um querubim guardião, pois assim eu o ordenei. Você
estava no monte santo de Deus; você andou entre as pedras de fogo. Você era
irrepreensível em seus caminhos desde o dia em que foi criado até que se achou
maldade em você” (Ez 28:14-15). “No orgulho do seu coração você diz: ‘Eu sou um
deus’... você pensa que é sábio, tão sábio quanto um deus” (Ez 28:2; 6). “O teu coração
se encheu de orgulho por causa da tua formosura, e corrompeste a tua sabedoria por
causa do teu esplendor” (Ez 28:17). “Você disse em seu coração: ‘Subirei aos céus;
Levantarei meu trono acima das estrelas de Deus; Eu me sentarei entronizado no monte
da assembleia, nas alturas mais altas do monte Zafon. Subirei acima do topo das nuvens;
me tornarei semelhante ao Altíssimo’” (Is 14:13-14).
O pecado é a transgressão da lei de Deus (1 Jo 3:4) que é cumprida pelo amor (Rm
13:10). Portanto, a queda de Satanás no pecado foi uma queda do amor. O pecado
começou com a má livre escolha de Satanás, não com Deus. Satanás queria se tornar
Deus no lugar de Deus. Ele não estava satisfeito com a grande honra de estar ao lado do

8
Para algumas exceções e uma apresentação mais completa da controvérsia cósmica, ver minha
Systematic Theology: Prolegomena, 398-416. Ver também José M. Bertoluci, The Son of the Morning and
the Guardian Cherub in the Context of the Controversy between Good and Evil (ThD diss., Andrews
University, 1985), 6-10 Este é um estudo aprofundado de Isaías 14 e Ezequiel 28 e sua contribuição para
a controvérsia cósmica. Bertoluci fez uma grande contribuição na determinação da intenção divina destas
duas passagens.
9
Ver Richard M. Davidson, Typology in Scripture (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1981).

30
trono de Deus; ele queria ocupá-lo. Ele deve ter pensado que poderia fazer um trabalho
melhor do que Deus. Questionar a Deus era questionar Seu governo, Sua lei e Seu
governo.
As Escrituras dizem que “Deus é amor” (1 João 4:8-16). Portanto, Ele é justo em
todos os Seus caminhos. Assim, “o Senhor é conhecido pelos seus atos de justiça” (Sl
9:16). Isso significa que todos os atributos de Deus, bem como Seu governo e a lei em
que se baseia, refletem Seu amor. Cristo, na história humana, disse que a lei (isto é, a
Torá e os Dez Mandamentos) é resumida como amor a Deus e ao próximo (Mt 22:37-
40). O Deus Triúno experimenta o amor recíproco entre eles. Isso significa que cada
Pessoa na Trindade ama a Deus e, ao fazê-lo, ama os semelhantes. Assim, a lei do amor
é a própria essência da natureza de Deus como um Deus de amor. Portanto,
fundamentalmente, Satanás questiona o amor de Deus, que inclui Sua justiça e
misericórdia. Satanás sempre conheceu Deus como um Deus de amor, mas para ganho
pessoal ele lançou uma campanha para destruir a verdade sobre Ele.10
Os reis humanos de Tiro e Babilônia são símbolos de Satanás e da destruição final
de sua rebelião contra Deus. Assim como Mateus 24 enfoca a destruição de Jerusalém
em 70 dC (w. 1-2, 15-20) e o fim do mundo (w. 4-14, 22-31), Isaías enfoca a destruição
de um local e uma Babilônia escatológica ou espiritual.11 Também, nas Escrituras,
Jerusalém (Heb. 12:22-23; Ap. 21:1-3) e Babilônia (Dan. 1:1-2; Isa. 21:9; 48:20; cf. Ap.
14: 8; 18:1-24) representam os dois lados da controvérsia cósmica.
Isaías 14 é cercado por duas profecias contra a Babilônia (Is 13 e 21). Em Isaías 21:9,
sai um grito de lamento: “Caiu Babilônia, caiu! Todas as imagens de seus deuses estão
despedaçadas no chão!” Este é um tipo de lamentação final pela Babilônia espiritual,
conforme retratado no último livro das Escrituras. "Caída! Caída está Babilônia, a
Grande, que fez todas as nações beberem do vinho enlouquecedor de seus adultérios”
(Ap 14:8). '"Caída! Caída está Babilônia, a Grande!” Ela se tornou morada de demônios
e covil de todo espírito impuro” (Ap 18:2). O primeiro verso mostra o poder global da
Babilônia espiritual, o segundo o poder demoníaco da Babilônia espiritual. Mas Deus
tem muitas pessoas na Babilônia que O amam, e Seu convite final é aceitar Seu sábado
e sair da Babilônia (Ap 18:1-4). O Armagedom e as pragas (Ap 16) encontram o amor na
guerra culminando no Segundo Advento (Ap 19:14-21).
O jogo final da controvérsia pré-Segundo Advento é um confronto global entre a
Babilônia espiritual e o povo de Deus (Ap 13-19). As raízes da Babilônia espiritual estão
embutidas na torre de Babel, onde Deus dividiu as línguas humanas para impedir uma

10
Não podemos julgar corretamente a justiça de Deus a menos que Ele a revele para nós. Ver E. Edward
Zinke e Roland R. Hegstad, The Certainty of the Second Coming (Hagerstown, MD: Review and Herald,
2000).
11
Isaías ministrou em Jerusalém de aproximadamente 750-700 a.C. Nabucodonosor era rei de Babilônia
de 605-562 a.C. A cidade foi capturada por Ciro em 539 BC, então Isaías profetizou quase 200 anos antes
daquele tempo. Ezequiel viveu durante o cativeiro babilônico de Judá, quando Babilônia literal era o
inimigo do povo de Deus, assim como a Babilônia espiritual será o inimigo final do povo de Deus (Ap 14:8;
18:1-24). Veja Kenneth Mulzac, “The ‘Fall of Babylon’ Motif in Jeremiah and Revelation,” Journal of the
Adventist Theological Society ,8/1-2 (Spring-Autumn 1997): 137-149.

31
unidade global contra Ele (Gn 11:1-9). No tempo do fim pré-advento, a Babilônia
espiritual descarrega sua raiva contra Deus em um ataque global (Ap 13:1-4). Após o
milênio, todos os ímpios ao longo da história humana são ressuscitados e se juntam a
Satanás e seus anjos em sua última luta contra Deus. Eles são destruídos pelo fogo
consumidor (Ap 20:7-10; cf. Ml 4:1-3). É a Nova Jerusalém que desce do céu para a nova
terra e se torna o lar dos redimidos para sempre (Ap 21:1-5). Restauração gloriosa!12
Isaías apresenta um poderoso contraste entre o orgulho do rebelde (Is 14:13-14) e
a humildade de Cristo (Is 53). Satanás tenta se tornar Deus, que está acima de seu status
de ser criado, enquanto Jesus se torna humano, que está abaixo de Seu status de Deus
Criador. Aqui, em total ousadia, são sintetizadas as diferentes estratégias dos dois lados
na controvérsia cósmica. Essa controvérsia levou ao Calvário, onde um matou e o outro
morreu. Na crucificação, a injustiça do rebelde e a justiça do Redentor se encontraram
de frente. O Calvário transbordou prodigamente com o amor de Cristo pelos humanos
(Fl 2:5-11; 1Jo 3:1) e expôs totalmente o ódio de Satanás por Cristo (Lc 22:1-6; Jo 13:21-
30).
APOCALIPSE 12: GUERRA NO CÉU E NA TERRA
O último livro da Bíblia, Apocalipse, descreve como o conflito cósmico começa, se
desenvolve e termina (Ap 12). Os dois principais combatentes também são identificados
(12:7). O anjo Lúcifer (mais tarde chamado de Satanás) lançou a controvérsia cósmica
contra Deus no céu. Como rebelde, ele é conhecido como o diabo, e o grego διαβάλλω
significa “acusar, acusar com intenção hostil”; a palavra Satanás no grego (Σατάν)

12
Richard Davidson identificou uma estrutura quiástica de Ezequiel que se concentra no significado da
controvérsia cósmica nas Escrituras. Com base e indo além do trabalho pioneiro de William H. Shea sobre
a estrutura literária em Ezequiel, Davidson amplia o estudo da estrutura quiástica para incluir todo o livro.
Ele conclui que o ápice quiástico de Ezequiel é o julgamento cósmico sobre o Querubim Caído (Ez 28:17-
18). Assim, o ápice do livro, onde o fato mais importante é apresentado, e para o qual o resto é pertinente,
é o julgamento final sobre Satanás. Aqui está outra evidência da importância cósmica de Ezequiel 28. Esse
mesmo julgamento é dado em Isaías 14:12,15. Ver Richard M. Davidson, “The Chiastic Literary Structure
of the Book of Ezequiel”, Para Entender as Escrituras: Ensaios em Honra de William H. Shea, ed. David
Merling (Berrien Springs, MI: Instituto de Arqueologia, Universidade Andrews, 1997), 71-93; William H.
Shea, “The Investigative Judgment of Judah: Ezeldel 1-10,” in The Sanctuary and the Atonement: Biblical,
Historical, and Theological Studies, ed. Arnold V. Wallenkampf and W. Richard Lesher (Washington, DC:
Review and Herald, 1981), 283-291.
Ranko Stefanovic vê no livro do Apocalipse uma estrutura quiástica que também se centra na
controvérsia cósmica.
A. Prólogo (1:1-8)
B. Promessa ao vencedor (1:9 - 3:22)
C. Deus trabalha para a salvação da humanidade (4:1 - 8:1)
D. A ira de Deus misturada com misericórdia (8:2 - 9:21)
E. Comissionando João para profetizar (10:1 - 11:18)
F. Grande conflito entre Cristo e Satanás (11:19 - 13:18)
E'. Igreja proclama o evangelho do fim dos tempos (14:1-20)
D'. A ira final de Deus sem mistura de misericórdia (15:1 - 18:24)
C'. A obra de Deus para a salvação da humanidade foi concluída (19:1 - 21:4)
B'. Cumprimento das promessas ao vencedor (21:5 - 22:5)
A. Epílogo (22:6-21
Ranko Stefanovic, Revelation of Jesus Christ: Commentary on the Book of Revelation (Berrien Springs, MI:
Andrews University Press, 2002), 36-37.

32
significa “adversário, ou “caluniador”. O “comércio generalizado” de Ezequiel 28:16a é
da palavra hebraica rekyllah que tem um amplo alcance semântico, mas é melhor
traduzido neste contexto como “fofoca ou calúnia”13 (cf. 2Pe 2:10). Satanás caluniou
Deus para arruinar Seu caráter.14
O outro combatente, Miguel, é mencionado cinco vezes nas Escrituras (Dn 10:13,
21; 12:1; Jd 9; Ap 12:7).15 A comparação dessas referências indica que Miguel é o Cristo
totalmente divino em Seus papéis como Governante dos anjos e Aquele que ressuscita
os mortos. As Escrituras dizem: “O arcanjo Miguel. . . estava disputando com o diabo
sobre o corpo de Moisés” (Jd 9; cf. Dt 34:1-8). Isso parece ser no momento em que
Moisés ressuscitou desde que ele apareceu na transfiguração de Cristo (Mt 17:1-3). O
papel de Cristo na ressurreição também é evidente quando Paulo escreve: “Porque o
mesmo Senhor descerá do céu, com grande ordem, com voz de arcanjo e com o toque
da trombeta de Deus, e os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro” (1 Ts 4:16).
João faz o mesmo ponto: “Em verdade vos digo que vem a hora e já chegou, em que os
mortos ouvirão a voz do Filho de Deus e os que a ouvirem viverão” (Jo 5:25). Como tal,
Miguel é Cristo que é “Verdadeiramente Deus de verdadeiro Deus, da mesma substância
que o Pai” — coigual, coexistente e coeterno com Deus Pai. Acreditamos que nunca
houve um tempo em que Cristo não existisse. Ele é Deus para sempre, Sua vida sendo
original, não emprestada, não derivada.'”16
Em Apocalipse 12, os primeiros oito versículos são uma introdução explicando como
a guerra de Cristo é motivada por Seu amor por Sua igreja, que é representada como
uma mulher (Ap 12:1; cf. Jr 6:2). Ela usa uma coroa da vitória (tirada do grego:
Stephanos, uma coroa de louros usada por um vencedor nos Jogos Olímpicos). Nas várias
batalhas na guerra do amor, Deus cuidará de Sua igreja (Ap 12:6).
A primeira batalha da guerra foi antes da criação dos humanos. “Irrompeu uma
guerra no céu” entre Miguel e seus anjos e o dragão e seus anjos (Ap 12:7). Satanás e
seus anjos foram derrotados e forçados a deixar o céu (Ap 12:4). O livro do Apocalipse
descreve como, no final, “foi arremessado o grande dragão – aquela antiga serpente

13
Veja Robert H. O’Connell, “vakil” in New International Dictionary of Theology & Exegesis, gen. ed.
Willem A. VanGemeren (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1997), 3:1115. A minha análise é a seguinte: a
calúnia de Satanás a Deus é a sua disseminação generalizada de desinformação sobre Deus, que é
completamente diferente do comércio secular do rei de Tiro a nível local.
14
Para um exame das visões distorcidas sobre Deus promovidas por Satanás na controvérsia cósmica e
respondidas pelas Escrituras, ver Norman R. Gulley, Systematic Theology: God as Trinity.
15
O anjo disse a Daniel: “Miguel, um dos príncipes principais, veio me ajudar”, pois o príncipe persa havia
resistido a ele vinte e um dias (Dn 10:13). Em outras palavras, Miguel foi capaz de ter sucesso onde o anjo
não teve. O anjo chamou Miguel de “seu príncipe” (Dn 10:21) e “o grande príncipe que protege o seu
povo” (Dn 12:1). Na língua hebraica, Mikha'el é Micha, “aquele que é como”; e el, “Deus”. Este título “não
conflita de forma alguma com nossa crença em Sua plena divindade e preexistência eterna”. Seventh-day
Adventists Answer Questions on Doctrines: An Explanation of Certain Major Aspects of Seventh-day
Adventist Belief (Washington, DC: Review and Herald, 1957), 71.
16
Questions on Doctrines, 83.

33
[serpente no Éden, tentadora Eva, Gn 3:1-6] chamada diabo, ou Satanás, que engana o
mundo inteiro.” (Ap 12:9).17
A segunda batalha acontece na terra. Satanás se tornou o “príncipe” (Jo 12:31), ou
“deus desta era” (2 Co 4:4), quando usurpou o domínio de Adão e Eva em sua queda (Gn
1-3). É por isso que Satanás nos tempos do Antigo Testamento evidentemente
representava este mundo quando diferentes líderes se reuniam com Cristo em algum
lugar do universo fora do céu. Satanás mostrou suas cores criticando Jó e Deus (Jó 1-2).
Novamente após o retorno de Judá do cativeiro, Satanás acusa Josué, o sumo sacerdote,
enquanto o Cristo pré-encarnado repreende Satanás (Zc 3:1-2).
O campeão da humanidade nesta batalha é Cristo/Miguel. Satanás estava pronto
para “devorá-Lo” assim que Ele nasceu (Ap 12:4; cf. Mt 2:13-17) e tentou derrotá-Lo por
toda a Sua vida. Satanás trabalhou por meio de Judas para trair Cristo para que Ele fosse
crucificado (Jo 13:21-27). No entanto, o Calvário foi a vitória decisiva de Cristo sobre
Satanás! No Calvário Cristo reconquistou o direito, como o segundo ou último Adão (1Co
15:45-47), de ser o líder deste mundo. Desta forma, “foi lançado para baixo o grande
dragão – aquela antiga serpente chamada diabo, ou Satanás, que desencaminha o
mundo inteiro. Ele foi lançado à terra” (Ap 12:9). Em contraste, o Cristo ressurreto
ascendeu ao santuário celestial como a única Pessoa qualificada para interceder pelos
pecadores com base em Sua vida (Hb 2:18; 4:15-16) e Sua morte (Hb 9:12; 10:11-14).
Cristo “tornou-se a fonte da salvação eterna” (Hb 5:9) e o único mediador entre Deus e
os humanos (1Tm 2:5).
A terceira batalha descrita em Apocalipse 12 envolve o derrotado Satanás
desabafando sua ira contra a igreja de Cristo. Mas Cristo cuida de Sua igreja durante os
1.260 dias (representando anos) de perseguição (Ap 12:14). Uma das maneiras pelas
quais Cristo cuida da igreja é através das liberdades religiosas promovidas nos Estados
Unidos (12:15-16). Isso trouxe uma diminuição das provações descritas no livro de
Daniel como segue: “Este chifre [sistema falsificado] tinha olhos como os de um ser
humano e uma boca que falava com orgulho” (Dn 7:8). Daniel diz: “Enquanto eu
observava, este chifre fazia guerra contra o povo santo e o derrotava, até que veio o
Ancião de dias e pronunciou julgamento em favor do povo santo do Altíssimo, e chegou
o tempo em que eles possuíram o reino” (Dn 7:21-22; cf. vv. 25-27).18 Este tempo será
plenamente realizado no Segundo Advento de Cristo.19

17
Desde o início, a controvérsia tem sido principalmente a guerra de Satanás contra Cristo. As Escrituras
não nos dizem por que Satanás se opôs a Cristo, nem é explicado o fato de que o pecado poderia surgir
em um ambiente tão perfeito. O ódio de Satanás para com Cristo pode ser documentado a partir de seus
esquemas para matá-lo desde a sua encarnação (Ap 12:4-5, 9) até a crucificação (Jo 13:21-27). É uma
janela através da qual os crentes podem olhar além da mera ênfase na salvação humana para a batalha
cósmica que está por trás dela. Veja Steven Grabiner, “The Cosmic Conflict: Revelations Undercurrent”,
Journal of the Adventist Theological Society 26/1 (Primavera de 2015): 38-56.
18
Norman R. Gulley, “Daniel’s Pre-Advent Judgment in Its Biblical Context,” Journal of the Adventist
Theological Society, 2/2 (Autumn 1991): 35-66.
19
O pecado traz a morte (Rm 6:23). Cristo sustentou Sua lei de amor ao pagar a pena de morte para os
humanos. Deus realmente nos ama. Se a lei de Deus pudesse ser mudada, então a morte de Cristo não
teria sentido. A controvérsia cósmica é uma violação da lei, baseada em um relacionamento rompido com

34
Uma quarta e última batalha é descrita em Apocalipse 12. Em resposta à proteção
de Cristo ao Seu povo, o diabo fica irado e faz guerra contra o povo de Deus no fim dos
tempos, contra aqueles “que guardam os mandamentos de Deus e mantêm o
testemunho de Jesus” (Ap 12:17, ESV). A quarta batalha continua ao longo de Apocalipse
13-20.20
Após o milênio, os ímpios são ressuscitados para que possam ver que seu destino é
justo. Cristo prometeu: “Eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim” (Jo
12:32, ESV). Isso começou a se cumprir no Calvário e continuará assim por toda a
eternidade. No último dia do julgamento, mesmo aqueles que estão perdidos verão que
o Calvário os incluiu (cf. 1Jo 2:2), e todos se curvarão a Deus admitindo que Ele estava
certo na controvérsia (Is 45:23; Rm 14). :11; Fl 2:10-11; Ap 5:13; 15:3; 19:1-6). Mas,
nesse ponto, os ímpios demonstram que não foram transformados pelo amor de Deus.
Eles se juntam a Satanás e seus anjos em sua última luta contra Deus e os da Nova
Jerusalém (Ap 20:7-9). Então, em defesa dos santos, e como um ato de amor, Deus põe
fim à rebelião como o fogo consome os ímpios (20:10; cf. Ml 4:1-3). A Nova Jerusalém
na nova terra se torna o lar de Deus e os redimidos para sempre (Ap 21:1-5). Deus
realmente ama a humanidade!
CALVÁRIO: A BATALHA DECISIVA
Pecado é quebrar a lei (1Jo 3:4). Ao morrer pelo pecado, Cristo demonstrou a
imutabilidade de Sua lei, tão imutável quanto Deus. Se a lei de Deus pudesse ser
mudada, então a morte de Cristo foi um completo desperdício. A essência da
controvérsia cósmica é a quebra da lei, baseada em um relacionamento quebrado com
o Legislador (Is 59:2). A redenção inclui a restauração do relacionamento rompido entre
Deus e os humanos. A resolução da controvérsia cósmica inclui um retorno ao estado
pré-queda no Éden. Na controvérsia cósmica, a obra de Cristo é a restauração da criação
de Deus. A obra de Satanás é sua destruição.21

o Legislador (Is 59:2). A redenção inclui a restauração do relacionamento rompido entre Deus e os
humanos, que inclui a observância da lei como amor pela redenção (ver Jo 14:15; Fl 1:6).
A controvérsia de Satanás é contra Deus, cujo governo é baseado em Sua lei de amor. Durante a
controvérsia cósmica Deus profetizou que um poder tentaria mudar o tempo na lei (Dn 7:25). A palavra
aramaica para “tempo” é zeman, ou “ponto fixo de tempo”. O texto aramaico usa o plural zimmin,
significando “um tempo estabelecido recorrentemente na lei”, ou o sábado semanal do sétimo dia (Êx
20:8-11). Em contraste, os santos são perseguidos por um período de tempo, e a palavra aramaica para
“tempo” agora é iddan (Dan. 7:25). Veja William H. Shea, The Abundant Life Bible Amplifier: A Practical
Guide to Abundant Christian Living in the Book of Daniel 7-12, gen. ed. George R. Knight (Boise, ID: Pacific
Press, 1996), 139.
20
Ataque contra Deus é um tema em Daniel e em Apocalipse. Nações pagãs como Egito, Assíria, Babilônia,
Medo-Pérsia, Grécia e Roma foram infundidas e usadas por Satanás em sua guerra contra Deus. Os quatro
últimos são mencionados em Daniel 2 e 7. Roma pagã dividida em dez, e o chifre pequeno “subiu entre
eles” (Dan. 7:8), substituindo a Roma pagã quando a capital civil se mudou para Constantinopla em 330
d.C. Ver Jacques B. Doukhan, Secrets of Daniel: Wisdom and Dreams of a Jewish Prince in Exile
(Hagerstown, MD: Review and Herald, 2000).
21
Ver Martinus C. de Boer, The Defeat of Death: Apocalyptic Eschatology in 1 Corinthians 15 and Romans
5 (Sheffield: JSOT, 1988).

35
Mesmo que milhões passem fome ao mesmo tempo, uma pessoa só pode
experimentar sua própria fome, nunca a fome dos outros. Não é assim com o Calvário.
“O Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de todos nós” (Is 53:6). “Ele mesmo levou em
seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro” (1Pe 2:24). “Ele foi traspassado pelas
nossas transgressões, e moído pelas nossas iniquidades” (Isaías 53:5). “Ele é o sacrifício
expiatório pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos
pecados do mundo inteiro” (1Jo 2:2). Com força explosiva, atordoado, o universo é
poderosamente movido pela morte de Cristo por cada pecador, incluindo o mais
horrendo.
Na cruz, com os braços abertos, Cristo abraçou o mundo, enquanto o diabo, como
um leão que ruge, busca “a quem possa devorar” (1 Pe 5:8). O Calvário é o contexto
hermenêutico para entender a predestinação. Não o contrário, como tradicionalmente
proposto. O Calvário revela que Deus predestinou todos os humanos para serem salvos.
Naquela morte, Cristo elegeu a todos e não rejeitou ninguém. “Deus não mostra
favoritismo” (Rm 2:11). Isso é eleição incondicional. Cristo providenciou o dom da vida
eterna para todos. Cabe aos humanos eleger ou rejeitar sua salvação (Jo 3:16). Isso vira
a prioridade tradicional da predestinação de cabeça para baixo. O Calvário é a batalha
final ou determinante na controvérsia cósmica. Não há necessidade de um decreto
eterno escondido no mistério que está fora dos limites dos humanos, então eles devem
aceitar a decisão soberana de Deus, quer gostem ou não, sejam compreendidos ou não,
sejam justos ou não. Isso é quebrado pela maior revelação do amor incrível de Deus na
cruz, que demonstra plenamente Sua justiça e misericórdia.
A controvérsia cósmica é sobre a justiça e a misericórdia de Deus. Ele é um Deus de
amor ou não? Satanás afirma que Ele não é um Deus de amor. Os mal-entendidos sobre
a predestinação ajudam involuntariamente a afirmação de Satanás. Como Deus pode
escolher ou eleger alguns, descartar o resto como refugos inúteis, meros descartáveis?
Como Deus pode dar aos eleitos graça irresistível para que eles não falhem, mas se
recusem a ajudar o restante? Então, como se isso não bastasse, Deus lança os rejeitados
no inferno eterno para sofrerem uma angústia indescritível para sempre. Tal
comportamento demonstra plenamente a acusação de Satanás de que Deus não é
amor. O inferno eterno forneceria evidências intermináveis de que a acusação de
Satanás é legítima. Então as chances de Satanás ganhar o universo para o seu lado
estariam garantidas. Com o tempo, a angústia do inferno eterno definiria Deus e não o
Calvário. De fato, a memória do Calvário seria sufocada pelo sofrimento horrível e
miserável em uma fornalha de fogo sem fim. O inferno eterno ignora o fato de que não
há redenção sem resolução para a controvérsia cósmica. Se o inferno é para sempre, a
controvérsia cósmica nunca é resolvida.22
O Calvário resolveu a controvérsia cósmica. O Calvário demoliu as acusações de
Satanás. A máscara foi arrancada daquele miserável. Suas acusações enganosas contra
Deus foram totalmente expostas na cruz. Como um trovão rugindo vem do Calvário o

22
Ver Christopher M. Date e Ron Highfield, eds., A Consuming Passion: Essays on Hell and Immortality in
Honor of Edward Fudge (Eugene, OR: Pickwick, 2015).

36
grito "Deus é amor!" O destino humano depende de aceitar ou rejeitar o Calvário
durante a história humana, não do decreto eterno de um Deus Soberano que é
incompatível com o Calvário. É o Deus do Calvário que não muda (Ml 3:6). “Jesus Cristo
é o mesmo ontem, hoje e eternamente” (Hb 13:8).
Por toda a eternidade se verá que o Calvário é a maior revelação do amor de Deus.
Os seres criados nunca compreenderão as profundezas do incrível amor de Deus
revelado na cruz. Com total espanto, eles contemplam a angústia que Cristo suportou,
permitindo que os seres criados descarregassem a raiva satânica sobre seu Criador.
Oprimidos pelo amor do Calvário, em gratidão cada vez mais profunda, eles amarão,
adorarão e adorarão a Deus. Eles percebem que a morte de Cristo foi o derramamento
da Divindade para humanos indignos, e eles serão para sempre impactados por esse
dom maravilhoso. Neste contexto, o amor de Deus nunca mais pode ser questionado
(cf. Na 1:9).23

23
Ver Gustaf Aulen, Christus Victor: An Historical Study of the Three Main Types of the Idea of Atonement
(London: SPCK, 1961).

37
CAPÍTULO 3
A PRECIÊNCIA E A LIBERDADE DA SALVAÇÃO
Martin F. Hanna

Este capítulo apresenta um estudo bíblico sobre a presciência de Deus de Suas


escolhas livres (dar e reter a salvação) e nossas escolhas livres (receber ou recusar a
salvação). Como tal, esta é uma investigação sobre a presciência de Deus das interações
divino-humanas e opções interativas envolvidas com a liberdade da salvação. A
presciência é exaustivamente definida porque Deus sempre conheceu todas as opções;
também é exaustivamente dinâmico, pois, por meio dessas interações e opções fáceis
de antemão, Deus focaliza Sua presciência do futuro sem acrescentar ao conteúdo de
Sua presciência dele. Além disso, a presciência de Deus das interações e opções divino-
humanas complementa uma definição libertária de liberdade envolvendo escolhas que
não são decisivamente causadas ou constrangidas por Deus. Isso é significativo porque
“Se... as pessoas não têm livre-arbítrio libertário, [então] Deus é o Criador ou autor do
pecado e do mal.”1
Uma investigação cuidadosa deste assunto é necessária em resposta à seguinte
questão problemática: Por que a presciência de Deus parece contradizer a liberdade da
salvação?
Se Deus sabe o que farei em determinada ocasião, parece que não está ao meu
alcance fazer o contrário. O conhecimento de Deus não causa minha ação, mas se ele
realmente souber, isso ocorrerá. Mas se é certo que vai acontecer, então como sou livre
para fazer diferente do que Deus sabe?

Este é um problema não só para a liberdade humana, mas também para a


liberdade divina... Se Deus conhece todos os atos e eventos futuros, ele deve saber tudo
o que fará. Mas se ele sabe o que fará antes de fazê-lo, parece que ele não é livre para
mudar de ideia e fazer diferente do que sabe que fará.2

1
Roger Olson, “The Classical Free Will Theist Model of God”, em Perspectives on the Doctrine of God, ed.
Bruce Ware (Nashville, TN: B & H, 2008), 160. Veja também David Palmer, ed., Libertarian Free Will:
Contemporary Debates (Nova York: Oxford University Press, 2014). Algumas pessoas afirmam a liberdade
libertária enquanto rejeitam o princípio de opções alternativas. Ver William Craig, “Response to Boyd”,
em Stanley N. Gundry e Dennis W Jowers, eds., Four Views on Divine Providence (Grand Rapids, MI:
Zondervan, 2011), 226; cf. John C. Peckham, “Does God Always Get What He Wants? A Theocentric
Approach to Divine Providence and Human Freedom,” Andrews University Seminary Studies 52:2 (2014):
196n2.
A definição libertária contrasta com uma definição compatibilista de liberdade pela qual as interações
são decisivamente causadas sem serem restringidas. Os proponentes desta definição concluem: “Agir sem
constrangimento significa agir de acordo com os próprios desejos ou vontades. Assim, um ato é livre,
embora causalmente determinado, se é o que o agente [livre] queria fazer.” Os “fatores causais” são
“fortes o suficiente ... para que haja um sentido em que o agente [livre] não poderia ter feito de outra
forma”. John S. Feinberg, No One Like Him: The Doctrine of God (Wheaton, IL: Crossway, 2001), 637-638.
2
Feinberg, No One Like Him, 305. É claro que a presciência de Deus em si não precisa ser vista como uma
contradição à liberdade, pois conhecer uma livre escolha não causa essa livre escolha. No entanto, a

38
A visão tradicional da presciência e da liberdade da salvação procura resolver o
problema propondo que Deus exerça Sua liberdade e enfoca Sua presciência
“decretando tudo o que ocorre e então criando o mundo em que essas coisas
acontecem”.3 Como tal, Deus escolhe entre as opções quando Ele cria o mundo, mas Ele
não continua a escolher entre as opções depois que Ele cria o mundo. “Uma vez que
Deus decide criar, ... ele para sempre sabe tudo o que vai acontecer, incluindo o que ele
vai fazer. . . A deliberação e a decisão são então descartadas.”4 Isso significa que “não é
permitido fazer uma separação entre o que Deus sabe em um determinado momento,
e o que Ele faz com ou sobre esse conhecimento no futuro.”5 Portanto, desta
perspectiva, a presciência não informa o plano de salvação de Deus; antes, Ele sabe de
antemão somente depois de ter feito Seu plano.
Aspectos importantes da liberdade da salvação permanecem inexplicados pela
visão tradicional da presciência. Como resultado, os estudantes da Bíblia propõem
quatro interpretações conflitantes, ou modelos, das relações entre a presciência de
Deus e as opções e/ou interações interativas de livre escolha divino-humana.6 O Modelo
1, Previsão Simples, afirma que Deus conhece todas as interações, mas não define se
existem opções interativas para que possam ser conhecidas.7 O Modelo 2, agostiniano-
calvinista, nega que Deus conheça de antemão opções interativas – elas não existem,
pois Ele escolhe causar e, portanto, conhecer de antemão todas as interações.8 O
Modelo 3, Conhecimento Médio, afirma que Deus facilita e conhece de antemão todas
as interações e opções interativas.9 O Modelo 4, Teísmo Aberto, afirma que Deus

maneira como se entende a natureza da presciência pode produzir um aparente conflito com a liberdade.
Veja T. R. Byerly, “Infallible Divine Foreknowledge Cannot Uniquely Threaten Human Freedom, But Its
Mechanics Might”, European Journal for Philosophy of Religion, 4:4 (2012): 73-94.
3
Ibid., 308.
4
Ibid., 314.
5
De acordo com Kwabena Donlcor, “Se o que Deus sabe é tão bom quanto feito, como eles dizem, então
qualquer noção [libertária] de livre-arbítrio e responsabilidade é negada”. Donlcor, “Predestination,
Foreknowledge, and Human Freedom,” 1,
https://www.adventistbiblicalresearch.org/sites/default/files/pdf/Predestination.pdf.
6
Esses modelos são descritos em termos que destacam as questões que abordo neste capítulo.
Estudantes específicos da Bíblia podem ou não os encaixar completamente em qualquer um dos modelos
conforme os descrevo. Veja também a descrição de Feinberg de cinco modelos que têm sido usados para
harmonizar a presciência com a liberdade libertária: “a solução Boethiana, a presciência simples, o
conhecimento médio ou a solução Molinista, a solução Ockhamista e o conhecimento presente”,
Feinberg, No One Like Him, 742 .
7
David Hunt, “The Simple Foreknowledge View,” in James J. Beilby and Paul R. Eddy, eds., Divine
Foreknowledge: Four Views (Downers Grove, IL: InterVarsity, 2001), 65-103.
8
Paul Helm, “The Augustinian-Calvinist View,” Divine Foreknowledge, 161-189.
9
William Lane Craig, “The Middle-Knowledge View”, Divine Foreknowledge, 119-143. O Modelo 2 se
encaixa melhor com o modelo tradicional de pré-conhecimento. Ironicamente, os modelos 3 e 4
pressupõem a precisão da visão tradicional, que pode ser a fonte do problema que estão tentando
resolver. Os modelos 2 e 4 negam que o modelo 3 seja capaz de defender efetivamente a harmonia que
propõe entre a visão tradicional e a liberdade libertária. Veja os comentários de Hunt, Helm e Boyd em
Divine Foreknowledge, 144-160. Significativamente, Craig afirma a liberdade libertária, mas rejeita o
princípio de opções alternativas. Veja “Resposta a Boyd”, em Four Views on Divine Providence, 226; cf.
John C. Peckham, “Deus sempre consegue o que quer?” 196n2.

39
conhece de antemão as opções interativas quando as facilita sem conhecer de antemão
as interações envolvidas, exceto quando escolhe causá-las.10
Uma maneira possível de superar esse impasse entre os quatro modelos é realizar
uma avaliação bíblica da visão tradicional da natureza da presciência de Deus da
liberdade da salvação. A avaliação bíblica é um caminho viável, uma vez que os
proponentes desses modelos concorrentes têm um respeito compartilhado por um
papel normativo para a Bíblia em questões de teologia. Na medida em que cada um
desses modelos tem insights derivados da Bíblia, esses insights podem ser combinados
para produzir um modelo mais plenamente bíblico. Está além do escopo deste capítulo
examinar cada uma das numerosas referências bíblicas ao conceito de presciência.
Portanto, este estudo examinará os cinco textos bíblicos que usam as palavras
presciência (grego, prognósis) e pré-conhecido/conhecido (grego, proginōskō) em
conexão com a presciência de Deus da liberdade da salvação: Atos 2:23; 1 Pedro 1:2, 20;
Romanos 8:29; 11:2.11 Outras passagens que fazem referência ao conceito de
presciência serão mencionadas como parte da explicação do significado desses cinco
textos.
O exame desses textos bíblicos também será informado pelo fato de que Pedro e
Paulo explicitamente vinculam a presciência de Deus à Sua predestinação do Salvador e
daqueles que são salvos. Pedro refere-se a Cristo “sendo entregue [à morte] pelo
determinado propósito e presciência de Deus”, “tomado por mãos iníquas”, “crucificado
e morto; a quem Deus ressuscitou” (At 2:23-24). Da mesma forma, Paulo se refere a
“aqueles que amam a Deus” (Rm 8:28), a quem Ele “de antemão conheceu” e
“predestinou” (8:29). Portanto, os cinco textos mencionados anteriormente (At 2:23;
Rm 8:29; 11:2; 1Pe 1:2, 20) serão examinados para identificar respostas para as
seguintes questões: Será que a presciência exaustiva de Deus da liberdade da salvação
facilita Sua predestinação, ou Sua predestinação facilita Sua presciência? A presciência
definida de Deus é estática, ou é dinamicamente focada por interações divino-humanas?
A presciência de Deus limita-se a antecipar a certeza das interações, ou é exaustiva no
sentido de antecipar também a certeza das opções interativas?12

10
Gregory Boyd, “The Open Theism View,” Divine Foreknowledge, 13-47. Clark Pinnock aponta que, de
acordo com esse modelo, “ações livres [envolvendo opções alternativas] não são ações que podem ser
conhecidas antecipadamente. Eles literalmente não existem para serem conhecidos”, David e Randall
Bassinger, eds., Predestination and Free Will (Downers Grove, IL: Inter-Varsity, 1986), 157; cf. Donkor,
“Predestination, Foreknowledge, and Human Freedom,” 3.
11
A segunda palavra também é usada para se referir à presciência humana. Paulo se referiu aos judeus
que “me conheciam desde o princípio [proginōskō]” (Atos 26:5); e Pedro apela a seus leitores: “Já que
você sabe disso de antemão [proginōskō], cuidado” (2 Pedro 3:17). Salvo indicação em contrário, todas as
citações das Escrituras são extraídas da New King James Version®. Copyright © 1982 por Thomas Nelson.
Usado com permissão. Todos os direitos reservados.
12
A previsão de opções e ações é maior do que apenas a previsão de ações. Além disso, como as opções
são ações possíveis, o conhecimento prévio das opções antecipa ações que podem não acontecer. Desta
forma, as estruturas lógicas de presciência e predestinação são semelhantes. Deus predestina ações que
acontecem (Sua vontade permissiva) e ações que podem não acontecer (Sua vontade prescritiva). Veja
John C. Pecltham, “Does God Always Get What He Wants?” 195-212; “Providence and Gods Unfulfilled
Desires,” Philosophia Christi 15:2 (2013): 453-462.

40
Pode-se argumentar, com base nesses cinco textos bíblicos explícitos, que a
presciência de Deus das opções e interações interativas divino-humanas facilita Sua
predestinação de opções e ações divinas (At 2:23; 1Pe 1:2,20; Rm 8:29; 11:2) para
facilitar as opções e ações humanas (At 2:23; 1Pe 1:2) que também facilitam as opções
e ações divinas (At 2:24; 1Pe 1:21).13 Por exemplo, Deus “conheceu de antemão” (Rm
11:2) Suas opções interativas com relação à Sua ação na “irrevogável” (11:28-29)
“eleição [livre escolha]14 da graça” (11:5) pelo qual Ele tem misericórdia de todos
(11:32). Deus também conheceu de antemão (11:2) Suas contínuas opções interativas
divino-humanas e interações com aqueles que são “eleitos” “pela fé” e não eleitos pela
“incredulidade” (11:7, 20). Através de tais opções e interações interativas, os eleitos
podem se tornar não eleitos e os não eleitos podem se tornar eleitos (11:22-23; cf. 2Pe
1:10; 3:9).15 (Estas interpretações serão explicado e apoiado posteriormente neste
capítulo.)
O modelo bíblico proposto aqui sugere que a presciência definida e exaustiva de
Deus opera de maneira dinâmica, como é ilustrado na seguinte conversa entre Deus e
Davi sobre o rei Saul e os líderes da cidade de Queila. Predizendo a iminente expedição
de Saul para atacar Davi em Queila, Deus disse a Davi: “Ele descerá” (1Sm 23:11); e “eles
[os líderes] o entregarão [a Saul]” (23:12). Em resposta à presciência de Deus, Davi
deixou a cidade (23:13). “Então foi dito a Saul que Davi havia escapado de Queila; então
ele parou a expedição” (23:13). Aqui a interação de Deus com Davi impede um evento
que Deus previu: Saul matará Davi em Queila. Simultaneamente, a interação de Deus

13
Tradicionalmente, são feitas distinções entre o conhecimento natural das necessidades de Deus, o
conhecimento médio das contingências e o conhecimento livre das futuras escolhas livres. Na história da
reflexão cristã sobre esses assuntos, dois escritores importantes são Luis de Molina (1535-1600) e Jacó
Armínio (1560-1609). Molina propõe uma única deliberação divina seguindo o conhecimento médio; e
Armínio propõe duas deliberações divinas, uma anterior e outra posterior ao conhecimento médio. A
deliberação de Deus é entendida para levar ao livre conhecimento de futuras escolhas livres. Kirk M.
MacGreggor, A Molinist-Anabaptist Systematic Theology (Lanham, MD: University Press of America,
2007), 63-81. Meu modelo destaca o uso contínuo da presciência de Deus (natural, médio e livre) nas
contínuas deliberações divinas. Craig escreve: "Nós [podemos] tomar a palavra bíblica 'presciência' para
abranger o conhecimento médio", "Deus dirige todas as coisas", em Four Views on Divine Providence, 86.
Veja também The Works of James Arminius, trad. James e William Nichols (Grand Rapids, MI: Baker, 1996),
1:653-4; cf. Timothy Arena, “Divine Foreknowledge, Predestination, and Plan” (artigo não publicado,
Andrews University, dezembro de 2016).
14
Ben Witherington, III, and Darlene Hyatt, Paul’s Letter to the Romans: A Socio- Rhetorical Commentary
(Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2004), 265.
15
“A linguagem eleitoral do Novo Testamento não se concentra [principalmente] no conceito de seleção,
mas sim [principalmente] na ideia de iniciativa graciosa.” Glen Shellrude, “Todos são eleitos, poucos são
eleitos”, Scottish Bulletin of the Evangelical Theology 30:2 (outono de 2012): 145. “Entre a eleição nas
Escrituras Hebraicas de Jesus e a eleição na formulação de sistemas teológicos, às vezes parece haver ser
um grande abismo corrigido. Poucas e estreitas são as pontes de um para o outro”, Christopher J. H.
Wright, The Mission of God: Unlocking the Bibles Grand Narrative (Nottingham: Inter Varsity, 2006), 262;
cf. Stephen N. Williams, A eleição da graça: um enigma sem uma resolução? (Grand Rapids, MI: Eerdmafis,
2015), 5. Veja também as distinções de Joel Kaminsky entre eleitos, não eleitos e anti-eleitos. “O Conceito
de Eleição e Segundo Isaías: Literatura Recente”, Boletim de Teologia Bíblica 31 (Inverno de 2001): 135-
144; “A eleição implicou maus-tratos a não-israelitas?” Harvard Theological Review 96:4 (2003): 397-425;
cf. Joel N. Lohr, Chosen and Unchosen: Conceptions of Election in the Pentateuch and Jewish-Christian
Interpretation” (Winina Lake, IN: Eisen- brauns, 2009), 35-40.

41
com Davi facilita outro evento que Deus também previu: Davi se tornará rei no lugar de
Saul (2Sm. 2:11; 5:3).16
Essa narrativa bíblica ilustra que Deus conheceu de antemão todas as opções
interativas e interações, algumas das quais Ele exclui da atualização quando faz escolhas
livres. Além disso, Deus conheceu de antemão as opções interativas que Suas escolhas
tornam disponíveis para os seres humanos. Além disso, Deus conheceu de antemão as
opções interativas que são excluídas pelas escolhas humanas. Portanto, a presciência de
Deus se concentra em diferentes opções interativas e interações à medida que as
interações divino-humanas acontecem. Desta forma, Deus conheceu antes da criação
do universo (1Pe 1:20) e conhece de antemão da perspectiva de Sua “presença eterna”
dentro do tempo criado.17 Sendo onisciente, Ele conhece a diferença entre o passado, o
presente, e o futuro, e focaliza Sua presciência de acordo.18 É importante notar que esta
focalização não acrescenta à presciência de Deus, visto que Ele sempre conheceu todas
as coisas. (Percepções bíblicas adicionais – sobre a presciência exaustiva, definida e
dinâmica de Deus da liberdade da salvação – são apresentadas nas seções subsequentes
deste capítulo.)

16
Para mais informações sobre o incidente em Keilah, veja Nadav Na’aman, “Davids Sojourn in Keilah in
Light of the Amarna Letters,” Vetus Testamentum, 60 (2010): 87-97.
17
Ellen White escreve: “EU SOU significa uma presença eterna; o passado, o presente e o futuro são
semelhantes a Deus” no sentido de que “Ele vê os eventos mais remotos da história passada e o futuro
distante com uma visão tão clara quanto nós temos as coisas que estão acontecendo diariamente”, Carta
119, fevereiro 19, 1895. A respeito da condicionalidade da presciência profética: “Os anjos de Deus em
suas mensagens aos homens representam o tempo como muito curto. Assim, sempre me foi apresentado.
É verdade que o tempo continuou mais do que esperávamos nos primeiros dias desta mensagem. Nosso
Salvador não apareceu tão cedo quanto esperávamos. Mas a palavra do Senhor falhou? Nunca! Deve ser
lembrado que as promessas e ameaças de Deus são igualmente condicionais”, Ellen G. White, Selected
Messages (Washington, DC: Review and Herald, 1980), 1:67. Herbert Douglass comenta: “A profecia
condicional, ou incerteza controlada, é um princípio bíblico aplicado a declarações de natureza preditiva
que dizem respeito ou envolvem as respostas dos seres humanos. Sempre que um desdobramento de
eventos depende da escolha humana, certos aspectos do cumprimento profético são necessariamente
condicionais”, Messenger of the Lord (Napa, ID: Pacific Press, 1998), 30.
18
Patrick Todd identifica as seguintes implicações sobre o futuro com base em sua leitura dos escritos de
Peter Geach: “o futuro é mutável de uma maneira particular. Em visões de futuro abertas, muitas vezes
agimos de tal forma que damos ao futuro uma forma mais determinada; às vezes fazemos com que... o
que só pode ou provavelmente vai acontecer se torna tal que agora, simplesmente vai acontecer. A visão
de Geach é diferente. Mudamos o futuro de uma forma mais radical... O que vai acontecer muda.
Nenhuma outra visão – aberta ou não – mantém essa tese distinta”, Patrick Todd, “Geachianism”, em
Oxford Studies in Philosophy of Religion, ed. Jonathan Kvanvig (Oxford: Oxford University Press, 2011),
3:226. “Talvez você pense que este é um resultado estranho e contraintuitivo. Se realmente é verdade
que algo vai acontecer, como poderia deixar de acontecer? Se essa foi sua reação à visão de Geachs, devo
avisá-lo de que você pode estar correndo o risco de se tornar um futurista aberto. Pois é claramente a
tese central das visões abertas do futuro - e do fatalismo lógico - que se algo vai acontecer no futuro, não
pode deixar de acontecer mais tarde. Se acontecer, então é inevitável”, ibid., 238-239. “A motivação
tradicional para o teísmo aberto tem sido o pensamento de que a presciência divina e a liberdade humana
são incompatíveis, com a consequência de que devemos negar que Deus tenha presciência de ações livres
futuras ___ A visão de Geach... que a mera presciência divina é consistente com a liberdade humana”,
ibid., 244. Ver Peter Geach, Providence and Evil (Cambridge: Cambridge University Press, 1977); Patrick
Todd, “Contra a presciência limitada”, Philosophia 42:2 (2014): 523-538.

42
SERMÃO DE PEDRO NO PENTECOSTES
No sermão de Pedro no dia de Pentecostes, ele pregou sobre Cristo “sendo
entregue pela . . . presciência de Deus” (Atos 2:23). O resto do sermão mostra que o que
Deus sabia de antemão não é revelado apenas nesta única frase. Para Pedro, a
presciência divina também é revelada nas Escrituras proféticas do Antigo Testamento
que antecipam as interações divino-humanas que seguem o “propósito determinado”
de Deus para que Cristo seja “entregue” – que “vocês tomaram por mãos iníquas,
crucificaram e puseram a morte; a quem Deus ressuscitou” (2:23-24). A revelação da
presciência nas Escrituras é evidente quando “Davi disse a respeito dele: ‘Eu previ o
Senhor’” (2:25); e “sendo profeta” (2:30), ele “prevendo isto falou da ressurreição de
Cristo” (2:31). Davi também falou sobre Cristo “ser exaltado à destra de Deus, e [como]
tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, Ele a derramou” (2:33; cf. 2:34-
35).19
Além disso, Pedro aponta que a presciência revelada nas Escrituras inclui
interações divino-humanas, como o chamado de Deus e os crentes invocando a Deus. O
profeta Joel apresenta a promessa de Deus de que “derramarei do meu Espírito sobre
toda a carne” (2:17); e que “todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo”
(2:21). Portanto, Deus sabia de antemão que Sua iniciativa através do Espírito torna
possível que todos invoquem a Deus e sejam salvos. Isto motiva o apelo de Pedro a "cada
um" (2:38; cf. 3:26) para "ser salvo" (2:40) porque Deus anunciou que "a promessa é
para vós e para os vossos filhos, e para todos os que estão longe, tantos quantos 20 o
Senhor nosso Deus chamar" (2:39; cf. 13:48; 1 Pe. 2:8).21

19
Para Ellen White, a presciência é revelada na profecia e é harmoniosa com a liberdade humana: “Cristo
citou uma profecia que mais de mil anos antes havia predito o que seria a presciência de Deus. As profecias
não moldam o caráter dos homens que as cumprem. Os homens agem por seu próprio livre-arbítrio”,
Review and Herald, 13 de novembro de 1900. Ela discorda da visão dos saduceus de que Deus “presciência
dos eventos privaria o homem do livre-arbítrio moral”, The Spirit of Prophecy (Battle Creek, MI). : SDA
Publishing Association, 1884), 3:44. Veja Joseph Corabi, Rebecca Germino, “Prophecy, Foreknowledge,
and Middle Knowledge” Faith and Philosophy 30:1 (2013): 72-92; Eleonore Stump, Norman Kretzmann,
“Prophecy, Past Truth, and Eternity,” Philosophical Perspectives 5 (1991): 395-424.
20
Uma frase semelhante em outro texto merece consideração aqui: “Creram todos os que foram
designados [nomeado, destinado] para a vida eterna” (Atos 13:48). A palavra designado “foi analisada na
voz média para produzir o significado de que todos os que se estabeleceram ou se dispuseram a ou para
a vida eterna se tornaram crentes”, The Election of Grace, 64. Outros propõem que a designação de Deus
“é baseada em sua presciência do que um indivíduo escolheria livre e voluntariamente”, ibid., 68. Ainda
outros interpretam designado “como um assunto corporativo e não individual”, ibid., 70. Como este texto
é interpretado, a designação de alguns para a vida eterna não precisa implicar que os outros são
irrevogavelmente designados para a morte eterna, ibid., 72-81.
21
O chamado de Deus pode ser interpretado como um convite estendido a todos e/ou como uma
designação aplicada a alguns. Por exemplo: “Muitos são chamados [convidados], mas poucos são
escolhidos” (Mt 22:14); e “os que amam a Deus” são designados como “os chamados” (Romanos 8:28). O
que é importante para os propósitos deste capítulo é que no sermão de Pedro, a presciência de Deus
(Atos 2:23) está ligada ao Seu chamado (2:39), e nas cartas de Pedro ele liga os conceitos de “presciência”
e “eleitos”. (1Pe 1:2) e os conceitos de “chamada e eleição” (2Pe 1:10). Além disso, tanto Pedro como
Paulo ligam a presciência com a predestinação (Atos 2:23; Romanos 8:29). Veja William H. Willimon,
“‘Everyone Whom the Lord Our God Calls’: Acts 2 and the Miracle of Pentecost Preaching in a Multicultural

43
As implicações do sermão de Pedro são ainda mais esclarecidas no contexto mais
amplo do livro de Atos quando, no concílio de Jerusalém, o apóstolo Tiago interpreta o
ministério de Pedro em termos da presciência de Deus sobre toda a humanidade,
conforme revelado nas Escrituras. Tiago diz: “Simão [Pedro] declarou como Deus...
visitou os gentios para tirar deles um povo para o Seu nome. E com isso concordam as
palavras dos profetas” (Atos 15:14-15). Isso é “para que todos os demais homens
busquem ao Senhor, sim, todos os gentios que são chamados pelo meu nome, diz o
Senhor, que faz todas estas coisas, conhecidas por Deus desde a eternidade são todas
as suas obras” (15:17-18; cf. 1 Pe. 1:20). Se Deus conhece de antemão todas as Suas
escolhas em relação à liberdade da salvação, então Ele também deve conhecer de
antemão todas as opções e interações interativas divino-humanas, uma vez que Ele
trabalha nos seres humanos para que seja possível que os humanos busquem a salvação
nEle.22 Da mesma forma, o livro de Atos registra como Paulo pregou em Atenas que:
Deus “fez de um só sangue toda nação dos homens [humanidade] ... o Senhor, na
esperança de que eles possam... achá-lo... pois nele vivemos, nos movemos e existimos”
(Atos 17:26-28; cf. Rom. 8:20).23 A predestinação pré-conhecida de Deus facilita as
opções interativas que tornam possível para a humanidade responder aos Seus
“mandamentos [para] que todos os homens [e mulheres] em todos os lugares se
arrependam” (Atos 17:30).24
A perspectiva de Pedro, conforme apresentada no contexto do livro de Atos, apoia
o conceito de presciência de Deus de opções e interações interativas. Primeiro, Deus
possui liberdade libertária porque Ele conheceu Suas opções antes de determinar Seu
propósito de entregar Cristo nas mãos de seres humanos (Atos 2:23).25 “O determinado
propósito e presciência” de Deus estão ligados nesta declaração por um artigo, “O”, a

Context,” Journal for Preachers 25:4 (Pentecost 2002): 3-10; William W. Klein, “Paul’s Use of Kalein: A
Proposal,” Journal of the Evangelical Theological Society 27:1 (March 1984): 53-64.
22
Jesus diz: “Sem mim nada podeis fazer” (João 15:5; cf. 1:3). Paulo escreve: “Desenvolvei a vossa própria
salvação com temor e tremor; porque é Deus quem efetua em vós tanto o querer como o efetuar, segundo
a sua boa vontade” (Fp 2:12-13). O fato de Deus conhecer de antemão todas as Suas obras em
concordância com todas as nossas obras não significa que Deus nos faz escolher uma coisa em vez de
outra. “Criaturas particulares têm contribuições distintas a fazer para a forma como a vontade ou intenção
de Deus é realizada” com “a colaboração divina”, Charles M. Wood, “How Does God Act?” International
Journal of Systematic Theology 1:2 (julho de 1999): 148.
23
Este texto é semelhante ao que Paulo escreve em sua carta aos romanos a respeito de Deus sujeitar a
criação na esperança de sua libertação (Rm 8:20-21). O sermão de Paulo em Atenas é mencionado aqui
porque faz parte do contexto do livro de Atos onde o sermão de Pedro está registrado. Os escritos de
Paulo sobre a presciência de Deus serão apresentados mais adiante neste capítulo.
24
“Ele é o Deus dos judeus somente? Ele não é também o Deus dos gentios? Sim, também dos gentios”
(Rm 3:29). “Cristo... é sobre todos, o Deus eternamente bendito” (9:5).
25
O conceito de opções de livre escolha de antemão nos ajuda a conceituar como Deus poderia conhecer
de antemão Suas livres escolhas sem comprometer Sua liberdade de escolha. Definir mecanismos para as
várias dimensões da presciência de Deus está além do escopo deste capítulo. Ao mesmo tempo, proponho
que Deus faça escolhas livres com base em Sua presciência de Suas opções, não com base em Sua
presciência de qual será Sua escolha. David P. Hunt ilustra esse ponto da seguinte forma: “O fato de você
querer entrar em Harvard e de enviar uma inscrição é um meio necessário para esse fim, é uma razão
para enviar uma inscrição; o fato de que você entrará em Harvard... não é motivo para se inscrever”, “The
Simple Foreknowledge View”, em Divine Foreknowledge, 100; veja também “Prophecy, Foreknowledge,
and Explanatory Loops: A Reply to Robinson,” Religious Studies 40:4 (Dec. 2004): 485-491..

44
fim de afirmar a estreita relação entre eles. Não obstante, há uma distinção entre o
propósito de Deus e Sua presciência. O propósito e a ação de Deus são informados por
Sua presciência de Suas opções. “A presciência de Deus não pode depender de Sua
vontade.”26 Deus não pode conhecer de antemão todas as coisas a menos que Sua
presciência preceda todas as coisas.
Segundo, o contexto bíblico mais amplo indica que a presciência e a predestinação
de Deus não excluem, mas possibilitam opções alternativas para interações entre o
Cristo encarnado e Seu Pai no céu. Isso é dramaticamente demonstrado quando Cristo
afirmou em Sua oração que Deus poderia reverter Sua vontade: “Pai, todas as coisas são
possíveis para você. Afasta de mim este cálice” (Marcos 14:36). Depois disso, Cristo
também orou em rendição ao propósito de Deus: “Todavia, não o que eu quero, mas o
que você quer” (14:36). Outra evidência da liberdade de Cristo é Sua declaração de que
“entrego a minha vida para tomá-la novamente. Ninguém a tira de mim, mas eu a dou
de mim mesmo” (João 10:17-18).27 Essas declarações deixam claro que a presciência e
a predestinação de Deus permitem que Cristo e Seu Pai tenham opções interativas
alternativas disponíveis para eles dentro da história da criação.
Em resumo, o sermão de Pedro—interpretado em seu contexto bíblico—indica que
Deus conheceu de antemão de forma dinâmica as seguintes opções e interações divino-
humanas: entregar Cristo à morte, crucificar Cristo, render-se à crucificação, ressuscitar
e exaltar Cristo, para derramar o Espírito, para chamar os seres humanos, e para invocar
a Deus. Como tal, Deus conheceu de antemão Sua provisão de salvação para toda a
humanidade, e Ele conheceu de antemão aqueles que são salvos, aqueles que estão
perdidos, e que aqueles que estão perdidos poderem ser salvos. Deus sabia de antemão
que se Ele não escolhesse nos chamar por meio de Cristo e do Espírito, então não
seríamos livres para clamar a Deus pela salvação; e que se escolhermos rejeitar o
chamado de Deus, não receberemos a salvação que Ele proveu. Como tal, a presciência
exaustiva e definida de Deus é dinamicamente focada por Suas ações para cumprir Seu
propósito determinado para interações divino-humanas. O ensino de Pedro sobre a
presciência de Deus é desenvolvido em suas cartas.
CARTAS DE PEDRO AOS ELEITOS PRÉ-CONHECIDOS
Nas cartas de Pedro, ele apresenta um segundo uso do substantivo presciência em
relação a Deus (1Pe 1:2) e dois usos do verbo pré-conhecido/conhecido de antemão –
um se refere à presciência divina (1:20) e o outro em à presciência humana (2Pe 3:17).
Os dois primeiros textos são mais diretamente relevantes para a perspectiva bíblica
sobre o foco da presciência de Deus sobre a liberdade da salvação. O terceiro texto é
discutido brevemente no final desta seção.

26
C. Gordon Olson, Getting the Gospel Right: A Balanced View of Salvation Truth (Cedar Knolls, NJ: Global
Gospel Publishers, 2005), 263.
27
Veja Timothy Pawl, “The Freedom of Christ and Explanatory Priority,” Religious Studies 50:2 (2014):
157-173.

45
O dinamismo do foco da presciência é evidente na maneira como Pedro liga suas
duas referências explícitas à presciência (1Pe 1:2, 20) com a revelação da presciência
nas Escrituras (1:10-12). Pedro dirige sua carta àqueles que são “eleitos segundo a
presciência de Deus” (1:2). Esta eleição é um ato de Deus que facilita as interações
divino-humanas, pois Cristo “de fato foi predestinado [proginōskō, conhecido de
antemão]28 antes da fundação do mundo, mas foi manifesto [revelado] nestes últimos
tempos para vocês que por meio dele credes em Deus , que Deus o ressuscitou dentre
os mortos e lhe deu glória, para que a vossa fé e esperança estejam em Deus” (1:20-21;
[cf. 1:2]). Significativamente, Deus age em Cristo para realizar o que Ele sabe de antemão
a respeito daqueles que são eleitos em Cristo. A presciência de Deus de Suas interações
com aqueles que creem representa Sua presciência de que todos podem crer e que os
crentes podem cair da fé. Isso pode ser demonstrado nos seguintes pontos.
Primeiro, entre as duas declarações sobre presciência (1Pe 1:2, 20), Pedro escreve
sobre como a presciência de Deus é revelada nas Escrituras proféticas. Aqui a ênfase
está no que Deus conheceu de antemão de Suas ações em Cristo: Cristo que estava neles
estava indicando quando testificou de antemão os sofrimentos de Cristo e as glórias que
se seguiriam” (1:10-11).29 Essas palavras dos profetas indicam que a revelação da
presciência de Deus nas Escrituras é parcial e progressiva; e que continua a ser revelado
pela manifestação de Deus e ressurreição de Cristo e pelas respostas humanas a Ele em
fé e esperança (1:20-21). No entanto, a presciência de Deus não é revelada apenas por
meio de seu foco naqueles que creem.
Em segundo lugar, a Escritura profética revela a presciência de Deus das interações
de Deus com aqueles que respondem a Cristo pela fé ou pela incredulidade. Por um
lado, “também está contido nas Escrituras” que Cristo é “a principal pedra da esquina,
eleita, [e] preciosa” (1Pe 2:6; cf. Is 28:16); que para aqueles “que creem, Ele é precioso”
(1Pe 2:7); e que nEle eles são um “povo escolhido” e “específico” (2:9).30 Por outro lado,
“também está contido na Escritura” (2:6) que, por “os [pela incredulidade]”, Cristo é
“rejeitado” como “pedra de tropeço e rocha de escândalo” (2:7-8; cf. Is 8:14).31
Terceiro, Deus também sabe de antemão que os crentes podem se tornar
incrédulos e os incrédulos podem se tornar crentes. Pedro instrui os “eleitos” (1Pe 1:2)
para que sejam “ainda mais diligentes para assegurar a vossa vocação e eleição, porque

28
O significado literal da palavra é “pré-conhecido” (não pré-ordenado). Veja Nova Tradução em Inglês,
American Standard Bible e English Standard Version. Pedro usa a mesma palavra para indicar
conhecimento prévio (2Pe 3:17; cf. At 26:5) e faz uma distinção entre presciência e eleição (1Pe 1:2). Ver
William W. Klein, The New Chosen People: A Corporate View of Election (Eugene, OR: Wipf and Stock,
2015), 215.
29
Veja Klein, The New Chosen People, 216.
30
Klein, The New Chosen People, 218.
31
Pedro também cita o Salmo 118:22. Em contraste com a referência à crença no mesmo texto, a
referência à desobediência indica incredulidade (1 Pe 2:7; cf. Rom. 14:23; 11:32; Gal. 3:22). O tropeço é
descrito como aquele “para o qual eles... foram designados” (1 Pe 2:8). Esta não é uma referência a eles
serem designados para serem incrédulos. Em vez disso, é uma referência ao tropeço que está designado
para acontecer àqueles que escolhem a incredulidade (2 Pe 1:10-11). Pedro está aqui interpretando Isaías
que “sublinha o que é claro no AT: é o coração endurecido dos israelitas desobedientes que traz o
julgamento de Deus”, Williams, The Election of Grace, 75.

46
se fizerdes estas coisas, nunca tropeçareis; pois assim vos será abundantemente suprida
a entrada no reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (2Pe 1:10-11; cf.
2:20-22; 3:17).32 Deus sabia de antemão que o os eleitos podem cair da fé para a
incredulidade.33 Além disso, Pedro indica que todos os não eleitos (pela incredulidade)
podem se tornar eleitos (pela fé) visto que: “O Senhor é . . . longanimidade para conosco,
não querendo que nenhum se perca, senão que todos venham a arrepender-se” (3:9).
O arrependimento está disponível para todos, pois Pedro apelou para que todos se
arrependessem (Atos 2:38).
Isso indica que Deus possui uma presciência definida e dinâmica de todas as coisas,
incluindo os eleitos como um grupo corporativo, e os indivíduos que entram e saem
desse grupo.34 A perspectiva bíblica contrasta com o conceito tradicional de um decreto
divino que focaliza uma presciência estática de indivíduos que são eternamente eleitos
ou eternamente não eleitos. Em vez disso, Deus escolhe realizar Sua opção de
manifestar e ressuscitar Cristo para que os humanos possam interagir com Ele em fé e
esperança. Pedro instrui seus leitores a “descansar sua esperança inteiramente na graça
que há de ser trazida a você na revelação de Jesus Cristo [em Seu Segundo Advento]”
(1Pe 1:13). Portanto, a presciência de Deus das interações divino-humanas é focada
através da manifestação de Sua graça através de Cristo, através da resposta da

32
Em 2 Pedro 1:10, “A linguagem dificilmente é consistente com um entendimento de eleição como a
seleção incondicional e irrevogável de indivíduos específicos para a salvação. No entanto, o imperativo
faz sentido se o autor assume que a eleição é condicional no sentido de que o crente pode perder ou
manter seu status de eleito. Essa compreensão da declaração é consistente com a interpretação da
linguagem eleitoral como uma maneira de falar da iniciativa graciosa de Deus e do status amado daqueles
que respondem. O ponto seria que os crentes devem seu status inteiramente ao desenho de Deus
(chamado, eleição). Mas este é um status que pode ser perdido, então os crentes são encorajados a
perseverar na graça de Deus e, assim, garantir que eles experimentem a realização escatológica de seu
chamado e eleição. Evangelical Bulletin, 156. “É muito claro que a salvação é pela fé agora... Se a salvação
é condicional agora, necessariamente leva à conclusão de que a eleição na eternidade passada era
condicional”, F. Leroy Forlines, The Quest for Truth: Answering Life's Inescapable Questions (Nashville,
TN: Randall House, 2001), 403. “Quando os crentes são referidos de chamados,' não é necessário concluir
que outros não foram chamados”, ibid., 404. Ellen White escreve: “Certifiquemo-nos de estar entre os
que são 'eleitos segundo a presciência de Deus'”, Review and Herald, 29 de outubro de 1901; The Upward
Look (Washington, DC: Review and Herald, 1982), 366. “Estas palavras [1 Ped. 1:1-5] são evidências
suficientes de que Deus deseja que recebamos grandes bênçãos”, Manuscript 71, November 12,1912.
33
A possibilidade dos eleitos se tornarem não eleitos é evidente nas seguintes declarações de Pedro.
“Cuidado para que você também não caia” (2 Pe 3:17). “Pois se, depois de terem escapado das
contaminações do mundo pelo conhecimento do Senhor e Salvador Jesus Cristo, forem novamente
enredados nelas e vencidos, o último fim é pior para eles do que o princípio. Pois seria melhor para eles
não conhecer o caminho da justiça, do que conhecê-lo, desviar-se do santo mandamento que lhes foi
dado. Mas aconteceu com eles de acordo com o verdadeiro provérbio: ‘O cão volta ao seu próprio vômito’,
e, uma porca, lavada, para chafurdar na lama” (2:20-22). Ver também Kirk R. MacGregor e Kevaughn
Mattis, eds., Perspectives on Eternal Security: Biblical, Historical, and Philosophical (Eugene, OR: Wipf and
Stock, 2009).
34
A respeito de 1 Pedro 1:2, William W. Klein comenta: “Eu insisto que a referência aqui é corporativa. A
igreja cristã é eleita com base na presciência de Deus”, The New Chosen People, 221. John Hall Elliott
concorda: “Aqueles que creem em Jesus como o Eleito e o Precioso de Deus são reunidos como o Povo
Eleito e Precioso”. O Eleito e Santo (Eugene, OR: Wipf e Stock, 1966, 2005), 222; ver também Klein, The
New Chosen People, 225.

47
humanidade à graça através da esperança e através da futura manifestação da graça
através de Cristo.
Finalmente, Pedro motiva Seus leitores a interagir com Deus em harmonia com a
forma como sua presciência humana é focalizada pelas Escrituras em relação tanto à sua
esperança quanto ao perigo de perder a esperança. Portanto, Pedro suplica:
“Aguardando essas coisas, seja diligente... e considere que a longanimidade de nosso
Senhor é salvação — como também nosso amado irmão Paulo... escreveu para você35...
em que há algumas coisas difíceis de entender, que pessoas incultas e instáveis torcem
para sua própria destruição, como também fazem o resto das Escrituras. Vós, pois,
amados, sabendo isto de antemão [proginōskō], acautelai-vos para que também não
caias” (2Pe 3:15-17; cf. 1:10-11; 2:20-22).
CARTA DE PAULO AOS ROMANOS
Como é o caso de Pedro, as declarações de Paulo sobre a presciência em sua carta
aos Romanos (8:29; 11:2) refletem sua convicção de que o foco da presciência de Deus
é revelado nas Escrituras proféticas. Como tal, onde quer que ele mencione as
Escrituras, Paulo implica o conceito de presciência de Deus de opções para interações
envolvidas na liberdade da salvação. Por exemplo, no prólogo e epílogo de sua carta aos
Romanos, Paulo se refere ao “meu evangelho” (16:25) que é “o evangelho de Deus”
(1:1) que é “a pregação de Jesus Cristo, segundo para a revelação do mistério mantido
em segredo desde o princípio do mundo, mas agora manifesto [por Deus], e pelas
Escrituras proféticas [através de profetas humanos] dado a conhecer a todas as nações
... para obediência à fé [a resposta humana]” (16:25-26; cf. 1:1-5).36
A conexão da presciência de Deus da liberdade da salvação com o “mistério”
revelado nas Escrituras (Rm 16:25) é explicitada por Paulo. Seu único outro uso da
palavra “mistério” no livro de Romanos (11:25) é parte de sua discussão sobre o que
Deus “pré [antemão] -conheceu” (11:2) do remanescente eleito (11:5, 7, 28) e a
plenitude de Israel e das nações (11:12, 25).37 Além disso, a referência de Paulo ao
mistério mantido em segredo desde o início do mundo e agora manifestado pelas
Escrituras proféticas (16:25-26) é conceitualmente paralela à referência de Pedro à
verdade de que Cristo “foi predestinado [proginōskō, conhecido de antemão] antes da

35
Paulo se refere explicitamente à “longanimidade” de Deus apenas na carta aos Romanos (2:4; 9:22),
onde a presciência de Deus também é mencionada (8:29; 11:2). Pedro liga a longanimidade de Deus com
Sua vontade de que todos se arrependam (2 Pe 3:9; cf. 3:15-17). Paulo liga a bondade e a longanimidade
de Deus com o arrependimento (Rm 2:4) e então se refere à presciência de Deus (11:2) daqueles que
continuam em Sua bondade pela fé (11:22). Além disso, Paulo liga a longanimidade de Deus (9:22) com o
chamado e “propósito de Deus... segundo a eleição” (9:11) que está ligado com a presciência de Deus
(8:29; 11:2) dos ” (8:33; 11:2, 7, 28), “segundo a eleição da graça” (11:5).
36
Veja James C. Miller, The Obedience of Faith, the Eschatological People of God, and the Purpose of
Romans (Atlanta, GA: Society of Biblical Literature, 2014).
37
Mark D. Nanos, The Mystery of Romans: The Jewish Context of Paul’s Letter (Minneapolis, MN: Fortress,
1996).

48
fundação do mundo e manifesto nestes últimos tempos para vocês que creem” (1Pe
1:20)38 como anunciado pelos profetas (1:10-11 ).
Em outras cartas, Paulo identifica explicitamente o mistério do pré-conhecido como
sendo Cristo e aqueles que são salvos em Cristo pelo ato divino da graça e pela interação
divino-humana da fé (Efésios 3:4; 5:32; 6:19; Col. 1:26-27).39 Além disso, na carta aos
Gálatas, a Escritura é personificada como possuindo a presciência de Deus das
interações divino-humanas relacionadas à salvação: “A Escritura, prevendo que Deus
justificaria os gentios pela fé, pregou o evangelho a Abraão dizendo de antemão 'Em ti
todas as nações serão abençoadas'” (3:8). Mais especificamente, a presciência de Deus
da ação divina em Cristo é revelada na seguinte promessa profética das Escrituras: “Ora,
a Abraão e sua Semente foram feitas as promessas”, e a “Semente... é Cristo” (3:16). A
presciência focada implícita no prólogo e epílogo de Paulo (Rm 1:1-5; 16:25-26) é
apresentada mais explicitamente em dois outros lugares em sua carta (8:29; 11:2).
Presciência em Romanos 8:29
Em sua primeira referência explícita à presciência de Deus da liberdade da salvação,
Paulo se refere às interações divino-humanas da seguinte maneira. “Todas as coisas
cooperam para o bem [iniciativa divina de amor] daqueles que amam a Deus [resposta
humana]”, a quem Ele “conheceu de antemão [conhecimento divino]”, “predestinou
[vontade divina]”, “chamou”, “justificou”, e “glorificado [ações divinas]” (Rm 8:28-30).
A estrutura literária desse texto é chamada sorites e indica uma ordem que procede em
etapas da presciência à glorificação.40 Isso indica que Deus conheceu opções interativas
divino-humanas antes de escolher predestinar Suas interações com os seres humanos.41
“A determinação de Deus de que o pré-conhecido seja conforme à imagem de seu Filho,
chamado, declarado justo e glorificado, todos vêm depois de sua presciência deles.”42

38
Ver discussão deste texto na nota de rodapé 28.
39
Ver Daniel Santos, “The Meaning of Mystery in Romans 11:25”, Fides Reformata 17:1 (2012): 45-59. Em
sua carta aos Efésios, Paulo se refere ao “mistério de Cristo” (Efésios 3:4), o “mistério” de “Cristo e a
igreja” (5:32), e “o mistério do evangelho” (6:19). Aos colossenses, Paulo escreve sobre “o mistério que
esteve oculto desde os séculos e de geração, mas agora foi revelado aos seus santos” (Cl 1:26), “que é
Cristo em vocês, a esperança da glória” (Col. 1:26). 1:27; cf. 4:3).
40
No tipo particular de sorites usado por Paulo, o predicado em cada sentença é o sujeito da sentença
seguinte, e cada sentença conduz logicamente à próxima. Outros exemplos incluem Romanos 5:3-5;
10:14-15. Veja J. V. Fesco, “Romans 8:29-30 and the Question of the Ordo Salutis,” Journal of Reformed
Theology 8:1 (Jan. 2014): 35-60; Roy A. Sorenson, “Sorites Arguments”, em A Companion to Metaphysics,
ed. Jaegwon Kim e Ernest Sosa (Oxford: Blackwell, 1995).
41
Veja a seção deste capítulo sobre o Sermão de Pedro no Pentecostes, onde discuto a harmonia entre a
presciência de Deus sobre o futuro e Suas escolhas livres sobre predestinar o futuro. “Romanos 8:29
mostra claramente que a predestinação pressupõe presciência, mas os dois são diferentes. Este último é
um fenômeno epistemológico; o primeiro uma atividade de Deus. A presciência é um certo atributo ou
capacidade em Deus; e é este atributo que fornece a base para, ou permite o ato de predestinação,”
Donkor, “Predestination, Foreknowledge, and Human Freedom,” 2.
42
A. Chadwick Thornhill, The Chosen People: Election, Paul, and Second Temple Judaism (Downers Grove,
IL: InterVarsity, 2015), 230. ressurreição através de sua união com Cristo... [Esta é] uma noção corporativa
e condicional de eleição”, ibid., 232. “O texto pressupõe uma resposta amorosa do indivíduo à oferta de
salvação de Deus”, Donkor, “Predestination, Foreknowledge, and Human Freedom,”3. É “uma garantia de
que aqueles que responderam ao chamado de Deus com amor (e fé) podem ter plena certeza de Seu

49
Para Paulo, não há conflito entre a presciência e a liberdade da salvação porque
Deus conheceu as opções interativas e as interações pelas quais Ele facilita a liberdade
daqueles que são salvos. O “bem” para o qual “todas as coisas cooperam” (Rm 8:28) é a
liberdade, pois “a criação foi submetida... em esperança” para “ser libertada da
escravidão da corrupção para a liberdade gloriosa dos filhos de Deus”. (8:20-21; cf. At
17:26-27). Esta liberdade começa no tempo presente, uma vez que Deus “predestinou”
os seres humanos “para serem conformes à imagem de Seu Filho” (Rm 8:29). Esta
imagem envolve a liberdade, uma vez que "há liberdade" como os seres humanos "estão
sendo transformados na mesma imagem de glória em glória" (2 Coríntios 3:17-18). Deus
“de antemão conheceu” e “predestinou” (Rm 8:29) “os chamados” (8:28) — que são
“chamados à liberdade” (Gl 5:13).
Essa liberdade de antemão, à qual os crentes estão predestinados,43 inclui opções
alternativas, pois Paulo apela: “Não useis a liberdade como oportunidade para a carne,
mas pelo amor sirvam-se uns aos outros” (5:13). O amor a Deus implica interação divino-
humana – “Nós o amamos porque ele nos amou primeiro” (1 Jo 4:19). Além disso, o
contexto mais amplo dos escritos de Paulo indica que os atos de vocação, justificação e
glorificação conhecidos de Deus também envolvem a liberdade de opções e interações
interativas divino-humanas: “Os chamados” “que amam a Deus” (Rm 8:28-29) são
aqueles que são “justificados pela fé” (5:1) e que “se alegram na esperança da glória
[glorificação]” (5:2). Da mesma forma, em outra carta Paulo escreve que nós
“esperamos pela esperança [glorificação] da justiça [justificação] pela fé... agindo pelo
amor [nossa vocação em santificação]” (Gl 5:5-6; cf. Rm 8:28).
Embora sejamos livres para escolher de outra forma, a presciência perfeita de Deus
antecipa as interações divino-humanas com as pessoas eleitas que nunca serão
separadas do amor de Deus (Rm 8:31-39). Isso fica evidente na forma como Paulo
responde às seguintes perguntas. “Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus?
É Deus quem justifica. Quem é aquele que condena? É Cristo que morreu e, além disso,
também ressuscitou, que está à direita de Deus, que também intercede por nós” (8:33-
34). Essas respostas se aplicam àqueles que são incorporados a Cristo pela fé, visto que
Paulo escreveu anteriormente que: “Agora, pois, nenhuma condenação há para os que
estão em Cristo Jesus” (8:1); que a “intercessão” é feita “pelos santos” (8:27); e que
somos “justificados pela fé” (5:1). Isso está em harmonia com a presciência de Deus
revelada nas Escrituras proféticas, uma vez que Paulo escreve aos Gálatas sobre “as
Escrituras, prevendo que Deus justificaria os gentios pela fé” (3:8). Da mesma forma,
Paulo descreve a segurança conhecida do relacionamento de amor de Deus com Seu
povo como um grupo, ligando-o à revelação nas Escrituras proféticas: “Quem nos
separará do amor de Cristo? ... Como está escrito [nas Escrituras]: 'Por amor de ti somos
mortos o dia todo; somos considerados como ovelhas para o matadouro.' . . [nada]

propósito de glorificação final para eles”, I. Howard Marshall, “The Problem of Apostasy in New Testament
Theology,” Perspectives in Religious Studies 14 (1987): 77; cf. Thornhill, The Chosen People, 232.
43
See Kyle A. Pasewarlc, “Predestination as a Condition of Freedom,” Lutheran Quarterly 12:1 (1998): 57-
78.

50
poderá nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus nosso Senhor” (Rm 8:35-
37, 39; cf. Sl 44:22).44
Ao mesmo tempo, é importante notar que a certeza de antemão dos “eleitos de
Deus” (Rm 8:33) está fundamentada na iniciativa amorosa de antemão de Deus para
com todas as pessoas. Isso é evidente na pergunta retórica de Paulo: “Aquele que não
poupou a seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós, como não nos dará também
com ele todas as coisas?” (Rm 8:32). Quando Paulo se refere a “todos nós”, toda a raça
humana está incluída no círculo do amor de Deus. Como Paulo escreveu anteriormente
em sua carta: “Deus demonstra seu próprio amor para conosco, em que Cristo morreu
por nós, sendo nós ainda pecadores” (5:8). Portanto, há um sentido em que mesmo a
livre escolha da humanidade de recusar a salvação não separa a humanidade do amor
conhecido de Deus. Os seres humanos podem se separar do relacionamento de amor
interativo que Deus pretende. Mas eles nunca podem se separar da iniciativa amorosa
que Deus estende a todos.45
Em resumo, o uso de sorites por Paulo (Rm 8:29-30) indica que a presciência de
Deus precede Sua vontade predestinada e Suas ações que facilitam as interações com
aqueles que são chamados em amor, justificados pela fé e se regozijam na esperança da
glorificação. Não há conflito entre presciência e liberdade, pois Deus conhece de
antemão Seu propósito predestinado de focalizar Sua presciência facilitando nossa
liberdade. Deus conhece de antemão Seu amor por toda a Sua criação e por Seus eleitos
que nunca serão separados de seu relacionamento de amor interativo com Ele. A
presciência de Deus de Suas opções interativas e interações com todas as pessoas e com
aqueles que recebem a salvação é apresentada com mais detalhes em Romanos 11.
Presciência em Romanos 11:2
O conceito da liberdade da salvação está intimamente ligado à referência explícita
final de Paulo ao foco da presciência de Deus nas ações divinas e nas interações divino-
humanas (Rm 11:2). Mais uma vez, Paulo articula seu ensino em termos do que é
revelado nas Escrituras proféticas sobre a interação divino-humana: “Deus não rejeitou
[mas reservou] o seu povo que de antemão conheceu.46 Ou não sabeis o que diz a

44
O apóstolo João aponta que há um sentido em que Deus sempre ama a todos (João 3:16), pois “Deus
é amor” (1 João 4:8). Além disso, algumas pessoas podem experimentar um declínio ou queda em seu
amor por Deus. A eles Ele diz: “Vocês deixaram seu primeiro amor” (Ap 2:4).
45
O amor de Deus é “precondicional” – “livremente concedido antes de quaisquer condições, mas não
exclui as condições”, John C. Peclcham, The Love of God: A Canonical Model (Downers Grove, IL: Inter
Varsity, 2015), 191.
46
Paulo também responde: “Claro que não! Pois eu também sou israelita. “Paulo usa a fórmula de
negação em nove outros lugares em Romanos [3:4, 6, 31; 6:2, 15; 7:7, 13; 9:14; 11:11]. Em cada caso,
imediatamente após a negação, ele dá uma justificativa para a negação em uma forma de resumo
compacto que contém o potencial para a resposta inteira; então ele expande a resposta no argumento
subsequente,” Lionel J. Windsor, Paul and the Vocation of Israel: How Paul's Jewish Identity Informs His
Apostolic Ministry, with Special Reference to Romans (Berlin: De Gruyter, 2014), 233. “Assim , quando
Paulo está falando positivamente de seu status como 'israelita', ele está falando de seu status como
instrumento de Deus para trazer a revelação de Deus ao mundo. Para Paulo, a preocupação de Deus por
Israel está ligada à escolha de Deus de Israel para alcançar Seus propósitos mais amplos”, ibid., 235-236.

51
Escritura...?” “Reservei para mim” aqueles “que não dobraram os joelhos a Baal” (11:2,
4). Além disso, Paulo destaca a natureza da presciência de Deus das interações divino-
humanas, apontando que, embora “Deus não tenha [completamente /
permanentemente] rejeitado [apotheo] Seu povo” (11:2), eles são parcial e
temporariamente “rejeitados” [apobole] (11:15) por causa da incredulidade (11:20, 22).
No restante de Romanos 11, Paulo explica esse “mistério” (11:25; cf. 16:25) das pessoas
pré-conhecidas de Deus que “não são rejeitadas” embora sejam “rejeitadas”. 47 A
explicação envolve uma exposição sobre o foco da presciência de Deus das opções
interativas e interações envolvidas com Deus “irrevogável” (11:28-29) “eleição [livre
escolha]48 da graça” (11:5) para todos (11:32) incluindo “os eleitos” “remanescentes”
(11:5-7), “a plenitude” do remanescente eleito (11:12, 25), e “os demais” que não são
eleitos (11:7).
Primeiro, Deus conheceu a distinção entre a iniciativa divina da “eleição da graça”
(Romanos 11:5) e a interação divino-humana com aqueles que são eleitos pela fé e não
eleitos pela incredulidade. “Há um remanescente [eleito] segundo a eleição da graça
[dada a Israel]” (11:5; [cf. 11:7]) uma vez que “Israel [em sua plenitude] não obteve o
que busca [justiça] ; mas os eleitos a obtiveram [pela fé], e os demais foram cegados
[endurecidos, porosis] [pela incredulidade]” (11:7; [cf. 9:30-32; 11:26]).49 O
remanescente é eleito pela fé na graça de Deus, pois a justiça (4:15) “é pela fé para que
seja segundo a graça” (4:16). Os eleitos remanescentes são “chamados, não somente
dos judeus, mas também dos gentios” (9:24); como diz a Escritura profética (9:25-29),
“o remanescente será salvo” (9:27; cf. Is 10:22-23). Desta forma, “os gentios [crentes]”
“atingiram” “a justiça da fé” (Rm 9:30), “mas o [incrédulo] Israel” “não alcançou” (9:31),
“porque não a buscaram [justiça] pela fé” (9:32).
Em segundo lugar, Deus conheceu de antemão a iniciativa divina da “eleição da
graça” (Rm 11:5) para que “o propósito de Deus, segundo a eleição, permanecesse, não
de obras [humanas], mas daquele [Deus] que chama” (9:11). A natureza desse chamado
é ilustrada na “palavra da promessa” (9:9) a Sara e Rebeca a respeito de seus filhos (9:6-
12). Isso indica a certeza da promessa de Deus de: “tenha misericórdia [e compaixão] de
quem eu quiser” (9:15), indicando Sua vontade de “ter misericórdia de todos” (11:32)
para que os vasos da ira sejam transformados em vasos de misericórdia. Paulo ilustra o

Comentando este texto, Ellen White escreve: “Mesmo que Israel tenha rejeitado Seu Filho, Deus não os
rejeitou,” Acts of the Apostles (Nampa, ID: Pacific Press, 2005), 375.
47
A rejeição de alguns do povo de Deus pode ser interpretada como uma rejeição parcial (alguns são
rejeitados por causa da incredulidade) e/ou como uma rejeição temporária (alguns que agora são
incrédulos, no futuro se tornarão crentes). Veja Romanos 11:25-26; e F. Leroy Forlines, Romanos, The
Randall House Bible Commentary, gen. ed. Robert E. Picirilli (Nashville, TN: Randall House, 1987), 297-
304.
48
Witherington and Hyatt, Paul’s Letter to the Romans, 265.
49
É importante notar a linguagem similar usada para descrever o endurecimento do Faraó (Rm 9:17-18).
Tanto o endurecimento do Faraó quanto o de Israel envolvem interações divino-humanas. Portanto,
haveria resultados diferentes (misericórdia ou endurecimento, honra ou desonra, ira ou glória) se
respondêssemos à iniciativa de Deus de maneiras diferentes (9:21-24). Veja Nanos, The Mystery of
Romans, 261-264.

52
mesmo ponto em termos de Deus como fabricante de vasos: “E se Deus. .. suportou com
muita longanimidade os vasos da ira preparados [katertismena: maduro / apto] para
destruição, e para que Ele pudesse dar a conhecer as riquezas de Sua glória nos vasos
de misericórdia que Ele havia preparado de antemão [proetoimasen] para glória” (9:22-
23).50 Aqui Paulo alude à mensagem que Jeremias recebeu de Deus na casa do oleiro a
respeito das opções interativas divino-humanas conhecidas pelas quais vasos
defeituosos podem ser refeitos em vez de destruídos (Jr 18:1-6). Esta ilustração é uma
chave para entender corretamente a presciência de Deus revelada nas promessas
proféticas que podem ou não ser cumpridas dependendo de como os seres humanos
respondem à iniciativa de Deus (18:6-11).51
Terceiro, Deus sabia de antemão que a iniciativa divina da “eleição da graça”
(Romanos 11:5) continua disponível para Israel (eleitos e não eleitos)52—como uma lição
objetiva de sua disponibilidade contínua para toda a humanidade.53 “No que diz respeito
ao evangelho, eles [os não eleitos] são inimigos”, mas “no que diz respeito à eleição [da
graça] eles são amados. Pois os dons e o chamado de Deus são irrevogáveis” (11:28-29;
[11:5, 7]).54 A rejeição humana da iniciativa divina não cancela essa iniciativa porque
“Deus entregou [sugkleiō] a todos eles à desobediência [incredulidade/não-eleição],
para que Ele tivesse misericórdia de todos” através da eleição da graça (11: 32; [11:5]).

50
“Paulo usa dois verbos diferentes ao falar sobre os vasos da misericórdia e os vasos da ira” – “um
particípio passivo perfeito” e “um indicativo ativo aoristo. Essa mudança não pode ser acidental e sugere
que Paulo quer dizer que os vasos da ira estão maduros ou prontos para a destruição”, Witherington and
Hyatt, Paul’s Letter to the Romans, 258; cf. C. Cranfield, Romans 9-11. International Critical Commentary
(Edinburgh: T &T Clark, 1979), 496-497; cf. Thornhill, The Chosen People, 241.
51
“Olha, assim como o barro está na mão do oleiro, você está na minha mão, ó casa de Israel! No instante
em que eu falar a respeito de uma nação e de um reino, para arrancá-lo, derrubá-lo e destruí-lo, se essa
nação... nação e a respeito de um reino, para construí-lo e plantá-lo, se ele fizer o mal... então eu me
arrependerei... Eis que estou tramando um desastre e planejando um plano contra você. Converta-se
agora cada um do seu mau caminho, e faça bons os seus caminhos e as suas ações” (Jr 18:6-11). Veja a
discussão em minha introdução, onde apresento a ilustração da presciência de Deus, conforme indicado
na narrativa de Queila (1 Sam. 23:7-13).
52
A eleição “não deve ser tomada como se [sempre] enfatizasse a seleção de um grupo menor entre um
grupo maior; não tem esse sentido em Lc 9,35; 23h35.” Ela “não está relacionada principalmente à
salvação individual, mas ao propósito de Deus”, Ernest Best, Ephesians: International Critical Commentary
(Londres: T & T Clark, 1998), 119; cf. Donlcor, “Predestination, Foreknowledge, and Human Freedom,” 2.
53
“Deus, nosso Salvador... deseja que todos os homens sejam salvos” (1 Tm 2:3-4). “Jesus... deu a Si
mesmo em resgate por todos” (2:5-6). “Nós confiamos em... Deus, que é o Salvador de todos os homens,
especialmente daqueles que creem” (4:10). Os estudiosos da Bíblia discordam sobre se as palavras
eleger/eleição e Israel se referem àqueles em Israel que creem em Cristo, à Igreja ou à plenitude de Israel
que será salvo no futuro. No entanto, “as bênçãos... asseguradas a Israel são, nas mesmas condições e no
mesmo grau, asseguradas a toda nação e a todo indivíduo sob os amplos céus”, Ellen G. White, Prophets
and Kings (Washington, DC: Review and Herald, 1958), 500-501. Ver também Suzanne McDonald, Re-
Imaging Election: Divine Election as Representing God to Others and Others to God (Grand Rapids, MI:
Eerdmans, 2010); Jacques Doulchan, The Mystery of Israel (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2004);
Israel and the Church: Two Voices from the Same God (Grand Rapids, MI: Baker 2000); Charles H.
Cosgrove, Elusive Israel: The Puzzle of Election in Romans (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1997)..
54
“A desobediência de Israel não a cancelou, mas abriu o caminho para todos entrarem. Este, para Paulo,
talvez fosse o mistério final: a queda de um homem (Adão) significou a redenção de muitos e o pecado
de uma nação (Israel) significava a inclusão de todos. A graça de Deus foi tão vasta e avassaladora que
quebrou todas as estruturas limitantes convencionais através dessa própria estrutura limitante (eleição)”,
Walter A. Elwell, Baker Evangelical Dictionary of Biblical Theology (Grand Rapids, MI: Baker, 2001).

53
Paulo usa linguagem semelhante para fazer o mesmo ponto em sua carta aos Gálatas:
“A Escritura confinou [sugkleiō] a todos sob o pecado [incredulidade], para que a
promessa pela fé em Jesus Cristo fosse dada aos que creem” e são, portanto, eleito pela
fé (3:22; cf. Rm 14:23; 11:32; 1Pe. 2:7).55
Quarto, Deus sabia de antemão que a iniciativa divina da “eleição da graça” (Rm
11:5) está incorporada em Cristo e, portanto, está disponível para todos. Paulo ilustra
isso com sua parábola da oliveira da qual os ramos são quebrados e nos quais os ramos
são enxertados.56 “Se a raiz é santa, os ramos também são”, e “alguns dos ramos foram
quebrados, e você, sendo oliveira brava, foram enxertados no meio deles, e com eles se
tornaram participantes da raiz e da seiva da oliveira. . . você não sustenta a raiz, mas a
raiz sustenta você” (11:16-18). Cristo é esta raiz de acordo com a presciência de Deus
revelada na Escritura profética como segue. Por meio de “Jesus Cristo” (15:8), Israel e
“os gentios glorifiquem a Deus por Sua misericórdia, como está escrito [nas Escrituras]”
(15:8-9) — “haverá uma raiz de Jessé; .. nele os gentios esperarão” (15:12; cf. Isa.
11:10).57
Quinto, Deus sabia de antemão que “a eleição da graça” (Rm 11:5) para Israel
representa58 a iniciativa divina destinada a interações divino-humanas com todas as
nações. “Se sua queda [parcial e temporária]” e “fracasso” e “serem rejeitados” são
“riquezas para o mundo . . . [e] os gentios, quanto mais a sua plenitude” beneficia os
gentios (11:12,15). O “evangelho” é “o mistério” de “Cristo” “pelas Escrituras proféticas”
“para obediência à fé entre todas as nações” (1:1-5; 16:25-26). Este “mistério” envolve
“a plenitude dos gentios” e “todo o Israel” (11:25-26) visto que “Cristo... Deus” (9:5) –
isto é, “Deus dos judeus” e “gentios” (3:29). Deus “fez” Abraão o “pai de muitas nações”
(4:17-18). Portanto, o chamado de Deus para judeus e gentios (9:24) é um cumprimento
da presciência de Deus, conforme revelado em Sua profecia de que “chamarei meu
povo, aqueles que não eram meu povo” (9:25; cf. 9:26, 30; Os. 1:10; 2:23). 59 Portanto,
“não há distinção entre judeu e grego, pois o mesmo Senhor sobre todos é rico para
todos os que o invocam” (10:12; cf. 15: 9-12,16,18, 27).

55
Sobre o conceito de Paulo de compromisso/confinamento por Deus sob a desobediência/pecado da
incredulidade, veja Martin F. Hanna, “The Servant-Master Roles of the Laws of Christ, of Scripture, and of
Nature,” Journal of the Adventist Theological Sociedade (JATS) 9/1-2 (1998): 278-309.
56
“A metáfora da oliveira de Paulo em Rm 11:17-24 evidencia perfeitamente a visão da eleição
corporativa. Os indivíduos são enxertados no povo eleito (a oliveira) e participam da eleição e suas
bênçãos pela fé ou são cortados do povo escolhido de Deus e suas bênçãos por causa da incredulidade,
enquanto o foco da eleição permanece claramente o povo corporativo de Deus, que abrange a história
da salvação”, Brian Abasciano, Paul's Use of the Old Testament in Romans 9.10-18: An Intertextual and
Theological Exegesis (New York: T & T Clark, 2011), 60-61; cf. Thornhill, The Chosen People, 250; Benjamin
D. Gordon, “On the Sanctity of Mixtures and Branches: Two Halakic Sayings in Romans 11:16-24,” Journal
of Biblical Literature 135:2 (2016): 355-368. .
57
Veja Jacob Stromberg, “The ‘Root of Jesse’ in Isaiah 11:10: Postexilic Judah, or Postexilic Davidic King?”
Journal of Biblical Literature 127:4 (2008): 655-669.
58
Veja Martin F. Hanna, “Men and Women in Church Order: A Study of Paul’s Use of Representative
Statements,” in Women and Ordination: Biblical and Historical Studies, ed. John W. Reeve (Nampa, ID:
Pacific Press, 2015), 297-308.
59
Aqui Paulo cita Oséias 1:10 e 2:23 onde Deus se refere ao Seu povo Israel como não sendo mais Seu
povo e então se tornando Seu povo novamente. Paulo aplica este princípio aos gentios, bem como a Israel.

54
Sexto, Deus sabia de antemão que, por meio da iniciativa divina da “eleição da
graça” (Rm 11:5), os eleitos e os não eleitos são categorias abertas – os eleitos podem
se tornar não eleitos e os não eleitos podem se tornar eleitos. Este princípio é
claramente declarado na mensagem de Paulo aos gentios a respeito do povo de Israel
como segue. “Falo-vos, gentios” (11:13). “Por causa da incredulidade eles [os israelitas
incrédulos] foram quebrados e vocês [gentios] permanecem pela fé” (11:20).60
“Portanto, considere a bondade e a severidade de Deus: sobre os que caíram [pela
incredulidade], severidade; mas para com você bondade, se você continuar em Sua
bondade [pela fé]. Caso contrário, você também será cortado. E eles também, se não
permanecerem na incredulidade, serão enxertados [pela fé], porque Deus pode enxertá-
los novamente” (11:22-23; [cf. 11:20]). “Pois, assim como outrora fostes desobedientes
a Deus [não eleitos pela incredulidade], mas agora alcançastes misericórdia pela sua
desobediência, assim também estes agora foram desobedientes, para que pela
misericórdia que vos foi demonstrada [como eleitos pela fé] também eles obtenham
misericórdia” (11:30-31; cf. 9:17-24; 11:20).61 “Deus não concede misericórdia a Israel
sem os gentios, mas também não o faz para os gentios sem Israel.”62
Sétimo, Deus sabia de antemão que “a eleição da graça” (Rm 11:5) produz a
plenitude dos israelitas eleitos e dos gentios eleitos, uma vez que “a cegueira
[endurecimento] em parte aconteceu a Israel até que a plenitude dos gentios tenha
chegado. ... E assim toda [a plenitude de] Israel será salva” (11:25-26). Aqui, a plenitude
dos gentios se refere aos gentios que serão salvos; e “todo o Israel” refere-se à
“plenitude” (11:12) de Israel que será realizada em “salvar alguns deles” (11:14). Como
Paulo escreve anteriormente em sua carta: “Não são todos [a plenitude de] Israel que
são de Israel” (9:6). A plenitude dos gentios e a plenitude de Israel são aqueles que,
como Paulo, “chegam na plenitude da bênção do evangelho de Cristo” (15:29; cf. Ef.
1:23).63

60
Veja Don B. Garlington, Faith, Obedience, and Perseverance: Aspects of Paul's Letter to the Romans
(Tubingen: Mohr, 1994).
61
“O significado de Romanos 11:7, 23 para a presente discussão geralmente não tem sido notado por
teólogos e exegetas... Os eleitos no versículo 7... responderam ao querigma apostólico e reconheceram
Jesus como o Messias. . A atribuição de Paulo da eleição a esses indivíduos é subsequente à sua fé e
conversão. Os outros que não creram estão presumivelmente entre os 'não eleitos', mas o ponto crucial
a ser notado aqui é que enquanto a história continua, e enquanto o evangelho ainda está sendo pregado,
a categoria de eleição é fluida e dinâmica ao invés de fixa e determinado. De acordo com o versículo 23,
os outros, 'presumivelmente não eleitos à luz de sua atual incredulidade, ainda podem se tornar eleitos'”,
John Jefferson Davis, The Frontiers of Science and Faith: Examining Questions from the Big Bang to the
End of the Universe (Downers Grove, IL: Inter Varsity, 2002), 66-67. Ver também sua discussão sobre
determinação bilateral a posteriori e eleição dinâmica, ibid., 52, 54, 62, 64-70.
62
H. N. Ridderbos, Paul: An Outline of His Theology (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1975), 360; cf. Hans K.
LaRondelle, The Israel of God in Prophecy: Principles of Prophetic\Interpretation (Berrien Springs, MI:
Andrews University Press, 1983), 127.
63
Veja John K. Goodrich, “Until the Fullness of the Gentiles Comes In: A Critical Review of Recent
Scholarship on the Salvation of All Israel’ (Romans 11:26),” Journal for the Study of Paul and his Letters
6:1 (Spring 2016): 5-32. See also LaRondelle, The Israel of God in Prophecy, 126.

55
Em resumo, em Romanos 11, Paulo ensina que Deus focaliza Sua presciência através
de Sua amorosa eleição da graça que persevera para com aqueles que não são eleitos
pela incredulidade. Na verdade, é esta iniciativa divina previamente conhecida que
torna possível para eles se tornarem eleitos (Rm 11:2, 5, 7, 20-23, 28). O foco da
presciência de Deus é dinâmico, pois “a história da eleição é uma história de
ziguezagues; reversão e paradoxo informam sua forma temporal.”64 O remanescente
(11:5) é eleito (11:7) pela fé (11:20) “segundo a eleição da graça” (11:5). Ao mesmo
tempo, aqueles que são inimigos do Evangelho pela incredulidade são amados segundo
a eleição (11:28) da graça (11:5) que é irrevogável (11:29).
CONCLUSÃO
A presciência de Deus e a liberdade da salvação são apresentadas na Bíblia em
termos do foco da presciência de Deus nas opções e interações interativas divino-
humanas. Deus é livre para dar ou reter a salvação, e os seres humanos são livres para
receber ou recusar a salvação. Essa perspectiva bíblica supera o problema de uma
aparente contradição entre presciência e liberdade. As Escrituras corrigem a visão
tradicional de que a presciência de Deus é focada apenas por Sua livre escolha para
causar ou facilitar as livres escolhas dos seres humanos. A presciência de Deus
realmente precede Suas escolhas livres e é continuamente focalizada por meio de Sua
facilitação de opções e interações interativas divino-humanas. Esse modelo de
presciência oferece um caminho além dos modelos conflitantes que tentam conciliar a
visão tradicional de presciência com a liberdade humana. O foco da presciência de Deus
é exaustivo, definido e dinâmico.
Esta conclusão é apoiada por um estudo contextual dos cinco textos bíblicos que
usam explicitamente as palavras presciência e pré-conhecido/conhecido de antemão
(Atos 2:23; 1Pe 1:2, 20; Rom. 8:29; 11:2). Esses textos mostram que Deus revela Sua
presciência progressivamente nas Escrituras proféticas (Atos 2; 1 Pedro 1), em Cristo e
naqueles que estão em Cristo pela fé (1Pe 1:20-21), e em todas as coisas ( Rm 8:21, 28-
29). A presciência de Deus opera desde antes da criação do mundo—mesmo antes que
Ele predestinasse Suas ações na criação ou salvação (1Pe 1:20; At 2:23; Rm 8:29). Como
tal, Deus conheceu todas as opções e interações interativas divino-humanas antes de
escolher se relacionar com a humanidade através da “eleição da graça” (11:5). A
definição exaustiva da presciência é complementada por seu dinamismo exaustivo, de
modo que aqueles que são conhecidos de antemão como eleitos pela fé são instruídos
a garantir sua eleição porque podem se tornar não eleitos (2Pe 1:10). Além disso, os não
eleitos de antemão podem se tornar eleitos, pois Deus não deseja que nenhum pereça,
mas que todos se arrependam (3:9). A presciência de Deus sobre os eleitos indica sua
segurança no amor de Deus (Rm 8:31-39) e em Sua promessa de liberdade gloriosa
(8:21). Deus sabe de antemão que eles não serão lançados fora da irrevogável eleição
da graça (11:2, 5, 28-29). Ele também sabe de antemão que alguns dos eleitos serão
lançados fora—tornando-se não eleitos pela incredulidade; e que alguns dos não eleitos
se tornarão eleitos pela fé (11:15, 20-23). Através deste processo definitivamente

64
Williams, The Election of Grace, 63.

56
conhecido de antemão, mas dinâmico, a plenitude dos eleitos será realizada (11:12, 25-
26).
Em outras palavras, a presciência de Deus tem um foco exaustivo, definido e
dinâmico. O que Deus sabe de antemão informa todas as Suas deliberações sobre todas
as opções interativas e interações que Ele poderia e iria facilitar. Portanto, se os seres
humanos escolhessem de forma diferente do que escolhem, Deus também conheceria
essa escolha diferente.65 Conforme ilustrado na história de Davi em Queila (1Sm 23:7-
13), o que Deus conheceu de antemão é revelado todas as opções e interações
interativas de livre escolha divino-humano para que Ele e os seres humanos sejam
capazes de fazer escolhas livres que transformem as opções interativas disponíveis de
antemão em interações de antemão. Deus continuamente focaliza Sua presciência
através de Suas escolhas para tornar algumas opções interativas disponíveis para a
humanidade; e através de Sua cooperação com as escolhas da humanidade que tornam
algumas opções interativas disponíveis para Deus. Portanto, Deus sabe de antemão que
algumas opções interativas possíveis não se tornarão opções interativas reais. Ele
também sabe que algumas opções interativas reais (interações possíveis) não se
tornarão interações reais. Aqui, novamente, é importante notar que as escolhas dos
seres humanos não acrescentam à presciência de Deus – pois Ele conheceu todas as
coisas antes de escolher criar a humanidade.
Finalmente, a presciência exaustiva, definida e dinâmica de Deus permanece um
mistério que é revelado, mas não completamente explicado. Isso ocorre porque o
mecanismo de como Deus sabe de antemão não é explicado aos escritores das Escrituras
ou a seus intérpretes. “A capacidade de Deus de conhecer eventos que ainda não
ocorreram de uma maneira que não condicione os resultados talvez seja o principal
problema não resolvido. . . . Mas não é essa capacidade que o distingue como Deus?”66
Como diz o salmista: “Tal conhecimento é maravilhoso demais para mim; é alto, não
posso alcançá-lo” (139:6). Portanto, este estudo termina, assim como a discussão de
Paulo sobre a presciência, com louvor humilde, mas entusiástico: “Ó profundidade das
riquezas, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus!67 Quão insondáveis são
Seus julgamentos e Seus caminhos além de serem descobertos! ‘Pois quem conheceu a
mente do Senhor? Ou quem se tornou seu conselheiro?” “Ou quem primeiro lhe deu e
lhe será retribuído?” Pois dele, por meio dele e para ele são todas as coisas, a quem ele
se gloria para sempre. Amém” (Rm 11:33-36).

65
Observe a diferença aparentemente pequena, mas significativa, da afirmação de William Craig de que:
“se eles escolhessem de forma diferente... Deus teria conhecido isso de antemão”. God, Time, and
Eternity: The Coherence of Theism II—Eternity (Dordrecht: Springer, 2001), 25.
66
Donkor, “Predestination, Foreknowledge, and Human Freedom,” 3.
67
“Gods foreknowledge is simply his wisdom under another name,” John Milton, Complete Prose Works
(New Haven: Yale University Press, 1973), 6:154; cf. William Pallister, Between Worlds: The Rhetorical
Universe of Paradise Lost (Toronto: University of Toronto Press, 2008), 25.

57
CAPÍTULO 4
ELEIÇÃO DIVINA E PREDESTINAÇÃO: UMA PERSPECTIVA
BÍBLICA
Hans K. LaRondelle e John K. McVay

Desde Agostinho, a doutrina da eleição divina tem sido um tópico importante na


teologia cristã. Mesmo quando essa doutrina é evitada no ensino e na pregação, a
questão continua sendo uma necessidade prática na igreja. Os pastores estão cientes de
perguntas importantes e pessoais feitas por muitos crentes, focadas não tanto na
existência de Deus, mas em se pertencer aos escolhidos, aos eleitos. “Qual será a
decisão de Deus sobre mim no julgamento final?” Assim, o tema informa o cuidado
pastoral e o anúncio do Evangelho.
Primeiro serão examinados os fundamentos exegéticos dos temas da eleição e
predestinação divinas em ambos os testamentos. Isso se baseia no pensamento de que
o testemunho do Novo Testamento sobre a eleição divina é melhor entendido tendo
como pano de fundo o tema da eleição de Israel nas Escrituras Hebraicas. No escopo
deste ensaio, serão destacados pontos de mudanças fundamentais na revelação bíblica
como forma de esboçar a perspectiva do Evangelho. Em segundo lugar, e mais
brevemente, a revisão exegética das passagens do Antigo Testamento e do Novo
Testamento será usada para identificar componentes em uma estrutura bíblico-
teológica para entender a eleição e a predestinação.
A DIVINA ELEIÇÃO DE ISRAEL NO ANTIGO TESTAMENTO
Os dados do Antigo Testamento descrevem a eleição divina como a base para a
existência do povo de Israel. Esta eleição está baseada no amor de Deus por Israel e seus
patriarcas. Em Seu amor, Deus escolheu Israel para ter comunhão de aliança com Ele e
receber o chamado para testemunhar Sua glória e ser uma bênção para todos os povos
da terra (Os 11:1, 8-9; Jr 31:3). O ato de eleição de Deus expressa a liberdade de Seu
amor para escolher um povo e determinar sua missão, juntamente com Sua expectativa
de sua resposta de um compromisso amoroso com Ele como Redentor de Israel
(Deuteronômio 6). Karl Barth enfatizou que Deus criou Israel “como parceiro nesta
aliança” e, portanto, “responsável” a Ele como o significado de sua existência. Ele
concluiu: “Não há graça sem o senhorio e reivindicação da graça. Não há dogmática que
não seja também e necessariamente ética.”1
A passagem clássica sobre a eleição de Israel é encontrada na declaração de Moisés:

1
Karl Barth, Church Dogmatics, trans. Geoffrey W. Bromiley, vol. 2 (Edinburgh: T&T Clark, 1957), 12.

58
Porque sois um povo santo ao Senhor vosso Deus. O Senhor teu Deus te
escolheu (bakhar) para ser um povo para o seu tesouro, dentre todos os
povos que estão na face da terra.... o Senhor te amou e te escolheu
(bakhar), ... é porque o Senhor te ama [“por amor a você”;'ahabah, amor]
e está guardando o juramento que jurou a teus pais, de que o Senhor te
tirou com mão forte e te resgatou da casa da escravidão, da mão de
Faraó, rei do Egito. (Deut. 7:6-8; cf. 4:37; 10:14-15; 14:2; 26:16-19).2
Moisés revela que a escolha de Yahweh de redimir Israel da escravidão estava
enraizada em Seu amor por Israel e em Sua fidelidade às Suas promessas aos seus
patriarcas. Esta escolha ou eleição tornou-se um evento histórico, no entanto, na
libertação milagrosa de Israel da escravidão no Egito. A história redentora de Israel
começa com o Êxodo (cf. Os 13:4). A libertação de Israel foi ao mesmo tempo um ato de
reivindicação divina sobre Israel: Yahweh os identificou como “Meu filho primogênito”,
que será libertado para “servir” ('abad, ou seja, “adorar”) o Deus Redentor (Êx 4. :22-
23). É significativo notar a repetida advertência de Moisés a Israel para não interpretar
mal sua eleição, como se fosse baseada em algum mérito ou virtude dela (Dt 7:7-8; 9:4-
5; cf. Ez 16:4). - 15). A orientação e graça de Yahweh são dadas “por amor do seu nome”
(Sl 23:3; 25:11; Jr 14:7; Is 43:25; 48:9, 11). A origem da eleição de Israel continua sendo
a maravilha inexplicável do amor incondicionado e eleitoral de Deus ('ahabah), que é
expresso através da lealdade permanente de Deus (khesed) à Sua aliança com Israel. Na
declaração sucinta de N. H. Snaith: “'Ahabah [amor] é a causa da aliança; [k]hesed
[lealdade] é o meio de sua continuidade.”3
O profeta Amós usou um sinônimo particular para o amor da eleição de Deus,
quando anunciou a um Israel apóstata: “Só a vós conheço [yada'] de todas as famílias
da terra; por isso vos castigarei por todas as vossas iniquidades” (3:2). Para a presente
investigação é essencial definir o significado teológico desse “saber” divino. Os
estudiosos do Antigo Testamento parecem concordar que yada' se refere a um
conhecimento pessoal que expressa um cuidado amoroso pelos outros (para o
conhecimento divino, veja Sl 1:6; Na 1:7; cf. Jo 10:14; 2Tm 2: 19). Amós advertiu Israel,
entretanto, contra falsas conclusões de sua eleição e contra pretensões de
superioridade entre as nações (9:7).
G. C. Berkouwer esclarece: “Israel interpretou a eleição à parte da fé e assim tirou
dela conclusões ilícitas.”4

2
Salvo indicação em contrário, todas as citações da Bíblia são da Versão Padrão Inglesa. Todos os itálicos
nas citações das Escrituras refletem a ênfase adicionada pelos autores. A Bíblia ESV® (The Holy Bible,
English Standard Version®). Copyright © 2001 por Crossway, um ministério de publicações da Good News
Publishers. A reprodução não autorizada desta publicação é proibida. Todos os direitos reservados.
3
Norman H. Snaith, Distinctive Ideas of the Old Testament (New York: Schoclcen Books, 1964), 95.
4
G. C. Berkouwer, Divine Election, Studies in Dogmatics Series, trans. Hugo Bekker (Grand Rapids, MI:
Eerdmans, 1960), 314.

59
Uma conclusão semelhante pode ser tirada do ministério profético de Oseias. Deus
ordenou que o profeta se casasse com uma mulher infiel, cuja filha ele teve que chamar
Lo'-rukhamah (“não amada”, 1:6), e seu próximo filho Lo'-'ammi (“não meu povo”, 1:9).
Assim é que Deus enfatizou que Sua aliança com Israel não permitia nenhuma
reivindicação sobre o Senhor sem a obediência da fé. Da mesma forma, Oseias olha além
da crise atual em que Israel é destruído por falta de conhecimento de Deus e falha em
praticar seus caminhos (4:6; 6:6) para a esperança de um relacionamento renovado no
qual Deus “se casará” Israel a Si mesmo “em fidelidade” (2:19-20).
Nesse contexto, é importante notar que eleição e aliança são ideias distintas, mas
intimamente conectadas na história da redenção. Abrão foi escolhido e chamado para
um propósito universal: “e em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gn 12:3).
Deus então colocou a eleição de Abrão na estrutura de sua aliança com Deus (Gn 15),
para que o propósito da eleição de Abrão fosse validado na aliança abraâmica. O
propósito da aliança de Deus com Israel estendeu a aliança abraâmica.
Este objetivo redentor da eleição de Israel recebeu um novo centro focal na aliança
davídica. A eleição de Davi estende a bênção da aliança de Israel a todas as nações, como
testificam os Salmos Reais (Salmo 2; 72). O Salmo 132 enfatiza um aspecto condicional:
o rei davídico deve permanecer fiel à Torá de Moisés (vv. 11-12; cf. Dt 18:14-20),
sublinhando que esta extensão da aliança de Israel mantém a necessidade da obediência
de fé. O reinado de Davi serve ao propósito de proclamar os atos redentores de Deus:
“A posteridade o servirá; gerações futuras serão contadas sobre o Senhor. Eles
proclamarão a sua justiça, declarando a um povo ainda não nascido: Ele o fez!” (Sal.
22:30-31, NVI).
A Resposta de Israel para Escolher o Senhor
Que resposta Deus esperava de Seu povo escolhido? Em seu discurso de despedida,
Moisés apelou para a nova geração que estava prestes a entrar na terra prometida:
“Portanto, escolha (bakhar) a vida, para que você e sua descendência vivam, amando o
Senhor, seu Deus, obedecendo à sua voz e apegando-se a ele. ” (Dt 30:19-20). Em seu
apelo, Moisés liderou uma renovação da aliança do Sinai, evocando a nova escolha e
compromisso de Israel com o Senhor. Uma renovação semelhante ocorre mais tarde sob
Josué em Siquém (Js 24:22).
Essas renovações da aliança indicam a liberdade de escolha colocada diante de
Israel por Moisés e Josué. No entanto, tais escolhas de cada geração de Israel não
aconteceram no vácuo, mas no contexto da história redentora. Israel já foi redimido e
libertado da escravidão por Yahweh. Uma escolha positiva de Israel seria uma resposta
ao amor eletivo anterior de Deus. Tais compromissos renovados exigiam, no entanto, “a
atividade cuidadosa de escolher a si mesma”.5

5
H. Seebass, " ” (bakhar) in Theological Dictionary of the Old Testament, vol. 2, ed. G. Johannes
Botterweck and Helmer Ringgren (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1977), 86.

60
O ato de “escolher” o Deus de Israel por crentes gentios e estrangeiros também
seria reconhecido, pois a mensagem divina de Isaías 56 assegura para o culto do templo
pós-exílico:
E os estrangeiros que se unem ao Senhor, para servi-lo, para amar o nome
do Senhor e para ser seus servos, todo aquele que guarda o sábado e não
o profana, e retém a minha aliança, esses eu trarei ao meu santo monte
e alegrai-os na minha casa de oração; seus holocaustos e seus sacrifícios
serão aceitos no meu altar; porque a minha casa será chamada casa de
oração para todos os povos (vv. 6-7)
Esta revelação de Isaías inclui gentios crentes na eleição de Israel e marca um ponto
de mudança na história da eleição divina. O regulamento mosaico de Êxodo 12:43, 45
(que proíbe estrangeiros de participar da Páscoa e presumivelmente todo o culto
israelita) é cancelado por um novo oráculo divino. Agora, os gentios também recebem
solenemente um lugar em Israel como comunidade de adoração. No entanto, duas
condições são mencionadas: (1) guardar o sábado e (2) apegar-se à aliança de Deus (Is
56:3,6). O propósito é a adoração universal: “porque a minha casa será chamada casa
de oração para todas as nações” (56:7, NVI).
A Teologia do Remanescente Profético
Se o propósito eletivo de Deus se amplia para incluir gentios crentes, há também
um sentido em que ele se estreita para focar num “remanescente” de Israel. Enquanto
documentos anteriores do Antigo Testamento introduziram a ideia de remanescente
(especialmente 1Re 19:13-18), o tema é mais claramente desenvolvido na literatura
profética. De acordo com Amós, o Deus da aliança cuja eleição de Israel produziu apenas
uma falsa sensação de segurança irá puni-la por suas iniquidades: '” (9:10; cf. 3:2). Amós
oferece uma tentativa de raio de esperança: “Pode ser que o Senhor, o Deus dos
Exércitos, tenha misericórdia do remanescente de José” (5:15). Com uma convicção
mais forte, Amós argumenta que Deus cumprirá Seu propósito para o mundo por meio
desse remanescente fiel. O próprio Deus “levantará a tenda de Davi que caiu” para que
“possam possuir o remanescente de Edom e todas as nações que se chamam pelo meu
nome”, declara o Senhor que faz isso” (9:11-12). Essa perspectiva profética inclui: (1) a
restauração da dinastia davídica como obra de Yahweh e (2) abraçar o “remanescente”
do arqui-inimigo de Israel, Edom, e de todas as outras nações.6
Se Amós é o primeiro dos profetas escritores a desenvolver a ideia de
remanescente, o conceito é mais central na teologia de Isaías. Para ele, um
remanescente fiel assegura o cumprimento da eleição divina de Israel. Esse
remanescente de Israel “herdará as promessas eleitorais e formará o núcleo de uma
nova comunidade de fé (Is 10:20f; 28:5f; 30:15-17)”.7 Isaías retrata esse remanescente

6
Os cristãos podem esperar uma aplicação apostólica de Amós 9:11-12. Durante o concílio apostólico em
Jerusalém, Tiago interpretou o propósito de Deus na passagem (através da tradução da Septuaginta)
como “tomar deles [os gentios] um povo para o seu nome” (Atos 15:14).
7
Gerhard Hasel, “Remnant,” in International Standard Bible Encyclopedia, ed. Geoffrey W. Bromiley
(Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1988), 4:133.

61
demonstrando uma confiança tranquila e confiante em Yahweh durante os tempos de
ameaça à nação (8:16-18; cf. 7:1-9).
Para destacar um exemplo adicional de teologia do remanescente profético,
Zacarias oferece uma esperança semelhante em sua visão sobre a acusação de Satanás
ao sumo sacerdote Josué, que representava o Israel pós-exílico: “O Senhor te repreenda,
ó Satanás! O Senhor que escolheu [bakhar] Jerusalém te repreenda! Não é este um tição
tirado do fogo?” (3:2). A certeza da contínua eleição de Deus é revelada em uma imagem
que ilustra a graça justificadora de Deus para Seu povo culpado (3:3-5). Aqueles a quem
Deus escolheu, Ele também justificou. O contexto imediato comissiona Josué a “andar
nos meus caminhos e guardar a minha responsabilidade” (3:7) antes de ser encarregado
de um futuro governo no reino de Deus (8:1-19). Zacarias, assim, conecta eleição,
justificação, santificação e glorificação, em uma cadeia crescente do propósito eterno
de Deus, uma sequência de eleição divina semelhante à que Paulo valida para os crentes
cristãos em Romanos 8:28-30.
Era um perigo real e constante para Israel presumir que sua eleição lhe dava um
direito a Deus. O discurso de Jeremias no templo apresenta a rejeição de Deus à
reivindicação incondicional de Judá como “palavras enganosas”: “Este é o templo do
Senhor” (Jr 7:4). Otto Weber afirma: “A reivindicação de Yahweh sobre seu povo poderia
facilmente ser transformada na reivindicação de Israel sobre Yahweh. Onde quer que
isso tenha acontecido, a graciosa liberdade de eleição foi colocada em questão.”8
Contrariar essa tendência de confiar em uma falsa segurança parece ser o propósito das
renovações da aliança (Dt 30:19-20; Js 24:19-24; 2Re 23:1-3). A cada sete anos a Lei de
Moisés tinha que ser lida publicamente durante a Festa dos Tabernáculos para que Israel
pudesse “aprender a temer o Senhor teu Deus” (Dt 31:10-12; cf. Lv 19:2). Esta
qualificação espiritual de Israel trouxe os profetas para sua teologia do remanescente
(Am 5:15; Is 6:13; 11:11-16; Jr 23:3; 31:7; Jl 2:32; Sf. 3:12 -13) e sua compreensão da
promessa messiânica (Is 11:1,10; 53). O mais revelador nas revelações do Antigo
Testamento é o amor persistente de Deus em prover um remanescente fiel de Israel
apesar da apostasia generalizada e da quebra das alianças (ver Ez 16; 23). Deus
demonstrou Sua fidelidade apesar da infidelidade de Israel.
O Messias como o Escolhido
As promessas concernentes a Israel como povo escolhido ou eleito não são
autocontidas, isoladas apenas por causa de Israel; em vez disso, são partes integrantes
do plano progressivo de salvação de Deus para o mundo e a raça humana. O propósito
eletivo de Deus não termina no beco sem saída da rebelião de Israel. Em Sua lealdade à
aliança (khesed), o Senhor encontra uma maneira de aprofundar a história da salvação.
Este plano divino e progressivo é revelado tanto em padrões de eleição que se estreitam
quanto se ampliam.
Como vimos, a rebeldia de Israel levou a um “estreitamento” do propósito eletivo
de Deus em um remanescente justo. A linguagem da eleição é aplicada de uma forma

8
Otto Weber, Foundations of Dogmatics, vol. 2 (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1983), 439.

62
ainda mais restrita e focalizada nas profecias messiânicas do Antigo Testamento a
respeito do Servo do Senhor que é descrito pelo Senhor como “meu escolhido” (Is 42:1).
Isaías usou a imagem de uma pedra de fundação testada em Sião para descrever a
missão do Messias davídico: “Eis que eu sou aquele que lancei como fundamento em
Sião, uma pedra, uma pedra testada, uma pedra preciosa de esquina, de firme
fundamento: ‘Quem crer não se apressará’” (28:16).9
Esse estreitamento do povo ao remanescente ao Messias está a serviço, porém, de
uma nova ampliação dos propósitos de Deus, uma vez que o Messias está ligado à
coligação de um remanescente escatológico de Israel (Is 11:1-16). E os planos de Deus
são ainda mais amplos, pois o remanescente escatológico, crente e adorador deve
incluir representantes das “nações” (Is 45:20-23; 66:18-21; Zc 14:16).10
ELEIÇÃO E PREDESTINAÇÃO NO NOVO TESTAMENTO
Termos que comunicam a ideia de eleição, usados no Antigo Testamento para
destacar a identidade de Israel como o povo eleito de Deus, são usados com frequência
no Novo Testamento, com escritores empregando as seguintes palavras: eklektos,
“escolhido”; eklogē, “seleção”, “escolha” ou “eleição”; eklegomai, “escolher”;
suneklektos, “também escolhido” (somente em 1 Pe 5:13); hairetizo, “escolher” (Mt
12:18 somente); haireomai, “escolher” (somente 2 Tessalonicenses 2:13);, “designar”
(Atos 13:48 apenas). Em linhas gerais, esses termos são usados para identificar Jesus
como o eleito por excelência e para descrever os crentes.11
Os autores do Novo Testamento empregam vários termos para comunicar ideias de
presciência e pré-determinação por parte de Deus, muitas vezes no contexto da ideia
de eleição: proorizō, “decretado antes” ou “determinado de antemão” ou
“predestinado” ou “predeterminado” (At 4:28; Rm 8:29-30; 1Co 2:7; Ef 1:5, 11);
proginōskō, “saber de antemão” (Romanos 8:29; 11:2; 1 Pe 1:20); prognōsis,
“presciência” (Atos 2:23; 1 Pe 1:2); prothesis, “plano” ou “propósito” (Romanos 8:28;
9:11; Efésios 1:11; 3:11; 2 Timóteo 1:9); proetoimazō, “preparou de antemão” (Romanos
9:23; Efésios 2:10).
É importante notar que os temas de eleição e predestinação às vezes estão
presentes no Novo Testamento à parte desta terminologia específica.12 O Novo

9
A LXX traduz “testado” com eklektos, “escolhido”. A passagem é citada como sendo cumprida em Jesus
Cristo em 1 Pedro 2:5-6; cf. Romanos 9:33; 10:11.
10
Partes desta seção são adaptadas de Hans K. LaRondelle, The Israel of God in Prophecy: Principles of
Prophetic Interpretation, vol. 13, Monografias da Universidade Andrews, Estudos em Religião (Berrien
Springs, MI: Andrews University Press, 1983), 17-18. Ver também Gerhard Hasel, The Remnant, 3ª ed.,
Andrews University Monographs, 5 (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1980); Kenneth D.
Mulsac, “Remnant,” in Eerdmans Dictionary of the Bible, ed. David Noel Freedman (Grand Rapids, MI:
Eerdmans, 2000); Angel Manuel Rodriguez, ed., Toward a Theology of the Remnant: An Adventist
Ecclesiological Perspective (Silver Spring, MD: Biblical Research Institute, 2009).
11
Em um exemplo, 1 Timóteo 5:21, eklektos é usado para anjos.
12
Com relação à ideia de predestinação, I. Howard Marshall, tendo revisto o vocabulário específico
empregado no Novo Testamento, observa que “a ideia é muito mais difundida e um campo de palavras
maior exige investigação”, incluindo verbos que empregam o prefixo pro- que são relacionado à tomada
de decisão de Deus, bem como “todos os textos nos quais Deus é descrito como disposto, planejando e

63
Testamento em toda parte exibe a convicção de que as ações de Deus em Cristo para
redimir a humanidade não são fortuitas criadas em um momento de crise, mas
cuidadosamente predeterminadas por Deus (Cl 1:24-27 e Ef 3:1-13 oferecem exemplos
de tratamento explícito deste tema).
Testemunho de Jesus
Embora o tema do Antigo Testamento da “escolha” do servo messiânico do Senhor
possa ser considerado como “um tema menor do Antigo Testamento” de outro ponto
de vista, pode-se argumentar que a promessa messiânica é o foco central de todas as
alianças de Deus com a humanidade desde o princípio.13 O servo de Yahweh como
messias escolhido é um tema que realmente tem “consequências de longo alcance”.14
A designação de Isaías do Servo de Yahweh como “escolhido” (42:1) é retomada pelo
Evangelho autores do Novo Testamento para descrever Jesus (Mt 12:15-21; Lc 9:35;
23:35). As próprias convicções de Jesus sobre Seu status como o “escolhido” e que
constituem o povo escolhido de Deus são evidentes nas parábolas que Ele contou e nas
afirmações diretas que Ele fez.
Após Sua entrada triunfal em Jerusalém, Jesus experimentou a rejeição de Sua
messianidade pelos líderes religiosos. Ele então entregou Sua acusação mais abrangente
na forma de um Cântico de Isaías atualizado sobre a “vinha” de Israel (Mt 21:33-46; Mc
12:1-12; Lc 20:9-19; cf. Is 5:1-7). Jesus acrescentou uma nova característica em que o
dono da vinha agora tem um filho que é, portanto, o herdeiro legítimo: “Mas, quando
os lavradores o viram, disseram a si mesmos: ‘Este é o herdeiro. Vamos matá-lo, para
que a herança seja nossa” (Lc 20:14). Jesus conclui: “O que é isto que está escrito: ‘A
pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular’? Todo aquele que cair
sobre aquela pedra será despedaçado e, quando ela cair sobre alguém, o esmagará” (Lc
20:17-18). Jesus citou o Salmo 118:22 como uma prefiguração de Sua missão messiânica.
Ele primeiro enfrentaria a rejeição de Israel, mas seria reconhecido por Deus na
ressurreição e ascensão e seria escolhido como a pedra angular de um “templo santo
no Senhor” (Ef 2:21-22; veja a proclamação pós-Páscoa de Pedro em Atos 4:11-12; 1Pe
2:4-8).
Na parábola das bodas (Mt 22:1-14; Lc 14:15-24) Jesus ofereceu uma
surpreendente diferenciação entre os “chamados” e os “escolhidos”. Os repetidos
convites do rei para participar da festa foram todos recebidos com relutância em vir,
mesmo quando o banquete estava totalmente preparado (Mt 22:3-5; Lc 14:17).
Finalmente o rei convidou todos os que puderam ser encontrados, “tanto maus como
bons” para que o salão do casamento se enchesse de convidados (Mt 22:10; cf. Lc
14:23). A parábola é comumente entendida como se referindo à mistura de verdadeiros
e falsos discípulos na igreja. A vinda dos reis para “olhar” os convidados do jantar

tendo propósitos”, “Predestinação no Novo Testamento”, em Grace Unlimited, ed. Clark H. Pinnoclc
(Minneapolis, MN: Bethany Fellowship, 1975), 127-128.
13
Robert A. Peterson, “The Bibles Story of Election,” Presbyterion 33, no. 1 (2007): 32. Veja também
Walter C. Kaiser Jr., Toward an Old Testament Theology (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1978), 12, 32-35.
14
Peterson, “The Bible’s Story of Election,” Presbyterion, 32

64
“implica a inspeção divina dos discípulos professos no juízo final”.15 Um convidado
aparentemente recusou a veste nupcial apropriada e foi “lançado nas trevas exteriores”
(Mt 22:11-13). A declaração final de Jesus foi: “Pois muitos são chamados, mas poucos
escolhidos” (Mt 22:14). O surpreendente contraste de Jesus entre os convidados (ou
chamados) e os escolhidos torna-se significativo nesta narrativa. Revela a
responsabilidade pessoal de escolher aceitar o chamado para o reino de Deus do
Messias enviado por Deus (cf. Jo 6:44-45).
Conforme refletido no Evangelho de João, Jesus via a jactância de descender de
Abraão como uma apropriação indébita do status de Israel como o povo eleito de Deus.
Ser verdadeiramente povo de Deus exigia a resposta de fé, em vez da rejeição Dele e de
Sua missão que eles ofereciam. Os autênticos “escolhidos” responderiam a Ele com fé
como Abraão respondeu às promessas de Deus (Jo 8:31-59, especialmente vv. 37, 39-
42; cf. Mt 24:22, 24, 31; Ef 4:1; Fl 2:12-13). Essa ideia, de que os eleitos de Deus são
aqueles que exercem fé em Jesus, está presente no Novo Testamento. No Apocalipse,
“os que estão com ele [o Cordeiro] são chamados [klētos] e escolhidos [eklektos] e fiéis
[pistos]” (Ap 17:14). Mateus e Marcos designam os “escolhidos” como “seus eleitos”
quando o Filho do Homem aparece em Sua glória (Mt 24:31; Mc 13:27).
Jesus afirmou ter sido enviado por Deus como Seu Filho único, dotado de poder e
autoridade divinos, algo especialmente evidente no Evangelho de João (especialmente
6:22-59). Jesus exerceu essa autoridade ao escolher Seus apóstolos. Como Ele lhes
anunciou: “Não me escolhestes vós a mim, mas eu vos escolhi a vós e vos designei para
que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça, para que tudo quanto em meu nome
pedirdes ao Pai, ele o conceda. você” (Jo 15:16). No entanto, Jesus enfatizou a
necessidade da escolha individual de fazer a vontade de Deus e julgar Seus
ensinamentos messiânicos: 7:17, NRSV). Desta forma, Jesus suscitou uma decisão dos
adoradores na Festa dos Tabernáculos de reconhecer Seu ensinamento como o próprio
ensinamento de Deus (cf. Jo 7:15-16; 6:45). Jesus pediu que eles “não julgassem pelas
aparências”, mas “julgassem com juízo correto” (7:24) sobre Sua identidade como o
Messias enviado por Deus (7:12, 25-31). João registra o convite cheio de emoção de
Jesus feito no último dia da festa: “Se alguém tem sede, venha a mim e beba” (7:37-39).
Note que Jesus evocou uma decisão de fé do povo escolhido mesmo quando Ele apelou
para “todos os povos” (12:32; cf. 3:16, 36).
A ênfase do Novo Testamento na vontade ou plano preordenado de Deus
concentra-se no cumprimento messiânico do “propósito de Deus” na vida, morte e
ressurreição de Jesus Cristo (2Tm 1:9-10; cf. Rm 16:25- 26; Ef 3:1-13). Pedro anunciou
no dia de Pentecostes que os homens de Israel haviam entregado Jesus para crucificação
“segundo o determinado desígnio e presciência de Deus” (At 2:23, tē hōrismenē boulē
kai prognōsei tou theou). Pedro se referiu a profecias messiânicas que foram mal
compreendidas por Israel, como aparece em sua explicação: “Mas o que Deus predisse
[prokatēngeilen] pela boca de todos os profetas, que o seu Cristo havia de padecer,

15
Robert H. Gundry, Matthew: A Commentary on His Literary and Theological Art (Grand Rapids, MI:
Eerdmans, 1982), 439.

65
assim ele cumpriu” (Atos 3:18). Da mesma forma, a oração de gratidão da igreja em
Jerusalém considerou os atos hostis contra Jesus e Seus discípulos como
“predestinados” pela “mão” e “plano” de Deus (Atos 4:28), conforme previsto no Salmo
2:1-3. Esse entendimento está de acordo com o anúncio de Paulo de que ele havia
ensinado aos efésios “todo o conselho [pasan tēn boulēn] de Deus” (Atos 20:27; “toda
a vontade de Deus”, NVI).
Testemunho de Pedro
No dia de Pentecostes, Pedro proclamou à multidão a surpreendente notícia de que
o ato de entregar Jesus à morte era tanto sua responsabilidade pessoal, incorrendo em
culpa diante de Deus, quanto um ato de acordo com “o determinado plano e presciência
de Deus” (At 2:23). A narrativa de Lucas repete essa avaliação. Em oração a Deus, os
primeiros crentes cristãos reconheceram que os líderes políticos e o povo simplesmente
fizeram “tudo o que sua mão e seu plano predestinaram para acontecer” (Atos 4:28,
hosa hē cheir sou kai hē boulē [sou] proōrisen genesthai ). Diante dessa “predestinação”
divina ou “decidir de antemão”, Pedro, no entanto, apelou à fé e ao arrependimento em
vista do novo ato de Deus em Cristo (At 2:38; 3:18-19; 5:31).
Essa mesma ênfase compartilhada no plano de Deus, ou eleição, por um lado, e
responsabilidade pessoal, ou escolha, por outro, é evidente também nas epístolas de
Pedro. Pedro dirige sua primeira carta pastoral aos “eleitos de Deus [eklektois] ... que
foram escolhidos segundo a presciência de Deus Pai, pela obra santificadora do Espírito,
para serem obedientes a Jesus Cristo e aspergidos com seu sangue” (1Pe 1:1-2, NVI). Ele
assegura aos sofredores cristãos gentios na Ásia Menor que eles são “raça eleita [genos
eklekton], sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva” (2:9), aplicando-
lhes o mesmo chamado que antigamente Israel havia recebido (cf. Êx 19:5-6; Dt 7:6; Is
43:20-21). Pedro explica que o propósito de sua eleição é “proclamar as excelências” de
seu Redentor e “oferecer sacrifícios espirituais aceitáveis a Deus por Jesus Cristo” como
um “sacerdócio santo” (1Pe 2:5, 9).
Em sua segunda carta, Pedro enfatiza a responsabilidade dos crentes cristãos de
“confirmar” (NRSV) sua “chamada e eleição” (1:10) praticando a piedade (1:3-9) e
crescendo “na graça e conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (3:18; cf.
1:8). Observe cuidadosamente que Pedro une o “chamado” e a “eleição” de Deus para
os crentes para que eles possam glorificá-lo como o Redentor e Santificador de Seus
escolhidos. A implicação para Pedro parece ser que uma falha em “confirmar” sua
eleição em um padrão de vida comprometido equivale ao seu repúdio à eleição. O
propósito de Pedro, porém, não é tanto alertar quanto encorajar. Todo crente cristão
que santifica a Cristo no coração e na vida entrará “no reino eterno de nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo” (1:10-11). Essa garantia ecoa a declaração de Pedro aos crentes
inseguros em sua primeira carta de que Deus os “escolheu” e os “conheceu de antemão”
e que Jesus Cristo veio à terra “por amor de vocês” (1Pe 1:1,2,20).

66
O testemunho de Paulo
Durante sua primeira viagem missionária, Paulo e Barnabé visitaram a sinagoga em
Antioquia da Pisídia. Paulo lembrou aos judeus e gentios tementes a Deus que Deus
“escolheu” (eklegomai) Israel para trazer o Messias davídico e anunciou Jesus de Nazaré
como este Messias (At 13:17-23). Enquanto os moradores de Jerusalém não
reconheceram Jesus como o Messias e O rejeitaram (v. 27), o convite foi aberto a eles:
“por este [Jesus] é anunciado a vocês o perdão dos pecados” (v. 38). Aqueles que creram
entre os judeus e os gentios tementes a Deus foram contados como “designados [tassō]
para a vida eterna” (v. 48). Aqui Lucas qualifica a designação, ou designação, para a “vida
eterna” em relação ao propósito divino da fé nos ouvintes do evangelho (cf. v. 46).
No início de sua Primeira Carta aos Coríntios, Paulo enfatiza que Deus “escolheu” a
igreja em Cristo em sua aparência baixa e fraca “para envergonhar os sábios” e “os
fortes”, “para que nenhum ser humano se glorie na presença de Deus” (1:27-29; o termo
eklegomai, “escolher”, é usado três vezes). Ele descreve Cristo como a “sabedoria”
secreta que Deus havia “decretado [proorizō] antes dos séculos para nossa glória” (2:7).
Paulo afirma que a profecia de Isaías (64:4) sobre a glória inconcebível de “o que Deus
preparou [etoimazō] para aqueles que o amam” foi revelada agora pelo Espírito de Deus
aos crentes cristãos que amam a Deus (2:9-10), mesmo enquanto a glória completa e
consumada ainda é futura (15:20-28).
Paulo dirigiu sua teologia mais abrangente da eleição divina aos Efésios. Em sua
bênção de abertura (1:3-14), Paulo pinta em uma tela de dimensões cósmicas e, ao fazê-
lo, fornece uma das mais significativas e abrangentes visões do plano de salvação em
toda a Bíblia. Abrange toda a extensão da história da salvação, desde a eternidade
passada, através das ações cheias de graça de Deus em Cristo, até a eternidade futura.
A redenção dos crentes por Deus está enraizada em iniciativas divinas tomadas “antes
da fundação do mundo” (v. 4) e realizadas na vida dos crentes (especialmente vv. 7-
8,13-14). Essas estratégias de pré-criação serão final e totalmente realizadas no fim dos
tempos, quando o plano pré-ordenado de Deus se concretizar (vv. 9-10). Então, “todas
as coisas”, tanto “no céu” quanto “na terra” serão “encabeçadas” ou “unidas” em Cristo
e o plano de Deus para a “plenitude dos tempos” será cumprido (v. 10). Então, os crentes
experimentarão plenamente o plano misterioso de Deus (v. 9), que através da revelação
de Deus eles já podem conhecer, que a maravilhosa salvação centrada em Cristo na qual
eles se encontram é parte do plano de longo alcance de Deus para a redenção de “todos
as coisas."
Na passagem, Paulo emprega uma variedade de termos para descrever o
planejamento e a atividade de Deus para a salvação da humanidade. Dois desses termos
são frequentemente usados para descrever a predestinação no sentido calvinista. Um
deles é o verbo eklegomai: Deus “nos escolheu” em Cristo “antes da fundação do
mundo” (4:4). Aqui o verbo significa “selecionar alguém ou algo para si mesmo”.16 Deve-

16
Walter Bauer and Frederick William Danker, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other
Early Christian Literature [BDAG], 3rd ed. (Chicago, IL: University of Chicago Press, 2001), 305.

67
se notar que esta escolha divina é feita “nele” (Cristo), “antes da fundação do mundo”
e para um propósito específico, “para sermos santos e irrepreensíveis diante dele”.
O outro termo é o verbo proorizō (vv. 5, 11). Deus "predestinado" para "adoção
como filhos" (v. 5) e, por sua vez, os crentes foram "predestinados" (v. 11). Em cada
contexto esta "predestinação" ocorre através de Deus "vontade" e "propósito" ("de
acordo com o propósito de sua vontade," v. 5; "de acordo com o propósito daquele que
trabalha todas as coisas de acordo com o conselho de sua vontade," v. 11). O verbo
significa decidir de antemão, "predeterminar."17 Tal como acontece com o uso de
eklegomai no versículo 4, em cada um dos dois usos de proorizō, Cristos papel é
determinante, uma vez que a escolha ocorre "através de Jesus Cristo" (v. 5) ou "nele"
(v. 11).
É importante entender o contexto completo de Efésios 1:3-14 e os muitos termos
usados para descrever a obra de Deus para a salvação da humanidade. A passagem exibe
não apenas uma linguagem sobre a escolha, predestinação, propósito e vontade de
Deus, mas também contém uma linguagem mais vívida e relacional sobre a obra de
salvação de Deus. Deus é “Pai” (v. 3) e os seres humanos são destinados através de Jesus
Cristo para “adoção” como Seus filhos (v. 4). E Deus não é um pai mesquinho analisando
cuidadosamente os privilégios familiares para Seus filhos recém-adotados. Em vez disso,
Ele lhes oferece “todas as bênçãos espirituais” (v. 3), incluindo Sua graça (vv. 6-7),
redenção (v. 7), perdão dos pecados (v. 7), uma herança eterna (vv. 11,14), salvação (v.
13) e o dom selador do Espírito Santo (vv. 13-14). Essas bênçãos são “prodigalizadas”
sobre os crentes (v. 8) abundantemente a partir do suprimento ilimitado das “riquezas
de sua graça” (v. 7). A linguagem que Paulo emprega na passagem para descrever a
escolha, predestinação, propósito e vontade de Deus, então, não deve ser mal
interpretada como se estivesse em contradição com essa linguagem rica e relacional,
mas em companhia dela. Tanto a soberania de Deus quanto Seu amor são destacados
na passagem.
A imposição de um entendimento calvinista na passagem também viola o tom geral
da passagem de outra maneira. Observou-se que, no centro da passagem, está o plano
de Deus, sendo executado por meio de Jesus Cristo, “unir todas as coisas” em Cristo, “as
coisas do céu e da terra” (v. 10). Seria difícil imaginar um retrato mais abrangente do
Evangelho. No contexto da carta, Paulo trata de categorias amplas, imaginando
segmentos díspares da sociedade humana sendo unidos em Cristo. Desta forma, ele
oferece um exemplo mais vívido do que ele quer dizer com o plano de Deus “unir todas
as coisas” (2:11-22; 3:4-6). Argumentar que Paulo, em 1:3-14, está destacando um
pequeno grupo de eleitos que foram destinados à salvação em oposição a um grupo
mais amplo destinado à condenação é romper o tom revigorante, inclusivo e redentor
da passagem estabelecida dentro desse contexto mais amplo. contexto literário. Ter
uma visão restritiva de uma passagem que proclama expansivamente o propósito de
Deus de “resumir todas as coisas” em Cristo (v. 10) em uma carta que abre a porta para

17
Ibid., 873.

68
as duas grandes divisões da humanidade, judeus e gentios, corre o risco de truncar o
propósitos de Deus e as intenções do autor.
Além disso, frases como “em Cristo”, “no amado” e “nele” são usadas onze vezes
na passagem. Isso sugere que a eleição e a predeterminação de Deus são exercidas
corporativamente – em e por meio de Cristo – e não individualmente.18 O foco de Paulo
não está na salvação individual, mas no chamado redentor para todos os crentes e na
estrutura cristocêntrica de todo o universo. A passagem, perto do fim, torna-se mais
pessoal em tom. E é justamente aqui que as ações humanas inspiradas pelo Espírito de
“ouvir” e “crer” no Evangelho, exercidas pelos destinatários de Paulo, são vistas como
importantes (v. 13), de acordo com a escolha divina pré-criação que os crentes “deve
ser santo e irrepreensível diante dele” (v. 4).
Em sua carta anterior aos romanos, Paulo também apresenta o amor eletivo de
Deus para o propósito pastoral de unir crentes judeus e gentios em um povo da nova
aliança. É esclarecedor comparar a exposição teológica de Paulo sobre a eleição e
predestinação divinas em Efésios e Romanos e observar um padrão semelhante emergir
em Efésios 1:3-14 e Romanos 8:28-30. O esboço a seguir destaca esse padrão, com
ênfase em temas amplos e a ordem em que são desenvolvidos:

EFÉSIOS 1 ROMANOS 8
v. 3 ... Deus ... nos abençoou em v. 28 ...para aqueles que amam a
Cristo com todas as bênçãos Deus todas as coisas cooperam
espirituais nos lugares para o bem...
celestiais
v. 4a ... assim como ele nos v. 29a Para aqueles que ele conheceu
escolheu [eklegomai] nele de antemão [proginōskō] ele
antes da fundação do mundo, também predestinou [proorizō]
...
v. 4b ... que devemos ser santos e v. 29b para ser conforme a imagem de
irrepreensíveis diante dele. seu Filho...
v. 5 ... ele nos predestinou v. 30a E aqueles a quem predestinou
[proorizō] para adoção como [proorizō] também chamou, e
filhos por meio de Jesus aqueles a quem chamou...
Cristo, segundo o propósito
de sua vontade,
v. 7 Nele temos a redenção pelo v. 30b ... ele também justificou, ...
seu sangue, a remissão das
nossas ofensas...

18
“Porque o Pai ama o Filho, ele ama aqueles que estão no Filho. . . . O que o Novo Testamento afirma,
e sobre o qual Efésios 1 se baseia, é que Jesus Cristo é agora o eleito de Deus e que a eleição do cristão
pode ser mencionada apenas como sendo eleição nele... Aqui Deus não escolhe eleger indivíduos , mas
escolheu eleger a Cristo e aqueles que são encontrados nele. Por esta razão, esta passagem apresenta
uma teologia da eleição no contexto do culto corporativo, e com uma clara nota pastoral que afirma os
cristãos como amados e escolhidos por Deus”, John Lewis, “Doing Theology Through the Gates: A Bible
Study on Ephesians 1 :3-14,” Evangelical Review of Theology 28, no. 4 (2004): 364-365.

69
vv. 10,11 ... para unir todas as coisas v. 30c e aqueles a quem justificou
nele .... Nele obtivemos uma também glorificou.
herança, tendo sido
predestinados [proorizō]
segundo o propósito dele ...
vv. 13,14 Nele também vós, quando… vv. 33, Quem intentará acusação contra
nele crestes, fostes selados 38,39 os eleitos de Deus [eklektos]? É
com o Espírito Santo Deus quem justifica. Pois estou
prometido, que é o penhor da certo de que nem a morte nem
nossa herança… para louvor a vida... será capaz de nos
da sua glória. separar do amor de Deus em
Cristo Jesus nosso Senhor.

Essa comparação sugere que Paulo oferece, tanto em Efésios quanto em Romanos,
um amplo padrão de história da salvação que inclui as ideias de iniciativa divina pré-
temporal, uma eleição de crentes centrada em Cristo, sua resposta de fé à salvação
oferecida em Cristo e o cumprimento escatológico da esperança cristã.
No contexto da história da interpretação, a discussão de Paulo em Romanos 8:28-
30 requer muita atenção. Com poucas exceções, exegetas modernos do Novo
Testamento e teólogos sistemáticos não encontram base nesta passagem para uma
predecisão de Deus (Deus nudus, “Deus puro em isolamento”) sobre um “decreto” de
dupla predestinação. Essa suposição escolástica medieval criou o problema de que “o
Deus eleitor não é mais entendido seriamente como Aquele que se elege e se revela em
Cristo”.19 Barth concluiu: “Não existe um decretum absolutum. Não existe uma vontade
de Deus separada da vontade de Jesus Cristo.”20 Ridderbos aponta que o termo
“eleição” por si só não contém o pensamento de “decreto”, e é usado originalmente
para descrever a maneira em que Israel se tornou o povo de Deus e teve sua causa
apenas no “bom prazer” de Deus.21
Nesta visão majestosa da história redentora, Paulo desenvolve primeiro o propósito
de Deus em Cristo (em 8:29); e então a maneira de Deus realizar este propósito (em
8:30):
1. “Porque os que de antemão conheceu, também os predestinou para
serem conformes à imagem de seu Filho, para que ele seja o primogênito
entre muitos irmãos” (8:29, NASB);
2. “e aos que predestinou, a estes também chamou; e aos que
chamou, a estes também justificou; e aos que justificou, a estes também
glorificou” (8:30).
Paulo enfatiza como o plano de salvação de Deus é realizado na história humana:
pelos atos de Deus de chamar, justificar e glorificar (8:30). Esse foco exclusivo nos atos

19
Weber, foundations of Dogmatics, 420.
20
Barth, Church Dogmatics, 115.
21
Herman Ridderbos, Paul: An Outline of His Theology (Grand Rapids, MI: Eerd- mans, 1975), 344.

70
redentores de Deus não se refere a nenhuma resposta humana - nem a um ato de fé,
nem a uma decisão de obedecer à vontade de Deus, nem à perseverança em uma vida
santificada - não porque tais respostas sejam irrelevantes ou supérfluas, mas porque
estas não são obras meritórias que contribuem para a salvação de um indivíduo. A
explicação de John Wesley de Romanos 8:30 é pertinente:
Ele [S. Paulo] não nega que um crente pode cair e ser cortado, entre seu chamado
especial e sua glorificação, cap. XI. 22. Ele apenas afirma que este é o método pelo qual Deus
nos conduz passo a passo para o céu.22 Como observado anteriormente, o ensino de Paulo
em Romanos 8:28-30 não deve ser isolado daquele em sua carta aos Efésios, onde ele
enfatiza o caráter centrado em Cristo do eterno propósito e conselho de Deus (Ef 1:4-11; 2:
4-10; 3:8-12). A estrutura do plano divino é explicitamente cristocêntrica. Em Romanos, a
intenção de Paulo é assegurar a todos os crentes sua salvação presente e futura, ensaiando
o chamado de Deus através da proclamação do Evangelho (1:6; 5:1; 8:1; 11:32; 16:25-26).
Como em Efésios 1:10, o escopo de Paulo da graça redentora de Deus se alarga para
abranger toda a criação que “espera ansiosamente pela revelação dos filhos de Deus”
(8:19). Para essa glória futura dos “filhos de Deus”, Cristo Jesus foi enviado à terra, “a fim
de ser o primogênito entre muitos irmãos” (8:29). Para assegurar aos crentes a certeza
absoluta do cumprimento do plano de salvação de Deus, Paulo introduz o conceito de que
“para aqueles que amam a Deus todas as coisas cooperam para o bem, daqueles que são
chamados segundo o seu propósito” (8:28).

Temas de eleição e predestinação vêm à tona novamente em uma seção


importante de Romanos, capítulos 9-11, em que Paulo pondera sobre a fidelidade
de Deus em face da rejeição de Cristo por muitos judeus. Seguindo uma sincera
expressão de preocupação por estes, seu próprio povo (9:1-5), Paulo começa sua
defesa da fidelidade de Deus argumentando a partir de exemplos extraídos da
história de Israel, que a descendência física – genética – não é determinante para
pertencer ao povo de Deus, uma vez que Deus declara: “Amei a Jacó, mas odiei a
Esaú” (9:6-13). E Deus é livre para fazer o que quiser, incluindo chamar os gentios
de “meu povo” e salvar apenas um “remanescente” dos “filhos de Israel”. Este
ponto é afirmado recitando a história de Deus endurecendo o coração de Faraó e
um apelo ao poder do oleiro sobre o barro (9:14-29). Lidos isoladamente, esses
segmentos iniciais da passagem mais ampla podem levar à conclusão de que Deus
é uma escolha arbitrária e humana sem consequências no plano de salvação. No
entanto, quando lido no contexto da passagem mais ampla, surge uma imagem
bastante diferente.23

22
John Wesley, Explanatory Notes Upon the New Testament, vol. 2 (London: Thomas Cordeux, 1813), 34.
23
Hultgren oferece uma defesa sustentada da conclusão geral, amplamente aceita entre os exegetas hoje,
de que “Romanos 9-11 compõe uma seção que dificilmente pode ser tratada como uma série de unidades
retiradas de seus contextos. Ele é lido como uma unidade grande e deve ser lido em sua totalidade. Muitas
vezes na história da interpretação tem sido a prática dos intérpretes parar ao longo do caminho entre o
início e o fim e então traçar uma posição teológica atribuível a Paulo sobre um tópico específico (por
exemplo, predestinação, eleição ou o surgimento de fé de ouvir) ou para descrever seus pontos de vista
sobre algum assunto (como uma suposta obstinação espiritual do povo judeu). Mas isolar unidades
menores como fornecendo a última palavra de Paulo sobre qualquer assunto é violentar o argumento
que está sendo feito na seção como um todo”, Arland J. Hultgren, Paul's Letter to the Romans: A
Commentary (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2011), 347. A discussão convincente de Hulgren sobre
Romanos 9-11 e suas excelentes e completas bibliografias de literatura secundária devem ser elogiadas.

71
Em seguida, Paulo se volta para uma explicação da curiosa ironia que ele acaba de
insinuar – que os gentios, que não buscaram a justiça, a obtiveram, enquanto os judeus,
que buscaram energicamente, se equivocadamente, a justiça não a obtiveram (9:30 -
10:21). Embutida aqui em meio a passagens frequentemente empregadas para
defender conceitos de “dupla predestinação” vem uma das mais profundas declarações
bíblicas de salvação sendo baseada na fé e na confissão de Jesus Cristo como Senhor
ressuscitado (10:5-10). Isso se junta a uma das grandes afirmações de que Deus tornou
a salvação disponível para todos (10:11-13; cf. 1:16-17). A resposta de Paulo à ironia que
ele elaborou é fornecida nestas declarações inspiradoras sobre fé e salvação: Embora o
Evangelho seja acessível a todos os que confiam em Cristo, a maioria dos israelitas não
aceitou essas boas novas, mas se apegou à “velha busca por justiça com base no
privilégio exclusivo da ancestralidade.”24
Paulo tem uma conclusão definida em mente nesses capítulos, que agora são
amplamente reconhecidos como centrais para toda a teologia e propósito da carta.
Respondendo à pergunta: “Deus rejeitou Seu povo?” no negativo - e citando sua própria
situação e o estudo de caso de Elias em defesa dessa resposta - Paulo se volta para sua
compreensão do que Deus é diante da rejeição de Jesus pela maioria dos judeus: a
rejeição judaica levou ao Evangelho indo para os gentios (11:1-11).
O ponto culminante do argumento de Paulo vem em 11:12-36, onde Paulo revela
sua esperança escatológica firmemente mantida de que, tendo visto os gentios
aceitarem a Cristo, os judeus, em uma reação zelosa, também O aceitarão. O
endurecimento de seus correligionários é apenas um fenômeno temporário, que dará
lugar a “todo o Israel” sendo salvo (11:26) e, mais amplo ainda, Deus tendo misericórdia
de todos (11:32).25 Para Paulo, a maravilha dessa visão escatológica sugere uma
doxologia, que se apropria da inescrutabilidade divina como motivo de louvor (11:33-
36).
Uma questão central em relação a Romanos 9:1-29 é esta: Paulo se dirige a si
mesmo na passagem para a salvação de indivíduos qua [sine qua non] indivíduos? Ou
ele está discutindo padrões mais amplos de salvação? Por exemplo, o que ele quer dizer
sobre esse tópico citando a história de Jacó e Esaú no Antigo Testamento? Uma maneira
de abordar esta questão é examinar as maneiras pelas quais Paulo pensa sobre seus
“parentes” em Romanos 9-11. Frequentemente, ele pensa neles em massa, como um
grupo. Isso é verdade na introdução, onde eles são descritos como “meus irmãos, meus
parentes segundo a carne” e “israelitas” que compartilham uma herança importante e
sagrada e em outros lugares (9:1-5; cf. 10:1-2 , “Irmãos, o desejo do meu coração e a
oração a Deus por eles é que eles sejam salvos... eles têm zelo... eles não se
submeteram”). Este tipo de pensamento é refletido em 11:11-12 (“eles tropeçaram”,

24
John C. Brunt, Romans: Mercy for All, Abundant Life Bible Amplifier Series, ed. George R. Knight
(Boise, ID: Pacific Press, 1996), 192.
25
Para uma crítica dos entendimentos dispensacionalistas de Romanos 11:26 e Romanos 9-11 como um
todo, veja Hans K. LaRondelle, “The Church and Israel in Romans 9-11,” in The Israel of God in Prophecy:
Principles of Prophetic Interpretation , Monografias da Universidade Andrews, Estudos em Religião 13
(Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1983), 123-134.

72
“em sua transgressão”; “para fazer ciúmes a Israel”; “sua transgressão”; “sua falha”;
“sua plena inclusão”). Em um contexto em que Paulo acaba de se referir a histórias e
citações do Antigo Testamento, o grupo parece atemporal. Ou seja, pareceria ao leitor
que os mesmos indivíduos estão realizando essas ações ao longo do tempo quando, é
claro, nos próprios eventos históricos, necessariamente estariam envolvidos diferentes
indivíduos.26
Em outras ocasiões, Paulo parece diferenciar entre “meus companheiros judeus”
(11:14), em outros lugares vistos como um único grupo. Essa perspectiva também surge
logo no início com o contraste de Paulo de “filhos da carne” e “filhos da promessa” entre
os descendentes de Abraão (9:8). Mais tarde, ele vê a si mesmo e aos outros como parte
de “um remanescente escolhido pela graça” (11:5), um grupo seleto dentro do grupo
maior. Paulo contrasta esses dois grupos como “os eleitos” e “os demais” (11:7; note
que ele identifica “os demais” que falharam em obter o favor de Deus com “Israel”,
embora seja claro que alguns dentro de Israel conseguiram obter a bênção de Deus).
Na ilustração da oliveira (11:17-24), Paulo novamente diferencia. Aqui seu tom se
torna mais pessoal, com os indivíduos mais à vista. Há “galhos” que “foram quebrados”
e os “outros” que permaneceram parte da árvore (11:17; cf. v. 20). E, curiosamente, é
justamente aqui que ele é mais claro sobre o elemento de escolha pessoal ao falar de
alguns judeus, sob a figura de ramos, como sendo “quebrados por causa de sua
incredulidade” (11:20), enquanto possibilidade de que eles possam escolher abandonar
essa incredulidade (11:23).
Assim, enquanto a principal lente de Paulo é entender seus compatriotas como um
grupo (às vezes atemporal), ele pode diferenciar grupos dentro deles e no contexto de
refletir sobre o exercício da fé pode se tornar ainda mais pessoal. A conclusão parece
apropriada, embora um tanto imprecisa, que é o plano de Deus para a salvação dos
judeus como um povo que está em discussão:
Paulo está abordando o problema de Israel como povo escolhido e sua
relação com Cristo, presente e futuro. Paulo não está abordando o destino
de algum indivíduo – um cristão moderno, por exemplo – que pode, de
tempos em tempos, desconfiar da palavra redentora de Deus em Jesus
Cristo.27
Outra chave para a passagem é descobrir o que Paulo quer dizer com a dicotomia
entre, por um lado, “filhos da promessa” (9:8), salvação pela misericórdia e compaixão
de Deus (9:14-18), e “ a justiça baseada na fé” (10:6), e, por outro lado, “os filhos da

26
Acho útil a descrição de Frank J. Matera dos três “movimentos” de Paulo: passado de Israel (9:1-29),
presente de Israel (9:30-10:21) e futuro de Israel (11:1-36)”, Frank J. Matera, Romans, Paideia
Commentaries on the New Testament, ed. Mikeal C. Parsons and Charles H. Talbert (Grand Rapids, MI:
BakerAcademic, 2010), 253.
27
Paul Achtemeier, Romans, ed. James Luther Mays (Louisville, KY: John Knox, 1985), 154-55. Achtemeier
continua: “O contexto desta discussão, ou seja, o destino de Israel como povo escolhido, deve ser
honrado, especialmente nos versículos 6-13 e 24-29, ou o que ouvimos nesses capítulos será bem
diferente do que Paulo quer dizer."

73
carne” (9:8), a salvação através da “vontade ou esforço humano” (9:16), e “a justiça que
se baseia na lei” (10:5), uma vez que estas últimas categorias dizem respeito ao exercício
da escolha humana.
A esse respeito, é crucial notar que Paulo está ilustrando o mesmo ponto
fundamental em sua discussão sobre a eleição soberana de “Jacó” por Deus (9:6-18) e
sua longa consideração sobre a necessidade de os seres humanos exercerem fé e
confessarem que Jesus é Senhor (10:1-21). A salvação não vem pela vontade humana,
esforço, trabalho ou observância da lei. Ela vem através de outra coisa – a obra de Deus
em Cristo – e é acessada através da fé e confissão (especialmente em 10:5-13). Esse
meio de salvação e a maneira de acessá-lo, argumenta Paulo, contrasta com as
tentativas fúteis de obter a salvação por meio da observância da lei. Observe
cuidadosamente que, para Paulo, o exercício da fé e a confissão são vistos em contraste
com as obras humanas. Isso não significa que a fé e a confissão sejam impostas aos
humanos e sejam inautênticas, não realmente suas. Em vez disso, significa que eles são
tão influenciados e apegados à obra de Deus em Cristo que Paulo os vê como parte
integrante da salvação de Deus. Não são, deste ponto de vista, obras humanas. Assim é
que aqueles que reconhecem o plano predestinado de Deus para a salvação da
humanidade, com sua ampla provisão para salvação e seu chamado para exercer fé em
Cristo que está no centro dessa provisão, são “escolhidos pela graça” (11:5).
A salvação está em discussão em Romanos 9:14-29 e na estrutura mais ampla de
Romanos 9-11, mas em um sentido especial. O tópico específico é a salvação dos judeus
como povo de Deus e, ainda mais amplamente, a oferta de salvação a todas as pessoas.28
Ao usar a citação do Antigo Testamento, “Eu amei Jacó, mas odiei Esaú”, Paulo assume
um risco retórico considerável, especialmente que alguns ouvintes/leitores podem
tomar “Esaú” como um tipo dos gentios e concluir que os gentios não são escolhidos
para salvação. Paulo limita esse risco, no entanto, na estrutura mais ampla de Romanos
9-11, detalhando cuidadosamente a importância da decisão de fé (especialmente em
10:5-13) e o fato de que a salvação é condicional baseada na resposta da fé (11:17-24).
Fica claro que seu ponto tem sido argumentar mais estreitamente pela liberdade de
Deus de eleger ou escolher quem pertence ao Seu povo. Construir uma teologia da dupla
predestinação em Romanos 9:1-29 é ignorar as importantes maneiras pelas quais Paulo
direciona o significado desse segmento através do contexto da passagem mais ampla,
Romanos 9-11.
Resta mencionar brevemente mais duas dessas maneiras. Primeiro, observe as
várias vezes que Paulo sublinha a acessibilidade da salvação a todos “pela fé” (9:32):
“quem nele crê não será envergonhado” (9:33); “Pois Cristo é o fim da lei para justiça
de todo aquele que crê” (10:4); “A palavra está perto de ti, na tua boca e no teu coração”

28
Ao sustentar que a salvação está em discussão na passagem, estou de acordo com Thomas R. Schreiner
em sua crítica às visões arminianas de Romanos 9. No entanto, ele desnecessariamente coloca a ideia de
que Paulo está discutindo a salvação na passagem contra a ideia que Paulo está “fazendo uma declaração
geral sobre a estratégia de Deus na história”. Eu acredito que Paulo está fazendo as duas coisas. Veja
“Does Romans 9 Teach Individual Election Unto Salvation? Some Exegetical and Theological Reflections,”
Journal of the Evangelical Theological Society 36 (1993): 27.

74
(10:8); “Todo aquele que nele crê não será envergonhado” (10:11); “Pois não há
distinção entre judeu e grego; pois o mesmo Senhor é o Senhor de todos, concedendo
suas riquezas a todos os que o invocam. Pois ‘todo aquele que invocar o nome do Senhor
será salvo’” (10:13). Dadas as muitas vezes que Paulo reitera esta ideia, a paixão com
que parece ser comunicada, e quão próximo está do coração da compreensão de Paulo
do Evangelho (Rm 1:16-17), esta é uma revelação clara e definidora: A salvação é
autêntica e genuinamente acessível a qualquer um que crê em Cristo. E quando alguém
identifica “acusadores de Deus” em Romanos 9:14 como oponentes judeus de Paulo,
fica claro que este ponto está intimamente ligado à infra-estrutura teológica de
Romanos 9: “Quando Paulo afirma a liberdade de Deus para ter misericórdia de quem
ele deseja, Paulo não está forjando uma doutrina de eleição individual incondicional,
mas estabelecendo a liberdade de Deus para derramar sua misericórdia além dos limites
da identidade étnica judaica.”29
Uma segunda maneira importante pela qual Paulo controla os significados da
discussão de 9:1-29 é através de um lembrete muito claro, ainda que entre parênteses,
de que ele não mantém a posição de que os santos “eleitos” irão, invariavelmente,
perseverar até o fim: “Observe então a bondade e a severidade de Deus: severidade
para com aqueles que caíram, mas bondade de Deus para com você, desde que você
continue em sua bondade. Caso contrário, você também será cortado” (10:22).
Romanos 9:1-29 não deve ser visto como uma passagem única que ensina a dupla
predestinação, mas entendida dentro da estrutura mais ampla de Romanos 9-11 e do
Novo Testamento como um todo, afirmando a preparação cuidadosa e antecipada de
Deus de um plano para redimir a humanidade, um plano que incluía convidar todos os
seres humanos a escolher a salvação oferecida por meio dele.
UM QUADRO BÍBLICO-TEOLÓGICO PARA COMPREENDER A ELEIÇÃO E A
PREDESTINAÇÃO
Com base nesta pesquisa de materiais bíblicos, este estudo concluirá identificando
elementos que fornecem uma estrutura bíblico-teológica para entender a eleição e a
predestinação.
Eleição e Predestinação no Grande Conflito
A linguagem da eleição e predestinação no Novo Testamento assegura aos crentes
que o pecado não pegou Deus desprevenido. Quando o pecado entrou no mundo, Deus
já havia agido em “tempo profundo” para providenciar a salvação da humanidade. “Em
contraste com a mitologia antiga, que especulava sobre as lutas cósmicas de vários
poderes divinos e supra-humanos como pano de fundo para tudo o que acontece na

29
Jerry L. Walls and Joseph R. Dongell, Why I Am Not a Calvinist (Downers Grove, IL: Inter Varsity, 2004),
91.

75
terra, a Bíblia se concentra nas decisões pessoais e moldadoras da história do único
Deus.”30
A provisão que Deus planejou “antes da fundação do mundo” (Efésios 1:4) e as
ações que desdobraram essa provisão na história da salvação (mais centralmente a
Encarnação de Jesus, por exemplo, 2Tm 1:9-10) revelam Deuses natureza e caráter. Eles
ilustram Seu amor (Ef 1:4-5; 1Ts 1:4), misericórdia (Rm 9:16), graça (Rm 11:5), sabedoria
e conhecimento (Rm 11:33).31
Padrões de Eleição, Predestinação e Salvação no Antigo e no Novo Testamento
O caráter de amor de Deus é expresso através das eras da história da salvação. É o
caráter de Deus que traz continuidade e sequência entre o Antigo e o Novo Testamento.
Deus se compromete com Seu povo, Israel. Eles O esquecem ou, mais descaradamente,
se rebelam. Deus expressa Sua lealdade e misericórdia de aliança chamando-os de volta
a Si por meio de disciplina e revelação. Quando, após esforços duráveis e extremos, o
povo de Deus se recusa a se arrepender, Sua lealdade à aliança motiva novos esforços e
novas estratégias. Um remanescente e o servo messiânico de Yahweh tornam-se as
pontes para uma missão renovada e ampliada, abrangendo judeus e gentios. O que
parecem ser surpreendentes reviravoltas na jornada passam a ser entendidos como
cumprimentos de profecias anteriores e estão sempre enraizados na eleição e
predestinação de Deus.
Deus Oferece Salvação a Todos
Um tema que é frequentemente declarado e aparentemente assumido em toda a
Bíblia é a ideia de que Deus busca ativamente a salvação de todas as pessoas: “Deus,
nosso Salvador. . . deseja que todos sejam salvos e cheguem ao conhecimento da
verdade” (1Tm 2:3-4). No Novo Testamento, essa ideia aparece com tanta força que se
torna temática em alguns documentos (especialmente Lucas, Atos, João, Romanos e
Gálatas).32 O plano cristocêntrico pré-determinado de Deus não pode ser uma ameaça
à liberdade humana, porque é um chamado e uma convocação para que todas as
pessoas creiam no Evangelho (por exemplo, At 17:22-31). De fato, “onde quer que o NT
fale de predestinação, o faz com a intenção de enfatizar a vontade de Deus de abraçar
toda a sua criação na ajuda salvadora predestinada para ela”.33 Possuindo conhecimento

30
John E. Alsup, “Predestination”, em Harpercollins Bible Dictionary, ed. Paul J. Achtemeier (San Francisco:
HarperSanFrancisco, 1996), 878. A declaração de Ivan T. Blazen sobre o tema é excelente: eventos depois
que o pecado surgiu. Em vez disso, resulta de um plano divino para a redenção do homem formulado
antes da fundação deste mundo (1 Coríntios 2:7; Efésios 1:3, 14; 2 Tessalonicenses 2:13, 14) e enraizado
no amor eterno de Deus por humanidade (Jer. 31:3)”, “Salvation”, em Handbook of Seventh-day Adventist
Theology, Commentary Reference Series, ed. Raoul Dederen (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2000),
275.
31
Tomo emprestado esta lista de qualidades e passagens de W. A. Elwell, “Election and Predestination”,
em Dictionary of Paul and His Letters, ed. Gerald F. Hawthorne, Ralph P. Martin e Daniel G. Reid (Downers
Grove, IL: InterVarsity, 1993), 225.
32
Declarações explícitas do tema incluem: Ezequiel 18:23, 32; João 1:9-13; 3:16-17; Romanos 1:16-17;
3:27-31; 11:32; 1 Timóteo 2:3-4; 4:10; Tito 2:11; 2 Pedro 3:9; Apocalipse 22:17. Veja nosso tratamento
focado deste tema ao lidar com Romanos 9-11, p. 28.
33
Alsup, “Predestination,” in Harpercollins Bible Dictionary, 879.

76
íntimo das pessoas como indivíduos (Mt 10:39-40; Lc 12:6-7; At 9:10-19; 1Co 13:12),
Deus procura atraí-los para Si e salvá-los.34 Esta é uma verdade bíblica tão segura e clara
quanto existe. Nenhum candidato à verdade ousa fazer uma farsa dessa compreensão
profunda e central do caráter e obra de Deus.35
A Importância da Escolha Humana
No plano divino de salvação, a escolha humana é excepcionalmente importante. Ao
longo das Escrituras, Deus e Seus agentes são retratados como suplicando aos seres
humanos que exerçam sua capacidade de escolher o certo e a verdade. No Antigo
Testamento, o padrão de exortação estabelecido em Deuteronômio e realizado pelos
profetas assume a importância da escolha humana. No Novo Testamento, o apelo à
escolha humana é evidente nas narrativas (por exemplo, Jo 20:30-31). E nas cartas do
Novo Testamento, a exortação, ou parênese, é proeminente, com constantes apelos à
escolha humana. O Novo Testamento apresenta os tópicos de eleição e predestinação
sem comunicar qualquer contradição com a suposição onipresente: os seres humanos
possuem a capacidade dada por Deus de exercer escolha e fé e esses compromissos são
importantes.
O Propósito da Revelação Divina Sobre Eleição e Predestinação
O propósito de Deus em comunicar as verdades da eleição e predestinação se alinha
com Seu caráter – Ele pretende encorajar e elevar. Para usar Efésios 1:3-14 como
exemplo, os leitores contemporâneos devem se colocar no lugar dos ouvintes de Paulo
ao considerarem as ideias de eleição e predestinação. Não adianta abordar a passagem
do ponto de vista do individualismo e da autodeterminação, que são tão valorizada nas
sociedades democráticas modernas. Os leitores de Paulo, arraigados como estão no
primeiro século, teriam ouvido essas palavras de uma mentalidade muito diferente da
dos indivíduos contemporâneos. Eles não tinham noção de que poderiam decidir seu
próprio destino ou sorte. Em vez disso, eles acreditavam que, pelo poder das estrelas e
planetas, seus destinos já haviam sido fixados.36

34
Marshall estende este pensamento: “Uma solução para o problema da predestinação deve fazer justiça
à maneira como a Bíblia fala de Deus como alguém que coloca sua vontade contra a nossa e age como
outra pessoa, e não como um ser que não entra em relações com suas criaturas, mas simplesmente as
trata como objetos inconscientes de sua vontade secreta”, Grace Unlimited, 139.
35
“Deus quer que o ímpio abandone sua maldade e viva; ele não tem prazer na morte do pecador, e essa
é sua última palavra sobre o assunto. Não temos o direito de ir além das Escrituras e afirmar que ele
determina o contrário no conselho secreto de seu coração. Ele não deseja que nenhum pereça, mas que
todos cheguem ao conhecimento da verdade e sejam salvos (1Tm 2:4). “Quem quiser, tome de graça da
água da vida” (Ap 22:17). Essa é a palavra final de Deus sobre o assunto”, ibid., 141-142.
36
Ralph P. Martin resume a mentalidade do primeiro século desta forma: “A astrologia oriental e o
ocultismo... com [sua]... religião astral acompanhante e fatalismo dominante, assombraram como um
pesadelo a alma das pessoas do primeiro século. O vácuo (causado pela desilusão com o colapso dos
deuses homéricos que eram como homens e mulheres ampliados no Monte Olimpo) foi rapidamente
preenchido com uma capitulação abrangente ao acaso que todas as coisas eram governadas pelo
'destino'. A conjunção particular das estrelas ou planetas sob os quais as pessoas nasceram foi de
importância decisiva e estabeleceu irremediavelmente seu destino", Ephesians, Colossians, and Philemon,
Interpretation (Atlanta: John Knox, 1991) , 91.

77
Então, quando essas pessoas do primeiro século ouvem o Evangelho – que Deus
escolheu seu destino ao oferecer-lhes a salvação por meio de Jesus Cristo – isso vem
como uma notícia muito boa. Suas vidas não estão nas mãos do acaso e do destino; seus
destinos não são determinados pelos poderes astrais. Em vez disso, Deus lhes oferece a
vida eterna por meio de Jesus Cristo que, acima de qualquer poder concorrente, agora
é o Senhor de suas vidas. Em vez disso, Deus “escolheu” ou “predeterminou” outro
destino, para que sejam “santos e irrepreensíveis diante dele” (v. 4) e possam ser para
sempre Seus filhos e filhas “por meio de Jesus Cristo” (vv. 5-6). Este anúncio da
“predestinação” de Deus foi certamente uma boa notícia para aqueles que estiveram
sob a escravidão da religião astral. Eles saberiam com certeza que suas vidas haviam
sido destinadas pelos poderes astrais. Que suas vidas estavam destinadas não era a
inovação oferecida por Paulo em Efésios, mas por quem e com que finalidade.
Colocar-se no lugar dos primeiros leitores da Epístola aos Efésios é ouvir a passagem
como a boa notícia de que era e é. Ler a passagem como ensinando que os destinos
individuais dos seres humanos são, antes da criação do mundo e à parte de qualquer
elemento de escolha humana, para sempre fixados é transformar sua mensagem em
más notícias. E fazer isso comunica aos crentes o tipo de mensagem triste, fatalista e
determinista transmitida às pessoas do primeiro século através da visão de mundo da
religião astral.
As Limitações do Conhecimento Humano
Ao ponderar os temas da eleição e predestinação, os crentes muitas vezes se
encontram nos limites externos do conhecimento humano, mesmo quando auxiliados
pela revelação divina (1Co 2:10-16): “As afirmações da predestinação pertencem
àquelas dimensões últimas da vida nos limites externos extremos do que os humanos
podem perceber e falar. Os humanos entram nesses limites externos por permissão, por
assim dizer, onde a fé se mistura com o mistério”37 Portanto, não é surpresa que alguns
se movam além do que é verdadeiramente acessível à humanidade, criando distinções
e construções escolásticas de deuses “pré-saber” e “pré-ordenar” que são
problemáticos.38 Muitos interpretaram tais termos como se referindo a deuses
prevendo a fé dos crentes (praevisa fides), como a base de sua predestinação para a
salvação. Mas quem pode alegar entender a ordem das decisões divinas no conselho
eterno de Deus? Em vista das verdades da eleição e predestinação, Paulo exclamou:
“Quão insondáveis são os seus juízos e quão inescrutáveis são os seus caminhos! 'Pois
quem conheceu a mente do Senhor, ou quem foi seu conselheiro?'” (Rm 11:33-34). Em
outros lugares, Paulo ficou impressionado ao perceber que o amor eletivo de Deus já
existia antes que alguém O amasse (Ef 1:4; 2:4-5; cf. 1Jo 4:19). Por que Deus amou a
humanidade de antemão não pode ser explicado por um simples decreto da vontade
soberana de Deus. Deus nos escolheu de antemão em Seu amor insondável e
misericordioso. Da perspectiva da eleição e predestinação divinas, os crentes não

37
Alsup, “Predestination,” in Harpercollins Bible Dictionary, 878.
38
Para exemplo, M. J. Ericksons priority of predestination, Christian Theology (Grand Rapids, MI: Baker,
1985), 926.

78
permanecem como crentes, mas como pecadores e inimigos de Deus (veja Rm 5:6, 8,
10). Desejar ser mais específico sobre qualquer fundamento para o amor redentor de
Deus parece “ir além do que está escrito” (1Co 4:6). Ao afirmar tanto a presciência de
Deus quanto a liberdade de escolha humana auxiliada pelo Espírito, há espaço para
mistério, admiração e uma humilde admissão dos limites do conhecimento humano.39
Esses elementos – o cenário temático do grande conflito; a trajetória da graça de
Deus evidenciada tanto no Antigo quanto no Novo Testamento; que Deus oferece
salvação a todos; a importância da escolha humana; o propósito positivo da revelação
divina concernente à eleição e predestinação; e um reconhecimento dos limites da
linguagem humana – fornecem a estrutura dentro da qual os crentes lidam com a
revelação de Deus sobre os temas da eleição e predestinação.

39
Thomas R. Schreiner também reconhece os limites do conhecimento humano (“Há momentos em que
a Escritura afirma fortemente duas realidades que não podem ser resolvidas logicamente por nós”), e
argumenta que o mistério deve ser localizado entre a ideia de que Deus “elege indivíduos e grupos para
a salvação, e ele determina quem exercerá fé” e o pensamento de que “aqueles que não exercem fé são
responsáveis e deveriam tê-lo feito”, “Romanos 9 ensina a eleição individual para a salvação?” Journal of
the Evangelical Theological Society, 39. Concordamos com o princípio de que o conhecimento humano
tem limites e atinge seus limites ao contemplar alguns aspectos da eleição e predestinação. No entanto,
localizaríamos o mistério entre o pensamento de que Deus permite a liberdade de escolha e a ideia de
que Deus sabe quem exercerá a fé sem interferir na autenticidade dessa escolha.

79
SEÇÃO 2
O PROBLEMA DO PECADO: OS HUMANOS NASCEM
PRECISANDO DE UM SALVADOR?

Todos os cristãos que creem na Bíblia tendem a concordar que a queda dos
primeiros humanos, conforme descrito nos primeiros capítulos do livro de Gênesis,
deixou efeitos duradouros sobre a humanidade. Embora a realidade do impacto do
pecado original sobre a humanidade raramente tenha sido negada, sua extensão tem
sido muito debatida ao longo da história da igreja. As perguntas permanecem até hoje:
a queda do primeiro casal deixou sua posteridade apenas com os efeitos físicos de seu
pecado, ou o dano se estendeu à sua natureza espiritual? A natureza humana foi afetada
a ponto de os indivíduos se tornarem incapazes de responder à oferta de salvação de
Deus, ou eles têm livre arbítrio inalterado, muito parecido com os próprios Adão e Eva
antes da Queda? Até que ponto os filhos de Adão e Eva são capazes de cooperar com
Deus no processo de salvação? Sua natureza humana ficou tão danificada pelo pecado
que a humanidade não é mais capaz de cooperar, forçando Deus a agir sozinho no
processo de salvação? Na base de todas essas perguntas está a indagação de todas as
épocas: O que é o pecado?
Os problemas relativos ao pecado ocuparam as mentes dos pensadores cristãos ao
longo dos séculos e continuam a fazê-lo no século XXI. Respostas bíblicas claras para
perguntas relacionadas ao pecado são cruciais, pois têm implicações poderosas para a
doutrina bíblica da salvação. Um erro na compreensão do pecado e seu impacto sobre
a natureza humana pode resultar em uma compreensão errônea da natureza de Deus e
da maneira como Ele salva a humanidade.
Nesta seção, os autores tentam lidar com o problema do pecado e sua natureza. O
primeiro capítulo, de autoria de Darius Jankiewicz, fornece uma breve história das visões
cristãs sobre o pecado e seu impacto sobre a humanidade.
O segundo capítulo, escrito por jiri Moskala, apresenta uma anatomia do pecado
conforme encontrada em Gênesis 3. No terceiro capítulo, Roy Adams fornece uma
discussão aprofundada da natureza e complexidade do pecado conforme apresentado
na Bíblia. Finalmente, no último capítulo desta seção, George Knight trata da natureza
humana no contexto do pecado.

80
CAPÍTULO 5
O PECADO E A NATUREZA HUMANA: CONTEXTO
HISTÓRICO
Darius W. Jankiewicz

O livro de Gênesis começa com o relato da Criação e uma breve declaração que
resume a obra de Deus: “Deus viu tudo o que havia feito, e era muito bom” (Gn 1:31).1
Incluída nisso estava a criação de Adão e Eva como seres morais perfeitos e livres que
deveriam governar a Criação. Posteriormente, por meio das ações do primeiro casal, o
pecado entrou no mundo humano e mudou a dinâmica do relacionamento de Deus com
a humanidade. De maneira misteriosa e inexplicável, a entrada do pecado também
afetou o funcionamento interno da natureza humana. Enquanto o relato da Criação
encontrado em Gênesis apresenta os seres humanos como a coroa e o clímax da Criação,
revestidos de glória e possuindo liberdade de escolha, as narrativas subsequentes do
Antigo e do Novo Testamento descrevem a humanidade como aparentemente incapaz
de mudar sua natureza afetada pelo pecado e desesperadamente necessitada de
salvação. Embora reconheçam a liberdade humana, os escritores do Antigo Testamento
veem os humanos como atolados no pecado em suas várias formas e incapazes de se
libertar.2 Assim Davi escreve: “Certamente fui pecador ao nascer” (Sl 51:5) e “Até o
ímpio desde o nascimento se extravia; desde o ventre são rebeldes, espalhando
mentiras” (Sl 58:3); Isaías lamenta: “todo o teu coração [está] aflito” (1:5); e Jeremias
responde: “Pode o etíope mudar sua pele ou um leopardo suas manchas?. . . . Enganoso
é o coração, mais do que todas as coisas e incurável” (13:23; 17:9). No meio do oceano
do pecado humano, Deus é apresentado como o único Salvador da humanidade (Is
43:11;45:21).
O Novo Testamento também apresenta uma visão bastante obscura da natureza
humana, ao mesmo tempo em que reconhece a possibilidade de uma genuína liberdade
de escolha. No livro de Romanos, por exemplo, o apóstolo Paulo é enfático quando
descreve o estado pecaminoso de todos os seres humanos (3-8); por causa do pecado
de um homem, todos pecaram, estão sujeitos à morte e precisam de arrependimento
(5:12-6:4). Em Efésios 2:3 ele se refere à humanidade como sendo “por natureza
merecedora da ira”. Da mesma forma, os apóstolos João e Tiago se desesperam com o
estado da humanidade. Em 1 João 1:8, 10, João declara isso a seus leitores: “Se
afirmamos estar sem pecado, enganamo-nos a nós mesmos e a verdade não está em

1
A menos que indicado de outra forma, todas as citações das Escrituras são retiradas de THE HOLY BIBLE,
NEW INTERNATIONAL VERSION®, NIV® Copyright © 1973,1978, 1984, 2011 por Biblica, Inc.® Usado com
permissão. Todos os direitos reservados no mundo inteiro.
2
Para um excelente tratado sobre o pecado e a variedade de maneiras pelas quais ele afeta a humanidade,
veja John M. Fowler, “Sin”, em Handbook of Seventh-day Adventist Theology, ed. Raoul Dederen
(Hagerstown: Review and Herald, 2000), 244-255.

81
nós” e novamente “Se afirmamos que não pecamos, fazemos dele ser mentiroso e sua
palavra não tem lugar em nossas vidas”. Tiago concorda que: “Todos nós tropeçamos
de muitas maneiras” (3:2). Falando da natureza humana corrompida, ele coloca a culpa
simbólica na língua humana: “Nenhum ser humano pode domar a língua. É um mal
inquieto, cheio de veneno mortal” (3:8). Ao mesmo tempo, como os profetas do Antigo
Testamento, os escritores do Novo Testamento proclamam Deus, Jesus Cristo, como o
único Salvador da humanidade (At 4:12; 1Tm 2:5; 4:10). Apesar de uma avaliação tão
sombria da natureza humana, muito do Novo Testamento parece afirmar a existência
de uma liberdade de escolha humana dotada de graça (por exemplo, At 17:30; Rm
6:16).3
Embora as Escrituras apresentem claramente o estado miserável da humanidade e
sua necessidade desesperada da graça do Salvador, elas não incluem uma explicação
sistemática do pecado e sua natureza. Além disso, os autores inspirados não fornecem
explicações teológicas para questões como: Qual foi o impacto do pecado de Adão (o
pecado humano original) na natureza humana? Quais são os mecanismos internos de
sua aparente transmissão de pai para filho, por incontáveis gerações da humanidade?
As ações pecaminosas são o resultado de uma escolha moral livre de uma vontade
humana intocada, ou são o resultado de uma perversão profunda da natureza humana?
Quando nascem, os humanos são inocentes e bons, ou são, por natureza, maus e
depravados?
Diante de vários ensinamentos heréticos, o cristianismo pós-apostólico assumiu a
tarefa de esclarecer essas questões, resultando em muitas perspectivas, muitas vezes
contraditórias. Ao longo dos séculos, os entendimentos cristãos do impacto do pecado
original sobre a natureza humana e o nível da graça de Deus necessário para resgatar os
pecadores tendiam a oscilar entre dois extremos de uma antropologia alta (otimista) e
baixa (pessimista); o primeiro significou um impacto mínimo do pecado adâmico sobre
a natureza humana e a existência de um livre-arbítrio humano relativamente intocado,
e o último representou um impacto significativo sobre a natureza humana, tornando-a
incapaz de escolher o bem.
O propósito deste capítulo é apresentar brevemente as interpretações cristãs sobre
o pecado original e sua influência sobre a natureza humana. As questões antropológicas
que têm perturbado os pensadores cristãos ao longo dos séculos também estão no
centro da compreensão adventista do sétimo dia sobre pecado, expiação e salvação.
Uma revisão histórica desses desenvolvimentos pode, portanto, ser útil para fornecer
um contexto para as atuais discussões adventistas sobre salvação.
CONSIDERAÇÕES DE SÉCULOS ANTERIORES SOBRE O PECADO ORIGINAL E DA
NATUREZA HUMANA
A discussão sobre a natureza do pecado original e seu impacto na natureza humana
não começou a sério até o início do século V e é conhecida hoje como a controvérsia

3
Há algumas passagens que parecem negar esta afirmação. Veja, por exemplo, Romanos 9:11 ou 2
Timóteo 1:9. Passagens como essas são tratadas em outras partes deste livro.

82
pelagiana.4 Esse debate foi significativamente influenciado por uma lenta redescoberta
da plena divindade de Cristo durante o período pré e pós-niceano e uma compreensão
crescente de Seu papel no processo de salvação. Tudo isso não significa, porém, que os
escritores cristãos pré-niceanos não tivessem nada a dizer sobre o pecado e seu impacto
na natureza humana.
As referências ao pecado de Adão e sua relação com a natureza humana não
aparecem com destaque nos escritos dos primeiros escritores cristãos pós-apostólicos,
conhecidos como Pais Apostólicos, embora a maioria reconheça a universalidade do
pecado.5 Esse grupo de escritores parecia estar mais preocupado com a vida moral dos
crentes do que com o desenvolvimento de sistemas teológicos coerentes.6 Nos escritos
de autores como Clemente de Roma e Inácio de Antioquia e no primeiro Catecismo
Cristão, Didache, portanto, encontramos poucas alusões ao pecado, e nenhuma a sua
origem e influência sobre a natureza humana.7 Em geral, no entanto, pode-se afirmar
que por causa de suas ênfases moralistas dirigidas aos crentes cristãos, os Pais
Apostólicos pareciam ter uma visão otimista da natureza humana e suas habilidades
naturais. Bernhard Lohse comentou assim que “a convicção geralmente predominante
entre os primeiros pais é que o homem está equipado com um livre arbítrio e que
nenhum pecado pode efetivamente impedi-lo de decidir pelo bem e evitar o mal”.8 Essa
compreensão do pecado, observa J. N. D. Kelly, decididamente enfraqueceu a ideia de
expiação tão prevalente no Novo Testamento.9
Um grupo mais sofisticado de teólogos, conhecido como Apologistas, surgiu
durante a segunda parte do século II e se preocupou com a defesa do cristianismo e uma
luta contra vários ensinamentos heréticos da época.10 É em seus escritos que um
começa a testemunhar o surgimento gradual de várias teorias sobre o pecado e seu
impacto sobre a humanidade. Em geral, no entanto, pode-se afirmar que os Apologistas
parecem seguir os passos dos Pais Apostólicos em seu otimismo em relação à influência
do pecado sobre a natureza humana e a capacidade da humanidade de contribuir para
o processo de salvação. Justino Mártir (d. ca. 165) é provavelmente o primeiro pensador
cristão a falar do problema universal do pecado. Ele assim ensinou que enquanto a raça
humana se encontrava sob a maldição do pecado, essa maldição não era nada além de

4
Partes do que se segue já foram impressas. Veja Darius e Edyta Jankiewicz, “Let the Little Children Come:
Toward a Seventh-day Adventist Theology of Childhood,” Andrews University Seminary Studies 49 (2011):
213-242.
5
Os Pais Apostólicos é o nome dado aos autores que escreveram imediatamente após o período do Novo
Testamento e incluem Clemente de Roma, Inácio, Hermas, Policarpo, Papias e os autores da Epístola de
Barnabé, 2 Clemente e Didache. Para mais informações sobre este tópico, ver The Oxford Dictionary of
the Christian Church (1997), s.v. “Apostolic Fathers”
6
Bernhard Lohse, A Short History of Christian Doctrine (Philadelphia: Fortress Press, 1966), 102
7
The Oxford Dictionary of the Christian Church (1997), s.v. “Original Sin”; Thomas A. Smith, “Original Sin,”
The HarperCollins Encyclopedia of Catholicism (1995), 943.
8
Lohse, A Short History of Christian Doctrine, 104.
9
“Embora convencidos de que Cristo morreu por nós... eles atribuem um lugar relativamente menor ao
valor expiatório da morte [de Cristo]”, J. N. D. Kelly, Early Christian Doctrines (New York: Harper and
Brothers, 1960), 165.
10
Esses teólogos floresceram em todo o Império Romano entre c. 140 e c. 250 d.C.

83
uma morte física. "A raça humana . . . de Adão caiu sob o poder da morte.”11 Embora os
humanos lutem contra tendências malignas,12 estas aparentemente eram o resultado
da ação demoníaca e o mau exemplo de outras pessoas.13 Tendo afirmado a existência
do livre-arbítrio humano, Justino acreditava que a obediência a lei de Deus forneceu o
remédio universal para o pecado.14 O contemporâneo de Justino, Teófilo de Antioquia
(d. ca. 181), acreditava que os seres humanos foram originalmente criados neutros,
embora em um estado inacabado, com capacidade tanto para mortalidade quanto para
imortalidade. Tornar-se imortal dependia da capacidade do indivíduo de permanecer
obediente aos mandamentos de Deus. Desde o primeiro pecado, o ser humano está
sujeito ao poder debilitante do espírito maligno, que deve vencer pelo exercício de sua
vontade.15
Os escritos de Irineu de Lyon (m. ca. 202), que eventualmente se tornaram
normativos para a teologia cristã primitiva, representam a primeira discussão teológica
sobre o pecado e sua natureza. Irineu parece ser o primeiro dos primeiros teólogos a
desenvolver a incipiente doutrina do pecado original.16 Assim como seus predecessores,
no entanto, ele continuou a aderir a uma antropologia fortemente otimista. Como
Teófilo, Irineu acreditava que Deus criou os seres humanos com a capacidade de
alcançar a perfeição por meio da obediência. Eles foram criados à imagem de Deus, ele
acreditava, mas não à Sua semelhança. Adão e Eva tiveram a chance de alcançar a rica
plenitude da perfeição no Jardim do Éden. No entanto, por sua desobediência, eles
perderam a oportunidade original17 e a morte veio ao mundo “como um ato de
misericórdia para com Adão e Eva, especialmente em vista de sua imaturidade e
inexperiência, e para evitar que permaneçam para sempre adolescentes
desobedientes”.18 No entanto, nem tudo estava perdido, pois através de sua obediência
e apesar da presença do pecado no mundo, Deus poderia continuar trabalhando com os
seres humanos e levá-los ao estado de perfeição originalmente projetado para a
humanidade.19 Tudo o que eles precisavam fazer era sejam obedientes a Deus por um
dia e poderão se tornar incorruptíveis novamente.20 O pecado, nos escritos de Irineu, é
assim entendido como desobediência. A natureza pecaminosa é o estado de
imaturidade, agravado pelo pecado do primeiro casal, e que é transmitido à sua
posteridade. Coube a quem acompanhou Irineu explicar a mecânica dessa transmissão,
já que ele não aborda o assunto. O objetivo final do plano de salvação é a restauração
dos seres humanos, que, embora continuem como criaturas, podem eventualmente

11
Justin Martyr, Dialogue with Trypho 95, 88, ANF 1:247, 243; cf. Linwood Urban, A Short History of
Christian Thought (New York: Oxford University Press, 1995), 137-138.
12
Justin Martyr, First Apology 10, ANF 1:165-166.
13
Justin Martyr, Second Apology 5; First Apology 61, ANF 1:190,183.
14
Justin Martyr, Dialogue with Trypho 88, 95, 116, 124, 134, ANF 1:243, 247, 257, 262, 267.
15
Ride Rogers, Theophilus of Antioch: The Life and Thought of a Second-Century Bishop (Lanham:
Lexington Books, 2000), 44.
16
Irenaeus, Against Heresies 3.23; 4.37, ANF 1:455-458, 518-521.
17
Irenaeus, Against Heresies 3.38, ANF 1:521.
18
Denis Minns, Irenaeus (Washington, DC: Georgetown University Press* 1994), 65.
19
Irenaeus, Against Heresies 4.39, ANF 1:522-523; cf., Minns, Irenaeus, 63-64.
20
Ibid., 3.20, ANF 1:450.

84
participar da glória de Deus por meio de sua obediência.21 O Cristo encarnado serve
como modelo da perfeição final que pode ser alcançada pela raça humana. 22 “Através
de Seu amor transcendente”, escreve Irineu, “[Cristo se tornou] o que somos, para que
Ele possa nos trazer a ser o que Ele mesmo é.”23
Enquanto Irineu foi o primeiro a especular sobre o pecado e sua natureza, foi seu
contemporâneo mais jovem, Tertuliano (ca. 160 - ca. 225), que foi o primeiro pensador
cristão a desenvolver a noção do que mais tarde foi designado como pecado original. 24
Acreditando que a alma é transferida de humano para humano pelo ato de procriação
física,25 ele ensinou que quando Adão caiu, todos humanos caíram com ele. A alma era
pecadora, portanto, simplesmente porque estava relacionada ao seu primeiro “broto”,
Adão. Por meio de seu pecado, a raça humana, portanto, foi infectada não apenas com
seu resultado, a morte, mas sua natureza caída tornou-se parte de sua posteridade.26
Tal compreensão da situação humana, no entanto, não impediu Tertuliano de também
enfatizar fortemente a liberdade total da vontade27 e a capacidade do homem de se
libertar do pecado pela obediência, obras de auto-humilhação, ascetismo e até martírio.
Uma vez que Deus estivesse satisfeito com a auto-humilhação humana, Ele então
infundiria a alma do ofensor com Sua graça recriadora.28
Os pensadores cristãos orientais do início do século III, Clemente de Alexandria e
Orígenes, não compartilhavam da visão de Tertuliano de que toda a raça humana estava
presente em Adão quando ele pecou.29 Concordavam, porém, com a pecaminosidade
universal da humanidade, que atribuíam à má influência dos pais sobre os filhos, e não
a qualquer fraqueza herdada. Adão, eles acreditavam, foi criado à imagem de Deus, mas
não à Sua semelhança (ou seja, em um estado de perfectibilidade). Deus criou Adão com
a capacidade de pecar e Adão escolheu esse caminho. Como resultado, ele ficou sob a
influência de Satanás e ficou sujeito à morte e à corrupção.30 Isso, porém, não se
estendeu ao livre-arbítrio de Adão, mas afetou apenas seu intelecto. Através do

21
Minns, Irenaeus, 62-66.
22
Matthew Craig Steenberg, Irenaeus on Creation: The Cosmic Christ and the Saga of Redemption (Leiden:
Brill, 2008), 9.
23
Irenaeus, Against Heresies 5, ANF 1:526; Irenaeus, Against Heresies 4.38, ANF 1:521-522; cf. R. A. Norris,
God and World in Early Christian Theology (New York: The Seabury Press, 1965), 94; Kelly, Early Christian
Doctrines, 172-174; Otto W. Heiclc, A History of Christian Thought, vol. 1 (Philadelphia: Fortress Press,
1965), 109.
24
J. L. Neve, A History of Christian Thought (Philadelphia: Fortress Press, 1946), 139.
25
Essa visão também é conhecida como Traducianismo (do latim tradux, que significa “brotar” ou
“germinar”), uma teoria que remonta diretamente a Tertuliano. Para mais informações sobre este tópico,
veja The Oxford Dictionary of the Christian Church (1997), s.v., “Traducianism”.
26
Neve, History of Christian Thought, 139.
27
De fato, como observa James Morgan, Tertuliano foi responsável por cunhar o termo latino para “livre-
arbítrio”, The Importance of Tertullian on the Development of Christian Dogma (Londres: K. Paxil, Trench,
Trubner, 1928), 52.
28
Neve, História do Pensamento Cristão, 140.
29
Deve-se notar que, embora Clemente e Orígenes diferissem nos detalhes de suas visões antropológicas,
eles estavam, em substância, de acordo. Seus pontos de vista podem, assim, ser apresentados em
conjunto.
30
Louis Berkhof, The History of Christian Doctrines (Edinburgh: The Banner of Truth Trust, 1937), 128-129.

85
exercício de seu livre arbítrio sem ajuda, os humanos poderiam optar por embarcar em
um caminho de salvação conhecido como theosis, ou divinização.31 Dentro desse
contexto, deve-se notar que, como seus antecessores, Clemente e Orígenes eram
subordinacionistas32 e acreditavam que Jesus Cristo fornecia o caminho mais claro para
os humanos alcançarem um estado de perfeita unificação com o divino.33
Não foi até o século III, no contexto do debate sobre o batismo infantil, que os
pensadores cristãos começaram a prestar mais atenção à antropologia humana e à
forma como o pecado é passado de humano para humano. Embora a prática do batismo
infantil ainda fosse divisiva e objeto de debate no século II, os pensadores do século III
parecem aceitar a prática como mais ou menos universal.34 A primeira referência
inequívoca ao batismo infantil apareceu no século III em escritos atribuídos a Hipólito
(d. ca. 235).35 Os pensadores de décadas posteriores começam a prescrever a prática
universalmente. Cipriano (d. ca. 258), por exemplo, apoiava o batismo infantil,
argumentando que, embora as crianças não fossem culpadas de seu próprio pecado,
elas “nasceram segundo a carne segundo Adão” e, portanto, precisavam de remissão
para “ os pecados dos outros.”36 As visões de Cipriano constituem a base sobre a qual
Agostinho, um dos mais importantes pais da igreja primitiva, desenvolveu suas visões

31
Clemente, The Stromata 6.9, 14, ANF 2:497, 506. Clemente foi um dos primeiros teólogos cristãos a
usar o termo theopoieo, “ser feito como Deus”. Esse termo está intimamente associado ao conceito de
theosis (geralmente traduzido como “divinização”, “deificação”, “ser feito divino”), que se tornou a marca
registrada da teologia cristã oriental pré-niceana. G. W. Butterworth observa que, embora existam
pequenas diferenças entre os primeiros teólogos cristãos que escreveram em grego, todos (e isso inclui
Orígenes) estão essencialmente de acordo com os pontos de vista de Clemente sobre a deificação, “The
Deification of Man in Clement of Alexandria”, JTS 17 (1916). ): 162; cf. Eric Osborn, Clement of Alexandria
(Cambridge: Cambridge University Press, 2005), 234-235; cf. Origen, Against Celsus 3.28.41, ANF 4:475,
480.
32
Embora o subordinacionismo cristão primitivo se manifestasse de várias formas, o tema subjacente
comum era que o Filho e o Espírito Santo estão subordinados ao Pai. De acordo com vários pensadores, o
Filho e o Espírito Santo foram criados ou gerados em algum ponto da eternidade passada, ou gerados
eternamente, como nos ensinamentos de Clemente e Orígenes. Como já documentei em outro lugar,
qualquer forma de subordinacionismo na história muitas vezes levou a visões soteriológicas aberrantes
onde a salvação é vista em termos legalistas e até perfeccionistas. O subordinacionismo e especialmente
a doutrina da geração eterna têm fortes raízes na filosofia pagã grega. Veja Darius Jankiewicz, “Lessons
from Alexandria: The Trinity, The Soteriological Problem, and the Rise of Modern Adventist Anti-
Trinitarianism,” Andrews University Seminary Studies 50 (2012): 5-24.
33
Origen, Against Celsus 3.28, ANF 4:475.
34
No segundo século, por exemplo, Tertuliano defendeu um “atraso do batismo”. “Por que o período
inocente da vida se apressa para a remissão dos pecados?” ele perguntou. As crianças, ele acreditava,
devem saber o que estão pedindo no que diz respeito à salvação. “Que eles saibam como pedir a
salvação, para que você pareça (pelo menos) ter dado ‘aquele que pede’”, Tertuliano, On Baptism 18,
ANF 3:678.
35
“E batizarão primeiro as criancinhas. E se eles podem responder por si mesmos, que respondam. Mas
se não puderem, que respondam seus pais ou alguém de sua família”, Hippolytus, The Apostolic Tradition
21.4, ed. Gregory Dix (London: SPCK, 1968), 33
36
Cyprian, Epistle 58.5, ANF 5:353-354.

86
sobre as crianças e o pecado original, que se tornou um divisor de águas para a
compreensão cristã da natureza dos seres humanos.37
Em resumo, parece que, em sua maioria, os primeiros pensadores pós-apostólicos
aderiram a uma antropologia bastante otimista.38 Todos eles afirmavam fortemente a
liberdade humana que, embora enfraquecida pelo pecado, era forte o suficiente, com a
ajuda da graça de Deus, para levantar o ser humano da degradação do pecado. De
acordo com muitos, “liberdade e graça [ficaram] lado a lado na produção dos atos de
bondade; ou mais corretamente, o livre-arbítrio do homem começa e a graça segue de
maneira suplementar... A fé é obra do próprio homem”.39 Não é de surpreender,
portanto, que, nas palavras de Berhnard Lohses, seus escritos fossem caracterizados por
“um moralismo confirmado que realmente não passava de uma pura justiça pelas
obras”.40
A CONTROVÉRSIA PELAGIANA
A controvérsia do século V entre Pelágio (ca. 390-418 d.C.)41 e Agostinho (354-430
d.C.) é a discussão inicial mais importante sobre a antropologia cristã e o primeiro
esforço sistemático para resolver as questões relacionadas ao pecado original, seu
impacto sobre a natureza humana e a forma como ela é transmitida. As visões desses
dois pensadores42 constituem dois extremos opostos que criaram a estrutura dentro da
qual todas as futuras controvérsias teológicas relacionadas ao pecado e sua influência
foram combatidas.
Pelágio era um asceta cristão que, como muitos dos pensadores cristãos dos séculos
II e III, mantinha uma visão altamente otimista da natureza humana. Pelágio vai além

37
Brinley Roderick Rees, Pelagius: Life and Letters (Rochester: The Boydell Press, 1991), 58; cf. Alister E.
McGrath, Christian Theology (Oxford: Blackwell, 2007), 18-19.
38
Os estudiosos geralmente concordam que a presença de uma antropologia tão otimista nesses
primeiros escritos cristãos pode ser atribuída à oposição de seus autores ao fatalismo gnóstico. Heiclc,
História do Pensamento Cristão, vol. 1.191; Neve, History of Christian Thought, 137. Com base em meu
estudo, acrescentaria mais duas razões. Primeiro, a influência de várias filosofias gregas, a maioria das
quais (com a notável exceção do estoicismo) defendia uma visão otimista da natureza humana; segundo,
a incapacidade desses primeiros pensadores cristãos de chegar a um acordo com a plena divindade de
Cristo. Como observado anteriormente, todos eram subordinacionistas e incapazes de reconciliar os
relacionamentos dentro da Trindade se Jesus fosse considerado totalmente divino e co-igual a Deus Pai.
Somente durante o século IV a igreja começou a aceitar a divindade plena e co-igual de Cristo e as
implicações de tal visão sobre a salvação humana. Veja o meu “Lessons from Alexandria.”
39
Heick, History of Christian Thought, vol. 1,193-194.
40
Lohse, Short History of Christian Doctrine, 102.
41
Supõe-se que Pelágio foi um monge britânico que veio a Roma por volta de 405 dC e depois se mudou
para Cartago por volta de 411 dC, onde conheceu Agostinho.
42
Deve-se notar neste ponto que muito pouco se sabe sobre Pelágio e sua vida e nenhum de seus escritos
sobreviveu. Suas opiniões, no entanto, podem ser obtidas dos escritos de outros, mais importante,
Agostinho e Juliano de Aeclanum (c. 386-c. 455), este último eventualmente se tornando conhecido como
o “arquiteto do dogma pelagiano”. Por esta razão, é impossível reconstruir as crenças reais do próprio
Pelágio. Ao usar o nome “Pelágio”, portanto, me refiro a uma posição teológica e não ao que o homem
Pelágio realmente acreditava. Para uma discussão detalhada, Jairzinho Lopes Pereira, Augustine of Hippo
and Martin Luther on Original Sin and Justification of the Sinner (Bristol: Vandenhoeck & Ruprecht, 2013),
129-140.

87
dos primeiros cristãos ao afirmar que a pessoa humana era essencialmente boa e dotada
de um livre arbítrio indeterminado. Nada que pudesse ser classificado como uma
natureza pecaminosa ou uma tendência ao pecado foi passado de Adão para seus filhos.
Como tal, uma pessoa foi dotada da capacidade de escolher entre pecar e não pecar
igualmente. O pecado é a escolha pessoal de uma pessoa ao invés de algo passado de
geração em geração. As pessoas se tornam pecadoras seguindo o mau exemplo dado
por seus pais e amigos e por métodos educacionais errados. Pelágio parece ter
acreditado que, uma vez que as pessoas nascem sem pecado, elas podem
eventualmente retornar ao estado de impecabilidade se assim o desejarem. Deus, em
Sua misericórdia e graça, forneceu à humanidade um conjunto de diretrizes, os Dez
Mandamentos, que todo ser humano é capaz de obedecer perfeitamente. Eles também
têm o exemplo da perfeita obediência de Cristo, conforme testemunhado pelo Novo
Testamento. E o próprio fato de que Deus espera obediência é uma prova positiva de
que os humanos são capazes de obedecer perfeitamente aos mandamentos de Deus.
Deus, assim, fez todo o possível para mostrar aos humanos o caminho correto da vida.
A possibilidade da perfeição humana foi, de acordo com Pelágio, sugerida nas palavras
de Jesus: “Sede perfeitos, pois, como vosso Pai celestial é perfeito” (Mt 5:48). Nesse
sistema de pensamento, a salvação de uma pessoa era, em sua totalidade, dependente
de sua obediência aos mandamentos de Deus.43 É por isso que, para as gerações
subsequentes de cristãos, o pelagianismo tornou-se sinônimo de salvação pelas obras.
Essa suposição fundamental de que os seres humanos são essencialmente bons e
desembaraçados em sua escolha pelo bem acabou despertando a ira de Agostinho, que
empurrou a antropologia cristã para o extremo oposto.
Enquanto, antes de seu envolvimento com Pelágio, Agostinho parecia afirmar a
inocência das crianças,44 mais tarde em sua vida, depois de refletir sobre sua própria
infância e em resposta a Pelágio, ele rejeitou firmemente qualquer forma de inocência
inata de seres humanos recém-nascidos. Contra o argumento de Pelágio de que as
crianças nasceram no mesmo estado que Adão antes da queda, possuindo assim o livre
arbítrio perfeito, e que o pecado foi o resultado de formar o hábito de pecar como
resultado de “maus exemplos” de indivíduos pecadores, como os pais,45 Agostinho
argumentou que “o pecado de Adão foi o pecado de toda a raça humana”.46 Toda a raça
humana é, portanto, massa damnata (uma multidão condenada), com suas naturezas
completamente depravadas e incapazes de fazer qualquer bem ou responder à oferta
de salvação de Deus; o livre arbítrio é assim negado por Agostinho. Desta raça
amaldiçoada pelo pecado, Deus escolhe alguns indivíduos para a salvação. Este é um ato

43
Berkhof, History of Christian Doctrines, 132-133; Justo L. Gonzalez, A History of Christian Thought, vol.
2 (Nashville: Abingdon Press, 1987), 29-32. Veja também Pelagius, quoted in Augustine’s De gratia Christi,
in Henry Bettenson, Documents of the Christian Church (Oxford: Oxford University Press, 2011), 56.
47. Richard P. McBrien, Catolicismo (Nova York: HarperCollins Publishers, 1994), 187.
44
Em seu tratado Sobre a liberdade da vontade, por exemplo, e com referência às crianças “mortas por
Herodes”, ele sugeriu que, mesmo tendo morrido sem batismo, essas crianças deveriam ser consideradas
“mártires” por quem Deus teve alguma “boa compensação”, Free Will 3.23.67-69, in S. Aurelii Augustine,
De libero arbitrio, trans. Carroll Mason Sparrow (Richmond: Dietz, 1947), 141-142.
45
Neve, History of Christian Thought, 142.
46
Ibid., 144.

88
de pura graça de Deus, não influenciado por qualquer forma de comportamento
humano, e isso inclui escolha. Embora seja o desejo de Deus salvar a todos, somente
aqueles que são escolhidos experimentarão a salvação.47 Por causa de sua insistência na
natureza absoluta da graça de Deus, Agostinho foi o primeiro pensador primitivo a
desenvolver sistematicamente a doutrina da predestinação divina. Os seres humanos
não podiam escolher Deus, ele acreditava; portanto, Deus teve que escolhê-los.48
A versão agostiniana do pecado original (um termo cunhado pelo próprio
Agostinho), portanto, ensina que as crianças nascem carregando a culpa moral pessoal
de Adão e não podem ser consideradas “inocentes”.49 Embora não tivessem a
capacidade física de fazer mal, os bebês eram pecadores desde o nascimento. O batismo
era então necessário para remover a culpa do pecado e para consolidar o status das
crianças como pertencentes à família de Deus (ou seja, a igreja).50 Além de herdar a
culpa de Adão, suas naturezas são totalmente depravadas, inclinadas ao mal e incapazes
de responder à misericórdia de Deus. Agostinho acreditava que o pecado original é
transmitido de humano para humano através do desejo sexual e da relação sexual, o
que desperta paixões desordenadas (pecaminosas) nos humanos.51 Em termos
simplificados, pode-se dizer que a doutrina tradicional agostiniana do pecado original
abrange três consequências básicas para Adão e sua posteridade: culpa, depravação
completa (ou corrupção total) e uma inclinação ou tendência ao mal.52
Como afirmado anteriormente, a interação teológica entre o pelagianismo e
Agostinho constitui os dois extremos opostos do espectro teológico da antropologia
humana.53 Ao longo do resto da história cristã, todos os pensadores se encontraram em
algum lugar entre Pelagitis e Agostinho, mais frequentemente mais próximos de Pelágio
do que estariam dispostos a admitir.

47
Richard P. McBrien, Catolicismo (Nova York: HarperCollins Publishers, 1994), 187.
48
Augustine, “On Predestination of the Saints,” in Four Anti-Pelagian Writings, trans. John A. Mourant and
William J. Collinge, in Fathers of the Church (Washington, DC: Catholic University of America Press, 1992),
86:259-60.
49
Agostinho Conf. 1.7, trad. Vernon J. Bourke (New York: Fathers of the Church, 1953), 12. Agostinho
assim afirma: “A injustiça do primeiro homem é imputada aos pequeninos quando nascem para que sejam
sujeitos a punição, assim como a justiça do segundo homem,” Answer to Pelagians III: Unfinished Work in
Answer to Julian (New York: New York: New Imprensa da cidade, 1999), 85.
50
Augustine, On Marriage and Concupiscence 1.22, 1.28, NPNF 5:273, 275; Augustine, Reply to Faustus
the Manichean 12.17, NPNF 4:189; c£, Roger Olson, The Story of Christian Theology (Downers Grove, IL:
IVP Academic, 1999), 270-274.
51
McBrien, Catholicism, 187; c£, Justo L. Gonzalez, Heretics for Armchair Theologians (Louisville, KY:
Westminster John Knox Press, 2008), 116-118.
52
Louis Berkhof, Systematic Theology (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1939), 245;
Greg R. Allison, Historical Theology (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2011), 342; c£, McGrath, Christian
Theology, 364-365.
53
Para um estudo mais profundo da resposta de Agostinho ao Pelagianismo, veja Anti-Pelagian Writings:
On Nature and Grace, On the Proceedings of Pelagius, On the Predestination of the Saints, On the Gift of
Perseverance.

89
A IGREJA MEDIEVAL
A controvérsia pelagiana deixou a antropologia cristã em fluxo. Em sua maioria,
porém, os teólogos medievais não estavam dispostos a se comprometer nem com o
agostinianismo nem com o pelagianismo. A primeira tentativa de conciliar essas visões
opostas sobre pecado, livre-arbítrio e salvação resultou em um sistema que ficou
conhecido como Semipelagianismo.54 Por um lado, o semipelagianismo negava o
monergismo agostiniano (do grego monos—um, ergos—trabalho); esta é a doutrina de
que somente Deus é responsável por toda a obra de salvação, uma vez que os humanos
são tão prejudicados pelo pecado que não podem responder à oferta de Deus. Por outro
lado, eles também negavam a antropologia pelagiana, que ensinava que os humanos
nascem moralmente perfeitos, assim como Adão antes da queda. Em contraste, os
teólogos semipelagianos postularam que, embora os bebês nasçam moralmente fracos
e pecadores, eles de alguma forma retiveram uma capacidade natural de dar o primeiro
passo em direção a Deus no processo de salvação. Por Sua graça, Deus se junta ao
processo e ajuda os humanos dispostos ao longo de sua jornada em direção ao céu. A
salvação foi assim concebida como resultado da cooperação sinérgica (grego syn—com,
ergos—trabalho) entre Deus e os humanos.55 Para simplificar as coisas, William Shedd
compara os três sistemas desta forma: “O agostinianismo afirma que o homem está
moralmente morto; O semipelagianismo sustenta que ele é moralmente doente; O
pelagianismo sustenta que ele é moralmente bem”56 Em última análise, o
semipelagianismo provou ser inviável para muitos teólogos católicos porque muito foi
reivindicado para os seres humanos.57 Dois desses teólogos, o Papa Gregório Magno (ca.
540-604 d.C.) e Tomás de Aquino (1225-1274 d.C.), tornaram-se instrumentos na criação
do que mais tarde se tornou a doutrina católica oficial da salvação.
Gregório Magno, um dos papa-teólogos mais importantes da Idade Média, propôs
uma alternativa mais próxima de Agostinho do que aquela oferecida pelo
semipelagianismo. Como Agostinho, ele acreditava que, ao nascer, as crianças estão nas
cadeias do pecado original e não podem se salvar. Deus, portanto, deve iniciar o
processo de salvação. Esta corrente é quebrada pela graça de Deus, dada através da
obra de Cristo, sendo o batismo uma parte essencial deste processo porque remove a
culpa da condenação. A criança ou adulto batizado recebe uma infusão da graça de
Deus, que o capacita a cooperar com a graça de Deus no processo de salvação. Uma vez
que se espera que a maioria das pessoas continue a pecar após o batismo, alguma forma
de retribuição é necessária. Esta retribuição pode ser completada através das obras de

54
Os principais proponentes do semipelagianismo, que teve muitas nuances durante a era pós-
agostiniana, foram os teólogos do século V João Cassiano (ca. 360-435 dC) e Fausto de Riez (ca. 410-495
dC). Para uma descrição detalhada do Semipelagianismo e suas nuances, veja Olson, Story of Christian
Theology, 278-285.
55
Marcia L. Colish, The Stoic Tradition from Antiquity to the Early Middle Ages (Leiden: Brill, 1990), 116.
56
William G. T. Shedd, A History of Christian Doctrine, vol. 2 (New York: Charles Scribner and Co., 1871),
110.
57
O semipelagianismo acabou sendo condenado pelo Concílio de Orange em 529 dC.

90
mérito que se espera que os crentes completem com a ajuda de Deus.58 A participação
em rituais prescritos pela igreja, como a Ceia do Senhor, a oração aos santos, bem como
várias boas obras de caridade, eram consideradas por Gregório como o meio de expiar
qualquer pecado pós-batismal e, em última análise, a recepção de vida eterna.59 Parece,
portanto, que a única maneira pela qual o sistema de Gregório diferia daquele dos
semipelagianos era que o início da vida cristã foi atribuído somente à graça de Deus.
Com os semipelagianos e contra Agostinho, no entanto, ele afirmou a existência do livre
arbítrio natural, embora enfraquecido, e a capacidade do homem de cooperar com Deus
no processo de salvação por meio do acúmulo de méritos prescritos pela igreja.60 Se isso
soa um pouco confuso, é. Embora os escritos de Gregório formem a base sobre a qual a
doutrina católica do pecado e da salvação foi construída, ele não desenvolveu seus
pontos de vista de forma sistemática e consistente, e muitas perguntas foram deixadas
sem resposta. O refinamento final das doutrinas medievais de pecado, livre arbítrio e
salvação foi deixado para o maior de todos os sistemáticos católicos, Tomás de Aquino
(ca. 1214-1274).
Tomás tentou conciliar a doutrina agostiniana do pecado original com uma visão
mais otimista e aristotélica da humanidade, que tendia a ver as crianças humanas como
essencialmente inocentes, mas imaturas.61 Assim, embora Tomás de Aquino aceitasse a
posição oficial agostiniana da pecaminosidade fundamental dos seres humanos, ele os
via como tendo “potencial de crescimento espiritual, com a ajuda da graça”62 O maior
desafio ao pensamento de Tomás de Aquino era a aparente contradição entre sua
aceitação uma compreensão agostiniana do pecado original como um impedimento à
salvação63 e sua crença aristotélica na inocência real das crianças não batizadas.64 Como
solução para esse dilema teológico, Tomás de Aquino abraçou a doutrina do limbus
infantium, ou limbo,65 um estado entre o céu e o inferno onde as crianças não batizadas
foram consignadas.66 Como portadores do pecado original, afirmou Tomás de Aquino,
as almas das crianças não batizadas sabem que não merecem o céu; assim, eles não

58
Gregory, The Books of the Morals 33.40, http://www.lectionarycentral.com/Grego-
ryMoralia/Book33.html (accessed on February 1, 2018); cf., Williston Walker, A History of the Christian
Church (New York: Charles Scribners Sons, 1970), 174.
59
Walker, History of the Christian Church, 174; cf. Berkhof, The History of Christian Doctrines, 140-141.
60
Carole Straw, Gregory the Great: Perfection in Imperfection (Berkeley: University of California Press,
1988), 140-141.
61
Christina L. H. Traina, “A Person in the Making: Thomas Aquinas on Children and Childhood,” in The
Child in Christian Thought, ed. Marcia J. Bunge (Grand Rapids, MI: William B. Eerdmans, 2001), 106; cf.
Joseph James Chambliss, Educational Theory as a Theory of Conduct: From Aristotle to Dewey (Albany,
NY: State University of New York Press, 1987), 34-35, and A. Scott Loveless and Thomas Holman, The
Family in the New Millennium: Strengthening the Family (Santa Barbara: Praeger Publications, 2006), 6-9.
62
Traina, “A Person in the Making,” The Child in Christian Thought, 106.
63
Thomas Aquinas, Summa Theologica III, Q68. Art.2 in St. Thomas Aquinas, Summa Theologica, trans.
Fathers of the English Dominican Province (Allen, TX: Christian Classics, 1981), 4:2393-2394; cf. Aquinas,
Appendix 1, Ql, Art.2 in Summa Theologica 5:3002.
64
Eileen Sweeney, “Vice and Sin,” in The Ethics of Aquinas, ed. Stephen J. Pope (Washington, DC:
Georgetown University Press, 2002), 158-159.
65
Christopher Beiting, “Limbo in Thomas Aquinas,” Thomist 62 (1998): 238-239
66
Aquinas, Summa Theologica Suppl. Q69, Art.6, in St. Thomas Aquinas, Summa Theologica, 5:2822-2823;
cf. Shulamith Shahar, Childhood in the Middle Ages (London: Routledge, 1990), 45.

91
“entristecem-se embora sejam privados do que está além de [seu] poder de obter”,67
mas sim “desfrutam da plena felicidade natural”.68 O batismo infantil, segundo Tomás
de Aquino, anula a culpa, mas deixa as tendências ao comportamento pecaminoso. Deus
tem que alcançar os humanos com Sua graça primeiro para despertar as tendências
naturais para a bondade e prover cura contínua para os efeitos do pecado original. Como
resultado, Richard McBrien observa perceptivelmente em sua descrição do
ensinamento de Tomás de Aquino, “a contrapartida teológica da graça não é o pecado,
mas a natureza humana. O Pecado Original é apresentado como uma ‘doença’ que,
embora enfraquecendo e ferindo a natureza humana, não torna a natureza humana feia
ou radicalmente perversa”, como se encontra na teologia agostiniana.69 Com Tomás de
Aquino colocando a pedra angular na antropologia medieval, portanto, o catolicismo
partiu do pessimismo antropológico agostiniano e voltou-se para uma visão mais suave
que tornava um ser humano doente ou ferido (em contraste com estar morto) e com
uma capacidade inata de responder à oferta de Deus de salvação.70
No final, a soteriologia católica ofereceu uma visão da salvação como um tipo de
transação entre Deus e os humanos envolvendo a igreja como intermediária. Assim, a
eclesiologia tornou-se enredada com a soteriologia.71 Por meio de sua graça, Deus faz a
sua parte proporcionando a graça inicial, que desperta no homem o bem natural e o
auxilia no processo de santificação, realizado principalmente pela participação nos
rituais e obras aprovados pela igreja. Em troca, os crentes são obrigados a cumprir sua
parte na transação, fazendo o que Deus e a igreja exigem deles. Se, por meio de sua
obediência diligente, puderem provar a Deus que são dignos do céu, serão salvos. Nesse
sistema, a justificação torna-se enredada com a santificação, resultando no que às vezes
é chamado de “justiça ontológica”72 e encorajamento do mérito humano no processo
de salvação.73
O cristianismo católico que emergiu da Idade Média possuía assim um sistema
soteriológico-eclesiológico afinado, que tentava equilibrar a graça de Deus com o mérito
humano. Esse sistema, infelizmente, resultou em muitos abusos soteriológicos que
atormentaram a igreja medieval e acabou sendo desafiado pela Reforma Protestante do
século XVI. A Reforma, no entanto, não afetou significativamente a compreensão

67
Aquinas, Summa Theologica Appendix 1, Ql, Art. 2, in Summa Theologica, 5:3004.
68
The Oxford Dictionary of Christian Faith (1997), s.v. “Limbo.” Cf. Beiting, “Limbo,” Thomist, 238. In
recent centuries, Aquinas’s doctrine of limbo has created much theological difficulty for Roman Catholic
theologians. See George J. Dyer, “Limbo: A Theological Evaluation,” Theological Studies 19 (1958): 32-49.
69
McBrien, Catholicism, 188.
70
Tatha Wiley, Original Sin (New York: Paulist Press, 2002), 94-100.
71
Os primeiros sinais de amálgama entre soteriologia e eclesiologia já eram evidentes nos escritos de
pensadores do século II, como Inácio, Irineu e Tertuliano, e encontrou sua expressão clássica no famoso
dictum de Cipriano Quiasalus extra ecclesiam non est! (“Fora da Igreja não há salvação”), Cipriano,
Epístola 72.21, ANF 5:384.
72
Carter Lindberg, The European Reformations (Oxford: Blackwell Publishers, 1996), 353.
73
The Canons and Decrees of the Council of Trent, chaps. VII, X, XI in Creeds of the Churches: A Reader in
Christian Doctrine from the Bible to the Present, ed. John H. Leith (Louisville, KY: John Knox Press, 1982),
411-416; cf., Olson, Story of Christian Theology, 446; John W. O’Malley, Trent: What Happened at the
Council (Cambridge: Belknap Press, 2013), 115.

92
católica da natureza humana. Durante o Concílio de Trento (1545-1563), uma visão mais
otimista da natureza humana prevaleceu e foi codificada em seus cânones. Assim, o
Concílio declarou que enquanto, como resultado da Queda, os seres humanos
“perderam imediatamente a santidade e a justiça em que [eles] haviam sido
constituídos”, “o livre arbítrio [não] foi perdido e destruído”.74 “Trento”, portanto,
escreve Roger Olson, “claramente negou a salvação pela graça por meio da fé somente
e fez da justificação um processo envolvendo cooperação humana da vontade e boas
obras meritórias... A justiça da justificação não é um mero dom. A capacidade de
merecê-la e possuí-la pode ser uma dádiva, mas ela mesma é em parte conquistada.”75
Pode-se, assim, afirmar mais uma vez que se reivindica demais para os seres humanos.
Essa compreensão da humanidade, do pecado e da salvação finalmente encontrou seu
caminho em documentos católicos oficiais modernos, como o Catecismo da Igreja
Católica publicado em 1994.76
A REFORMA MAGISTERIAL
De muitas maneiras, as visões dos reformadores protestantes sobre o pecado e a
natureza humana constituem uma reversão da antropologia medieval católica e um
retorno à antropologia agostiniana. O que em 1517 começou como uma reação em
pequena escala contra vários abusos sacramentais acabou evoluindo para uma rebelião
maciça contra qualquer forma de compreensão sinérgica da salvação. Parecia natural
para Martinho Lutero (1483-1546), um monge agostiniano, aprofundar os escritos de
seu antigo mentor para lutar contra vários abusos sacramentais da Igreja Católica
medieval. No processo, Lutero abraçou as visões antropológicas profundamente
pessimistas de Agostinho e sua compreensão do pecado original. Como Agostinho, ele
acreditava que os humanos entram no mundo não apenas inclinados ao mal, mas como
pecadores caídos, mal desde o nascimento e infectados com “egoísmo irreversível”, que
ele via como o “sintoma onipresente da perversão humana”.77 Enquanto, após uma
experiência de conversão, um crente pode exibir sinais externos de melhora, a
corrupção interna permanece nele mesmo depois que o pecado é perdoado. Esta é a
base para o famoso dictum simulpeccator et iustus de Lutero, ou “ao mesmo tempo um
pecador e um homem justo”.78 Em consonância com seus pontos de vista sobre a
natureza humana, e de uma maneira propriamente agostiniana, Lutero proclamou a
total incapacidade dos seres humanos de contribuir para sua salvação. Seus pontos de
vista são melhor explicados em On the Bondage of the Will [Sobre a Escravidão da

74
Leith, Creeds of the Churches, 406, 420. A declaração real é a seguinte: “Se alguém disser que depois
do pecado de Adão o livre arbítrio do homem foi perdido e destruído... seja anátema” cf. O’Malley,
Trent, 115.
75
Olson, Story of Christian Theology, 447.
76
Catechism of the Catholic Church (Liguori: Liguori Publications, 1994), 102,483.
77
Gerald Strauss, Luther’s House of Learning: Indoctrination of the Young in the German Reformation
(Baltimore, MD: John Hopldns University Press, 1978), 33-34. Luther wrote of the human will that it is
“innately and inevitably evil and corrupt,” Disputation Against Scholastic Theology, in Luthers Works 31,
ed. Harold J. Grimm (Philadelphia, PA: Muhlenberg Press, 1957), 10.
78
Martin Luther, Romans, in Luthers Works 25 (Saint Louis, MO: Concordia Publishing House, 1972), 260.

93
Vontade], onde em linguagem forte ele rejeitou a abordagem morna de Erasmos à
depravação humana.79 Como resultado de seus pontos de vista antropológicos, e de
acordo com Agostinho, Lutero abraçou a eleição e a predestinação como o único modo
de salvação humana. A justiça de Deus é, portanto, um dom puro que não pode ser
recusado pelo crente.80
Na mesma linha de Lutero, João Calvino (1509-1564) também adotou uma
antropologia profundamente pessimista, gerada pelo conceito agostiniano de pecado
original. De fato, sua posição sobre a natureza da humanidade é muitas vezes vista como
ainda “mais pessimista do que a de qualquer um de seus predecessores ou
contemporâneos”.81 O pecado de Adão, Calvino ensinou, “acendeu a terrível vingança
de Deus contra toda a humanidade”.82 Porque a “imagem celestial foi obliterada” em
Adão, todos os que vêm depois dele também sofrem sua punição por herdar a corrupção
completa de suas naturezas.83 Ele assim escreveu: “Até as crianças levam consigo sua
condenação desde o ventre de suas mães; pois, embora ainda não tenham produzido os
frutos de sua própria iniquidade, eles têm a semente encerrada dentro de si. De fato,
toda a sua natureza é uma semente do pecado; assim, não pode ser senão odioso e
abominável para Deus.”84 A afirmação de Calvino do pecado original agostiniano
resultou em ele se tornar o proponente mais visível da eleição e predestinação de Deus.
Uma vez que os humanos são totalmente depravados e têm uma inclinação apenas para
o mal, a salvação é deixada somente para Deus, que só pode salvá-los através do decreto
da eleição que foi realizada na eternidade passada. A graça de Deus, portanto, é
absoluta, sem nenhuma participação humana no evento da salvação. Na mente de
Calvino, portanto, mesmo um simples “sim” humano em resposta à oferta de salvação
de Deus constituiria “obra humana”, assim, afastando a glória de Deus e negando o
slogan da Reforma: Soli Deo Gloria!85 Esta é a razão pela qual os reformadores, em seu

79
Lutero assim escreve: “Então você vê que o livre arbítrio é completamente abolido por esta passagem
[Romanos 3], e nada de bom ou virtuoso é deixado no homem, uma vez que ele é declarado
categoricamente como injusto, ignorante de Deus, um desprezador de Deus, desviado dele, e inútil aos
olhos de Deus”, On the Bondage of the Will, em Luther and Erasmus: Free Will and Salvation, ed. E. Gordon
Rupp e Philip S. Watson (Filadélfia, PA: The Westminster Press, 1969), 300.
80
Embora não seja amplamente conhecido, Lutero era tão firmemente predestinado quanto João Calvino
e Huldrych Zwingli. Para Lutero sobre a predestinação, veja Martin Luther, On the Bondage of the Will
(Westwood, NJ: Fleming H. Revell Company, 1957); c£, Harry Buis, Historic Protestantism and
Predestination (Philadelphia, PA: Presbyterian and Reformed Publishing Company, 1958), 2, 48; Millard J.
Erickson, Teologia Cristã (Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2013), 846; Roger E. Olson, The Story of
Christian Theology, 388; Jairzinho Lopes Pereira, Augustine of Hippo and Martin Luther on Original Sin and
Justification of the Sinner, 362, 453. Influenciado por Filipe Melanchthon, sucessor de Lutero, o
luteranismo tardio rejeitou as doutrinas predestinacionistas como incompatíveis com o Evangelho.
81
Barbara Pitkin, “The Heritage of the Lord: Children the Theology of Calvin,” in The Child in Christian
Thought, ed. Marcia J. Bunge (Grand Rapids, MI: William in B. Eerdmans, 2001), 167.
ed. John T. McNeill (Philadelphia, PA: The Westminster Press, 1960), 1:244, 245.
82
John Calvin, Institutes of the Christian Religion 2.1.4 in The Library of Christian Classics (LCC), vol. 20,
83
Calvin, Institutes 2.1.5 and 9, LCC 20,1:246, 252-253.
84
Calvin, Institutes 4.15.9, LCC 21, 2:1311. Como Agostinho, Calvino ensinou que o batismo é necessário
para remover a culpa e a condenação herdadas pelos humanos. Veja Institutes 4.15.10, LCC 21, 2:1311.
85
Veja, por exemplo, Calvin’s commentary on Luke 18:9-14. John Calvin, Commentary on a Harmony of
the Evangelists, Matthew, Mark and Luke (Edinburgh: The Calvin Translation Society, 1845), 2:201-207.

94
desejo de preservar a soberania de Deus sobre os seres humanos e sua salvação,
escolheram a solução predestinacionista.
O monergismo da Reforma Magisterial foi claramente a resposta mais forte possível
ao sinergismo católico da Idade Média e um poderoso lembrete de que a salvação é
somente de Deus (Soli Deo Gloria). A doutrina da depravação total, portanto, tornou-se
uma marca da Reforma Magisterial Protestante, e coube às futuras tradições teológicas
a correção da soteriologia predestinacionista dos Reformadores Magisteriais.
A ERA PÓS-REFORMA
O primeiro desafio sério à doutrina da Reforma Agostiniana/Magisterial do pecado
original não ocorreu, primariamente, dentro de uma discussão sobre a natureza da
humanidade, mas sim dentro do debate sobre o batismo. Os anabatistas, os “enteados”
da Reforma Protestante,86 concordavam com muitos dos ensinamentos de outros
reformadores; no entanto, eles também se afastaram em alguns aspectos da
antropologia das Reformas Magisteriais. Uma questão que se tornou de importância
central para os anabatistas foi o batismo, que, segundo eles, deveria ser voluntário e
baseado na compreensão do Evangelho de Jesus Cristo.87 Menno Simons88 (1492-1559),
um ex-padre católico e um proeminente líder anabatista, afirmou que, uma vez que as
crianças “não têm fé pela qual possam perceber o que Deus é e que ele é um
recompensador do bem e do mal, como eles claramente mostram por seus frutos –
portanto, eles não têm o temor de Deus e, consequentemente, não têm nada sobre o
qual devam ser batizados.”89 Em vez de batizar crianças, “que não podem ser ensinadas,
admoestados ou instruídos”, Simons exortou os pais cristãos a nutrir a fé de seus filhos
até que eles tenham alcançado os “anos de discrição”,90 quando eles poderiam tomar a
decisão de ser batizados.91 Implícito na rejeição de Simons ao batismo infantil estava
sua compreensão da natureza humana. Embora reconhecesse que os humanos nascem

86
Para um estudo detalhado do Anabatismo, veja Leonard Verduin, The Reformers and Their Stepchildren
(Grand Rapids, William B. Eerdmans, 1964)
87
Williston Walker observa que a oposição dos anabatistas ao batismo infantil decorreu da questão mais
ampla de “sua oposição ao uso da força em questões de fé e seu abandono da antiga exigência de
uniformidade religiosa”, A History of the Christian Church (Nova York: Filhos de Charles Scribner, 1970),
327; cf. Menno Simons, “Christian Baptism,” [Batismo Cristão], em The Complete Writings of Menno
Simons, trad. Leonard Verduin, ed. J.C. Wenger (Scottdale, PA: Herald Press, 1956), 257; Keith Graber
Miller, ““Complex Innocence, Obligatory Nurturance, and Parental Vigilance: ‘The Child’ in the Work of
Menno Simons [Inocência Complexa, Nutrição Obrigatória e Vigilância Parental: ‘A Criança’ na Obra] de
Menno Simons”, em The Child in Christian Thought, 195.
88
Embora existisse uma variedade de perspectivas entre os anabatistas, Menno Simons é considerado o
teólogo por excelência da tradição anabatista. A natureza deste artigo impede um tratamento completo
e abrangente da perspectiva anabatista sobre as questões do pecado e seu impacto sobre a natureza
humana.
89
Simons, “Christian Baptism”, em The Complete Writings of Menno Simons, 240. Batizar bebês, Simons
afirmou, deu aos pais uma falsa sensação de segurança sobre a salvação de seus filhos, resultando na
possibilidade de os filhos serem “criados sem o temor de Deus”. e assim vivendo “sem fé e novo
nascimento, sem Espírito, Palavra e Cristo”, “Responder a Falsas Acusações”, em The Complete Writings
of Menno Simons, 570.
90
Simons, “Christian Baptism,” in The Complete Writings ofMenno Simons, 241.
91
Ibid.

95
com uma tendência inata para o pecado, “herdada no nascimento por todos os
descendentes e filhos do corrupto e pecador Adão”, uma tendência que “não é chamada
de pecado original inapropriadamente”,92 ele parece diferenciar “entre uma natureza
predisposta ao pecado e ao pecado real, não permitindo que o primeiro oblitere a
inocência infantil”.93 Assim, de acordo com Simons, embora os filhos herdem a
corrupção de Adão, suas naturezas são danificadas pelo pecado, são inocentes,
“enquanto viverem em sua inocência” e “pelos méritos, morte e sangue de Cristo, em
graça”, eles são “participantes da promessa”.94 As crianças que morrem “antes de
chegar aos anos de discrição”, declara Simons, “morrem sob a promessa de Deus”. 95 A
perspectiva anabatista, que afirmava a natureza depravada e pecaminosa das crianças
e a necessidade da graça de Deus para a salvação, ao mesmo tempo em que rejeitava a
compreensão determinista da salvação, impactou algumas tradições cristãs que
continuam até hoje.96
Outro desafio teológico à doutrina calvinista da salvação veio de dentro da própria
tradição reformada. Um teólogo reformado holandês, Jacobus Arminius (1560-1609),
criticou o determinismo calvinista e sua ênfase exagerada na soberania de Deus.
Ferozmente acusado de se afastar do protestantismo tradicional, Armínio se
considerava um protestante puro-sangue que afirmava fortemente os ensinamentos
protestantes tradicionais da Sola Scriptura e Sola Gratia et Fides97, mas que optou por
não afirmar o ensino calvinista sobre eleição e predestinação. No estilo protestante
clássico, no entanto, ele afirmou a doutrina da depravação total. Como ele poderia fazer
isso sem também afirmar a doutrina da predestinação? Considere esta declaração de
Armínio:
Em seu estado decaído e pecaminoso, o homem não é capaz, por si mesmo, nem de pensar,
nem de querer, nem de fazer o que é realmente bom; mas é necessário que ele seja
regenerado e renovado em seu intelecto, afeições ou vontade e em todos os seus poderes,
por Deus em Cristo, por meio do Espírito Santo, para que ele seja qualificado corretamente

92
Simons, “Reply to False Accusations,” The Complete Writings ofMenno Simons, 563.
93
Miller, “Complex Innocence, Obligatory Nurturance, and Parental Vigilance,” em The Child in Christian
Thought, 201.
94
Simons, “Reply to Gellius,” in The Complete Writings ofMenno Simons, 708; Menno Simmons, A
Foundation and Plain Instruction of the Saving Doctrine of Our Lord Jesus Christ (Lancaster: Boswell and
M’Cleery, 1835), 415.
95
Simons, “Batismo Cristão”, em The Complete Writings of Menno Simons, 241; Além disso, Simons
sugere que os filhos de pais crentes e incrédulos permaneçam inocentes pela graça de Cristo. Veja, por
exemplo, “Christian Baptism”, em The Complete Writings of Menno Simons, 280 e “Reply to Gellius”, em
The Complete Writings of Menno Simons, 707.
96
Hoje, os amish, alguns batistas, os Brethren [Irmãos], huteritas, menonitas, comunidades de Bruderhof
e Quakers são considerados sucessores dos anabatistas continentais. Veja Holly Catterton Allen,
“Theological Perspectives on Children in the Church: Anabaptist/ Believer Churches”, em Nurturing
Childrens Spirituality: Christian Perspectives and Best Practices, ed. Holly Catterton Allen (Eugene, OR:
Cascade Books, 2008), 115. Os adventistas do sétimo dia também se consideram dentro da tradição
teológica anabatista. George Knight, Search for Identity (Hagerstown, MD: Review and Herald Publishing
Association, 2000) 30, 177.
97
Olson, Story of Christian Theology, 464-465.
98. James Arminius, in The Works of James Arminius, D.D, vol. 1, trans. James Nichols (London:
Longman, Hurst, Rees, Orme, Brown and Green, 1825), xxxi,

96
para entender, estimar, considerar, querer e realizar o que for realmente bom. Atribuo à
graça divina - o começo, a continuação e a consumação de todo bem - e a tal ponto carrego
sua influência, que um homem, embora já regenerado, não pode conceber, querer ou fazer
qualquer bem, nem resistir a qualquer tentação do mal, sem esta graça preventiva e
excitante, esta graça seguidora e cooperadora.98

É evidente, a partir desta declaração, que Armínio abraçou a doutrina protestante


da depravação total da natureza humana, ao mesmo tempo em que se afastou da
armadilha do predestinacionismo. Para ele, a depravação total significava que todos os
aspectos da natureza humana foram corrompidos pela Queda do primeiro casal. Como
resultado, seus descendentes são incapazes de iniciar o processo de salvação sem a
ajuda da graça sobrenatural de Deus. É indiscutível, portanto, que para Armínio toda a
obra da salvação, incluindo a santificação, é atribuída à graça de Deus. É essa graça,
conhecida na história como “preventiva”, “preveniente”, ou a graça que “vem antes”,
que desperta as “faculdades sem vida da alma” e atrai a humanidade para Deus.” 99 A
humanidade restaurada agora tem uma escolha rejeitar a graça salvífica - ou aceitá-la e
levar uma vida santificada. Essa graça, no entanto, e em contraste com o calvinismo, é
resistível. Armínio era assim, nas palavras de Roger Olson, "otimista sobre a graça, mas
não sobre a natureza humana!"100 Com os reformadores magistrais, assim, Armínio
podia clamar Soli Deo Gloria no que dizia respeito à salvação humana. humanos em sua
concepção. Por causa da obra expiatória de Cristo, Armínio afirmou, os humanos recém-
nascidos eram inocentes, e se eles morressem na infância, sua salvação era segura.101
Os contemporâneos de Armínio, particularmente aqueles influenciados pelo
calvinismo, se opuseram veementemente a seus pontos de vista. Essa situação continua
até hoje. Seu pensamento, entretanto, acabou influenciando as crenças de John Wesley
(1703-1791) e o movimento metodista.102 De acordo com o estudioso de Wesley Herbert
B. McGonigle, é indiscutível que Wesley foi um estudante cuidadoso de Armínio.103
Os estudiosos muitas vezes consideram a antropologia de Wesley como eclética,104
nem “totalmente consistente” nem “completa”105 A maioria dos intérpretes de Wesley

98
James Arminius, in The Works of James Arminius, D.D, vol. 1, trans. James Nichols (London: Longman,
Hurst, Rees, Orme, Brown and Green, 1825), xxxi.
99
É impressionante que Ellen G. White em Caminho a Cristo siga as mesmas linhas de raciocínio (Mountain
View, CA: Pacific Press Publishing Association, 1956), 18. Deve-se notar que Armínio não foi o primeiro
teólogo a usar o termo graça preveniente. É ele, no entanto, quem parece ser o primeiro a enquadrar
esse conceito dentro de um contexto exclusivamente protestante.
100
Roger Olson, Arminian Theology: Myths and Realities (Downers Grove, IL: IVP Academic, 2006), 150.
101
Jacobus Arminius, Apology or Defence 13 and 14, in The Works of James Arminius, trans. and ed. James
Nichols (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1996), 10-14; cf. Works of James Arminius (Buffalo, NY:
Derby, Miller and Orton, 1853), 1:479-531.
102
No final de sua vida, Wesley começou a publicar um periódico intitulado The Arminian Magazine como
um protesto contra as tendências predestinacionistas de seus contemporâneos calvinistas. Em 1822 foi
renomeado para Wesleyan Methodist Magazine [Revista Metodista Wesleyana].
103
Herbert B. McGonigle, Sufficient Saving Grace: John Wesleys Evangelical Arminianism (Waynesboro,
GA: Paternoster Press, 2001), 12, 71-105.
104
Veja Susan Etheridge Willhauclc, “John Wesley’s View of Children: Foundations for Contemporary
Christian Education” (PhD diss., Catholic University of America, 1992), 123.
105
Veja Richard P. Heitzenrater, “John Wesley and Children,” in The Child in Christian Thought, 298, 286.

97
concorda, no entanto, que Wesley aceitou a noção de pecado original,106 que ele parecia
ter entendido como uma “corrupção da natureza herdada” que afeta “toda a
humanidade” e exige “até mesmo as crianças [nascer] de novo”. 107 Wesley viu esta
corrupção tão difundida que até mesmo os “pais mais santos imploram por filhos
profanos, e [não podiam] comunicar sua graça a eles como eles [faziam] com sua
natureza.”108 Assim ele escreveu: “O homem é por natureza cheia de todo tipo de mal?
Ele é vazio de tudo de bom? Ele está totalmente caído? Sua alma está totalmente
corrompida? Ou, voltando ao texto, ‘toda imaginação dos pensamentos de seu coração
é continuamente má?’ Permita isso, e você é até agora um cristão. Negue isso, e você
ainda é um pagão.”109 Em suas visões sobre a natureza humana, Wesley assim declarou
enfaticamente, ele não estava a “um fio de cabelo” de Calvino.110 Embora Wesley
parecesse estar de acordo com Tradição Reformada sobre o estado natural do mal
(depravação total) de todo ser humano, ele, no entanto, afirmou que a graça de Deus
também estava em ação desde o início da vida. Deus estendeu essa graça, que, como
Armínio, Wesley denominou “graça preventiva” (ou “graça preveniente”), a todo ser
humano, sem esperar “pelo chamado do homem”.111 Foi por causa do amor de Deus e
Sua graça preveniente que todos os seres humanos tiveram a capacidade de responder
a Deus.112 Embora a compreensão de Wesley da natureza da humanidade tenha sido
interpretada de muitas maneiras,113 parece que ele mantinha uma crença no pecado
original “em tensão dinâmica” com a convicção de que a graça de Deus estava operando
na vida de cada ser humano.114

106
Willhauclc, “John Wesleys View of Children,” 123.
107
John Wesley, The Doctrine of Original Sin According to Scripture, Reason and Experience In Answer to
Dr. Taylor (New York: The Methodist Episcopal Church in the United States, 1817), 340-341.
108
Ibid., 340.
109
John Wesley, Original Sin, Sermon 38.3.2, in Wesleys Standard Sermons, vol. 2, ed. Edward H. Sugden
(London: The Epworth Press, 1951), 223.
110
John Wesley, “To John Newton,” in John Wesley, ed. Albert C. Outler (New York: Oxford University
Press, 1964), 78.
111
John Wesley, “On Worldng Out Our Own Salvation” em The Works of John Wesley, ed. Albert C. Outler
(Nashville: Abindgdon Press, 1986), 3:207. Roger Olson define a graça preveniente da seguinte forma: “é
simplesmente a graça de Deus que convence, chama, ilumina e capacita que vem antes da conversão e
torna possível o arrependimento e a fé”, Arminian Theology, 35.
112
Michael J. Scanlon, “The Christian Anthropology of John Wesley” (PhD diss., Catholic University of
America, 1969), 100-101; cf. Wesley, “On Working Out Our Own Salvation,” in The Works of John Wesley,
207-209.
113
Para um exame detalhado da antropologia cristã de Wesley, bem como uma visão geral das muitas
maneiras pelas quais ela foi interpretada pelos comentaristas, veja Willhauck, “John Wesleys View of
Children”, 102-173.
114
Catherine Stonehouse, “Children in Wesleyan Thought,” in Childrens Spirituality: Christian
Perspectives, Research and Application, ed. Donald Ratcliffe (Eugene, OR: Cascade, 2004), 140. Essa
mesma tensão é inerente às visões de Wesley sobre batismo e conversão. Embora os estudiosos
discordem da compreensão de Wesley sobre o batismo infantil, o próprio Wesley afirmou e praticou o
batismo de crianças. Ele, no entanto, não via o batismo como necessário para a salvação. Em vez disso, a
posição de Wesley era que o batismo era o “sacramento iniciático que [sic] nos coloca em aliança com
Deus”; mas ser parte da aliança não assegurava automaticamente a salvação. Cada indivíduo ainda
precisava experimentar a conversão ou novo nascimento através da fé justificadora, Willhauck, “John
Wesleys View of Children”, 164 e John Wesley, “On Baptism”, em John Wesley, 319. Para Wesley, o
batismo infantil era claramente equivalente ao rito judaico de circuncisão; ambos exigiam um coração

98
Assim, embora concordando com a crença protestante de que a salvação é sola
gratia et fide, a teologia arminiana e, por extensão, a teologia wesleyana, forneceu uma
correção necessária ao pessimismo antropológico calvinista que levou os reformadores
magisteriais a abraçar o predestinarianismo. Enquanto, por um lado, Armínio e Wesley
se alinharam fortemente com o princípio protestante da depravação total, eles também
enfatizaram o amor de Deus e acreditaram no poder de Deus que rotularam como
“graça preveniente”. Esse poder impulsionado pelo Espírito Santo primeiro possibilita a
genuína liberdade humana; segundo, leva a Cristo aqueles que não resistiram ao seu
apelo para experimentar Sua graça justificadora; e terceiro, leva os crentes justificados
a levar uma vida santificada.115 Graças ao conceito de graça preveniente, portanto, dois
conceitos aparentemente mutuamente exclusivos (de acordo com a Tradição
Reformada) podem ser harmonizados: que a salvação é Soli Deo Gloria, com todos os
seus aspectos dependem da graça de Deus (Hb 12:2), e que os humanos têm genuína
liberdade de escolha e responsabilidade com relação à sua salvação. O princípio
protestante da depravação total pode, portanto, ser adotado sem aceitar o
predestinacionismo ou negar a possibilidade de santificação genuína, impulsionada pelo
livre-arbítrio.
É um fato incontestável que, embora vindos de uma variedade de denominações
cristãs, os primeiros adventistas sabatistas foram fortemente influenciados pelo
wesleyanismo.116 A mais proeminente fundadora da Igreja Adventista do Sétimo Dia,
Ellen G. White, cresceu como metodista, e em uma extensão significativa, seus escritos
refletem a compreensão arminiana/metodista do impacto dos pecados sobre a natureza
humana e a salvação. Embora a frase graça preveniente não seja encontrada em seus
escritos, a ideia claramente permeou seu pensamento. Ela assim escreveu sobre a
depravação total e a graça preveniente de Deus:
É impossível para nós, por nós mesmos, escapar do poço do pecado em que estamos
afundados. Nossos corações são maus, e não podemos mudá-los. ... A educação, a cultura,
o exercício da vontade, o esforço humano, todos têm sua própria esfera, mas aqui são
impotentes. Eles podem produzir uma correção externa de comportamento, mas não podem
mudar o coração; eles não podem purificar as fontes da vida. Deve haver um poder
operando de dentro, uma nova vida do alto antes que os homens possam ser mudados do
pecado para a santidade. Esse poder é Cristo. Somente sua graça pode vivificar as
faculdades sem vida da alma e atraí-la para Deus, para a santidade.117

convertido, ou “circuncisão interior”, para a salvação, Wesley, “On Baptism”, John Wesley, 322-323. Para
uma discussão detalhada dos pontos de vista de Wesley sobre o batismo e conversão infantil, veja
Willhauck, “John Wesleys View of Children”, 125-173.
115
Embora o termo graça preveniente em si não seja encontrado no Novo Testamento, ele está presente
conceitualmente. Veja, por exemplo, Romanos 2:4; 1 Coríntios 15:10; Efésios 2:4-5; João 1:9; e Tito 2:11.
116
George Knight, A Search for Identity: The Development of Seventh-day Adventist Beliefs (Hagerstown:
Review and Herald Publishing Association, 2000), 33-34.
117
Ellen White, Steps to Christ (Mountain View, CA: Pacific Press Publishing Association, 1956), 18. Em
outro lugar, White escreve sobre depravação total e graça preveniente: “Há na natureza [de todo homem]
uma inclinação para o mal, uma força que, sem ajuda, ele não pode resistir”; “Assim como por meio de
Cristo todo ser humano tem vida, assim também por meio dele toda alma recebe algum raio de luz divina.
Não apenas o poder intelectual, mas o espiritual, uma percepção do direito, um desejo ou bondade, existe
em cada coração”, Educação (Mountain View, CA: Pacific Press Association, 1952), 29, ênfase adicionada.

99
Observe a palavra “sem vida”, que claramente implica “depravação total”. Em outra
ocasião, ela escreveu sobre a graça preveniente: “O primeiro passo para Cristo é dado
pela atração do Espírito de Deus; à medida que o homem responde a essa atração, ele
avança em direção a Cristo para se arrepender.”118
Assim, os escritos de Ellen White, embora firmemente fundamentados na
soteriologia protestante clássica com sua compreensão do pecado e seu efeito sobre a
natureza humana, exibem uma afinidade inconfundível com o arminianismo evangélico
que ela parece ter assimilado através dos ensinamentos de sua própria teologia
wesleyana. tradição. De acordo com a tradição soteriológica protestante clássica, ela
poderia assim exclamar enfaticamente Soli Deo Gloria! para nossa salvação em Cristo.

O trecho a seguir é bem específico: o exercício do livre-arbítrio é um dom de Deus: “Por causa de sua
transgressão, eles [Adão e Eva] foram condenados à morte, pena do pecado. Mas Cristo, a propiciação
pelos nossos pecados, declarou: ‘Eu ficarei no lugar de Adão. Eu tomarei sobre mim a penalidade de seu
pecado, Ele terá outro julgamento. Vou garantir para ele uma provação. Ele terá os privilégios e
oportunidades de um homem livre, e terá permissão para exercer o poder de escolha que lhe foi dado
por Deus. Vou adiar o dia de sua acusação para julgamento. Ele será obrigado a comparecer no tribunal
de Deus no julgamento'", White, "Cristo, a propiciação por nossos pecados", Atlantic Union Gleaner, 19
de agosto de 1903.
118
Ellen G. White, “Justified by Faith,” in Selected Messages, vol. 1 (Washington, DC: Review and Herald
Publishing Association, 1958), 390.

100
CAPÍTULO 6
ORIGEM DO PECADO E SALVAÇÃO DE ACORDO COM
GÊNESIS 3: UMA TEOLOGIA DO PECADO
Jiří Moskala

As percepções humanistas do mal e da natureza humana influenciaram


profundamente o pensamento cristão sobre o pecado e seus efeitos. Os crentes às vezes
podem ser ingênuos sobre a natureza do pecado e podem enganar a si mesmos por não
considerar seriamente o poder e a falsidade do pecado. Assim, o pecado tende a ser
entendido como um mero erro, falta, problema, tolice, erro, doença, doença,
esquecimento ou ignorância. Para perceber claramente a natureza do pecado, é
necessário investigar a origem do pecado, sua natureza e consequências de acordo com
a revelação de Deus.1 Este estudo bíblico-teológico se concentra principalmente na
Palavra de Deus revelada em Gênesis capítulo 3.
ANATOMIA DO PECADO ORIGINAL E A DINÂMICA DA TENTAÇÃO (Gn 3:1-6):
OBSERVAÇÕES EXEGÉTICAS
A explicação bíblica da origem do pecado na terra é transmitida na forma de uma
história. No relato do outono de Gênesis 3, o termo pecado não aparece, mas é a melhor
interpretação do que é pecado. Esta história modelo é histórica, contando o que
realmente aconteceu, mas ao mesmo tempo tem um profundo significado simbólico
que explica a natureza do pecado como paradigma e arquétipo com suas vastas
consequências.
A narrativa bíblica sobre o pecado original2 pressupõe o conhecimento dos relatos
da criação encontrados em Gênesis 1-2. De acordo com esses relatos, Deus criou os
primeiros humanos à Sua imagem em um estado puro, não manchado pelo mal, e os

1
Estudos perspicazes sobre o pecado incluem: G. C. Berkouwer, Sin (Grand Rapids, MI: Eerd- mans, 1971);
Mark E. Biddle, Missing the Mark: Sin and Its Consequences in Biblical Theology (Nashville, TN: Abingdon,
2005); Mark J. Boda, A Severe Mercy: Sin and Its Remedy in the Old Testament (Winona Lake, IN:
Eisenbrauns, 2009); Iain D. Campbell, The Doctrine of Sin (Fearn, Great Britain: Mentor, 1999); Paul
Chamberlain, Can We Be Good Without God?: A Conversation About Truth, Morality, Culture and a Few
Other Things That Matter (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1996); John M. Fowler, “Sin,” in
Handbook of Seventh-day Adventist Theology (Hagerstown, MD: Review and Herald Publishing
Association, 2000), 233-270; Norman R. Gulley, “Preliminary Consideration of the Effects and Implications
of Adam’s Sin,” Adventist Perspectives 2, no. 2 (Summer 1988): 28-44; Gulley, Systematic Theology:
Prolegomena (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 2003), 191-192, 436- 441; Chad Meister,
Evil: A Guide for the Perplexed (New York: Continuum, 2012); Christopher W. Morgan and Robert A.
Peterson, Fallen: A Theology of Sin (Wheaton, IL: Crossway, 2013).
2
Neste estudo, o termo pecado original refere-se ao primeiro pecado de Adão e Eva no Jardim do Éden e
não implica o carregamento da culpa original do primeiro casal por sua posteridade. Seus descendentes
não são responsáveis pelo pecado cometido, embora os humanos agora tenham uma natureza
pecaminosa resultante da desobediência de Adão e Eva.

101
colocou no Jardim do Éden. A primeira história da criação demonstra que o mundo foi
feito sem vestígios de pecado, afirmando seis vezes que tudo era “bom” (Gn 1:4, 10, 12,
18, 21, 25). Além disso, após a conclusão da criação física, o relato da criação culmina
com uma sétima expressão: “Deus viu tudo o que havia feito... era muito bom” (Gn
1:31).3 Isso significa que Adão e Eva fizeram não têm uma natureza corrompida e que
Deus os dotou com o poder do livre arbítrio e escolha (Gn 2:16-17). Além disso, o
primeiro casal estava “nu” ('arom), mas sem “vergonha” (Gn 2:25). Essa inocência indica
a integridade de seu ser, não rompida ou afetada pela presença do pecado. Allen Ross
resume: “Eles estavam à vontade um com o outro, sem medo de serem explorados para
o mal... viver e desfrutar a generosidade de sua criação.”4 No entanto, este versículo é
um texto de trampolim que antecipa a mudança vindoura em Gênesis 3 que descreve
como a atmosfera pré-queda de harmonia, paz, amor e alegria foi abruptamente
interrompida e marcada pelo pecado.
Os seres humanos não foram criados apenas em um mundo perfeito sem culpa,
vergonha, medo, corrupção ou morte,5 mas o relato da criação de Gênesis ensina que
eles foram feitos principalmente para (1) comunhão íntima com Deus, (2) dependência
total dEle , e (3) cultivar Sua presença em suas vidas.6 Tudo isso terminou abruptamente
com a desobediência dos primeiros casais.
O relato da queda também pressupõe a existência de Satanás, que usou o disfarce
da forma de serpentes. Assim, o capítulo 3 começa com a serpente como uma entidade
conhecida pelo leitor; isso é mencionado no hebraico pelo artigo definido. A visão da
rebelião de Satanás contra Deus antes da queda da humanidade no pecado é fornecida
em apenas algumas passagens bíblicas (por exemplo, Jó 1:6-13; Is 14:12-15; Ez 28:11-
19).7
O relato da queda de Gênesis começa com três surpresas. Primeiro, uma serpente
fala, um fenômeno muito incomum que deveria ter indicado imediatamente a Eva que
essa criatura era dotada de um poder anormal e incomum. Em segundo lugar, a serpente

3
Salvo indicação em contrário, todas as citações bíblicas são tiradas de THE HOLY BIBLE, NEW
INTERNATIONAL VERSION®, NIV® Copyright © 1973,1978,1984, 2011 by Biblica, Inc.® Usado com
permissão. Todos os direitos reservados no mundo inteiro.
4
Allen P. Ross, Creation and Blessings: A Guide to the Study and Exposition of Genesis (Grand Rapids, MI:
Baker Book House, 1988), 127.
5
Jacques B. Doukhan, “When Death Was Not Yet: The Testimony of Biblical Creation,” in The Genesis
Creation Account and Its Reverberations in the Old Testament, ed. Gerald A. Klingbeil (Berrien Springs,
MI: Andrews University Press, 2015), 329-342.
6
Veja o meu artigo, “The Sabbath in the First Creation Account” in Journal of the Adventist Theological
Society 13, no. 1 (Spring 2002): 55-66.
7
Não vamos nos envolver em uma discussão sobre a identificação da serpente no Jardim do Éden, mas
pressupor que ela foi usada como médium por Satanás, nosso adversário da salvação, conforme
documentado biblicamente (Jó 1:7-9; 2: 2; Mat. 4:1-11; Lucas 4:5-8; 10:18; João 8:44; 2 Cor. 11:3; 1 Tim.
2:14; 1 João 3:8; Apoc. 12: 7-12; 20:2). Para uma excelente discussão exegética e teológica sobre a
identificação da serpente no relato da Queda de Gênesis 3 e a Queda e o papel de Satanás diante da
desobediência da humanidade, veja Jose M. Bertoluci, The Son of the Morning and the Guardian Cherub
in the Context of the Controversy between Good and Evil (ThD diss., Andrews University, 1985).

102
se dirige à mulher. O texto não fornece explicitamente a localização de Adão, mas a
imagem alude que Eva estava curiosa sobre a árvore proibida e andou até lá sozinha.8
Terceiro, a serpente sabe exatamente o que Deus disse anteriormente no Jardim
do Éden (Gn 2:16-17) e contradiz diretamente Sua ordem. Ele se envolve em atividades
enganosas, embora nunca force Adão ou Eva a comer o fruto proibido. A narrativa do
outono registra a declaração direcionada da serpente (ou seja, Satanás) quando ele
sonda a mulher: “Deus realmente disse: ‘Você não deve comer de nenhuma árvore do
jardim” (Gn 3:1)?9 Satanás inicia assim seu discurso com Eva estabelecendo dúvidas
quanto à palavra e autoridade de Deus. Se tomarmos esta frase como declarativa, ela
tem o sentido de questionar o comando e a autoridade de Deus com uma força ainda
maior. Assim, Speiser declara: “A serpente não está fazendo uma pergunta; ele está
distorcendo deliberadamente um fato.”10 Assim, é preciso perguntar: Qual foi o
propósito desta primeira pergunta enfática registrada na Bíblia e expressa como um
poderoso ataque contra Deus?
A melhor maneira de descobrir o objetivo real da declaração de Satanás é compará-
la com a ordem anterior de Deus. No princípio, o Criador deu dois mandamentos: o
primeiro era positivo e o segundo negativo (Gn 2:16-17). Ele primeiro criou espaço livre
para os humanos, porque o Senhor é o autor da liberdade suprema: “Você é livre para
comer de qualquer árvore do jardim”. Ele assim criou Adão e Eva como seres morais
livres. Para desfrutar de sua liberdade, os humanos precisavam aceitar as barreiras e
limites da liberdade. É por isso que Ele deu a restrição, o segundo comando: “Você não
deve comer da árvore do conhecimento do bem e do mal”. O dom da liberdade
pressupõe escolha e livre arbítrio. Para manter sua liberdade, eles também precisavam
respeitar os limites impostos por Deus. Ao aceitar os limites da liberdade, eles eram
livres; eles tinham um espaço seguro no qual podiam crescer e desenvolver todo o seu
potencial, a verdadeira humanidade e a imagem de Deus na qual foram criados.
O objetivo de Satanás era mais do que simplesmente um convite ao diálogo. Ele
queria realizar mais do que criar dúvidas. A dúvida certamente viria como resultado de
suas táticas quando as suspeitas nascessem. Satanás só poderia ter sucesso em sua
intriga quando fosse capaz de criar uma imagem distorcida de Deus! Assim, seu objetivo
principal era pintar uma imagem falsa de Deus, sugerir uma impressão errada de Seu
caráter e intenções, e assim impregnar a mente de Eva com um pensamento errôneo
sobre Deus. Satanás estava bem ciente de que se ele tivesse sucesso aqui e ganhasse a
vitória sobre os pensamentos de Eva, ele ganharia toda a guerra, porque a vida espiritual

8
Isso não é contrariado pelo fato de que “ela deu também a seu marido, que estava com ela” (Gn 3:6). A
preposição “com” (‘im em hebraico) aqui significa “a quem ela pertencia”. Existem duas preposições em
hebraico com o significado de “com”: uma é ‘et e a segunda é ‘im. A primeira preposição enfatiza o espaço
(estar ao lado, estar próximo de alguém); no entanto, a segunda é uma preposição mais relacional, além
de acompanhamento de significado, subjacente à proximidade e ao relacionamento.
9
Umberto. Cassuto, A Commentary on the Book of Genesis [Part One]: From Adam to Noah (Jerusalem:
The Magnes Press, 1989), 144.
10
E. A. Speiser, Genesis: Introduction, Translation, and Notes, The Anchor Bible Series (Garden City, New
York: Doubleday, 1981), 23.

103
depende diretamente de uma imagem mental correta de Deus. Assim, Satanás sabia
onde atacar primeiro: contra o caráter de amor de Deus. A anatomia do primeiro pecado
começa com essa tentativa de criar uma falsa imagem de Deus.11
Em vez de abandonar a conversa (a única reação apropriada; cf. Gn 39:12), Eva
tentou defender Deus. No entanto, ao defender Deus, Eva não o citou corretamente. Ela
alterou ligeiramente Suas palavras, e sua interpretação das declarações divinas criou
uma armadilha para ela. Suas pequenas modificações fornecem algumas dicas para o
leitor do que pode ter acontecido na mente de Eva.
O diálogo entre a serpente e Eva foi “a primeira conversa sobre Deus”.12 Walter
Brueggemann explica com excelência: “Deus é tratado como uma terceira pessoa. Deus
não é uma parte da discussão, mas é o objeto envolvido da discussão. Isso não é falar
para Deus ou com Deus, mas sobre Deus. Deus foi objetivado.”13 Phyllis Trible sublinha:
“A serpente e a mulher discutem teologia. Eles falam de Deus”, mas “somente usando
o apelativo Deus, eles estabelecem aquela distância que caracteriza a objetividade e
convida à desobediência”.14
É digno de nota que ao referir-se à Pessoa divina apenas como Deus (Elohim) em
vez de falar sobre Ele de maneira pessoal com Seu nome próprio da aliança, o Senhor
(Yahweh), Eva está se distanciando de seu Criador.15 Eva também faz quatro mudanças
no comando explícito do Senhor. Primeiro, em vez de enfatizar sua liberdade de comer
e desfrutar de cada fruto de “qualquer” árvore no Jardim do Éden, ela menciona que
eles “podem comer o fruto das árvores do jardim”. Em segundo lugar, em vez de falar
sobre a natureza da árvore proibida (“a árvore do conhecimento do bem e do mal”), ela
aponta para sua localização geográfica (“que fica no meio do jardim”). Para ela, essa
árvore proibida tornou-se a árvore mais importante, o centro e o foco de sua atenção.16
Em terceiro lugar, ela acrescenta às palavras de Deus sobre o fruto proibido: “Não
podemos nem tocá-lo”. Sem dúvida, esta é uma interpretação correta do que o Senhor

11
Satanás repete a mesma estratégia no Jardim do Éden que ele usou contra Deus no céu. Ele leva os
humanos ao pecado pela “mesma deturpação do caráter de Deus que ele praticou no céu, fazendo com
que Ele seja considerado severo e tirânico”, Ellen G. White, The Great Controversy (Mountain View, CA:
Pacific Press, 1950), 500.
12
Dietrich Bonhoeffer, Creation and Fall: A Theological Interpretation of Genesis 1-3 (London: Collins,
1959), 70.
13
Walter Brueggemann, Genesis Interpretation: A Bible Commentary for Teaching and Preaching (Atlanta,
GA: John Knox Press, 1982), 48.
14
Phyllis Trible, God and the Rhetoric of Sexuality (Philadelphia, PA: Fortress, 1985), 109.
15
É significativo que a serpente, assim como Eva, não fale de Deus em um termo pessoal e relacional
como o Senhor (Yahweh), mas simplesmente como o Deus transcendente (Elohim), indicado na conversa
de Gênesis 3: 1-5. Esse tipo de descrição é compreensível para Satanás porque não há relacionamento
próximo ou de aliança entre ele e Deus (como o uso do nome próprio que o Senhor pressupõe). No
entanto, a falta de emprego do nome Yahweh na reação de Eva à pergunta da serpente está
surpreendentemente ausente, porque os capítulos 2-3 usam consistentemente o termo Senhor para Deus
(exceto no diálogo entre a serpente e Eva), o que pode indicar que Eva ilumina o aspecto pessoal de seu
relacionamento com o Senhor.
16
Umberto Cassuto comenta acertadamente: “Seu interesse está centrado no momento na árvore
proibida, e para ela é a árvore – com o artigo definido – no centro do jardim”, Commentary on the Book
of Genesis, 145.

104
disse, porque se alguém não pode comer o fruto proibido, então essa pessoa
certamente não deve chegar perto para admirá-lo, cheirá-lo ou tocá-lo. Mas quando ela
exagera e acrescenta essas palavras, ela pode de repente perceber que sua experiência
empírica (o que ela vê com seus próprios olhos) contradiz a palavra de Deus (“quando
você comer dela, certamente morrerá”), porque a serpente está na árvore , tocando o
fruto, e não está morrendo.17 Em contraste, a serpente está viva e tem a extraordinária
capacidade de falar. A quarta alteração, minúscula, mas significativa, refere-se à
declaração de Deus: “Você certamente morrerá”. Ela minimiza esse comando afirmando
simplesmente: “Você vai morrer”, omitindo a palavra enfática crucial “certamente”.
Este é um sinal textual de que Eva começou a questionar a certeza da morte após a
desobediência.18
Assim, o próximo passo na anatomia do primeiro pecado foi a aparente contradição
entre a experiência empírica e a Palavra de Deus. Isso aprofundou suas dúvidas e criou
desconfiança. Somente depois que essa situação aconteceu, a serpente foi capaz de vir
com um ataque frontal completo que se oporia completamente ao que o Criador
declarou. O Senhor disse: “No dia em que comeres, certamente morrerás” e Satanás
corajosamente contradiz: “Se comeres, certamente não morrerás” Satanás usa a mesma
estrutura sintática que o próprio Deus para dar certeza à sua categórica declaração, mas
invertendo-a com um vigoroso “não” e colocando essa negação na frente de toda a
construção, literalmente dizendo “não – você certamente morrerá”. A conversa
começou com uma quase-pergunta sutil sobre a proibição de Deus, transformando-se
em uma completa “negação das consequências da desobediência”.19 Assim, Satanás
negou categoricamente a penalidade pelo pecado e prometeu uma falsa imortalidade.
Eva agora enfrentava uma decisão crítica — em quem ela confiaria, Deus ou a serpente?
Ela deve seguir a palavra do Senhor ou a outra palavra?
Esta foi uma oportunidade para a serpente agir em sua própria interpretação. Com
seu ataque cardinal, ele trouxe duas ofertas: (1) seus olhos serão abertos, e (2) você será
como Deus, conhecendo o bem e o mal. Se ao menos comessem do fruto proibido,
insistiu a serpente, não morreriam, mas seriam como Deus, conhecendo o bem e o mal.
Esse ganho específico os elevaria a um nível mais alto de existência. Satanás sutilmente
sugeriu que o fruto proibido possuía um poder único semelhante ao fruto da árvore da
vida, que lhes daria acesso ao desconhecido e misterioso.

17
A história bíblica cria a imagem de que a serpente está na árvore e tocando ou comendo frutas, mesmo
que não seja declarado explicitamente. O texto faz essa suposição pelo fluxo do evento e não fornece
uma descrição detalhada de tudo. Cf., com Ellen G. White, Patriarch and Prophets (Nampa, ID: Pacific
Press, 2005), 54-56.
18
A língua hebraica contém uma estrutura sintática gramatical especial quando o infinitivo absoluto está
antes de seu verbo cognato. Neste caso, serve para intensificar ou reforçar a ideia verbal. Esse
fortalecimento é expresso em traduções em inglês com palavras como certamente, em verdade ou de
fato. Veja Gesenius’ Hebrew Grammar, 2ª ed., ed. e enl. E. Kautzsch e A. E. Cowley (Oxford: Clarendon
Press, 1910), 342-343. Eva não usa essa construção sintática e, portanto, a afirmação não parece tão
estrita e severa.
19
Ross, Creation and Blessings, 135.

105
Satanás também afirmou que conhecia a motivação de Deus para a proibição de
não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal: o bem e o mal” (Gn 3:5). Ele
retratou Deus como uma Deidade ciumenta, egoísta, egocêntrica e contida, que retinha
o bem supremo apenas para Si mesmo. Ross explica eloquentemente: “Adão e Eva
viviam em um ambiente que o próprio Deus havia declarado bom.” No entanto, eles
agora eram levados a acreditar que havia um bem maior retido deles, que de alguma
forma eles poderiam elevar a vida para melhor... Ao levantar dúvidas sobre a integridade
de Deus, a serpente os motivou a pecar com a promessa da divindade. A ideia de tornar-
se como Deus tinha um apelo quase irresistível.”20 Em sua racionalização, caíram na
tentação da divinização. Eles desejavam o que não lhes pertencia, para obter o que
nunca poderiam obter ou deveriam ser.
O versículo 6 revela que Eva se envolveu em meditação incorreta, percepção da
realidade e pensamento sobre o fruto proibido (o texto hebraico usa o termo raah,
“ver”). Eva não era anteriormente cega; este verbo sugere uma intensa luta interior e
atividade intelectual. Em seu pensamento, ela “viu” que comer da árvore proibida era
lucrativo em três níveis: “bom para comer”, “delícia dos olhos” e “desejável para obter
sabedoria”.21 Eva observou o fruto proibido, pensou nele e então tomou sua decisão.
Satanás aparentemente prometeu um prazer até então inexperiente, um grande futuro
e um conhecimento superior. Ele apelou para as dimensões físicas, emocionais e
espirituais da vida, e um fruto proibido foi agora associado à beleza e sabedoria. “A
reflexão de Eva concentra-se no bem potencial do fruto e ignora o mal que existe na
desobediência.”22
Quando Eva perdeu a verdadeira imagem de um Deus amoroso e atencioso, as
dúvidas sobre Sua palavra foram cultivadas, as aparentes contradições foram atendidas
sem resposta e as ofertas foram aceitas mentalmente; então “ela pegou e comeu”. A
desconfiança trouxe frutos — um ato visível de desobediência. Quando um
relacionamento amoroso é rompido, a palavra/lei de Deus é rompida. Observe que Eva,
e mais tarde Adão, não foram forçados por Satanás a comer o fruto proibido ou a
desobedecer. A escolha de fazê-lo foi sua ação deliberada. Adão e Eva enfrentaram um
dilema — quem está certo, em quem se deve confiar? Deus e Sua palavra – ou a serpente
(eu, seus próprios olhos, sentimentos, experiência)? Por trás da luta e agonia dessa
decisão está uma questão fundamental, a saber, se Deus pode ser confiável. Assim, no
centro de toda tentação está a pergunta básica: em quem confiarei? A incompreensão
do caráter de Deus produz pensamentos errados que levam a más escolhas e decisões
falsas, seguidas pelo ato tangível de desobediência.
DEFINIÇÕES DE PECADO
O pecado é descrito em Gênesis 3 principalmente em termos teológicos e
relacionais, pois é dirigido contra Deus o Criador e o que Ele representa. Uma

20
Ibid., 136.
21
Uma declaração semelhante está em 1 João 2:16, que fala da trilogia do pecado nos seguintes termos:
o desejo da carne, o desejo dos olhos e a soberba da vida (cf. Ez 16:49-58; Sir. 23:4-5).
22
Ross, Creation and Blessings, 136.

106
terminologia colorida e abrangente para o pecado na Bíblia revela sua natureza
devastadora. O rico vocabulário bíblico demonstra a complexidade do pecado. Em
hebraico há uma trilogia dos principais termos para pecado – a linguagem bíblica mais
forte consiste nos seguintes termos: hattah (o termo mais comum para pecado no
sentido de errar o alvo, desviar-se do caminho certo ou desviar-se de um caminho reto;
a palavra grega hamartia expressa a mesma ideia); avon (transgressão, algo que está
torto, torcido ou torto); e peshah (rebelião, revolta). Deus perdoa todas essas variantes
de pecado e transgressões mencionadas em passagens cruciais das Escrituras Hebraicas
(Êx 34:6; Lv 16:21; Sl 32:1-2; Is 53:5-6, 8-12 ; Dn 9:24). Além dessas três principais
palavras hebraicas para pecado, a Bíblia contém termos adicionais que descrevem a
complexidade do pecado e de nossa natureza pecaminosa. Vocabulário adicional inclui
maldade, culpa, maldade, transgressão, impureza, engano, desonestidade, falsidade,
ofensa, abominação, profanação, perversão, injustiça, erro, injustiça, arrogância,
fracasso e assim por diante.23
Pode-se resumir essa terminologia bíblica explícita que descreve a vasta gama do
problema do pecado em cinco definições principais de pecado que são todas construídas
e expandidas na teologia do pecado apresentada em Gênesis 3:
O pecado, de acordo com Gênesis 3, é um relacionamento rompido com Deus; é
uma tentativa de viver uma vida independente e autônoma à parte de Deus (do grego
autos “eu mesmo” e nomos “lei”, isto é, ser uma lei para si mesmo), uma vida sem Deus,
Sua autoridade, Sua lei, e separada dele. O pecado é, portanto, descriação, a ruína da
criação de Deus. O pecado reverte todas as três funções e propósitos fundamentais da
vida para os quais a humanidade foi criada de acordo com o relato de Gênesis. O pecado
corta a proximidade da humanidade com Deus, destrói uma comunhão de confiança e
aliena a humanidade da presença do Senhor. Assim, o mal destrói as qualidades básicas
da vida, separa o indivíduo de Deus e isola a humanidade Dele. Uma pessoa que vive em
pecado não confia em Deus, decide por sua própria autoridade o que é certo ou errado,
e é uma lei para si mesma. O pecado vem como resultado da recusa da autoridade de
Deus e uma relutância em reconhecê-lo como o Criador a quem se deve prestar contas.
A lei de Deus é primeiramente rompida na mente e depois no comportamento. Assim,
o pecado é desconfiança ou descrença em Deus; é um estado de espírito que rejeita
diretamente a lei de Deus.24 Essa busca por autonomia leva à separação de Deus e de

23
“Pode-se contar mais de cinquenta palavras para pecado no hebraico bíblico, se termos específicos e
genéricos forem isolados”, David Noel Freedman, et al., eds., The Anchor Bible Dictionary (New York:
Doubleday, 1992), 6: 31. Há sete palavras gregas principais que descrevem a abundância de pecado no
Novo Testamento: hamartia, paraptoma, parakoe, adikia, asebeia, kakia e opheiletes. Para detalhes sobre
a terminologia bíblica hebraica e grega sobre pecado e o conceito e compreensão do pecado, veja The
Anchor Bible Dictionary, 6:31-47; Geoffrey W. Bromiley, et ai., eds., The International Standard Bible
Encyclopedia (Grand Rapids, MI: William B. Eerdmans Publishing Company, 1979), 4:518-525; George
Arthur Buttrick, et al., eds., The Interpreter’s Dictionary of the Bible (Nashville, TN: Abingdon Press, 1962),
4:361-376.
24
Ellen G. White define claramente o primeiro pecado de Adão e Eva no Jardim do Éden como
“desconfiança da bondade de Deus, descrença de Sua palavra e rejeição de Sua autoridade, que fez nossos
primeiros pais transgressores, e que trouxe ao mundo um conhecimento do mal”, Education, 25. A

107
Sua presença. Ted Peters expressa com excelência essa realidade: “No coração ou
essência de todo pecado está a falha em confiar em Deus. O pecado é nossa falta de
vontade de reconhecer nossa condição de criatura e dependência do Deus da graça.”25
Essa definição crucial de pecado leva os teólogos a diferenciar entre pecado
[singular] e pecados [plural], afirmando que os pecados derivam do entendimento
básico do pecado como um relacionamento rompido com Deus. O pecado é, portanto,
algo mais do que uma ação; é uma atitude e rebelião contra Deus, Seu mandamento e
Seus valores. Está presente onde as pessoas se amam mais do que a Deus e Sua criação.
Tal atitude leva a ações visíveis, concretas e pecaminosas (Ez 18:5-9, 11-13, 15-17; 22:1-
12; 33:25-26; Mt 5:19-21; Cl 3:5-9; Ap 22:15).26 A diferença entre o pecado e os pecados
é semelhante à diferença entre a raiz e o fruto. Todas as outras explicações bíblicas do
pecado brotam dessa compreensão fundamental do pecado fornecida na narrativa da
queda.
Outra definição bíblica bem conhecida de pecado, firmemente enraizada em
Gênesis 3, é encontrada nos escritos do apóstolo João: o pecado é a transgressão da lei
(1 João 3:4; a palavra grega anomia significa literalmente “ilegalidade”), um ato concreto
de desobediência. É um resultado visível de um relacionamento rompido, um resultado
de pensamento errado, um efeito de fé rompida e um produto de desconfiança. A
pergunta de Deus: “Você comeu da árvore da qual eu ordenei que você não comesse?”
(Gn 3:11), revelou que a desobediência é o resultado de desrespeitar o mandamento de
Deus. Dessa forma, o pecado é uma rebelião desafiadora e arrogante contra Deus e uma
orgulhosa rejeição de Sua palavra, vontade e autoridade. Viver em pecado significa viver
sem se concentrar em Deus e cumprir Sua vontade. Assim, o pecado é entendido como
um ato ou ação externa.
Terceiro, o pecado é um estado em que os humanos nascem. Isso já está refletido
em Gênesis 5:1-3, que afirma que Adão foi criado à imagem de Deus, mas Sete nasceu
à imagem de Adão, seu pai. A diferença entre Adão criado à imagem de Deus (Gn 1:26-
27) e Sete feito à imagem de Adão (Gn 5:3) pode ser explicada pelo evento que trouxe
essa mudança: a Queda que Gênesis 3 descreve. Depois que Adão e Eva pecaram, a
natureza humana se corrompeu e sua posteridade nasceu com uma natureza
pecaminosa. Davi declara claramente: “Certamente fui pecador ao nascer, pecador
desde o momento em que minha mãe me concebeu” (Sl 51:5). Também no Salmo 58:3,
Davi fala sobre a atitude errada dos ímpios para com Deus: “Mesmo desde o nascimento
os ímpios se extraviam; desde o ventre eles são rebeldes, espalhando mentiras.” O
pecador não considera Deus ao tomar decisões na vida. “Todas as ações justas da
humanidade são como trapos de imundícia” (Is 64:6); os corações humanos são
pervertidos e enganosos (Jr 17:9). Os humanos não são capazes de mudar sua natureza,
assim como um leopardo não pode mudar sua pele (Jr 13:23). Sem exceção, todos

natureza do pecado é assim explicada pelo conceito de um relacionamento rompido e um estado de


espírito hostil para com Deus.
25
Ted Peters, Sin: Radical Evil in Soul and Society (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1998), 8.
26
George Knight, I Used to be Perfect: A Study of Sin and Salvation, 2nd ed. (Berrien Springs, MI: Andrews
University Press, 2001), 18-24; Peters, Sin: Radical Evil in Soul and Society, 23-24.

108
nascem pecadores (Ec 7:20; Rm 3:23; 1Jo 1:8), naturalmente temerosos e alienados de
Deus (Gn 3:10; Ef 2:1,12, 19).27
O apóstolo Paulo explica claramente: “Não entendo o que faço. Pois o que eu quero
fazer eu não faço, mas o que eu odeio eu faço. E se faço o que não quero fazer... é o
pecado vivendo em mim. Eu sei que nada de bom vive em mim, isso está na minha
natureza pecaminosa [literalmente “em minha carne”]. Pois tenho o desejo de fazer o
que é bom, mas não posso realizá-lo. Pois o que faço não é o bem que queria fazer; não,
o mal que eu não quero fazer – isso eu continuo fazendo. Ora, se faço o que não quero,
já não sou eu que o faço, mas é o pecado que vive em mim que o faz” (Rm 7:15-20). Esta
passagem esclarece que o pecado está no centro da natureza humana. Embora ser
humano em si não seja pecaminoso, os seres humanos nascem com uma natureza
pecaminosa e, consequentemente, nascem como pecadores separados de Deus e
necessitados de salvação. Como pecadores, eles amam e produzem pecado, e sua
natureza pecaminosa é caracterizada pelo egoísmo, tendências ao mal, propensões ao
pecado e inclinações para o mal. O poder do pecado escraviza os humanos (Rm 5:6; 6:6-
7, 14; 7:25). Como a macieira produz maçãs e a figueira, figos, os pecadores produzem
pecado porque a pessoa inteira é afetada e corrompida pelo pecado.
Em sua epístola, Tiago destaca a mesma verdade quando explica que o pecado
começa com os desejos internos, o “mau desejo” que está dentro. Quando o desejo é
cultivado, a pessoa alcança o fruto proibido, que produz o pecado. A menos que seja
acariciado, esse desejo errado ainda não é pecado, mas quando é rendido, leva a ações
erradas e à morte. O pensamento e a imaginação errados impelem o indivíduo a ter o
que aparentemente lhe falta; cedendo ao desejo, o pecado é assim consumado (Tg 1:14-
15). Os humanos não são culpados por essa tendência pecaminosa e propensão ao
pecado enraizada em sua natureza, mas esse fato os coloca sob condenação e alienação
em relação a Deus (Jo 3:36; Ef 2:1-3). Os humanos pecam porque são pecadores,
marcados por pensamentos e orientações errados. Eles são culpados quando brincam e
se associam a esses desejos malignos.
Quarto, o pecado é uma negligência em fazer o bem, uma omissão em fazer o que
é certo (Tg 4:17), uma atitude de indiferença. Essa atitude também pode ser chamada
de apatia ou mornidão (Ap 3:15-18). Não basta não errar. O pecado de omissão leva ao
pecado de compromisso, a ações incorretas ou nenhuma ação. O cristianismo não é
apenas evitar o mal, embora isso esteja incluído (Tg 1:27), mas a verdadeira religião é
fazer o que é bom, certo e proveitoso (Mq 6:8; Jo 5:29; Tt 3:8; Tg 1:27; cf. Fl 4:5-6). Não
basta simplesmente confessar a fé; boas ações são importantes (Gl 5:4; Tg 1:27; 1Pe 2:9;
Ef 2:10). No entanto, as boas ações não são a causa, mas o resultado e fruto da salvação.
Obediência e boas obras não são importantes para a construção do caminho para o céu
(todos são salvos pela graça de Deus através da fé em Cristo Jesus), mas para a salvação
de outras pessoas (Mt 5:16). Eles também são cruciais para mostrar aos crentes se eles
são consistentes em sua fé, se estão vivendo vidas de integridade e se sua fé é uma fé

27
Somente Jesus nasceu como “o Santo” (Lucas 1:35); todos os humanos nascem hostis a Deus (Rm 8:7),
alienados dEle e mortos em seus pecados (Sl 51:5; Ef 2:1-3).

109
viva (Tg 2:14,17,20,26). Conhecer a verdade e praticá-la deve sempre andar de mãos
dadas.
(1) E quinto, o pecado constitui não crer em Jesus Cristo, porque Ele é a única
solução para a pecaminosidade humana (Jo 16:8-9). Os humanos não podem ajudar a si
mesmos, curar o problema do pecado e curar seu próprio quebrantamento. Cristo é o
único e único Salvador do mundo (At 4:12; 16:31; Rm 8:1; 1 Jo 5:12-13). Pecado é
descrença em Jesus, uma recusa de Sua atividade salvadora em nosso favor porque Ele
é o único que pode nos resgatar da escravidão do pecado. Em outras palavras, ninguém
será condenado à morte eterna no juízo final porque é pecador (a realidade é que todos
são pecadores, todos pecaram – Ec 7:20; Rm 3:23; 1 Jo 1:8), mas porque a pessoa não
se arrepende e se recusa a aceitar Jesus como a solução para sua pecaminosidade.
Deixar de aceitar Jesus como seu Salvador pessoal, escolher permanecer no pecado, é
fatal (Pv 24:16; Jo 3:36).
CONSEQUÊNCIAS DO PECADO DE ACORDO COM GÊNESIS 3
O mundo moderno é dominado pelo comportamento maligno e pecaminoso. O
mundo está incuravelmente doente. A presença do mal traz resultados terríveis para a
raça humana. Gênesis 3 não apenas explica como o paraíso foi perdido, mas também
apresenta as consequências da desobediência e como Deus reage à transgressão de Seu
mandamento.
Após o pecado de Adão e Eva, as imagens em Gênesis 3 mudam. Vergonha, culpa,
medo, degradação e humilhação aparecem de repente. O brilho da vida se transforma
em escuridão. Brueggemann comenta: “O que era uma história de confiança e
obediência (capítulo 2) agora se torna um relato de crime e punição (3:1-7).”28 O pecado
é uma maldição que traz consequências terríveis. Como uma avalanche, começa
aparentemente como nada, mas depois quebra e derruba tudo o que é belo, valioso e
significativo, destruindo completamente a vida. O pecado interrompe relacionamentos
significativos, causando miséria, sofrimento, separação e complicações. O que era
originalmente muito bom agora está corrompido e manchado pelo pecado. Gênesis 3
menciona as múltiplas consequências do pecado:
O pecado/desobediência abriu os olhos do primeiro casal, mostrando-lhes sua
nudez. Ao comer o fruto proibido, Satanás sugeriu que seus “olhos se abririam” (Gn 3:5),
e após sua desobediência, o narrador afirma que “os olhos de ambos foram abertos”
(Gn 3:7). No entanto, seus olhos foram abertos de forma diferente do que haviam
contemplado. Nesse engano, Adão e Eva realmente perderam o que tinham e
perceberam que estavam nus. Eles começaram a perceber a realidade da vida de forma
diferente depois de perder sua inocência (Gn 3:7). Eles não apenas perderam suas vestes
de luz,29 mas após o rompimento em seu relacionamento com Deus, sua própria

28
Brueggemann, Genesis: A Bible Commentary, 48.
29
Gênesis 2:25 não indica explicitamente de que maneira Adão e Eva estavam sem roupas, mas o alcance
semântico de arom em conexão com o Salmo 104:1-2 sugere que as “vestes” originais de Adão e Eva eram
“vestes de luz e glória”, Richard M. Davidson, Flame of Yahweh: Sexuality in the Old Testament (Peabody,
MA: Hendrickson Publishers, 2007), 56; cf., Jacques B. Doulthan, The Literary Structure of the Genesis

110
natureza se corrompeu. O relacionamento rompido com Deus levou a um
relacionamento rompido consigo.
Quando Adão e Eva viram sua nudez, eles perceberam e sentiram pela primeira vez
seu sentimento de vergonha e culpa. Eles se sentiram miseráveis e experimentaram
remorso de consciência (2:25; 3:7). A nudez de Adão e Eva refere-se a mais do que uma
exposição corporal física. Gênesis 3:7 e 10 revelam que quando Deus apareceu no Jardim
do Éden, Adão e Eva não estavam mais fisicamente nus porque estavam cobertos com
folhas de figueira (v. 7), mas Adão declarou: “Tive medo, porque estava nu” (v. 10). Eles
estavam “vestidos”, mas ainda nus. Assim, essa nudez era maior do que um fenômeno
físico. Como resultado de seu relacionamento rompido com Deus, sua natureza foi
rompida e sua posteridade herdaria a mesma natureza pecaminosa, uma natureza
corrompida pelo pecado, com suas propensões, inclinações para o mal e tendência ao
pecado (Gn 3:7, 10; 5:1-3; 6:5). Isso significa que cada parte de cada ser humano está
corrompida pelo pecado; a pessoa inteira está perdida e não pode ser salva sem a
atividade redentora de Deus.
Pela primeira vez, Adão e Eva sentiram uma vergonha intensa, e sua cobertura feita
de folhas de figueira não pôde ajudá-los. O termo 'erom usado em Gênesis 3 denota em
outras partes do Antigo Testamento uma vergonhosa exposição da nudez (Dt 28:48; Ez.
16:7, 22, 39; 18:7, 16; 23:29), que eles tentaram cubrir com folhas de figueira (3:7).
Victor Hamilton esclarece corretamente sua tentativa como um ato de autojustificação:
“Em vez de levá-los de volta a Deus, sua culpa os leva a um procedimento de
autoexpiação e autoproteção: eles devem se cobrir”.30 Sua atividade de cobertura pode
ser teologicamente caracterizada como “justiça pelas obras”.
(2) A nudez após o pecado significa nudez interior, ser desmascarado, consciência
de culpa, vergonha total, perda de integridade, sentimentos de degradação, derrota,
inocência arruinada e o desaparecimento da luz. Gordon Wenham afirma com razão:
“Uma transformação mais completa não poderia ser imaginada. A confiança na
inocência é substituída pelo medo da culpa.”31 O primeiro pecado afetou
profundamente a natureza humana. Enquanto os vestígios da imagem de Deus nos
humanos permaneceram, eles foram perdidos, rompidos, alienados e condenados à
morte. O amor ao pecado e as inclinações para o mal se sobrepuseram a eles e
tornaram-se parte integrante de sua natureza humana.
O pecado/desobediência levou Adão e Eva a temer a Deus. Em vez de desfrutar da
presença de Deus e regozijar-se em Sua companhia, eles se esconderam Dele. Sua
desobediência, resultante de um relacionamento vertical rompido com Deus, causou
sua separação dEle (Gn 3:10). Eles se escondiam em vergonha, culpa e medo.

Creation Story, Andrews University Doctoral Dissertation Series 5 (Berrien Springs, MI: Andrews University
Press, 1978), 83-90.
30
Victor P. Hamilton, The Book of Genesis: Chapters 1-17, The New International Commentary on the Old
Testament Series (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1990), 191.
31
Gordon J. Wenham, Genesis 1-15, vol. 1, Word Biblical Commentary Series (Waco, TX: Word Books,
1987), 76.

111
Consequentemente, todos os seres humanos agora nascem com uma atitude alienada
e antagônica em relação a Deus e naturalmente tem medo Dele (Ef 2:1-3).
O pecado/desobediência levou Adão e Eva a culpar um ao outro por seu fracasso (a
dimensão horizontal da vida foi rompida). Eles agora experimentaram um
relacionamento rompido um com o outro (Gn 3:12; 4:5-8). O pecado aliena assim as
pessoas umas das outras: “Mas algo neles e entre eles morre. Seu senso de si mesmos
e seu relacionamento um com o outro está arruinado.”32 “O pecado minou tanto o senso
de si mesmo quanto o senso de pertencimento ao outro.”33 Os pecadores se recusam a
aceitar a responsabilidade por seu comportamento errado. Eva culpou a serpente pela
sedução. Adão não apenas culpou Eva por lhe dar o fruto proibido, mas na verdade
culpou o próprio Deus porque foi Deus quem a deu a ele. A autovindicação faz com que
a pessoa encontre falhas além, e não dentro de si mesma.
O pecado/desobediência trouxe a morte porque o relacionamento com a vida real
foi rompida (Gn 2:17; 3:3, 19; cf. Rm 6:23). Adão e Eva voltariam ao pó, símbolo da
fragilidade e da morte: “até que voltes à terra, pois dela fostes tomados; porque és pó
e ao pó tornarás” (Gn 3:19). A morte não foi um tema principal em Gênesis 2, embora
tenha sido mencionado por Deus (Gênesis 2:17), porque o Deus da criação é sobre vida
e abundância. A morte “não era uma ameaça, mas um sincero reconhecimento de um
limite da vida. Mas a fronteira agora é alterada para se tornar uma ameaça. Transforma-
se num terror que põe tudo em causa. Não é Deus, mas a serpente que fez da morte
uma agenda humana primária.”34
O pecado/desobediência tornaria o parto e a criação de filhos uma experiência
dolorosa (Gn 3:16).
O pecado/desobediência faria do casamento um lugar de luta pelo domínio e
supremacia em vez de um relacionamento amoroso, carinhoso, emocional e íntimo
entre parceiros heterossexuais iguais (Gn 3:16).
O pecado/desobediência tornaria o trabalho uma experiência dolorosa (Gn 3:18).
Suor e cansaço se tornariam parte desse esforço.35
O pecado/desobediência rompeu a relação com a natureza. O solo produziria
espinhos e cardos, e seria explorado e corrompido (Gn 3:18; 6:11).
O pecado/desobediência traria violência, dor, ódio, poligamia e assim por diante.
Tudo que é bom, significativo e belo foi corrompido pelo pecado (Gn 6:11-13) como
evidenciado pelas narrativas subsequentes de Gênesis.

32
Craig G. Bartholomew and Michael W. Goheen, The Drama of Scripture: Finding Our Place in the Biblical
Story (Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2014), 41.
33
Bartholomew and Goheen, The Drama of Scripture, 43.
34
Brueggemann, Genesis: A Bible Commentary, 48.
35
No entanto, o trabalho problemático era uma bênção disfarçada, um meio de parar a avalanche do mal
e um processo de aprendizado sobre como fazer o que era certo e ajudar a desenvolver o caráter.
Precisamos perceber que certas punições descritas em Gênesis 3 “também eram promessas de alívio
futuro”, Ross, Creation and Blessings, 142.

112
O pecado/desobediência cegou as pessoas. Uma das terríveis características do
pecado é que os pecadores tendem a negar sua real condição, e os sinais de perdição
não são frequentemente discernidos e aceitos. O pecado leva à negação da verdade
sobre a própria pecaminosidade.
Em seu notável estudo do pecado, Ted Peters descreve a natureza progressiva do
pecado em seu padrão lógico (não tanto em sua ordem cronológica). Ele aponta o
caminho para a natureza radical do mal, que ele define como “o mal perseguido em
nome do mal”36 e explica a evolução do mal nos sete passos seguintes: (1) ansiedade,
(2) infidelidade, (3) ) orgulho, (4) concupiscência, (5) autojustificação, (6) crueldade e,
finalmente, (7) blasfêmia.37 Ele descreve o último passo da blasfêmia ou mal radical não
tanto como “a contaminação do nome de Deus”, mas sim como “o uso indevido de
símbolos divinos ... para impedir a comunicação da graça de Deus”.38
A SOLUÇÃO DE DEUS
A esperança aparece em Gênesis 3 contra toda desesperança. Em meio à escuridão,
desobediência, desespero, julgamento e condenação, Deus assegura o futuro da
humanidade apesar do fato de que Adão e Eva não merecem viver. O pecado não pode
ser desfeito, o relógio não pode voltar atrás e a realidade não pode ser revertida. No
entanto, a solução para o problema do pecado vem do próprio Deus: “A salvação vem
do Senhor” (Jn 2:9; Sl 27:1; Is 12:2). A teologia da aliança é a chave para a teologia do
pecado e da salvação. “A Narrativa do Éden fala de uma escolha radical, uma escolha
entre obediência e desobediência ao mandamento divino.”39 Ross declara: “A rebelião
pecaminosa contra Deus traz dor, conflito e morte; mas a confissão a Deus garante as
provisões graciosas de Deus.”40 No entanto, a graça de Deus precede o arrependimento
e a mudança humana. O Senhor sempre dá o primeiro passo e é o Iniciador da nossa
salvação. Deus confronta o mal e responde a ele como o Criador amoroso e Juiz gracioso.
“A cena se torna uma provação.”41 Ele não abandonou nem destruiu Adão e Eva em seu
pecado. Pelo contrário, Ele está em busca da humanidade. Deus está a caminho de
encontrá-los.
Existem pelo menos sete indicadores das atividades salvadoras de Deus em relação
à humanidade de acordo com Gênesis 3.
1. Deus vem a Adão e Eva com graça. Ele clama por Seus filhos perdidos e
desaparecidos: “Onde você está?” (Gn 3:9). Por causa da graça divina e imerecida
fluindo do Calvário, eles puderam viver (Ap 13:8). Os pecadores estão perdidos; no
entanto, Deus graciosamente chama todos os pecadores de volta a Si mesmo como

36
Peters, Sin: Radical Evil in Soul and Society, 9.
37
Ibid., 10-17.
38
Ibid., 16.
39
Tryggve N. D. Mettinger, The Eden Narrative: A Literary and Religio-historical Study of Genesis 2-3
(Warsaw, IN: Eisenbrauns, 2007), 52.
40
Ross, Creation and Blessings, 150.
41
Brueggemann, Genesis: A Bible Commentary, 49; Claus Westermann, Genesis 1-11, A Continental
Commentary (Minneapolis, MN: Fortress Press, 1994), 252-255.

113
chamou Adão e Eva (por exemplo, Is 45:22; Ez 18:31-32; Jl 2:12-14). Este princípio é
revelado na Bíblia desde o início – os humanos pecam, mas Deus toma a iniciativa e os
convida de volta a Si. Os seres humanos, assim, respondem à maravilhosa e prevalecente
graça de Deus, e Sua bondade leva as pessoas ao arrependimento (Rm 2:4). A primeira
pergunta de Deus é um convite da graça, uma expressão de Seu profundo amor em
busca da humanidade que simultaneamente revela o julgamento de Deus (ver Êx 34:6-
7; Jo 3:16; Rm 5:8; 2Co 5: 21).42
2. Deus provê uma vestimenta real (Gn 3:21). Como a nudez do primeiro casal era
mais do que um fenômeno físico, segue-se analogicamente que a vestimenta representa
mais do que um vestido físico. Há um contraste no texto bíblico entre “eles fizeram” e
“ele fez”. O que Adão e Eva não puderam fazer por si mesmos para cobrir sua culpa e
vergonha, Deus fez por eles. Ele lhes deu uma vestimenta de pele e assim cobre os
pecadores com a vestimenta de Sua justiça (1Co 1:30; 2Co 5:21; Ap 7:14; 22:14). Ele
sacrificou o primeiro animal a fim de fornecer a solução para o problema do pecado em
vista do Messias (Ap 13:8; Ef 1:4; 1Pe 1:20).43 O perdão e sua redenção foram garantidos
através do sacrifício gracioso de Deus representado pela morte do animal cuja pele eles
estavam vestindo.44
3. Deus cria inimizade entre os poderes do bem e do mal (Gn 3:15a) no contexto da
guerra espiritual. Este tema do grande conflito introduz o imaginário da guerra e da
tensão. Porque, como pecadores, amamos o pecado, Deus ajuda os humanos
introduzindo inimizade contra o mal e os capacita a odiar o mal.
4. Deus promete enviar a Semente (Gn 3:15b) que fará pelos humanos o que eles
não podem fazer por si mesmos: Ele derrotará seu inimigo, Satanás. A declaração de
Deus à serpente está no centro da estrutura literária quiástica do capítulo 3.45 O Messias
se tornará o Redentor e Salvador da humanidade; Sua morte deliberada vitoriosa
acabará por destruir Satanás e, consequentemente, tudo e todos associados a ele. O
Messias é o Vencedor e dá a vitória a todos que se conectam com Ele (Rm 8:1-4). A
vitória final é assegurada por Ele (Ap 12:7-12; 19:6-7, 15-21; Judas 24-25). Assim, Deus

42
A pergunta de Deus: “Onde você está?” tinha um propósito múltiplo: (1) um convite ao diálogo; (2) uma
oferta de graça (Deus não apareceu para matá-los, mas para fornecer uma solução muito cara para sua
nova situação como pecadores; Gn 3:15; Ap 13:8; Ef 1:4; 1 Pe. 1:20); (3) ajudá-los a perceber sua
posição/atitude em relação a Deus (em vez de desfrutar de Sua presença, eles agora estavam se
escondendo Dele); e (4) um julgamento/julgamento investigativo, porque eles foram responsáveis por
suas ações passadas a Deus como seu Criador. Deus é apresentado aqui como seu Juiz.
43
A palavra túnica e a forma específica Hiphil do verbo wayyalbishem, traduzida como “vestido”, pertence
à linguagem do santuário, referindo-se especificamente à vestimenta dos sacerdotes (Êx 28:41; 29:8;
40:14; Lev. 8:13). Em nosso texto, a referência a “pele” implica que um animal foi sacrificado. O ritual do
sacrifício foi então instituído, com toda “a consciência da expiação substitutiva”, Richard M. Davidson,
“The Theology of Sexuality in the Beginning: Genesis 3”, Andrews University Seminary Studies 26, no. 2
(1988): 127.
44
As vestes de pele que Deus deu ao primeiro casal simbolizam a justiça de Deus que é dada aos pecadores
como um dom gratuito da graça de Deus aceita pela fé. Adão e Eva não pediram a vestimenta, Deus
providenciou para eles (Gn 3:21). Esta referência à pele faz alusão ao primeiro sacrifício por se tratar de
pele de animal.
45
Afolarin O. Ojewole, The Seed in Genesis 3:15: An Exegetical and Intertextual Study, Adventist
Theological Dissertation Series (Berrien Springs, MI: Adventist Theological Society, 2002), 98.

114
tem a solução para o problema do pecado, mas esta solução é muito custosa, exigente,
dolorosa e cheia de sofrimento, apesar de ser uma ação decisiva e vitoriosa. Deus não
deixou os humanos ao poder do mal. Ele renunciaria e, como uma Semente prometida,
derrotaria o inimigo, mesmo sabendo que isso lhe custaria a vida. Ele deliberadamente
morreu pela humanidade. “Deus não abre mão de seus propósitos para sua criação e
seu reino. Embora Adão e Eva fujam dele, Deus graciosamente toma a iniciativa de
procurá-los... A descendência da mulher esmagará a cabeça da serpente — em outras
palavras, Deus promete extinguir as forças malignas que Adão e Eva desencadearam.
Esta é a primeira promessa bíblica do evangelho: Cristo será descendente de uma
mulher e derrotará Satanás, embora com grande custo para si mesmo, pois a serpente
o golpeará.'”46 Norman Geisler sublinha em uma declaração resumida: “Deus deseja
restaurar o homem a um relacionamento pessoal vital consigo mesmo através da fé do
homem em Deus através da morte de Jesus Cristo pelo pecado do homem.”47 Jesus
Cristo veio à terra para revelar o verdadeiro caráter de Seu Pai porque a imagem de Deus
foi radicalmente distorcida entre as pessoas, bem como desmascarar e destruir Satanás
(Jo 17:6; 1Jo 3:8). Cristo é o segundo Adão (1Co 15:45), bem como a Semente da mulher
(Gl 3:16-19; 4:4; cf. Dn 9:24-27). A vitória sobre o mal vem somente através do sacrifício
final, humildade e serviço altruísta da Semente; humanos não acrescentam nada a esta
oferta. Ele toma sobre Si a totalidade da maldição da desobediência (Gl 3:13). Os
principais motivos de Gênesis 3, como “trabalho, suor, espinhos, o conflito, a árvore, a
morte, o pó e a semente – todos serão refletidos na experiência do Cristo”.48 Os passos
para a vitória dos humanos são dados por Deus. A Semente prometida morrerá, não os
humanos, e Sua morte será uma morte substitutiva em favor deles. Jesus traz vitória,
libertação da dominação do pecado e libertação do poder do mal.
5. Paradoxalmente, Deus expulsa Adão e Eva do Jardim para impedi-los e protegê-
los de se tornarem pecadores “eternos” e viverem sob a maldição do pecado
permanentemente. Ross explica apropriadamente: “A história termina com a decisão
racional dos Lordes de impedir a humanidade de prolongar a vida em um estado tão
doloroso. . .. Deus agiu para impedi-los de continuar perpetuamente nessa condição.”49
Ele os guiará e os ensinará a confiar Nele e andar humildemente com Ele, e serem
transformados em seu caráter conhecendo-O pessoalmente e de fato. “O caminho para
a vida está disponível, mas apenas da maneira que Deus o proveu.”50 Seu futuro parecia
incerto, mas eles estavam nas mãos carinhosas de Deus. Ele traria vitória sobre seu
inimigo e asseguraria sua salvação. Se eles se voltassem para Ele com fé, Sua vitória seria
deles.
6. Ele ensina os humanos a adorar (Gn 4:3-9). Dar a Adão e Eva roupas feitas de pele
(Gn 3:21) aludia à morte de um animal, um sacrifício pelo pecado deles. Naquela

46
Bartholomew and Goheen, The Drama of Scripture, 42.
47
Norman L. Geisler, The Roots of Evil (Eugene, OR: Wipf and Stock Publishers, 2002), 81.
48
Ross, Creation and Blessings, 141.
49
Ross, Creation and Blessings, 149.
50
Ibid., 141.

115
ocasião, Deus deu insights sobre a verdadeira adoração, que é o cultivo de um
relacionamento genuíno com Deus.51
7. Deus fornece o dom da fé, a capacidade de se apegar à Palavra de Deus como
uma resposta afirmativa à Sua bondade. Embora a palavra “fé” não seja explicitamente
mencionada no capítulo 3 (pela primeira vez, o verbo “crer” aparece em Gênesis 15:4
em relação à fé de Abraão nas promessas de Deus), ela está implícita nas ações de Adão.
e Eva: (1) ambos aceitam as vestes que Deus providenciou para eles (fé é confiança na
graça e na palavra de Deus); (2) Adão deu um nome especial à sua esposa – “Eva” (que
significa “mãe dos viventes” de acordo com Gn 3:20), uma designação cheia de
esperança, um sinal de confiança, um indicador de vida que continuar apesar da
existência do mal, e uma expectativa pela qual ele expressa fé na orientação
misericordiosa de Deus e que Ele proverá, cuidará e manterá o futuro em meio à crise;
(3) Eva expressa sua esperança na vinda do Redentor, a Semente prometida (3:15), ao
nomear seu filho primogênito Caim – “Recebi um homem, o Senhor”.52 Ela esperava que
por meio dele a salvação fosse assegurada e assim eles retornariam ao paraíso perdido.
Que decepção quando ele se tornou o primeiro assassino! A humanidade precisaria
aprender dolorosamente a confiar no Senhor e a segui-lo paciente e consistentemente
e à sua vontade.
A fé traz a vitória. “Esta é a vitória que vence o mundo, a nossa fé” (1 Jo 5:4; cf.
Judas 24). No entanto, a fé em si não é o salvador da humanidade, mas apenas um meio
pelo qual recebemos a vitória de Deus para nós mesmos.53 A fé é um relacionamento de
confiança, uma confiança na Palavra de Deus. A fé salvadora não é uma qualidade inata
dos crentes e não sua realização, mas um dom de Deus (Ef 2:8; Fl 1:29; Jd 3). Os humanos
são responsáveis se não creem, porque a fé é comunicada pelo ouvir o Evangelho (Rm
10:17) e pela revelação geral de Deus (Rm 10:18-20). Este é um paradoxo bíblico. Os
seres humanos não podem por si mesmos vencer o pecado; somente Deus pode resolver
o problema do pecado e dar-lhes vitória sobre ele pelo Seu poder divino. A vitória vem
de uma fonte externa fora da humanidade como um dom de Deus através da fé. Os seres
humanos podem lutar contra diferentes sintomas do pecado e tentar superar hábitos
errados, mas o que eles realmente precisam é de uma transformação de coração, a
experiência de um novo nascimento, um coração puro (Jo 3:3, 5; Sl 51:10), porque seu
verdadeiro problema são seus corações inalterados.54

51
Jin Moskala, “The Mission of Gods People in the Old Testament,” Journal of the Adventist Theological
Society 19, nos. 1-2 (2008): 40-60
52
A tradução é minha. A partícula hebraica et deve ser tomada como um indicador de um objeto direto
(não como uma preposição “com”). Significa “o Senhor” e está em oposição à palavra anterior, “homem”.
Assim, a explicação de Eva deve ser traduzida da seguinte forma: “Recebi um homem, a saber (que é) o
Senhor”.
53
Em grego, é expresso pela preposição dia plus genitivo de pistis, que significa “fé”; dia pisteos significa
literalmente “pela fé” (e não por dia plus acusativo de pistis que então significaria “por causa da fé” ou
“pela fé”).
54
A vitória vem do alto como um dom de Deus. Precisamos nascer de novo, o que significa nascer de cima
(a palavra grega uanothen" significa "de novo", mas também "de cima"). Somente quando decidimos por
Deus, nos rendemos a Ele, permitimos que o Espírito Santo trabalhe em nós, e aceitamos continuamente

116
Onde o primeiro Adão falhou, o segundo Adão venceu (Rm 5:14-21; 1Co 15:22, 45-
49). O que os humanos perderam no Jardim do Éden, Cristo veio restaurar na cruz. A
nova e verdadeira identidade da humanidade pode e deve ser moldada e construída de
acordo com a vitória realizada por Jesus Cristo. Deus não deixou a humanidade ao poder
de Satanás e do pecado - o Espírito de Deus traz vitória quando os indivíduos se apegam
pela fé a Deus e à Sua Palavra, porque somente o Espírito Santo e a Palavra de Deus
podem produzir a verdadeira vida (Ez 36:25- 27; Rm 8:4, 14).55 A solução para o pecado
envolve não apenas perdão, mas renovação e restauração à imagem de Deus e
libertação da escravidão ao pecado. Uma nova vida é orientada pela palavra e pelo
Espírito (Rm 8:2-6; Cl 3:1-4, 10). Aqueles que não vivem segundo a carne, mas segundo
o Espírito, e aqueles que são guiados pelo Espírito Santo são filhos e filhas de Deus (Rm
8:14). Somente quando os indivíduos se entregam a Deus, decidem por Ele e permitem
que Ele seja Deus em suas vidas, eles experimentam a diferença e uma nova vida. Os
crentes precisam se esforçar todos os dias por um relacionamento próximo com Deus
para que nada nem ninguém possa tirar isso deles (Rm 8:31-39). Somente Jesus pode
transmitir a verdadeira alegria de uma nova vida vitoriosa (Rm 7:25). Somente a Ele seja
a glória (Jr 9:23-24; Rm 11:33-36).
(2) A boa notícia é que Jesus Cristo regenera e muda o coração dos indivíduos (Jo
3:3-5); perdoa todos os seus pecados (Is 1:16-19; 1Jo 1:8-9); liberta-os da escravidão do
pecado (Jo 12:31-32); e transforma suas vidas (Rm 12:1-2; 2Co 5:17; 1Jo 3:1-3). Se o Filho
dá liberdade, cada pessoa é realmente livre. Há esperança para todos, porque o pecado
foi vencido pela pessoa humilde de Jesus Cristo, que é a garantia da liberdade, da paz e
da alegria. A natureza pecaminosa da humanidade não muda ou desaparece através da
conversão ou arrependimento de um indivíduo; entretanto, a natureza, tendências ou
inclinações pecaminosas (herdadas ou cultivadas) podem ser controladas pelo poder do
Espírito Santo, Sua Palavra e a graça de Deus (Rm 7:25; 8:1-11). Somente na segunda
vinda os crentes serão completamente transformados e receberão um corpo
incorruptível (1Co 15:50-57; Fl 3:20-21; 1Jo 3:2-5). Os crentes não são capazes por si
mesmos de realizar boas obras, que são resultado do poder transformador da graça de
Deus e da obra do Espírito Santo (Jo 1:12; 15:1-5; Rm 1:16-17; 8:1-4; 1Co 1:18-25, 30-
31; 2:12-15; Gl 5:22-23; Ef 1:10; Fil 4:13; 1Pe 2: 9-10).
CONCLUSÃO
Deus criou um mundo perfeito que foi distorcido pelo pecado, uma ferida fatal que
trouxe consequências terríveis. Eugene Peterson descreve a situação perdida da

a Palavra de Deus somos nós filhos e filhas de Deus (João 1:12-13; Rm. 8:14), uma nova criação (2 Co.
5:17).
55
Os primeiros versículos da Bíblia fornecem a primeira definição da verdadeira vida. A vida só pode
acontecer quando o Espírito de Deus (Gn 1:2b) e a Palavra de Deus (Gn 1:3) se unem e reinam (no primeiro
relato da criação a frase “e disse Deus” ocorre dez vezes). Espírito + Palavra = Vida. Isso é correto não
apenas para a criação da vida física, mas também para o nascimento da vida espiritual. Uma pessoa só
pode nascer de novo quando nasce do alto - quando essa pessoa se abre à influência do Espírito Santo
(João 3:5-8; Rm 8:14; Tt 3:5) e crê na Palavra de Deus (João 1:12-13; 1 Pe. 1:23; Tiago 1:18). A regeneração
é possível e pode ser experimentada porque Deus é nosso Criador. Ele cria em nós uma nova vida (Sl
51:10).

117
humanidade: “Ocorreu uma catástrofe. Não estamos mais em continuidade com o nosso
bom começo. Fomos separados dele por um desastre. Também estamos, é claro,
separados do nosso bom fim. Estamos, em outras palavras, no meio de uma confusão.”56
Por causa do problema do pecado, os seres humanos vivem em um mundo
“profundamente ferido”57 destinado à morte. Na criação, Deus dotou os humanos de
livre arbítrio, e ser humano significa possuir liberdade de escolha. No entanto, essa
liberdade foi comprometida porque os humanos provaram o fruto proibido que engana
e perverte seu julgamento do que é bom e mau. O problema é a natureza pecaminosa
que os inclina para o mal, o amor pelo pecado e o desejo de autorrealização egoísta e
egocentrismo. Os humanos não respeitam mais a Palavra e a vontade de Deus. Esse
desrespeito pela orientação divina complica tragicamente a vida.
A Palavra de Deus revela a origem do pecado e do mal no mundo. Em Gênesis 3, o
pecado é descrito como um relacionamento rompido, uma desconfiança de Deus, uma
recusa em seguir Sua Palavra e incredulidade. É uma vida egocêntrica, egoísta e uma
rejeição da autoridade de Deus, Sua Palavra, Seu mandamento e Sua lei, que não é um
mero código de normas, mas uma expressão de Seu caráter amoroso e santo. Os
pecadores não reconhecem e apreciam Sua bondade, amor, justiça, ordem e cuidado. O
pecado subestima, obscurece e cega os valores reais da vida e as graves consequências
do pecado. O pecado é uma atitude errada, um poder escravizador que muda a natureza
humana e leva à violência, problemas e morte.
Alguns tendem a ver o pecado de maneira superficial, mecânica e unilateral, como
um ato ou simplesmente como um ato externo. No entanto, o pecado tem uma base
mais profunda e conotações maiores. Não pode ser definida apenas como a
transgressão da lei. O pecado é primeiro um termo teológico dirigido contra Deus (Gn
3:1; Sl 51:4) que arruína relacionamentos e integridade pessoal. A transgressão desonra
a humanidade, mas principalmente desonra a Deus, e a desobediência rouba a Deus de
Sua honra como Criador da humanidade. Quando as criaturas de Deus se rebelam contra
Ele, Sua glória, reputação e nome são menosprezados, e o esplendor e majestade de Sua
Pessoa e caráter são degradados. Quando o relacionamento vertical com Deus é
rompido, causa o colapso de todos os outros relacionamentos (o eu, o outro, a vida e a
natureza). A consequência do pecado é a morte (Rm 6:23). Sua negatividade é
claramente vista no relato do dilúvio, onde tudo foi corrompido (isto é, destruído pelo
pecado),58 e o povo antediluviano é retratado como possuindo pensamentos malignos

56
Eugene H. Peterson, Working the Angles: The Shape of Pastoral Integrity (Grand Rapids, MI:
Eerdmans, 1987), 82-83.
57
Bartholomew and Goheen, The Drama of Scripture, 40.
58
Moisés joga com uma palavra hebraica shachat, que tem dois significados em inglês: (1) corromper e
(2) destruir. Esta peça é melhor descrita em Gênesis 6:11-13, que mostra que Deus não vem destruir o
que é bom, significativo, bonito e tem potencial para crescer, mas Ele intervém para destruir o que já foi
destruído (corrompido), e aqueles que são agentes de destruição: “Ora, a terra estava corrompida aos
olhos de Deus e estava cheia de violência. Deus viu como a terra se tornou corrupta, pois todas as pessoas
na terra haviam corrompido seus caminhos. Então Deus disse a Noé: ‘Vou acabar com todas as pessoas,
pois a terra está cheia de violência por causa deles. Eu certamente vou destruir tanto eles como a terra.”'
Compare isso com a declaração de João no livro de Apocalipse, que faz alusão a Gênesis 6, onde o
propósito da segunda vinda de Jesus é explicado da seguinte forma: “O tempo veio para julgar os mortos

118
contínuos (Gn 6:5). O pecado é complexo, embora sua natureza seja clara. O pecado não
é apenas um quebrantamento interior, mas desobediência, depravação do coração com
tendências egoístas e propensões ao pecado, bem como um poder dominador – o
pecado é tudo incluído (Rm 1:18-3:20; Gn 6:5 ; Is 1:5-6; Jr 11:8; Mt 7:18-23; Rm 5-8). O
pecado é um estado de pensar e ser, bem como um ato concreto de rebelião ativa.
O relato da queda ensina as pessoas a não ignorarem o poder do pecado e os ardis
de Satanás (Rm 6:5-7; 2Co 2:11). John Toews afirma: “A serpente pediu à mulher e a
Adão que fizessem um julgamento sobre Deus. Eles fizeram. Elas. . . decidiram
desconfiar de Deus, desconfiar da Palavra de Deus, em busca de autonomia que os
tornasse sábios. Sua desconfiança em Deus os levou à desobediência, a desobedecer à
Palavra de Deus.”59 O pecado é uma separação de Deus, e a salvação é uma restauração
daquele relacionamento rompido com Deus. Na Bíblia, o pecado está associado à
alienação de Deus, amor próprio, desvio do caminho certo, errar o alvo, injustiça, culpa,
escravidão, morte, escuridão, desesperança, egoísmo e verdade distorcida. Vários
termos hebraicos e gregos testificam sobre a vasta gama de influência e decadência do
pecado.
A anatomia do primeiro pecado e a dinâmica da tentação é a seguinte: Primeiro, é
criada uma imagem errada de Deus que O lança em uma luz falsa e distorce quem Ele é.
Segundo, essa visão distorcida gera dúvidas sobre Seu amor e propósitos, seguidas de
mal-entendidos e desconfiança. Terceiro, a discrepância entre a Palavra de Deus e as
observações na vida são apontadas ou descobertas. Quarto vem o ataque direto contra
a validade da Palavra de Deus, Sua lei e vontade. Quinto, a oferta de algo aparentemente
melhor culmina com o engano (Gn 3:13). Finalmente, segue-se um ato de
desobediência. Satanás quer primeiro dominar a mente de uma pessoa, impregnar seu
pensamento e, finalmente, controlar seu comportamento. A batalha mais decisiva é
travada sobre a mente, sobre o pensamento. Se ele tiver sucesso aqui, ele ganhará toda
a guerra. Em outras palavras, uma violação da lei ocorre primeiro na mente de uma
pessoa, seguida por uma violação da lei no comportamento real. O pecado afeta toda a
vida de um indivíduo.
A narrativa sobre a Queda ensina que Deus não é o autor do mal, mas que Ele é o
único que pode fornecer uma solução duradoura e completa para o problema do
pecado, mesmo que essa resolução seja extremamente custosa, dolorosa e
surpreendente. Apesar da pecaminosidade, do quebrantamento e da perdição da
humanidade, Deus ama as pessoas e quer salvá-las. Porque a vontade humana é
egocêntrica, os humanos não desejam buscar a Deus por conta própria. Não há
capacidade nos humanos pela qual eles possam se conectar com Deus. É Deus quem
condescende, persegue e se conecta com os humanos. Ele inicia esse encontro; Ele dá o
primeiro passo. O clamor de Deus “Onde você está?” (Gn 3:9) é um modelo de como
Deus está em busca da humanidade o tempo todo.

e para recompensar os teus servos, os profetas, e o teu povo que venera o teu nome, grandes e pequenos,
e para destruir os que destroem a terra” (Ap 11:18).
59
John E. Toews, The Story of Original Sin (Eugene, OR: Pickwick Publications, 2013), 6.

119
CAPÍTULO 7
A NATUREZA DO PECADO: COMPREENDENDO SEU
CARÁTER E COMPLEXIDADE
Roy Adams

Do início ao fim, a Bíblia considera o pecado, em todas as suas manifestações, um


assunto de grande preocupação. S. J. De Vries está correto: “A Bíblia leva o pecado a
sério. Ao contrário de muitos religiosos modernos, que procuram encontrar desculpas
para o pecado e explicar sua seriedade, a maioria dos escritores da Bíblia tinha uma
aguda consciência de sua hediondez, culpabilidade e tragédia.”1
Parece claro, porém, que a Bíblia, tomada como um todo, fornece sua própria
calibração dessa desordem humana, pesando a gravidade relativa de suas muitas
expressões. Este capítulo procura identificar e descrever os atributos mais proeminentes
desta complexa doença universal, com vista a melhor compreender a sua natureza e
caráter.
Como os materiais bíblicos abrangem milhares de anos de vida e experiência
humana, eles contêm compreensivelmente uma grande variedade de palavras e
expressões para descrever o afastamento humano de Deus e o comportamento
aberrante que resulta disso. Isso impossibilita ser abrangente, então o objetivo aqui será
focar nas alusões teologicamente mais significativas a essa síndrome.
PECADO - GERAL E UNIVERSAL
Os padrões mais fundamentais da linguagem humana não mudaram ao longo dos
séculos. Toda sociedade sentiu a necessidade de palavras que expressem ideias gerais e
de modificadores apropriados para fornecer significado específico em contextos
particulares. Este é o caso da Bíblia, pois seus escritores lidam com o fenômeno universal
conhecido como pecado.
Enquanto tentava entender a multiplicidade de termos para pecado empregados
pelos escritores do Antigo Testamento, Gottfried Quell identificou “quatro raízes
diferentes” associadas à ideia: khet', pesha', 'awon e shegh.2 Quell argumentou que
embora muitas vezes usados como sinônimos, esses (e outros) termos para pecado no
Antigo Testamento não são idênticos. Em vez disso, eles exibem “fortes diferenças

1
S. J. De Vries, “Sin, Sinners,” The Interpreters Dictionary of the Bible (IDB), 4:361.
2
Gottfried Quell, apaptavio, Theological Dictionary of the New Testament (TDNT) ed. Gerhard Kittel
(Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1964), 1:270, 271. A última palavra na lista de Quells, à qual não
retornaremos, significa “errar”. Refere-se ao pecado como “erro condicionado pela criatura”, ibid., 1:271.
Quell vê o termo e seus derivados como “a mais branda expressão da realidade do pecado” no Antigo
Testamento, ibid., 1:274.

120
qualitativas entre si”.3 Mas, como essas palavras devem ser traduzidas usando o único
termo inglês sin [port.:pecado], muitas vezes é impossível “trazer à tona as nuances
etimologicamente derivadas do hebraico”.4
Quell também observa a importância do contexto na determinação do significado
específico desses e de outros termos para o pecado.5 Mas neste ponto, um pouco ao
contrário, é necessário chamar a atenção para a natureza geral de muitas das
referências do Antigo Testamento ao pecado, casos em que nenhuma “nuance
etimologicamente derivada do hebraico” entra em jogo.
O termo 'asham, por exemplo – uma palavra comum para “pecado” ou “culpa” –
refere-se principalmente ao pecado, sem qualquer “cor” inerente. Por exemplo,
considere Provérbios 14:9, que diz que “os tolos zombam de reparar o pecado
['asham]”6 Aqui o autor simplesmente assume que está falando sobre uma realidade
cuja moeda todos os seus leitores já conhecem – portanto, não há necessidade de
caracterizar isso ainda mais. O sentido é o mesmo em Jeremias 51:5, que descreve a
terra de Israel e Judá como cheia de 'asham (“cheia de culpa”).
A palavra khet’ (“pecado”, “erro”, “fracasso”), um dos quatro termos nos quais
Quell se concentrou, fornece outro exemplo. Ocorre em Levítico, Números e
Deuteronômio, onde parece não ter uma conotação específica própria, além de sugerir
a violação de uma norma. Um israelita é admoestado a repreender um vizinho, de modo
a não participar da khet' (culpa) desse vizinho (Lv 19:17); Os israelitas são proibidos de
se aproximar de certos espaços sagrados, para que não incorram em khet' (pecado) (Nm
18:22). Em tais passagens, a palavra aparece como um termo geral para pecado, sem
nenhuma especificidade distintiva.
Três outros termos hebraicos, derivados de khet' e virtualmente idênticos entre si
em forma e significado, fornecem exemplos adicionais desse uso geral. Para evitar
confusão, apenas um termo, khatta’ah, será usado e aplicado em todos os casos, sem
distinção. O significado básico é “pecado” (às vezes “oferta pelo pecado”).
O uso de khatta’ah como um termo geral para pecado ocorre em Levítico 4:3, 13 e
14, as passagens descrevem o que precisa acontecer “se o sacerdote ungido pecar
[khatta’ah], trazendo culpa sobre o povo”, ou “se toda a comunidade israelita pecar
[khatta’ah] sem querer e fizer o que é proibido”. É claro que neste contexto “se” ('im)
carrega o sentido de “quando”, as passagens que dão como certo que tais infrações
ocorrerão. Como pecados, eles não seriam sem importância, é claro; mas eles não
alcançariam a seriedade que desqualifica os sacerdotes ungidos de continuarem como
agentes especiais de Deus, ou os israelitas de serem o povo escolhido de Deus. A

3
TDNT, 1:271.
4
Ibid., 270.
5
Ibid., 279.
6
A menos que indicado de outra forma, todas as citações das Escrituras são tiradas do SANTO BÍBLIA,
NOVA VERSÃO INTERNACIONAL8, NIV8 Copyright © 1973,1978,1984, 2011 por Biblica, Inc.® Usado com
permissão. Todos os direitos reservados no mundo inteiro.

121
expiação deve ser feita; mas claramente tais transgressões não chegam ao nível visto no
Sinai com o bezerro de ouro (Êx 32:9-10) ou na crise em Cades após o retorno dos
espiões (Nm 14:10-12). Em ambos os casos, Israel ficou sob séria ameaça de deserdação
divina.
Khatta’ah é provavelmente a palavra mais comum do Antigo Testamento para pecado,
em todas as suas formas ocorrendo cerca de 500 vezes e significando falhas e
deficiências humanas gerais.
No Novo Testamento, hamartia (“erro”, “ofensa”, “pecado”) corresponde àqueles
termos do Antigo Testamento que descrevem o pecado em um sentido geral, estando
especialmente próximos, porém, de khatta’ah e seus cognatos.7 O Messias deveria ser
chamado Jesus, “porque ele salvará o seu povo dos seus pecados [hamartia]” (Mt 1:21;
cf. 1Pe 2:24).
Em Romanos, Paulo não apenas usa hamartia como um termo geral para o pecado,
mas ao personalizá-lo, ele também dramatiza sua compreensão generalizada sobre a
humanidade: o pecado veio ao mundo (Rm 5:12). Os humanos são escravos dela,
vendidos a seu serviço (Rm 6:6; 7:14); eles podem ser libertos dela (6:22); tem sua lei
(7:23; 8:2); e paga seu salário (6:23).8 O pecado (hamartia) aprisionou o mundo inteiro
(Gl 3:22); os humanos estão todos “mortos em delitos e pecados [hamartia]” (Ef 2:1,
NVI). E “se afirmamos estar sem pecado [hamartia], enganamo-nos a nós mesmos e a
verdade não está em nós” (1 Jo 1:8).
PECADO - ESPECÍFICO E PARTICULAR
Com os modificadores apropriados, uma palavra usada para pecado em geral pode
assumir um novo significado, tornando-se definida, particularizada – até mesmo
pessoal. Esse é o caso em 2 Reis 10:29, que fala dos “pecados [khet'] de Jeroboão, filho
de Nebate, que ele havia feito Israel cometer — a adoração dos bezerros de ouro em
Betel e Dã”. Aqui khet' refere-se à grave ofensa de idolatria, os modificadores
sinalizando a gravidade da violação particular.
Outro bom exemplo desse fenômeno é Êxodo 32:30, onde Moisés descreveu a ação
de Israel na questão do bezerro de ouro como “um grande khatta’ah” – “um grande
pecado”. Tão sério, de fato, que Deus estava pronto para “destruir” Seu povo escolhido
e levantar uma nova nação através de Moisés (32:9-10). Em 1 Samuel 2, depois de
descrever as práticas desprezíveis dos filhos “ímpios” de Elis (w. 12-16), o escritor diz
então: “Este pecado [khatta’ah] dos jovens foi muito grande aos olhos do Senhor, pois
desprezavam a oferta do Senhor” (v. 17).
Nessa última passagem, khatta'ah por si só não descreve o pecado em questão.
Apenas o modificador alerta o leitor para a gravidade do caso. O mesmo é verdade em

7
De acordo com TDNT 1:268, hamartia é usado na LXX para traduzir khatta'ah e seus cognatos cerca de
274 vezes.
8
W. Arndt, F. W. Gingrich, and W. Bauer, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early
Christian Literature (GELNT; Chicago, IL: The University of Chicago Press, 1979), 43, s.v. agaptia.

122
1 Samuel 15:23, que descreve a rebelião (meri) como equivalente ao “pecado
[khatta'ah] da feitiçaria” (KJV). Aqui khatta'ah funciona simplesmente como um termo
geral para pecado, com o modificador (“feitiçaria”) indicando o nível de sua gravidade
no caso específico.
Uma das acusações de Eliú a Jó mostra como o pecado como khatta'ah pode ser
superado por ofensas de natureza mais séria. Eliú acusou Jó, “ao seu pecado
[khatta’ah]” havia acrescentado “rebelião” (Jó 34:37). Se a insinuação de Eliú estivesse
correta, a infração de Jó teria se tornado exponencialmente mais flagrante.
Como já indicado, os termos para pecado na Bíblia são numerosos – mais de vinte
palavras distintas apenas no Antigo Testamento – tornando impossível fazer justiça a
eles em um único capítulo.9 Além disso, a Escritura contém uma infinidade de
referências à decrepitude humana, onde nenhum termo específico para pecado é
mencionado. Em Gálatas 5:19-21, por exemplo, Paulo fala sobre “imoralidade sexual,
impureza e libertinagem; idolatria e feitiçaria; ódio, discórdia, ciúme, acessos de raiva,
ambição egoísta, dissensões, facções e inveja; embriaguez, orgias” (cf. Cl 3:5-9).
Na esteira dessa infinidade de termos específicos e não específicos para o pecado,
há uma passagem bíblica que ajuda a focalizar a questão fundamental. Ele gira em torno
de quatro termos para pecado, três dos quais são apresentados entre os quatro
mencionados por Quell.
INSIGHTS DO GRANDE TESTEMUNHO DE DAVI10
O testemunho de Davi no Salmo 32 se destaca como uma das passagens mais
instrutivas da Bíblia sobre a natureza do pecado. Oprimido pelo doloroso conhecimento
de sua própria maldade, Davi apaixonadamente desnudou sua alma diante de seu
grande Redentor, no processo compartilhando com todas as gerações sucessivas a
alegria da graça perdoadora de Deus. O vocabulário que ele empregou, sob o Espírito,
ajudou muito a enriquecer nossa compreensão das complexas ramificações dessa
condição humana universal.
Além do Paralelismo Hebraico
Davi diz: “Bem-aventurado aquele cuja transgressão [pesha'] é perdoada, cujo
pecado [khatta’ah] é coberto. Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não atribui
iniquidade ['awon], e em cujo espírito não há dolo [remiyyah]” (Sl 32:1-2).
Os termos usados nesta passagem vão muito além do paralelismo literário hebraico.
Cuidadosamente considerados, eles explicitam os parâmetros amplos e multifacetados
dessa doença universal. Dada a enormidade da crise espiritual que suscitou a confissão
de Davi, parece longe de ser acidental que ele utilizasse apenas esses quatro termos dos

9
Para uma lista e discussão úteis de vários desses termos, veja BID, 4:361-362, 370-372.
10
Para este segmento e o seguinte, peguei emprestado aqui e ali (sem atribuição) do capítulo 6 do meu
livro The Nature of Christ: Help for a Church Divided over Perfection (Hagerstown, MD: Review and Herald,
1994).

123
muitos à sua disposição. Em vez disso, parece que ele estava alcançando a linguagem da
aliança voltando claramente a Moisés.
Em Êxodo 34:5-10, no contexto de uma iteração solene da aliança, Deus se
proclamou o Deus que abunda “em amor e fidelidade ... perdoando a maldade ['awon],
rebelião [pesha'] e pecado [ khatta’ah]” (vv. 6-7). Perto do fim das cerimônias solenes
no grande Dia da Expiação, o sumo sacerdote deveria impor as mãos sobre o bode para
Azazel e “confessar sobre ele todas as iniquidades [ 'awon] dos filhos de Israel, e todas
as suas transgressões [pesha'], a respeito de todos os seus pecados [khatta’ah],
colocando-os sobre a cabeça do bode,” e mandando o animal embora (Lv 16:21, NKJV).
Isaías, explicando as violações da aliança de seu povo, confessou que “nossas ofensas
[pesha'] são muitas à sua vista, e nossos pecados [khatta’ah] testificam contra nós.
Nossas ofensas estão sempre conosco, e reconhecemos nossas iniquidades ['awon]” (Is
59:12-13).
E na grande oração intercessória de Daniel (Dan. 9), o profeta, sua mente cheia de
preocupações sobre a aliança de Deus com Seu povo, recorreu ao mesmo tipo de
terminologia empregada pelo Senhor em Êxodo 34 e repetida no testemunho de Davi.
“Nós pecamos e cometemos iniquidade” ele começou, usando derivados de khatta’ah
e 'awon. E embora ele tenha usado a palavra marad (rebelar), em vez de um derivado
de pesha' para descrever a gravidade da ofensa de Israel (v. 9), o anjo Gabriel, em um
resumo da obra do Messias, voltou às mesmas palavras-chave que em passagens
anteriores da aliança: “Setenta semanas estão determinadas para o seu povo... acabar
com a transgressão [pesha'], pôr fim aos pecados [khatta’ah], fazer reconciliação pela
iniqüidade ['awon]” (v. 24, NKJV).
Assim, o vocabulário de Davi no Salmo 32:1-2 tem seu fundamento profundo na
antiga aliança de Deus e chega ao cerne do problema humano, intensificado pela adição
de remiyyah (engano), uma palavra usada apenas aqui no Antigo Testamento.
Por conveniência e clareza, os quatro termos, cláusula por cláusula, serão
examinados - mas na seguinte ordem: transgressão; engano; pecado; e iniquidade.
Os dois primeiros serão apresentados na presente seção, os outros dois na seção
seguinte.
1. “Bem-aventurado aquele cuja transgressão é perdoada”. A palavra hebraica é
pesha' (“rebelião”, “deserção”, “revolta”). Implica “pecado voluntário”.11 “Em todos os
aspectos”, diz De Vries, pesha' “é a palavra mais profunda do Antigo Testamento para
pecado', indicando seu significado teológico como revolta contra Deus.” 12 Não é “um
mero fracasso ou erro, como [khatta'ah]..., visto que consiste em desobediência
deliberada.”13 Isaías tinha em mente a pesha' quando acusou Israel de “rebelião e

11
F. D. Nichol, ed., Seventh-day Adventist Bible Commentary (Washington, DC: Review and Herald,
1954), 3:706.
12
IDB, 4:361.
13
Ibid.

124
traição contra o Senhor, dando as costas ao nosso Deus, incitando revolta e opressão”
(Is 59: 13).
Com pesha' chega-se a uma ofensa da mais grave gravidade: hostilidade aberta para
com Deus, insubordinação, sacrilégio. Implica premeditação, como no caso de Davi. Ele
viola a esposa de Urias, convoca o pobre homem do campo de batalha para usar como
cobertura para seu adultério, então, quando o esquema desmorona, o envia de volta à
frente de batalha com uma sentença de morte selada em sua própria mão. Foi calculista,
metódico, intencional, a sangue frio. Isso é pesha'.
Citando as palavras de Davi do Salmo 32, Paulo usou o termo anomia para traduzir
pesha'. Assim, pode-se considerar anomia (ilegalidade) como o equivalente
neotestamentário de pesha'. Jesus o empregou na cena do julgamento que pintou
durante o Sermão da Montanha. “Afastai-vos de mim”, Ele dirá a todas as falsificações
no último dia, “vós que praticais a iniquidade [anomia]” (Mt 7:23, NKJV). No final dos
tempos, os anjos “ajuntarão do Seu reino todos os escândalos e os que praticam a
iniquidade [anomia]” (Mt 13:41, NKJV; cf. 23:28; 24:12). Em 2 Tessalonicenses 2:7, Paulo
refere-se ao “poder secreto da iniquidade [anomia]” como estando já em operação. Esta
é a última pesha', a última anomia, envolvendo a usurpação do poder e das
prerrogativas de Deus.
Pesha' envolve uma deliberada “decisão da vontade humana”.14 Nessa linha, diz
Quell, “Amos (4:4) precisa apenas dizer [pesha'] ... para Deus.”15 É o que o livro de
Números descreve como pecar “desafiadoramente”; é blasfêmia – ou, para usar o
hebraico literal, é pecar “com mão altiva” (Nm 15:30). Para usar uma expressão
emprestada, é “um ultraje a Deus”.16
Segundo Davi, essa atitude ofensiva deve ser rendida, para que possa ser perdoada.
“Bem-aventurado aquele cuja transgressão [pesha'] é perdoada” (Sl 32:1). Com pesha',
as apostas chegam ao máximo! E no Salmo 51:1, Davi implora a Deus para “apagar” essa
doença revoltante completamente de seu coração.
2. “E em cujo espírito não há engano” A palavra hebraica aqui é remiyyah
(“engano”, “engano”, “falsidade”, “duplicidade” “fraude”). Seu equivalente no Novo
Testamento é dolos (“engano”, “astúcia”, “traição”).
Representa uma característica extremamente indesejável para o cristão. Pedro
exortou os crentes a se livrarem “de toda malícia e de todo engano [dolos]” (1Pe 2:1); e
a brilhante descrição de João dos 144.000 é que “em sua boca não se achou engano”
(Ap 14:5). (A evidência textual favorece aqui a palavra pseudos [“mentira”, “falsidade”,
“engano”], mas o significado básico permanece o mesmo.)
Cada indicação sugere que a postura representada por remiyyah, dolos ou pseudos
é extremamente ofensiva aos olhos de Deus. Nenhum desses termos está presente em

14
TDNT, 1:273-274.
15
Ibid., 274.
16
TDNT, 1:289.

125
Mateus 23, mas os sete ais dos versículos 13-32 pintam uma imagem precisa da mesma
mentalidade. Aqui, na véspera de Sua paixão, Jesus dirigiu a denúncia mais contundente
de todo o Seu ministério contra a duplicidade e traição enganosa dos escribas e fariseus
que “não praticam o que pregam” (Mt 23:3). “Tudo o que eles fazem”, disse Ele, “é feito
para que as pessoas vejam” (v. 5). “Suas cobras, ninhada de víboras!” (v. 33, NRSV). Ele
trovejou, ao encerrar Sua ladainha fulminante: “Como você pode escapar de ser
condenado ao inferno?” (v. 33, NRSV).
Todos os pecados são graves e prejudiciais, e qualquer discussão sobre sua
gravidade relativa pode facilmente ser mal interpretada. Mas a realidade da situação é
que, por mais sutil que seja, a própria Escritura faz essas mesmas distinções, indicando
que Deus considera alguns pecados particularmente repugnantes. De que outra forma
explicar a indignação de Jesus em Mateus 23 sobre a hipocrisia mentirosa (leia
dolos/pseudos) de Seu povo professo?
Dada a sua gravidade, a “transgressão” (pesha') deve ser abandonada pelo crente;
e dada a sua letalidade, o “engano” (remiyyah) deve desaparecer completamente do
espírito cristão. Quando isso acontece, os crentes estão certos com Deus.
Infelizmente, porém, isso não significa que os crentes alcançaram a impecabilidade.
E isso porque eles ainda precisam lidar com dois aspectos intratáveis e irritantemente
imprevisíveis do pecado, que Davi menciona no meio da passagem.
A Complexidade do Pecado
No meio do Salmo 32:1-2, Davi menciona khatta'ah e 'awon.
3. “Bem-aventurado aquele... cujo pecado [khatta 'ah] é coberto.” Em todo o
Antigo Testamento, como indicado acima, khatta'ah permanece como um dos termos
mais comuns para pecado, “usado para todos os tipos de contravenções”. 17 Mas, na
medida em que a palavra carrega qualquer significado inerente próprio, há um consenso
geral de que, como hamartia no Novo Testamento, ela se refere ao espectro de “errar
o alvo” (como um lançador de dardos errando o alvo), “ficar aquém”, “falhar em seu
dever”.18 Como T. O. Hall, Jr. coloca: “O AT distingue entre pecados deliberados e
aqueles cometidos por ignorância, fraqueza ou onde o pecador não foi totalmente
responsável”.19 Levítico 4, 5 e 6 estão cheios de exemplos de khatta'ah em referência às
ofensas comuns e não premeditadas do povo.
Para colocar as coisas em termos contemporâneos, khatta'ah surge das interações
interpessoais cotidianas na comunidade — a maneira como nos relacionamos com
nossos filhos na multiplicidade de relações que temos com eles; a forma como nos
relacionamos com nossos cônjuges; aos nossos colegas de trabalho; para outros
motoristas na estrada; aos pobres e desfavorecidos em nossas próprias comunidades; e

17
TDNT, 1:272.
18
Veja SDA Bible Commentary, 3:706; IDB, 4:361; cf. TDNT, 1:271.
19
T. O. Hall, Jr. “Sin, Christian and Jewish Concept,” Perennial Dictionary of World Religions, gen. ed.
Keith Crim (San Francisco, CA: Harper Collins, 1981), 694.

126
no mundo em geral; inclui nossa resposta (ou não resposta) à exploração e injustiça
humana.
Khatta'ah surge da animosidade acalentada no coração; do ódio, ressentimento,
ciúme, inveja, ganância, aspereza, descortesia, indelicadeza, compromisso, mesquinhez,
descuido, negligência, ressentimento, orgulho. A lista não tem fim. E adicionados à
mistura estão os repetidos fracassos de um crente em relação às exigências sociais do
evangelho, conforme explicitado pelos antigos profetas: Amós 5:11-15; Isaías 1:1-17;
58:1-10; Jeremias 22:13-17; ou como destilado por Jesus em sua parábola do julgamento
de Mateus 25 (vv. 41-45).
Essas são áreas difíceis e complexas da experiência humana — precárias e
imprevisíveis. A situação se torna ainda mais perigosa, pois khatta'ah também envolve
“pecados de omissão”. Nas palavras do apóstolo Tiago: “Quem sabe fazer o que é certo
e não o faz, comete pecado [hamartia]” (Tg 4:17, NRSY). Se alguém pensa, por exemplo,
na responsabilidade de levar o Evangelho ao próximo, então quem pode dizer que está
fazendo todo o possível nesta importante área da responsabilidade cristã? E a palavra
gentil que não foi dita? Ou a tendência de queda na vida de alguém que poderia ter sido
evitada por alguma ação oportuna não foi feita? “Muitos estão enganados quanto à sua
verdadeira condição diante de Deus”, escreveu Ellen G. White. “Eles se felicitam pelos
atos errados que não cometem e esquecem de enumerar as boas e nobres ações que
Deus requer deles, mas que eles negligenciaram realizar.”20
O ponto aqui é que khatta'ah envolve toda uma gama de reações, interações,
atividades, relacionamentos e emoções que muitas vezes são completamente
imprevisíveis e em constante mudança. O antigo profeta disse certo: “Quem pode dizer,
eu mantive meu coração puro; Estou limpo e sem pecado [khatta'ah]?” (Pv 20:9). Seria
impensável para ele fazer essa declaração sobre pesha' ou remiyyah. Mas em relação a
khatta'ah, é uma observação instrutiva, uma admissão fundamental — correta para
todos os tempos.
4. “a quem o Senhor não imputa iniquidade ['awon]” Além de sua referência ao
pecado em geral, 'awon significa “iniquidade”, “vaidade”, “perversidade”. Significa
distorção moral, desonestidade, um defeito congênito na alma humana21 – o que
Charles Wesley em um de seus hinos chamou de “nossa tendência ao pecado”. Talvez
tenha sido a este respeito que Davi falou de ser “gerado em iniquidade ['awon]” e
“concebido” “em pecado” (Sl 51:5, NASB).
Uma concepção comum de pecado entre muitos cristãos centra-se (quase
exclusivamente) em indulgências sexuais e outras indulgências sensuais. Essa
preocupação com uma classe de pecado, no entanto, pode obscurecer o fato de que o
pecado é muito mais profundo do que o comportamento - que é uma doença que
permeia e precede o comportamento e está profundamente enterrada na psique
humana. William Hordern estava correto ao distinguir entre “pecado como um estado

20
Ellen G. White, Great Controversy (Mountain View, CA: Pacific Press, 1888), 601.
21
TDNT, 1:270-271.

127
e pecados como ações individuais”. “Pecado”, diz ele, “é o estado de orgulho em que o
homem se revolta contra Deus e se faz a medida de todas as coisas. Deste estado de
pecado os vários pecados fluem na forma de ações antiéticas e imorais.”22
Muito tempo depois que os crentes são convertidos e cessam sua rebelião
voluntária contra o Senhor, a influência dessa deformidade congênita ('awon) os
atormenta. Existem sombras de tortuosidade enterradas no fundo da alma, apenas
esperando que uma certa combinação de circunstâncias as desencadeie. Isso é visto na
vida de Simão, o feiticeiro. Observando a operação do Espírito Santo no ministério de
Pedro e João, esse novo convertido sucumbiu à perversidade que havia formado a base
de sua vida anterior de feitiçaria. Oferecendo-se para comprar o Espírito com dinheiro,
ele se viu enfrentando a justa ira de Pedro por sua traição pecaminosa [adikia]” (Atos
8:18-25).
Se adikia (injustiça, maldade) é o equivalente no Novo Testamento de 'awon, então
a história de Simão dá aos crentes uma razão para resistir a esse pecado em particular
com cada grama de poder que Deus fornece. Abrigado na alma, pode se tornar crônico,
levando ao que Jesus chamou de pecado contra o Espírito Santo, para o qual não há
perdão (Mt 12:32; Mc 3:29; Lc 12:10); e da qual, diz o autor de Hebreus (em um contexto
ligeiramente diferente), não se pode “ser trazido de volta ao arrependimento” (6:4-6).
Contra esse pano de fundo, deve ficar claro que a definição de pecado de João como
“a transgressão da lei” (1 Jo 3:4, KJV) nunca foi feita para ser abrangente. De fato,
existem outras definições bíblicas, como a de Romanos 14:23: “tudo o que não vem da
fé é pecado”. Mas confiando exclusivamente nessa única definição joanina, alguns
cristãos (entre eles os adventistas) passaram a entender o pecado principalmente em
termos de atos que cometemos. Desta perspectiva restrita vieram advertências
espirituosas para parar de pecar.23
Quando João diz que a pessoa que “nasceu de Deus . . . não pode continuar
pecando” (1 Jo 3:9), ele está usando hamartia em um sentido elevado.24 Sua referência
na passagem ao pecado do diabo (v. 9) sugere que ele está realmente falando sobre
graves violações – pecados que “levam à morte”, por assim dizer (cf. 1 Jo 5:16-17) –
ofensas como pesha' e remiyyah (ou anomia e pseudos). Em outras palavras, pecados
de rebelião, revolta, sacrilégio, astúcia e engano. O pecado como “errar o alvo”
(khatta'ah), por exemplo, não é algo que a Bíblia associa ao diabo. Ele gosta de coisas
pesadas.

22
William Hordern, “Man, Doctrine of,” Dicionário de Teologia Cristã, ed. Alan Richardson (Filadélfia, PA:
Westminster Press, 1969), 204.
23
Por exemplo, o ex-professor de teologia adventista, M. L. Andreasen (1876-1962) considerava o batismo
como o sexto “passo” para Cristo, um passo no qual o pecador é feito morto para o pecado. A partir desse
ponto, o novo convertido deve “abster-se do pecado”, Andreasen, A Faith to Live By (Washington, DC:
Review and Herald, 1943), 96-97. Ele admoestou os novos crentes a “livrar-se de todo pecado”; para
“ganhar a vitória sobre todo assediado para “quebrar todas as correntes que prendem”; e para “fazer isso
agora, hoje”, Isaiah, the Gospel Prophet (Washington, DC: Review and Herald, 1928), 2:78.
24
Baseio esta observação no fato de que a LXX, com a qual João estaria familiarizado, usa hamartia 19
vezes para traduzir pesha' (ver TDNT, 1:268).

128
Se alguém está falando sobre o pecado como pesha', então é óbvio que os
verdadeiros cristãos teriam deixado tais atitudes para trás. Embora isso não signifique
que eles nunca conhecerão os tempos de recaída, significa que eles estabeleceram um
curso que segue consistentemente a vontade de Deus. O espírito de revolta,
insubordinação e resistência obstinada se rendeu. E o pecado como remiyyah (engano,
duplicidade) cessou.
Mas as outras categorias de pecado continuarão a atormentar a alma, como Paulo
reconheceu naquela passagem muito incompreendida de Romanos 7:14-24.
desequilíbrio congênito ('awon), com o qual lutamos diariamente. “Se você, ó Senhor,
mantivesse um registro de pecados ['awon], Senhor, quem poderia resistir? Mas contigo
está o perdão” (Sl. 130:3-4). Evidentemente, Deus não remove milagrosamente esse
problema de nós, mas, em Sua providência, o usa para nos ajudar a crescer.
Então, o que acontece se uma pessoa morrer (ou se Jesus vier) antes que ela possa
“ganhar a vitória” sobre cada assédio?
Somente Deus pode responder definitivamente a isso, é claro; mas as palavras de Davi
podem lançar alguma luz sobre a questão delicada: Deus, diz Davi, “não nos trata como
nossos pecados [khatta'ah] merecem ou nos retribui de acordo com nossas iniqüidades
[ 'awon]. Pois tão alto quanto os céus estão acima da terra, tão grande é o seu amor por
aqueles que o temem; tanto quanto o leste é do oeste, ele removeu nossas
transgressões [pesha'] de nós. Como um pai se compadece de seus filhos, assim o
Senhor se compadece daqueles que o temem; porque ele sabe como somos formados,
lembra-se de que somos pó” (Sl 103:10-14).
O Deus que lê o íntimo da alma de Seus filhos entende quando um crente está
totalmente rendido e comprometido com Ele e não está mais revoltado. E Ele sabe
quando as deficiências que experimenta não constituem um desafio à Sua vontade e
propósito.
CONCLUSÃO
Os cristãos rendidos experimentarão um crescimento contínuo; ainda assim, eles
nunca chegarão a um ponto nesta vida em que se moverão além do alcance de certas
enfermidades; eles nunca superarão a necessidade da graça perdoadora de Deus. Assim,
a única esperança de salvação - do começo ao fim - é a pura misericórdia e graça de
Deus. Ele cobre o khatta'ah de Seus filhos, diz Davi, e “não conta” seu 'awon contra eles
(Sl 32:1-2). Que Deus! Que Salvador! Compreender isso é conhecer a verdadeira alegria
da certeza em Cristo.

129
CAPÍTULO 8
A NATUREZA PECAMINOSA E A INCAPACIDADE
ESPIRITUAL
George R. Knight

Os capítulos anteriores trataram da origem do pecado, do vocabulário bíblico do


pecado e da natureza do pecado como um estado ou condição da natureza humana e
uma série de ações que fluem dessa orientação pecaminosa. O presente capítulo
discutirá as implicações práticas do pecado na natureza humana e como a natureza
decaída afeta as visões da salvação.
CONTAMINAÇÃO, DEPRAVAÇÃO E INCAPACIDADE
Um dos fatos inegáveis da existência humana não é apenas que a natureza humana
está contaminada ou corrompida, mas que essa contaminação é universal. Essa verdade
é captada pela conclusão de Paulo ao seu extenso tratamento sobre o pecado, quando
ele declara que “todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus” (Rm 3:23).1 João
enuncia o mesmo ponto quando escreve que “ se dissermos que não temos pecado,
enganamo-nos a nós mesmos” e “se dissermos que não pecamos, fazemos [Deus]
mentiroso” (1Jo 1:8, 10). Henri Blocher capta a verdade da contaminação universal
quando observa que ser pecador é “fato não-existencial, espiritual, para os seres
humanos desde Adão”.2 E William Horndern aponta que “mesmo os teólogos que
negaram que a queda de Adão corrompeu as gerações posteriores e que negaram a
doutrina do pecado original foram forçados a admitir o estranho fato de que a linha de
menor resistência para o homem nunca leva a as veredas da justiça”.3 A inclinação
descendente da natureza humana é capturada pelo conceito de concupiscência, que
“afirma a verdade básica de que todo ser humano nasce com preconceito ao pecado”. 4
Ellen White capta a ideia quando escreve que a natureza humana tem uma “inclinação
para o mal”.5
Ambos os testamentos bíblicos destacam o fato da contaminação humana. Assim,
Jeremias aponta que “enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e
desesperadamente corrupto” (17:9). E Paulo destaca o fato de que aqueles sem Deus

1
Salvo indicação em contrário, todas as citações das Escrituras são tiradas da Revised Standard Version
of the Bible, copyright ©1946,1952 e 1971 da Division of Christian Education of the National Council of
the Churches of Christ in the United States of America. Usado com permissão. Todos os direitos
reservados.
2
Henri Blocher, Original Sin: Illuminating the Riddle (Downers Grove, IL: Inter Varsity, 1997), 129.
3
William Horndern, “Depravity,” in A Dictionary of Christian Theology, ed. Alan Richardson (Philadelphia,
PA: Westminster, 1969), 92.
4
Bernard Ramm, Offense to Reason: A Theology of Sin (San Francisco, CA: Harper & Row, 1985), 88.
5
Ellen G. White, Education (Mountain View, CA: Pacific Press, 1952), 29.

130
estão “obscurecidos em seu entendimento, alienados da vida de Deus”, ignorantes das
realidades espirituais, duros de coração, “tornaram-se insensíveis e se entregaram à
licenciosidade” e são “gananciosos para praticar todo tipo de impureza” (Ef 4:17-19). A
Bíblia é clara quanto ao fato de que a contaminação não é um fim em si mesma, mas
leva ao que os teólogos chamam de depravação total e incapacidade espiritual. Muitos
são tentados a evitar a expressão depravação total porque pensam erroneamente que
isso significa que as pessoas são tão perversas quanto poderiam ser e não têm nada de
bom nelas. Mas a real implicação é que o pecado afetou todo o seu ser. Essa é a imagem
descrita em Romanos 3, na qual Paulo observa que as gargantas dos pecadores são
como sepulturas abertas, suas línguas praticam o engano, seus lábios espalham veneno
como serpentes, suas bocas proferem maldições amargas, e seus pés não meramente
perseguem a violência, mas são rápidos para fazê-lo (vv. 13-16). A passagem continua a
lidar com a deficiência dos olhos das pessoas (v. 18). Assim, a depravação é total no
sentido de que afeta todas as partes de uma pessoa. James Denney capta o significado
de Paulo quando escreve que “a depravação que o pecado produziu na natureza
humana se estende a toda ela. Não há parte da natureza do homem que não seja afetada
por ela” Como resultado, “quando a consciência é violada pela desobediência à vontade
de Deus, o entendimento moral é obscurecido e a vontade é enfraquecida. Não somos
construídos em compartimentos estanques, um dos quais pode ser arruinado enquanto
os outros permanecem intactos.”6
De acordo com a visão de Denney, a Bíblia vai além da discussão de Paulo sobre a
depravação estar relacionada à totalidade das partes do corpo, ensinando que a mente
é afetada e obscurecida pelo pecado (Rm 1:28; Ef 4:18; Tt 1:15); a consciência está
contaminada (Tt 1:15; Hb 10:22; 1Tm 4:2); e enganoso é o coração (Jr 17:9). É assim que
Jesus enraíza a depravação na natureza interior quando declara que “de dentro, do
coração do homem, vêm os maus pensamentos, as prostituições, os furtos, os
homicídios, os adultérios, a cobiça, as maldades, o engano, a libertinagem, a inveja, a
calúnia, soberba, loucura” (Mc 7:21-22).
A contaminação do coração, ou kardia, é um conceito particularmente rico nas
Escrituras. O coração não é apenas o centro da vida física como no pensamento
moderno, mas é descrito como “a sede do pensamento e da vontade”, 7 “o centro e a
sede da vida espiritual”8 e a “fonte de toda a vida interior”, incluindo “seu pensamento,
sentimento e vontade”.9 A. Sand resume bem as implicações do coração, escrevendo

6
James Denney, Studies in Theology (Grand Rapids: Baker, 1976), 83; cf. Ramm, Offense to Reason, 86.
7
R. T. France, The Gospel of Mark, The New International Greek Testament Commentary Series (Grand
Rapids: Eerdmans, 2002), 292.
8
Joseph H. Thayer, Thayer’s Greek-English Lexicon of the New Testament (Peabody, MA: Hendrickson,
n.d.), 325.
9
Walter Bauer, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature, 3rd
ed., ed. and rev. Frederick William Danker (Chicago: University of Chicago Press, 2000), 508.

131
que kardia “refere-se assim à pessoa interior, a sede do entendimento, conhecimento e
vontade, e assume o significado de consciência”10
Dada essa riqueza de significado, o ensino bíblico de que os humanos têm corações
corrompidos e pecaminosos tem amplas implicações. Com maus pensamentos vindos
do coração (Mt 15:19), desejos vergonhosos habitando no coração (Rm 1:24), e o
coração sendo desobediente e impenitente (Rm 2:5) e embotado, obscurecido e
endurecido (Ef 4:18), não é de admirar que a Bíblia não apenas enfatize a necessidade
de um novo nascimento (Jo 3:3, 5), mas também a necessidade de um “novo coração”
(Ez 18:31) com os princípios de Deus infundindo-o (Hb 8:10).
Anteriormente, foi mencionado que a depravação total é um conceito que muitas
vezes é mal compreendido. Como resultado, antes de avançar, a depravação precisa ser
examinada para ver o que é e o que não é. Negativamente, depravação não significa (1)
que indivíduos não renovados não possam fazer ações que sejam socialmente boas. É
óbvio que os cristãos não têm o monopólio de coisas como a moralidade cívica. Toda
comunidade, por exemplo, contém indivíduos seculares de caráter moral que
desinteressadamente doam seu tempo e suas finanças aos necessitados. (2) A
depravação total não significa que as pessoas sejam desprovidas de consciência ou
algum conhecimento de Deus. Paulo argumenta exatamente o oposto em passagens
como Romanos 1:20 e 2:14-15. (3) Nem implica que toda pessoa não regenerada se
entregará a toda forma de pecado ou pecado na maior extensão possível. (4)
Finalmente, a depravação total não significa que os seres pecaminosos sejam incapazes
de reconhecer o caráter e as ações virtuosas nos outros. Assim é que a compreensão
bíblica da depravação total representa o potencial para o mal completo, mas não a
realidade do mal total. A fim de explicar a evidência de bondade residual em todas as
pessoas, os teólogos desenvolveram o conceito de graça comum. Thomas Oden escreve
que “aquela graça é chamada comum, que é compartilhada por toda a humanidade,
mesmo em meio a todas as formas concebíveis de queda”. Como resultado, “podemos
ser gratos que, pela graça comum, Deus sustenta o universo por sua palavra de poder”
(Hb 1:3, RSV), faz com que seu sol se levante sobre maus e bons” (Mt 5:45), impede que
o pecado social se torne ingovernável (Rm 13:1-4), permite que a sociedade viva junto
de maneira justa e ordenada, e permite que ela cultive atividades científicas, racionais
e econômicas da civilização”.11 Sem a graça comum, a vida seria impossível devido aos
efeitos do pecado. A graça comum entrou em vigor no exato momento em que Deus
escolheu não permitir que os resultados do pecado tirassem a vida de Adão no mesmo
dia em que ele se rebelou (Gn 2:17). Deus sustentou Adão em vida apesar de sua
condição decaída. Assim é que, pela graça comum, Deus refreia os estragos do pecado
tanto nos indivíduos quanto nas sociedades e, assim, fornece a todos os indivíduos
algum conhecimento de Si mesmo e da bondade. Intimamente ligado à graça comum
está o fato de que na Queda a imagem de Deus nas pessoas não foi destruída, embora
tenha sido fraturada e grosseiramente distorcida (Gn 9:6; 1Co 11:7; Tg 3:9). Como João

10
Horst Balz and Gerhard Schneider, eds., Exegetical Dictionary of the New Testament (Grand Rapids:
Eerdmans, 1991), 2:250.
11
Balz and Schneider, Exegetical Dictionary of the New Testament, 2:250.

132
Calvino colocou, um “resíduo” da imagem continuou a existir na humanidade após a
Queda, “algumas faíscas ainda brilham” na “natureza degenerada”.12 Portanto, embora
as pessoas estejam distorcidas e perdidas como resultado da Queda, elas ainda são
humanas com potenciais humanos, embora limitados pelos efeitos do pecado.
Neste ponto é importante discutir o significado positivo da depravação total.
Primeiro, como observado anteriormente, significa que a corrupção inerente se estende
a todas as partes da natureza de um indivíduo. Em segundo lugar, a depravação total
reflete o fato de que “motivos corruptos também estão por trás das coisas boas que
fazemos”.13 Essa dinâmica se reflete na oração do templo dos fariseus, na qual sua
atitude de justiça própria, em vez de piedade genuína, motivava o que externamente
parecia ser atos piedosos (Lc 18:9-14). Terceiro, porque a depravação afeta todo o ser e
todas as suas faculdades, não há nada que uma pessoa possa fazer para merecer o favor
salvador de Deus. Esse terceiro ponto move nossa discussão além da contaminação dos
pecados do ser humano e da depravação total para o tópico da incapacidade espiritual.
Ou, como Bernard Ramm coloca, “Depravação total traduzida na área da salvação
significa incapacidade total”.14 O ponto que Paulo enfatiza com tanta eficácia em
Romanos 1:17-3:20 é que a incapacidade humana universal torna impossível para as
pessoas por sua própria vontade e por qualquer meio parecerem justificadas diante de
Deus. Esse fato também sustenta a apresentação de Paulo em Efésios 2 e 4:17-24, na
qual ele apresenta Cristo e a graça salvadora como absolutamente necessários porque
os seres humanos são pecadores que vivem nas trevas.
A incapacidade espiritual ou a total incapacidade espiritual está diretamente ligada ao
efeito do pecado sobre a vontade humana. A vontade, como Ellen White tão bem a
expressa, “é o poder governante na natureza do homem”.15 Desoriente a vontade e toda
a vida estará fora de ordem. Essa desorientação ocorreu em Gênesis 3 quando a ainda
livre Eva escolheu “destronar o amor a Deus de seu lugar de supremacia na alma” e
colocar sua própria vontade ali.16 Com essa desorientação do centro da vida, Ramm
argumenta: “ toda a psique” tornou-se “como um navio cujo leme está fixado em um
ângulo errado ou como um avião cujos ajustes de asas estão permanentemente
tortos”.17 Stanley Grenz faz o mesmo quando escreve que “o pecado afeta todo o
coração de uma pessoa. Ele infecta nosso centro de controle pessoal.'”18
Assim, no centro da situação humana está a perversão da vontade que leva a uma
inclinação pervertida da vontade que é hostil a Deus. É por essa razão que a vontade
humana sem ajuda ama as trevas em vez da luz (Jo 3:19) e que as pessoas se tornam

12
John Calvin, Institutes of the Christian Religion, book 2, chap. 2:12.
13
Stanley J. Grenz, Theology for the Community of God (Nashville, TN: Broadman & Holman, 1994), 240
14
Ramm, Offense to Reason, 87.
15
Ellen G. White, Steps to Christ (Mountain View, CA: Pacific Press, n.d.), 47.
16
James Orr, God’s Image in Man and Its Defacement in the Light of Modern Denials (London: Hodder and
Stoughton, 1905), 223, 216; cf. George R. Knight, Sin and Salvation: God’s Work for and in Us (Hagerstown,
MD: Review and Herald, 2008), 38-43.
17
Ramm, Offense to Reason, 149.
18
Grenz, Theology for the Community of God, 239.

133
“escravas de várias paixões e prazeres” (Tt 3:3), mesmo aquelas que levam à sua
destruição.
A palavra-chave na última frase é “escravos”. Uma das metáforas favoritas de Paulo
para os efeitos do pecado na humanidade é a escravidão. Assim, ele escreve sobre
aqueles que estão fora de Cristo como sendo “escravos do pecado” (Rm 6:17). E Jesus
ensina que mesmo uma pessoa que proclama que não está em escravidão ainda pode
ser “escrava do pecado” (Jo 8:33-34). Tal é o engano do coração pecaminoso (Jr 17:9).
Da perspectiva bíblica, o pecado “é um poder cósmico que escraviza sua presa. . . .
Assim como os exércitos conquistadores escravizaram os povos subjugados, também
nos encontramos escravos de uma força hostil e estrangeira chamada pecado. Não
sendo mais capazes de exercer a escolha, descobrimos que devemos obedecer ao
pecado, pois ele exerce poder sobre nós.”19 Foi essa compreensão do poder do pecado
que levou à ideia da Reforma da “escravidão da vontade”.
Aqui é importante parar por um momento para explorar a quantidade de liberdade
inerente à vontade humana não renovada. Em um nível, há liberdade da vontade no que
Lutero e Calvino identificaram como as “coisas inferiores”, isto é, os indivíduos têm
liberdade em questões sociais e morais. Como resultado, as pessoas são livres para
escolher seu caminho em termos de atividades diárias, como escolher um cônjuge,
emprego ou faculdade. Da mesma forma, um indivíduo é livre para cuidar ou abusar de
seus filhos, recusar ou aceitar certas tentações ou buscar a religião ou Deus por motivos
de interesse próprio. Mesmo aqueles com um forte sistema de crença
predestinacionista reconhecem que os humanos pecadores ainda têm “razão,
consciência e liberdade de escolha em seus assuntos diários”.20
Por outro lado, dada a desorientação da vontade humana em sua relação com Deus,
os humanos não têm livre-arbítrio em assuntos espirituais. Em vez disso, como Ellen
White aponta, “existe” na “natureza” de cada pessoa “uma inclinação para o mal, uma
força à qual, sem ajuda, ela não pode resistir”.21 Grenz faz o mesmo quando escreve que
“o indivíduo que escolhe enfrenta uma escolha moral já predisposta”. Assim,
“liberdade” da vontade “significa a liberação da predisposição para o mal para poder
escolher o bem”.22 Como resultado, a humanidade pecadora nunca é neutra. Suas ações
livres são limitadas pela propensão ou tendência ao pecado que reside no coração e na
vontade - uma propensão alojada lá quando os humanos colocam a si mesmos e suas
vontades no centro de suas vidas, em vez de Deus e Sua vontade. Nesse caso, o que
parecia ser o caminho para a liberdade acabou sendo o caminho para a escravidão e
morte espiritual e incapacidade (Pv 14:12).
O ensino do Novo Testamento é que os pecadores são escravos do pecado e são
incapazes de se voltarem para Deus e para a verdadeira justiça. A liberdade espiritual é

19
Ibid., 272.
20
L. Berkhof, Systematic Theology, 4th ed. (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1941), 248.
21
White, Education, 29.
22
Grenz, Theology for the Community of God, 273.

134
a grande falta entre os que estão presos ao pecado. Sua necessidade essencial é serem
iluminados pelo Espírito Santo para que não permaneçam nas trevas (1Co 2:14),
nascerem do alto pelo Espírito (Jo 3:3,5) e se tornarem novas criaturas em Cristo (2Co
5:17). Os seres humanos não podem se regenerar, mas devem nascer de Deus (Jo 1:12-
13). Mesmo suas escolhas em direção à moralidade encontram sua justiça como nada
além de “trapos de imundícia” (Is 64:6, KJV).
James Denney resume bem o problema da incapacidade espiritual quando escreve
que “há uma coisa que o homem não pode fazer sozinho ___ Ele não pode cumprir o
destino para o qual foi criado”. Denney então oferece o desafio final para aqueles que
negam a incapacidade espiritual: "Quando um homem descobri, que tem sido capaz,
sem Cristo, de reconciliar-se com Deus, e para obter o domínio sobre o mundo e sobre
o pecado, então a doutrina da incapacidade, ou da escravidão devido ao pecado, pode
ser negada; então, mas não até então.”23
Até agora, este capítulo discutiu os efeitos do pecado sobre a natureza humana em
termos de contaminação, depravação total e a resultante incapacidade espiritual. Nessa
discussão, o papel da vontade revelou-se uma característica central. A próxima seção do
capítulo se concentrará nas quatro principais maneiras de se relacionar com a
incapacidade humana e a escravidão da vontade na história da igreja. Isso será seguido
por uma abordagem adventista do sétimo dia ao tópico.
PERSPECTIVAS TEOLÓGICAS RELACIONADAS À DEPRAVAÇÃO TOTAL E INCAPACIDADE
ESPIRITUAL
Os tópicos de depravação, incapacidade e liberdade da vontade desempenharam
um papel central ao longo da história da igreja em sua discussão sobre salvação. Quatro
orientações bastante distintas se desenvolveram ao longo do tempo. A primeira
perspectiva sobre esses tópicos é o Pelagianismo. O pelagianismo surgiu por volta do
ano 400, quando Pelágio, um monge britânico baseado em Roma, ficou alarmado com
a frouxidão moral da Igreja Romana. Ele defendeu vigorosamente a necessidade da
responsabilidade moral humana e insistiu na necessidade de autoaperfeiçoamento
constante à luz do exemplo de Cristo e da lei do Antigo Testamento. Ele afirmou a
liberdade da vontade e que todos os humanos têm o poder de não pecar. A escolha é
deles para seguir o mau exemplo de Adão ou o bom exemplo de Cristo. Pelágio não
apenas negou o pecado original e seus resultados (depravação e incapacidade
herdadas), mas também ensinou de forma assertiva que os humanos têm uma
capacidade natural de viver vidas sem pecado sem a graça capacitadora. O pecado era
visto como um ato deliberadamente cometido contra Deus. A graça para Pelágio era a
iluminação externa fornecida à humanidade por Deus através de coisas como os Dez
Mandamentos e o exemplo de Cristo. Assim, a graça informa as pessoas sobre seus
deveres morais, mas não as ajuda a cumpri-los. As pessoas são capazes de evitar o
pecado seguindo o exemplo de Jesus. Em suma, os humanos são moralmente neutros
em vez de depravados e têm o livre-arbítrio para escolher o bem e o mal. Assim, o

23
Denney, Studies in Theology, 85.

135
pecado é um problema da vontade humana e não está enraizado na sua natureza.24
Seguindo essa linha de pensamento, Hans LaRondelle aponta que, de acordo com a
soteriologia pelagiana, “a perfeição sem pecado após o batismo não era apenas possível,
mas um dever a ser alcançado.”25 O sucesso é uma questão de escolha e força de
vontade. Embora o pelagianismo tenha surgido no século V, ele tem tido uma existência
vigorosa desde então.
A segunda perspectiva sobre depravação, incapacidade e liberdade da vontade foi
apresentada pelo adversário de Pelágio, Agostinho de Hipona (354-430), e transmitida
ao mundo moderno em grande parte por meio de Lutero e Calvino. O entendimento de
Agostinho pode ser visto como o oposto do de Pelágio. Pelágio sustentou que após a
Queda a vontade humana era neutra e, portanto, os indivíduos eram capazes de tomar
em seu próprio poder uma decisão por Deus uma vez que a evidência estava presente,
enquanto Agostinho sustentava que a Queda havia inclinado a vontade para o mal na
medida em que era escravizado ao pecado e não podia, sem ajuda, tomar uma decisão
por Deus. Enquanto Pelágio via o pecado como um ato realizado por cada indivíduo com
base no livre-arbítrio que por si só liberta as pessoas de uma vida de pecado, Agostinho
argumentou que o pecado era uma doença hereditária e que os efeitos do pecado sobre
a vontade humana o escravizaram ao pecado. na medida em que humanos sem ajuda
não conseguiam se libertar de seu poder. Enquanto Pelágio via a graça como a
misericórdia de Deus ao revelar o verdadeiro modo de vida às pessoas para que
pudessem escolher viver uma vida sem pecado, Agostinho via a graça como o ato
salvador de Deus, em vez de mera orientação moral. Assim, para Agostinho, a
humanidade é justificada por Deus como um ato de graça, enquanto para Pelágio as
pessoas são justificadas com base em seus méritos em imitar o exemplo de Cristo.
A tradição agostiniana mantinha uma firme crença na contaminação da
humanidade, privação total e incapacidade espiritual, enquanto aqueles na tradição
pelagiana rejeitavam essas crenças – mas como esses ensinamentos se relacionam com
a salvação no mundo real? Para Pelágio era bem simples. Uma pessoa tinha apenas que
escolher Deus e então escolher seguir o exemplo de Cristo na vida diária. Mas para
aqueles que acreditavam na depravação total, na escravidão da vontade e na
incapacidade espiritual, o problema era mais complexo. Uma possível solução foi
destacada pelos seguidores de João Calvino. Sua resposta à depravação total foi graça
total na medida em que a escolha humana nem entrou em cena. Como poderia, já que
a vontade estava caída e sob o poder do pecado? Em vez disso, Deus em Sua soberania
fez a escolha predeterminando alguns indivíduos para serem salvos eternamente

24
Para visões gerais úteis da controvérsia pelagiana/agostiniana, veja Alister E. McGrath, Historical
Theology (Oxford, UK: Blackwell, 1998), 35-37, 79-85; Geoffrey W. Bromiley, Historical Theology (Grand
Rapids, MI: Eerdmans, 1978), 117-123; Edwin Harry Zackrison, “Seventh-day Adventists and Original Sin:
A Study of the Early Development of the Seventh-day Adventist Understanding of the Effect of Adams Sin
on His Posterity” (PhD diss., Andrews University, 1984), 108-113.
25
H. K. LaRondelle, Perfection and Perfectionism: A Dogmatic-Ethical Study of Biblical Perfection and
Phenomenal Perfectionism (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1971), 290-291.

136
enquanto outros foram predeterminados para a condenação eterna. No processo, os
calvinistas radicais “simplesmente aniquilaram a liberdade humana”.26
Uma terceira perspectiva teológica sobre a salvação em relação à depravação e
incapacidade é o semipelagianismo, que é basicamente um compromisso entre o
pelagianismo e o agostinianismo. Por um lado, o nome semipelagianismo é enganoso
no sentido de que seus proponentes não aceitam a posição extrema de Pelágio sobre a
habilidade e graça humana como meramente informativa para a vida moral. Mas, por
outro lado, tem um importante elemento pelagiano. Roger Olson destaca a essência da
contribuição semipelagiana ao debate sobre a salvação quando escreve que o
movimento “abraça uma versão modificada do pecado original, mas acredita que os
humanos têm a capacidade, mesmo em seu estado natural ou caído, de iniciar a salvação
por exercendo boa vontade para com Deus”.27 No entanto, depois que a decisão do
livre-arbítrio foi tomada, a graça salvadora no sentido agostiniano assume.28 Olson
sugere que um grande número de religiões modernas são semipelagianas por “padrão”
devido ao fato de que muitos pastores e leigos não têm pensado plenamente através de
sua compreensão do livre-arbítrio em relação à sua compreensão dos efeitos do pecado
sobre a natureza humana.29
Uma quarta perspectiva teológica sobre a depravação, a vontade decaída e a
incapacidade humana é o Arminianismo. O arminianismo se desenvolveu a partir do
calvinismo holandês, mas se espalhou amplamente no mundo inglês através do
movimento wesleyano/metodista. Tanto arminianos quanto calvinistas concordaram
que os humanos pós-queda em seu estado natural não têm livre-arbítrio no sentido de
que podem escolher seguir a Deus. No entanto, as duas tradições teológicas diferem em
sua solução para essa incapacidade. Os calvinistas têm Deus substituindo a vontade
através da predestinação incondicional dos indivíduos para a salvação, enquanto os
arminianos, que sustentam que “a vontade humana, em última análise, determina se a
graça divina oferecida ao homem é aceita ou rejeitada”, acreditam que Deus
predestinou Cristo para se tornar o potencial Salvador para cada ser humano que cresse
e se arrependesse.30
Mas é aí que entra o problema. Dados os fatos dos efeitos do pecado original sobre
a natureza humana, incluindo depravação e escravidão da vontade, não há como os

26
Denney, Studies in Theology, 84. For an overview of the main positions of Calvinism, see Edwin H.
Palmer, The Five Points of Calvinism (Grand Rapids, MI: Baker, 1972).
29. Roger E. Olson, The Mosaic of Christian Belief: Twenty Centuries of Unity and Diversity (Downers
Grove, IL: InterVarsity, 2002), 274.
27
Roger E. Olson, Arminian Theology: Myths and Realities (Downers Grove, IL: IVP Academic, 2006), 17-
18.
28
“Semipelagianism,” in The Oxford Dictionary of the Christian Church, 3rd ed., ed. F. L. Cross andE. A.
Livingstone (New York: Oxford University Press, 1997), 1481.
29
Roger E. Olson, The Mosaic of Christian Belief: Twenty Centuries of Unity and Diversity (Downers Grove,
IL: InterVarsity, 2002), 274.
30
H . Orton Wiley and Paul T. Culbertson, Introduction to Christian Theology (Kansas City, MO: Beacon Hill
Press of Kansas City, 1946), 263.

137
indivíduos escolherem a favor de Deus. Algo tem que despertá-los para as realidades
espirituais e capacitá-los a escolher. Aquilo que os arminianos chamavam de graça
preveniente, a graça que opera na vida de uma pessoa antes que ela aceite a graça
salvadora. O resultado das graças prevenientes capacitando o poder através do Espírito
Santo é uma “vontade livre” – “uma que, embora inicialmente presa pelo pecado, foi
trazida pela graça preveniente do Espírito de Cristo a um ponto em que pode responder
livremente ao chamado divino.”31 Thomas Oden refere-se a esse conceito como
“liberdade habilitada pela graça”.32 O resultado final é que o Arminianismo permanece
firmemente na tradição agostiniana orientada para a graça e se opõe ao Pelagianismo
com sua negação da depravação, escravidão da vontade e incapacidade espiritual,
enquanto ao mesmo tempo rejeita o semipelagianismo.
PERSPECTIVAS ADVENTISTAS DO SÉTIMO DIA SOBRE DEPRAVAÇÃO E CAPACIDADE
ESPIRITUAL
Vários adventistas foram tentados a abraçar todas as posições discutidas até agora,
exceto a opção calvinista. A crença adventista no livre-arbítrio é forte, embora o
conceito seja amplamente mal compreendido. Com a ênfase tradicional da
denominação nos Dez Mandamentos, obediência e santificação, alguns de seus adeptos
foram atraídos para a perspectiva pelagiana, especialmente aqueles com uma
orientação teológica focada no perfeccionismo sem pecado.33
Porém, num ponto mais central para o adventismo, com sua compreensão mais
clara da centralidade da graça desde a sessão da Conferência Geral de 1888, é a divisão
entre os entendimentos semipelagianos e arminianos. Dito isso, é importante perceber
que os adventistas em geral negligenciaram a discussão dos aspectos do plano de
salvação que dividiram os arminianos e semipelagianos. A razão para essa negligência
não é difícil de descobrir. Ou seja, embora grande parte da discussão entre arminianos,
semipelagianos e calvinistas tenha sido focada principalmente no início da salvação para
indivíduos, os adventistas, com sua preocupação com a lei e os eventos do fim dos
tempos, negligenciaram amplamente os começos enquanto focavam em como as
pessoas deveriam viver e o que eles tinham que fazer para estar prontos para a vinda
de Cristo.
Embora isso seja verdade, muitos autores adventistas do século XX declararam
explicitamente sua crença na depravação total e incapacidade espiritual, mas, de forma
inconsistente, passaram a fornecer uma solução semipelagiana para o problema do
pecado, afirmando que, por livre-arbítrio, alguém poderia escolher aceitar a graça de
Cristo e tornar-se um cristão.34

31
Olson, Arminian Theology, 164.
32
Ibid., 95.
33
Para uma discussão mais completa, veja George R. Knight, “Seventh-day Adventism, Semi-Pelagianism,
and Overlooked Topics in Adventist Soteriology: Moving Beyond Missing I,inks and Toward a More Explicit
Understanding,” Andrews University Seminary Studies, vol. 51, no. 1 (2013): 3-24.
34
William Henry Branson, How Men Are Saved: The Certainty, Plan, and Time for Man’s Salvation
(Nashville, TN: Southern Publishing Assn., 1941), 8, 10, 18, 19, 23, 27, 29; Edward Heppenstall, Salvation

138
Havia exceções a essa regra, incluindo Hans LaRondelle e Edward Vick.35 Mas talvez
a exceção mais importante fosse Ellen White. Na década de 1890, ela fez vários pontos
para esclarecer a questão. Ela não apenas declarou explicitamente sua perspectiva
sobre a depravação humana e a incapacidade espiritual, mas também negou
explicitamente que o livre-arbítrio pudesse iniciar o plano de salvação para um
indivíduo.36 Mais importante ainda é sua afirmação de que “muitos estão confusos
quanto ao que constitui os primeiros passos na obra da salvação. Pensa-se que o
arrependimento é uma obra que o pecador deve fazer por si mesmo, a fim de que possa
vir a Cristo. O primeiro passo para Cristo é dado pela atração do Espírito de Deus; à
medida que o homem responde a essa atração, ele avança em direção a Cristo para que
possa se arrepender... O arrependimento não é menos dom de Deus do que o perdão e
a justificação, e não pode ser experimentado a menos que seja dado à alma por Cristo.”
Com tais declarações, Ellen White colocou-se firmemente no campo arminiano,
enquanto rejeitava o semipelagianismo de muitos de seus irmãos crentes. No processo,
ela levou em conta os ensinamentos bíblicos sobre a depravação total, a escravidão da
vontade, a incapacidade espiritual e a necessidade absoluta da graça em cada passo da
jornada cristã. Acima de tudo, ela destacou o que aqueles no setor
arminiano/wesleyano do protestantismo chamaram de graça preveniente – a graça que
vem antes da graça salvadora e liberta a vontade para que um indivíduo possa fazer a
escolha inspirada pela graça de aceitar a graça salvadora de Deus em Cristo.

Unlimited: Perspectives in Righteousness by Faith (Washington, DC: Review and Herald, 1974), 14-15, 17-
18, 23-25; ver também a discussão desses autores em Knight, “Seventh-day Adventism.”
35
Hans K. LaRondelle, Christ Our Salvation: What God Does for Us and in Us (Mountain View, CA: Pacific
Press, 1980), 12-20; Edward W. H. Vick, Let Me Assure You: Of Grace, of Faith, of Forgiveness, of Freedom,
of Fellowship, of Hope (Mountain View, CA: Pacific Press, 1968), 1,12. Veja também, Knight, Sin and
Salvation, 73-74, 87.
36
White, Steps, 18. Voltaremos a esta passagem em meu outro capítulo The Grace That Comes Before
Saving Grace” – em sua discussão sobre a graça preveniente.

139
SEÇÃO 3
A SALVAÇÃO DE JESUS: UMA SOLUÇÃO PERFEITA?

A vontade de Deus de restaurar Seu relacionamento com a humanidade caída


raramente foi questionada pelos crentes cristãos. Afinal, as Escrituras testificam que já
no Jardim do Éden Deus iniciou o plano de salvação que finalmente reconciliaria a
humanidade consigo mesmo (Gn 3:15). A maioria dos cristãos também concorda que
Jesus Cristo desempenha um papel crucial no plano de salvação e que Seu papel foi
definido no plano de Deus “desde a fundação do mundo” (Ap 13:8).1 Embora isso tenha
sido acordado, os cristãos muitas vezes têm opiniões diferentes sobre exatamente como
a expiação é realizada. A encarnação foi necessária para que a reconciliação entre Deus
e a humanidade ocorresse? O que exatamente aconteceu na cruz? Cristo teve que
morrer? A missão expiatória de Cristo foi completada na cruz ou continua em Seu
ministério sacerdotal? O destino da humanidade foi selado na cruz ou a reconciliação
final ainda nos espera no futuro? Essas e outras questões têm incomodado os crentes
cristãos ao longo dos séculos e continuam a fazê-lo hoje. As respostas bíblicas claras a
essas perguntas são necessárias para entender o que Deus realizou por meio de Cristo
para a humanidade.
Os autores dos capítulos desta seção tentarão responder a essas questões. O
primeiro capítulo, de autoria de Denis Fortin, fornece o pano de fundo histórico do
conceito bíblico de expiação. Também traça o desenvolvimento histórico de vários
modelos de expiação. No segundo capítulo, Jon Paulien enfoca especificamente a
completude e a natureza ilimitada do sacrifício expiatório de Cristo na cruz. O terceiro
capítulo, escrito por Jiri Moskala, enfoca o ministério contínuo de Cristo em favor da
humanidade no santuário celestial. Finalmente, no quarto capítulo, Roy Gane escreve
sobre a reconciliação eterna que será realizada no reino de Deus.

1
Salvo indicação em contrário, todas as citações das Escrituras são tiradas do New King James Version®.
Copyright © 1982 by Thomas Nelson. Usado com permissão. Uso autorizado. Todos os direitos
reservados.

140
CAPÍTULO 9
ANTECEDENTES HISTÓRICOS E TEOLÓGICOS DA
DOUTRINA DA EXPIAÇÃO
Denis Fortin

O livro de Apocalipse dá um vislumbre de uma cena no tribunal celestial em que


todo o exército do céu canta louvores a Cristo.
Tendo Ele [o Cordeiro] tomado o rolo, os quatro seres viventes e os vinte e quatro
anciãos prostraram-se diante do Cordeiro, cada um com uma harpa e taças de ouro cheias
de incenso, que são as orações dos santos. E cantaram um novo cântico, dizendo: “Digno és
de tomar o rolo e de abrir os seus selos; porque foste morto, e com o teu sangue nos
redimiste para Deus de toda tribo, língua, povo e nação, e nos fizeste reis e sacerdotes para
o nosso Deus; e reinaremos sobre a terra”. (Ap 5:8-10, NKJV);

A razão dada para esta magnífica adoração ao Cordeiro é porque Ele foi morto e
assim redimiu o povo de Deus. No centro da mensagem de salvação está a crença de
que Cristo morreu na cruz para redimir a humanidade, que Sua morte é o catalisador
que torna a salvação possível. Sem Sua morte não haveria salvação.
A doutrina da expiação procura explicar as razões pelas quais o divino Filho de Deus
pré-existente se tornou um ser humano e por que a morte de Cristo redime a
humanidade. Esta doutrina está intimamente dependente do que é explicado nas
doutrinas de Cristo (cristologia) e da salvação (soteriologia). Este capítulo explicará
algumas das teorias que os teólogos propuseram para explicar a morte de Cristo na cruz.
SEM EXPLICAÇÃO SIMPLES
No século XI, Anselmo (1033-1109), arcebispo de Cantuária, perguntou: “Por que
Deus se fez homem? Com que propósito Cristo desceu do céu?”1 Antes da época de
Anselmo e desde então, numerosos teólogos ponderaram as mesmas questões e
apresentaram múltiplas razões para explicar tanto a encarnação quanto a morte de
Cristo. Portanto, os livros sobre este tópico são uma legião e parece haver quase tantas
teorias sobre a expiação quantos autores. O teólogo anglicano Leon Morris observa,
É um fato interessante que através dos séculos a Igreja concordou que a cruz está no próprio
coração da fé, mas nunca chegou a uma conclusão de como a cruz salva os homens. Alguns
cristãos têm pensado nisso como o meio de Deus obter uma grande vitória. Alguns viram
nele uma revelação do amor divino. Alguns o consideraram como o pagamento da dívida
que os pecadores deviam. E poderíamos continuar. As teorias são muitas, e a Igreja nunca
se pronunciou oficialmente sobre o assunto.2

1
The Latin title of the book is Cur Deus Homo? Ad quid Christus descendebat?
2
Leon Morris, Glory in the Cross: A Study in Atonement (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1966), 58

141
Uma razão para isso, observa Morris, é a complexidade do assunto e a compreensão
humana limitada do pecado é parte da complexidade. O pecado pode ser entendido de
muitos ângulos: de uma só vez, é uma transgressão da lei de Deus, uma dívida, uma
incorrer em culpa, estar sob o poder de algum mal e muito mais. “Obviamente, qualquer
coisa que seja capaz de lidar efetivamente com todos os aspectos de todos os pecados
de todos os homens será extremamente complexa. . . . E quando uma coisa é
necessariamente complexa, é provável que haja uma certa quantidade de desacordo
sobre o que ela significa essencialmente.”3 Assim, para Morris, e para muitos teólogos,
um reconhecimento de que a expiação é multifacetada é um primeiro elemento essencial se
quisermos progredir no assunto. Muitos danos foram causados por pessoas bem-
intencionadas que tiveram uma compreensão tão firme de um aspecto do assunto que
passaram a sustentar que todo o resto é irrelevante. Há um ditado bem conhecido que diz
que “as teorias da expiação estão certas no que afirmam e erradas no que negam”. ... Visto
que a expiação é a provisão perfeita de Deus para as necessidades do homem, ela é
necessariamente multifacetada. E como a percepção do homem é, na melhor das hipóteses,
parcial, cada um de nós pode perceber apenas parte da verdade... Devemos sempre ter em
mente que este assunto é amplo e que há muitas maneiras de encará-lo.4

TEORIAS DA EXPIAÇÃO
Ao longo dos séculos, várias explicações da doutrina da expiação foram propostas.
Todos eles procuraram responder à pergunta de por que Jesus morreu na cruz. Quando
Jesus disse: “Está consumado” (João 19:30) — o que estava consumado? Das várias
teorias oferecidas, as cinco mais proeminentes serão revisadas na ordem em que foram
desenvolvidas.5
A Teoria do Resgate: Expiação como Vitória sobre as Forças do Pecado e do Mal
Nos primeiros dois séculos, a redenção era um fato e não uma doutrina e poucas
tentativas foram feitas para esclarecer as razões da morte de Jesus na cruz. De fato, o
Credo dos Apóstolos, uma das primeiras confissões de fé, simplesmente declarava sobre
Cristo que Ele “sofreu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado; desceu ao
inferno, ao terceiro dia ressuscitou dos mortos; subiu ao céu e está sentado à direita de
Deus, o Pai Todo-Poderoso; dali virá para julgar os vivos e os mortos”. Nada é dito sobre
as razões da morte de Jesus.
Mas o apóstolo Paulo no Novo Testamento ofereceu duas perspectivas iniciais. Um
identificou a morte de Cristo na cruz como o momento dramático de uma vitória
cósmica sobre as forças do mal e o meio de uma reconciliação entre Deus e Seu mundo
distante (Cl 1:20; 2:15). Além disso, a morte de Cristo também forneceu o preço para a
redenção de toda a humanidade (1 Coríntios 6:20; Colossenses 1:13, 14; ver também
Mat. 20:28; Marcos 10:45). Esses dois aspectos da expiação – vitória e resgate –
forneceram a estrutura bíblica para entender a morte de Cristo.

3
Ibid., 58-59.
4
Ibid., 59-60.
5
Millard J. Erickson fornece um bom resumo das várias teorias da expiação apresentadas neste capítulo.
Veja Christian Theology, 2nd ed. (Grand Rapids, MI: Baker Books, 1998), 798-817.

142
É somente após o segundo século que tentativas tangíveis de formular uma teoria
da expiação começaram a ser construídas. Quando o assunto da expiação foi discutido,
acreditava-se simplesmente que havia ocorrido uma transação entre Deus e o diabo, e
na cruz Jesus pagou o preço pela redenção da humanidade.
Essa teoria do resgate (ou barganha) foi a visão dominante por cerca de nove
séculos até a época de Anselmo de Cantuária. A primeira sugestão desta teoria entre os
pais da igreja primitiva aparece em Irineu (m. 202) em seu tratado Contra as Heresias.
Orígenes (184-253) não deixou dúvidas sobre sua crença na teoria do resgate.
Se então fomos “comprados por um preço”, como também Paulo afirma, sem dúvida fomos
comprados de alguém de quem éramos servos, que também mencionou que preço ele
pagaria por libertar aqueles que ele mantinha de seu poder. Agora era o diabo que nos
segurava, para o lado de quem fomos atraídos por nossos pecados. Ele pediu, portanto,
como nosso preço o sangue de Cristo.6

No século XX, essa visão de expiação foi revivida por Gustaf Aulen (1879-1977), um
teólogo luterano sueco.7
Essa visão se baseia na imagem bíblica de resgate e redenção (Mt 20:28; Mc 10:45).
Orígenes, por exemplo, valoriza muito as palavras de Paulo em 1 Coríntios 6:20: “Vocês
foram comprados por um preço”. Se Cristo comprou a humanidade, certamente deve
ter sido daqueles cujos servos os humanos eram, a saber, o diabo. Logicamente, o
resgate não poderia ter sido pago a Deus, mas foi determinado, pago e aceito por
Satanás.
Levar essa metáfora longe demais levou a todo tipo de especulação. Se o preço do
resgate exigido pelo diabo era a alma de Cristo, o diabo sabia que Jesus era divino e que
Sua alma não poderia permanecer na posse do diabo mesmo depois que Cristo
morresse? Também tem havido muita discussão sobre se Deus usou algum tipo de
engano para enganar o diabo a aceitar a alma de Jesus como o preço para redimir a
humanidade, sabendo que a alma de Jesus não poderia permanecer no inferno porque
Ele não tinha pecado.
De muitas maneiras, Ellen White também afirmou a teoria clássica da expiação de
que o Calvário era o sinal da vitória final de Cristo sobre os poderes do mal e de Satanás.
Em seu pequeno folheto sobre “The Sufferings of Christ,” [Os Sofrimentos de Cristo],
publicado pela primeira vez em 1869,8 ela escreveu: “Ele [Cristo] estava prestes a
resgatar Seu povo com Seu próprio sangue ___ Este era o meio pelo qual um fim deveria
ser finalmente feito ao pecado e a Satanás, e seu exército para ser derrotado.”9 Na cruz,
“Satanás foi então derrotado. Ele sabia que seu reino estava perdido.”10 White dedicou

6
Commentary on Romans 2.13, quoted in L. W Grensted, A Short History of the Doctrine of the Atonement
(Manchester: Manchester University Press, 1920), 37.
7
Veja Christus Victor: An Historical Study of the Three Main Types of the Idea of Atonement (New York:
Macmillan, 1951), 26-27.
8
“The Sufferings of Christ” foi publicado por Ellen G. White em Testimonies for the Church (Mountain
View, CA: Pacific Press, 1948), 2:200-215.
9
White, Testimonies for the Church, 2:209.
10
Ibid., 211.

143
um capítulo inteiro a esse tema no Desejado de Todas as Nações. Neste capítulo, ela
afirmou inequivocamente que a morte de Cristo na cruz foi o meio designado por Deus
para obter a vitória sobre as forças do mal e de Satanás. "Cristo não entregou a Sua vida
até que tivesse cumprido a obra que viera fazer, e com Seu sopro de despedida
exclamou: Está consumado.'... a batalha tinha sido ganha.... Todo o céu triunfou na
vitória dos Salvador. Satanás foi derrotado."11
A Teoria da Satisfação: Expiação como Compensação ao Pai
A mais objetiva de todas as teorias da expiação é a teoria da satisfação. Enquanto
alguns padres latinos haviam antecipado essa teoria da expiação (por exemplo,
Agostinho e Gregório Magno),12 foi Anselmo de Cantuária quem a articulou na Idade
Média. Seu livro Cur Deus Homo tornou-se um clássico no assunto.
Nesta teoria, Cristo morreu para satisfazer um princípio na própria natureza de
Deus Pai. Inspirado pelo sistema feudal medieval, Anselmo argumentou que Deus é
como um senhor feudal que precisa manter sua honra e que deve haver satisfação
adequada para qualquer invasão sobre ela. Nesse cenário, o pecado é entendido como
uma falha em render a Deus o que lhe é devido. Assim, os pecadores desonram a Deus.
Em resposta, Deus deve agir para preservar Sua própria honra. Ele não pode
simplesmente perdoar ou remir o pecado sem puni-lo. O pecado não punido deixaria a
economia de Deus fora de ordem. A honra violada por Deus pode ser corrigida
novamente por Sua punição aos pecadores ou pela aceitação da satisfação feita em
favor deles. Essa satisfação, no entanto, não poderia ser prestada por um ser humano
porque a humanidade é pecadora. Para acertar as coisas na economia do reino de Deus,
algo tinha que ser feito pelos seres humanos por alguém qualificado para representá-
los.
Para ser eficaz, a satisfação proporcionada tinha que ser maior do que todos os
seres humanos criados são capazes de fazer. Assim, somente Deus poderia fazer
satisfação. No entanto, se era para restaurar o relacionamento da humanidade com
Deus, tinha que ser feito por um ser humano. Portanto, a satisfação teve que ser
prestada por alguém que é tanto Deus quanto humano e, consequentemente, a
encarnação do Filho de Deus tornou-se uma necessidade. Cristo, sendo Deus e humano
sem pecado, não merecia a morte. Assim, o sacrifício de Sua vida a Deus em favor da
raça humana foi além do que Lhe era exigido. E assim Sua morte substitutiva satisfez a
honra e a justiça de Deus.
A lógica dessa visão é notável, e muitos textos das Escrituras apoiam seus
elementos-chave. Em Romanos, Paulo é claro em sua descrição da ira de Deus para com
os pecadores; Deus se ofende com o pecado (1:18-32). A morte de Jesus é descrita como

11
Ellen G. White, The Desire of Ages (Mountain View, CA: Pacific Press, 1898, 1940), 758.
12
Veja Grensted, A Short History of the Doctrine of the Atonement, 120-121.

144
um sacrifício propiciatório pela humanidade (Is 53:4-6; Rm 3:23-26; 1Jo 2:2) e como um
resgate substitutivo (1Tm 2:6).
Apesar do apoio bíblico, essa visão não é isenta de desafios. De todos os pontos de
vista sobre a expiação, este é o mais prontamente rejeitado por causa do retrato de
Deus como um deus vingativo, como tendo uma queixa com a humanidade e com a
intenção de sua destruição. Deus precisa da expiação para aplacar Sua ira. Muitos
teólogos se opõem à violência que essa visão exige. Por que Deus exigiria a morte
violenta de Seu Filho para perdoar os pecadores?13
No entanto, como resposta parcial a essas objeções, João 3:16 ensina que a
expiação também é um ato de amor do Pai. A morte de Jesus não fez com que o Pai
amasse a humanidade. A ira de Deus e Seu amor precisam ser mantidos em equilíbrio.
Ele odeia o pecado, mas ama a humanidade.
Para Ellen White, a morte de Cristo foi um sacrifício substitutivo; Cristo sofreu nossa
penalidade pelos pecados, morreu nossa morte e carregou nossos pecados. “Cristo
consentiu em morrer no lugar do pecador, para que o homem, por uma vida de
obediência, pudesse escapar da penalidade da lei de Deus.”14 No Calvário, “O glorioso
Redentor de um mundo perdido estava sofrendo a penalidade da transgressão do
homem a lei dos Pais.”15
White argumentou também que a morte sacrificial substitutiva de Cristo é o meio
pelo qual os pecadores podem ser justificados pela fé. Sem esta expiação substitutiva,
não pode haver justificação dos pecadores. Sua declaração clássica em O Desejado de
Todas as Nações é clara: “Cristo foi tratado como merecemos, para que pudéssemos ser
tratados como Ele merece. Ele foi condenado por nossos pecados, nos quais Ele não teve
parte, para que pudéssemos ser justificados por Sua justiça, na qual não tivemos parte.
Ele sofreu a morte que era nossa, para que pudéssemos receber a vida que era Sua.
‘Pelas Suas pisaduras fomos sarados.’”16
White também esclareceu sua compreensão de como Jesus suportou a ira de Deus
na cruz. “Através de Jesus, a misericórdia de Deus se manifestou aos homens; mas a
misericórdia não anula a justiça. A lei revela os atributos do caráter de Deus, e nem um
jota ou til pode ser mudado para encontrar o homem em sua condição decaída. Deus
não mudou Sua lei, mas Ele se sacrificou, em Cristo, pela redenção do homem. ‘Deus
estava em Cristo, reconciliando consigo o mundo.’”17 No entendimento de White sobre
este conceito de propiciação, não há dicotomia ou abismo irreconciliável entre o amor
de Deus e a justiça de Deus. Ela não acredita que na cruz Jesus tentou fazer Deus amar
a humanidade; na verdade, nesse contexto ela nunca usa o verbo apaziguar. Deus não

13
Um exemplo de uma publicação recente que aborda esta questão é John Sanders, ed., Atonement and
Violence: A Theological Conversation (Nashville: Abingdon, 2006).
14
White, Testimonies for the Church, 2:200-201.
15
Ibid., 209.
16
White, Desire of Ages, 25.
17
Ibid., 762.

145
precisa ser apaziguado. Em vez disso, é um Deus que renuncia a si mesmo que está se
sacrificando para redimir uma humanidade perdida. O próprio Jesus carrega a ira de
Deus.
A Teoria da Influência Moral: Expiação como Demonstração do Amor de Deus
Em contraste com a teoria da satisfação que é estritamente focada em Deus se
beneficiando da expiação, a teoria da influência moral fala apenas dos benefícios que a
morte de Cristo trouxe para a humanidade. Esta teoria enfatiza a dimensão divina da
morte de Cristo como uma demonstração do amor de Deus. Essa visão foi desenvolvida
pela primeira vez por Pedro Abelardo (1079-1142) em resposta à teoria da satisfação de
Anselmo.
A teoria da influência moral enfatiza a primazia do amor de Deus e insiste que Cristo
não fez algum tipo de pagamento sacrificial ao Pai para satisfazer Sua dignidade
ofendida. Antes, Jesus demonstrou aos seres humanos toda a extensão do amor de Deus
por eles. Era o medo e a ignorância da humanidade em relação a Deus que precisavam
ser retificados. Isto foi realizado pela morte de Cristo. Assim, o principal efeito da morte
de Cristo foi para o benefício da humanidade e não para Deus.
Entre outros aspectos da expiação, Abelardo enfatizou o aspecto de influência
moral da expiação. Em seu Commentary on the Epistle to the Romans [Comentário à
Epístola aos Romanos], ele apresentou “a Cruz como a manifestação do amor de Deus,
e ao pensamento desse amor ele retorna continuamente”.18 A justificação da
humanidade está no acender desse amor divino em seus corações na presença da Cruz.
Amar é libertar-se da escravidão do pecado, alcançar a verdadeira liberdade dos filhos
de Deus. A justificação e a reconciliação dos seres humanos com Deus consistem na
graça demonstrada à humanidade na encarnação de Cristo e na perseverança de Cristo
em ensinar pela palavra e pelo exemplo, até a morte.
Essa visão de expiação entende que Deus é essencialmente amor. Outros aspectos
do caráter de Deus são minimizados (por exemplo, justiça, santidade e retidão).
Portanto, os seres humanos não precisam temer a justiça e o castigo de Deus. O
problema da humanidade não é que eles tenham violado a lei de Deus e Deus os punirá.
Em vez disso, o problema deles é que suas próprias atitudes os mantêm separados de
Deus.
O pecado é percebido como um tipo de doença da qual a humanidade deve ser
curada. É para corrigir este defeito na humanidade que Cristo veio. O pecado se
manifesta pelo temor de Deus, separação e alienação dEle. A natureza humana é
essencialmente livre dos efeitos do pecado. De maneira pelagiana, um indivíduo pode
aceitar a salvação e abandonar o pecado depois de receber uma revelação do amor de
Deus.
A morte de Jesus é uma demonstração do amor divino. Sua morte foi apenas um
dos modos pelos quais Seu amor foi expresso. Não era o propósito de Sua vinda; antes,

18
Grensted, A Short History of the Doctrine of the Atonement, 104.

146
foi uma consequência de Sua vinda. A cura de almas enfermas pelo pecado é a
verdadeira obra de Jesus. Como afirma Horace Bushnell,
Somente ter visto uma vida perfeita, ter ouvido as palavras e recebido as concepções puras
de um espírito sem pecado, ter sentido a operação de sua caridade e testemunhado a oferta
de sua obediência sem pecado, teria sido receber as sementes de um revolução moral que
deve, em última análise, afetar toda a raça. Isso era verdade até mesmo para um Sócrates.
Nosso mundo não é o mesmo mundo que era antes dele viver nele. Muito menos o mesmo,
já que o Jesus sem pecado viveu e sofreu nele. Tal caráter tem, necessariamente, um poder
orgânico.19

Por Sua morte na cruz, Jesus cumpriu três necessidades humanas mais básicas. A
primeira é a necessidade da humanidade de abertura a Deus, uma inclinação para
responder a Ele. Os seres humanos são naturalmente tementes a Deus. Cristo entende
a situação da humanidade e veio para abrir o caminho, para mostrar o amor de Deus
morrendo a morte mais cruel, obliterando o temor de Deus da humanidade.
Uma segunda necessidade humana satisfeita pela cruz é uma convicção genuína e
profunda do pecado pessoal e um arrependimento resultante. Por Sua morte, Jesus
cumpre essa necessidade na humanidade. Quando os indivíduos buscam Aquele a quem
traspassaram por seu pecado, então eles são amolecidos. E eles se arrependem e se
voltam para Jesus em amor.
Em terceiro lugar, a necessidade de inspiração da humanidade para viver uma vida
santa é cumprida na cruz. Em Jesus os seres humanos veem a exposição prática e pessoal
da verdadeira santidade na vida de uma pessoa. Assim, a morte de Jesus na cruz exerce
uma influência moral na vida das pessoas em todas as gerações. Quando as pessoas
veem o amor de Deus de Jesus, o sofrimento de Deus e a santidade de Deus no homem
Jesus, elas são moralmente influenciadas a cumprir a Palavra de Deus.
Pode-se argumentar que o aspecto mais básico da teologia da expiação de Ellen
White centra-se na morte de Cristo como uma demonstração do amor de Deus pela
humanidade perdida. “Quem pode compreender o amor aqui demonstrado!
... Tudo isso por causa do pecado! Nada poderia ter induzido Cristo a deixar Sua honra e
majestade no céu, e vir a um mundo pecaminoso, para ser negligenciado, desprezado e
rejeitado por aqueles que Ele veio salvar, e finalmente sofrer na cruz, mas o amor eterno
e redentor, que permanecerá para sempre um mistério.”20 Além disso, ela também
afirma que tal demonstração do amor de Deus exerce uma poderosa influência moral
sobre a humanidade. Ela escreve que refletir sobre os eventos do Calvário “despertará
emoções ternas, sagradas e vivas no coração do cristão” e removerá “o orgulho e a
autoestima”.21

19
Horace Bushnell, God in Christ: Three Discourses (New York: Scribner, Armstrong, and Company, 1877),
205-206.
20
White, Testimonies for the Church, 2:207.
21
Ibid., 212. Anos depois, Ellen White ofereceu este mesmo tema como ponto de partida de seu livro The
Desire of Ages: "Foi para manifestar esta glória [de Deus] que Ele veio ao nosso mundo. A esta terra
escurecida pelo pecado Ele veio para revelar a luz do amor de Deus,-para ser Deus conosco. '... À luz do

147
Interesses eternos estão aqui envolvidos. Sobre este tema é pecado ser calmo e desapaixonado. As
cenas do Calvário exigem a mais profunda emoção. Sobre este assunto você será desculpável se
manifestar entusiasmo. ... A contemplação das incomparáveis profundezas do amor de um
Salvador deve encher a mente, tocar e derreter a alma, refinar e elevar as afeições e transformar
completamente todo o caráter.22

A Teoria Sociniana: Expiação como Exemplo


Essa teoria foi articulada pela primeira vez por um teólogo polonês do século
XVI, Faustus Socinus (1539-1604), e hoje essa visão é defendida pelos unitaristas.
Basicamente, essa visão rejeita qualquer ideia de que a morte de Cristo tenha
qualquer satisfação vicária e sustenta que o ministério de Cristo na terra foi mais
profético do que sacerdotal. Abraçando o arianismo, o socinianismo enfatizou
apenas a humanidade de Cristo.
A aliança da qual Jesus falou envolve um perdão absoluto ao invés de alguma
forma de sacrifício substitutivo. O real valor da morte de Jesus está no belo e
perfeito exemplo que ela nos dá. É o tipo de dedicação que todos os cristãos
devem praticar. O socinianismo aponta 1 Pedro 2:21 como a conexão explícita
entre o exemplo de Cristo e Sua morte: “Para isso fostes chamados, porque Cristo
sofreu por vós, deixando-vos exemplo, para que sigais os seus passos” (NVI).
Vários conceitos doutrinários alimentam a compreensão sociniana de
expiação. Uma visão pelagiana da condição humana é fundamental: a humanidade
é espiritual e moralmente capaz de fazer a vontade de Deus, de cumprir as
expectativas de Deus. Além disso, Deus não é percebido como um Deus de justiça
retributiva e, portanto, Ele não exige alguma forma de satisfação de ou em nome
daqueles que pecam contra Ele.23 E quanto a Jesus? Ele é apenas um humano. A
morte que Ele experimentou foi simplesmente a de um ser humano comum em
um mundo caído e pecaminoso. Sua morte é um exemplo para todos os humanos
do que significa cumprir os requisitos de Deus.
Essa visão de expiação também explica que a humanidade tem em Jesus um
exemplo perfeito do amor total por Deus que os humanos devem demonstrar se
quiserem experimentar a salvação. A morte de Jesus dá inspiração à humanidade.
É possível que os humanos amem a Deus de todo o coração desde que Jesus o fez.

Calvário ver-se-á que a lei do amor auto-depreciativo é a lei da vida para a terra e para o céu; que o amor
que não busca o seu próprio tem a sua fonte no coração de Deus" (19-20). Os mesmos sentimentos ecoam
no início dos Patriarcas e Profetas, "A história do grande conflito entre o bem e o mal, desde o momento
em que começou no céu até a derrubada final da rebelião e a erradicação total do pecado, é também uma
demonstração do amor imutável de Deus," Patriarcas e Profetas (Mountain View, CA: Pacific Press,
1890,1958), 33.
22
Ibid., 213.
23
O Catecismo Racoviano afirma: "Porque, ainda que confessemos e, por conseguinte, exultemos
excessivamente, que o nosso Deus é maravilhosamente misericordioso e justo, não obstante negamos
que há nele a misericórdia e a justiça que os nossos adversários imaginam, já que um aniquilaria
totalmente o outro." Citado em Millard J. Erickson, ed., Mans Need and God’s Gift: Readings in Christian
Theology (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1976), 364.

148
Esta teoria, no entanto, apresenta algumas fraquezas evidentes. Ele não
consegue lidar com outros textos das Escrituras que falam da morte de Jesus de
maneira bem diferente. As Escrituras também falam de resgate, sacrifício e levar
o pecado em referência à morte de Jesus. Três versos após o texto principal do
Socinianismo, Pedro diz que Jesus “carregou ele mesmo em seu corpo os nossos
pecados sobre a cruz, para que morrêssemos para os pecados e vivêssemos para
a justiça; pelas suas feridas fostes curados” (1Pe 2:24, NVI).
Para o socinianismo a expiação é apenas um conceito metafórico. Tudo o que
é necessário para que Deus e os seres humanos tenham comunhão uns com os
outros é que a humanidade tenha fé e amor por Deus. Para Deus ter exigido algo
mais teria sido contrário à Sua natureza, e ter punido o inocente (Jesus) no lugar
do culpado (humanidade) teria sido contrário à justiça. “Em vez disso, Deus e os
humanos são restaurados ao relacionamento pretendido por nossa adoção
pessoal tanto dos ensinamentos de Jesus quanto do exemplo que ele deu na vida
e especialmente na morte.”24 Claramente o socinianismo é uma visão subjetiva da
expiação: somente a humanidade se beneficia da morte de Jesus.
A Teoria Governamental: A Expiação como Demonstração da Justiça Divina
Outra visão importante da doutrina da expiação foi desenvolvida por Hugo
Grotius (1583-1645), um teólogo holandês do século XVII. Ele desenvolveu sua
teoria em resposta aos socinianos, cuja visão da expiação ele considerava muito
centrada no ser humano.
Para Grotius, Deus é santo e justo. Como o governante do universo, Ele
estabeleceu certas leis e as transgressões de Suas leis são ataques ao Seu governo.
Mas o amor de Deus também é a base de Suas ações e Ele ama a raça humana. Ele
tem o direito de punir o pecado (já que Ele é o governante do universo), mas não
é obrigatório que Ele o faça. Ele pode perdoar o pecado e absolver o culpado. A
maneira como Ele faz isso manifesta Sua clemência e severidade. Deus pode
perdoar o pecado, mas também leva em consideração os interesses de Seu
governo moral. Perdoar os culpados com muita frequência prejudicaria a
autoridade de Sua administração.
Assim, a morte de Cristo realizou o meio de expiação. Fornece fundamentos
para o perdão e, simultaneamente, retém a estrutura do governo moral. Sua
morte não foi uma pena infligida a Jesus como um substituto para a pena que está
ligada aos pecados da humanidade (como Anselmo defendia). A morte de Cristo
foi um substituto para uma penalidade, um exemplo do que acontecerá com a
humanidade se ela persistir no pecado. Na morte de Cristo, Deus demonstrou que
Sua justiça exigirá que a humanidade sofra se continuar em pecado. Olhar para os
sofrimentos de Cristo é suficiente para dissuadir as pessoas do pecado. E se os

24
Erickson, Christian Theology, 802.

149
seres humanos abandonarem o pecado, eles podem ser perdoados e o governo
moral de Deus pode ser preservado.
Grotius acreditava que a morte de Cristo não era um castigo porque Cristo
não tinha pecado. Nenhuma penalidade poderia ser anexada ou transferida para
Cristo. A punição é pessoal para o indivíduo. Se pudesse ser transferido, a conexão
entre pecado e culpa seria cortada. O sofrimento de Cristo não foi um sofrimento
vicário do castigo da humanidade, mas uma demonstração do ódio de Deus ao
pecado, uma demonstração destinada a induzir nos seres humanos o horror ao
pecado. A teoria de Grotius é uma forma da visão da “substituição penal”, porque
ele acreditava que apenas os sofrimentos de Cristo, não Sua morte, são a
substituição da punição justa que deveria ser infligida aos pecadores.
Até certo ponto, o entendimento de Ellen White sobre a expiação também se
enquadra na teoria governamental e, de certa forma, é uma reminiscência do
pensamento de Hugo Grotius. Ela afirmou que o Calvário é uma vindicação do
caráter, da lei e do governo justo de Deus. (Mas, em contraste com Grotius, Ellen
White acreditava que Jesus morreu uma morte substitutiva, vicária.) Seu conceito
do grande conflito argumenta que o governo universal de Deus foi ameaçado pela
rebelião de Lúcifer e seus anjos e pelo pecado da humanidade. Satanás afirmou
que a lei e o caráter de Deus são injustos e prejudiciais à harmonia do universo.
Para provar que essas acusações estavam erradas, Deus enviou Seu Filho para
viver e morrer pela humanidade e, em um sentido mais amplo, para salvar o
universo do caos. Em Jesus, o caráter de Deus é demonstrado como amor e justiça,
e Sua lei como justa e equitativa.
Sua morte não tornou a lei sem efeito; não destruiu a lei, não diminuiu suas
reivindicações sagradas, nem diminuiu sua dignidade sagrada. A morte de
Cristo proclamou a justiça da lei de Seu Pai ao punir o transgressor, na medida
em que Ele consentiu em sofrer a penalidade da própria lei a fim de salvar o
homem caído de sua maldição. A morte do Filho amado de Deus na cruz
mostra a imutabilidade da lei de Deus... A morte de Cristo justificou as
reivindicações da lei.25

Como está claro agora, existe interconexão entre vários conceitos ou doutrinas
teológicas, e a visão que se tem em uma área afeta a interpretação das Escrituras que
lidam com outras doutrinas. Em outras palavras, as conclusões sobre uma doutrina
constituem os pressupostos para outra. “Na doutrina da expiação vemos talvez a
indicação mais clara do caráter orgânico da teologia, isto é, vemos que as várias

25
White, Testimonies for the Church, 2:201. In The Desire of Ages, White afirmou o mesmo conceito: A
morte de Cristo justificou o caráter, a lei e o governo de Deus contra todas as acusações de Satanás. "No
início da grande controvérsia", escreveu ela, "Satanás havia declarado que a lei de Deus não podia ser
obedecida." Mas, "por Sua vida e Sua morte, Cristo provou que a justiça de Deus não destruiu Sua
misericórdia, mas que o pecado poderia ser perdoado, e que a lei é justa, e pode ser perfeitamente
obedecida. As acusações de Satanás foram refutadas. Deus havia dado ao homem evidência inequívoca
de Seu amor", 761-762.

150
doutrinas se encaixam de maneira coesa. A posição assumida sobre qualquer um deles
afeta ou contribui para a construção dos demais.”26
Como Leon Morris apontou corretamente, todas as teorias têm algo de bom a dizer
sobre a expiação e todas essas visões possuem uma dimensão da verdade. “Uma vez
que a expiação é a provisão perfeita de Deus para as necessidades do homem, ela é
necessariamente multifacetada. E como a percepção do homem é, na melhor das
hipóteses, parcial, cada um de nós pode perceber apenas parte da verdade.”27 Juntos,
eles apresentam todo o quadro do significado da morte de Cristo no Calvário. Para os
adventistas, a abordagem de Morris faz sentido, pois leva em conta tudo o que as
Escrituras têm a dizer sobre o assunto.
CONCLUSÃO
Em Sua morte, Cristo (1) triunfou sobre as forças do pecado e da morte, libertando
a humanidade de seu poder, (2) satisfez o Pai pelos pecados da humanidade sacrificando
Sua vida em favor deles, como seu substituto, (3) demonstrou a grande extensão do
amor de Deus pela humanidade, (4) deu à humanidade um exemplo perfeito do tipo de
dedicação que Deus deseja deles, e (5) destacou a seriedade do pecado e a severidade
da justiça de Deus e o impacto que o pecado tem sobre o governo de Deus na o universo.
De muitas maneiras, Ellen White afirmou todos os aspectos principais das teorias
da expiação que examinamos. Seus escritos apoiam a visão defendida por muitos
teólogos de que todas as teorias juntas trazem à tona o pleno significado da morte de
Cristo.

26
Erickson, Christian Theology, 799-800.
27
Morris, Glory in the Cross, 59.

151
CAPÍTULO 10
EXPIAÇÃO: REALIZADA NA CRUZ
Jon Paulien

Um dos temas mais debatidos da teologia cristã é expresso em estas perguntas: Por
que a cruz? O que realmente aconteceu na cruz? As respostas a essas perguntas têm
sido amplamente debatidas sob o título geral da expiação. Mas quando os adventistas
do sétimo dia (ASD) abordam a questão da expiação, percebe-se um dilema imediato.
Quando os adventistas falam sobre a expiação, eles se referem especificamente ao que
Jesus está fazendo agora no santuário celestial. Por outro lado, quando estudiosos de
fora da Igreja Adventista do Sétimo Dia discutem a expiação, eles se referem
especificamente à cruz de Jesus Cristo e ao que Deus estava fazendo ali. 1 O propósito
deste capítulo é focar no que a Bíblia tem a dizer. sobre a expiação na cruz sem negar a
visão tradicional da expiação herdada dos pioneiros adventistas. Para obter uma
imagem mais completa das questões envolvidas nesta discussão, a palavra inglesa
expiação precisa ser definida.
A PALAVRA EXPIAÇÃO EM INGLÊS
A palavra inglesa expiação não se origina em línguas antigas ou bíblicas como muitas
outras palavras teológicas. É uma palavra composta construída a partir de componentes
ingleses.2 Parece ter se originado no início do século XVI com a palavra onement [O
estado de estar em um ou reconciliado], depois veio at [em] onement e, no final do
século, apareceu como “atonement”.3

1
Siegfried H. Horn, “Atonement,” Seventh-day Adventist Bible Dictionary (SDABD), ed. Don F. Neufeld
(Washington, DC: Review and Herald, 1960), 92; Curiosamente, os dicionários de inglês apresentam
ambos os significados da palavra; não é uma situação de ou/ou entre os principais linguistas. Por exemplo,
o Webster's New International Dictionary of the English Language (2ª ed., ed. William Allan Nelson
[Springfield, MA: Merriam, 1960], 176) observa sob significados teológicos tanto “a obra salvadora ou
redentora de Cristo realizada através de sua encarnação , sofrimentos e morte” e “reconciliação entre
Deus e os homens, esp. como efetuado por Cristo”. O American Heritage Dictionary of the English
Language (ed, William Morris [New York: American Heritage Publishing, 1973], 84) também dá dois
significados teológicos: 1) “vida redentora e morte de Cristo” e 2) “reconciliação de Deus”. e o homem
como realizado por Cristo”. Joel Green concorda com essa avaliação dos materiais bíblicos quando diz:
“Em declarações doutrinárias na tradição cristã, [expiação] tipicamente denota o sacrifício de Jesus na
cruz... Nos materiais bíblicos, no entanto, o conceito de expiação ' refere-se mais amplamente a vários
meios pelos quais pessoas particulares (ou humanidade) são restauradas ao relacionamento correto com
Deus”. “Atonement,”, no The New Interpreter’s Dictionary of the Bible (NIDB), vol. 1, ed. Katharine Doob
Sakenfeld (Nashville: Abingdon Press, 2006), 344-345.
2
Raoul Dederen, “Christ: His Person and Work,” in Handbook of Seventh-day Adventist Theology,
Commentary Reference Series, vol. 12, ed. Raoul Dederen (Hagerstown, MD: Review and Herald
Publishing Association, 2000), 173; C. L. Mitton, “Atonement,” in The Interpreters Dictionary of the Bible:
An Illustrated Encyclopedia (IDB), ed. George Arthur Buttriclc (New York: Abingdon Press, 1962), 1:309.
3
The Oxford English Dictionary, ed. James A. H. Murray et al. (1933; repr., London: Oxford University
Press, 1961), 1:539; Green, “Atonement,” NIDB, 1:344.

152
O significado raiz mais próximo é “reconciliação”4 com um significado estendido
em inglês de “propiciação, expiação”.5 As elaborações do significado da raiz incluem
“restauração de relações amistosas”, “o estado ou ato de pôr em concórdia”,6 “a ação
de estabelecer um, ou condição de ser estabelecido em um, após discórdia ou conflito”7
e /ou “emendas ou reparações feitas por uma lesão ou erro.”8 “Expiar um erro é tomar
alguma ação que anule os efeitos nocivos da alienação e traga um relacionamento
harmonioso.”9
O uso da palavra em inglês pode refletir tanto um processo quanto um estado. A
expiação pode ser o processo de corrigir erros, fazer reparações e trazer as pessoas para
relações amigáveis umas com as outras. Por outro lado, atonement pode significar estar
em harmonia, ou em harmonia com os outros.10 Como observado acima, o significado
básico da palavra atonement em inglês tende a se expandir na direção de propiciação e
expiação. Deve-se ter muito cuidado ao fazer teologia para não distorcer o texto bíblico
por conta de mudanças no significado das palavras em inglês que são usadas ou foram
usadas para traduzir o texto bíblico.
Também fica claro pelos principais dicionários de inglês que os linguistas veem
uma aplicação dupla da palavra expiação na arena da teologia. A expiação ocorre tanto
na cruz quanto na aplicação do que a cruz alcançou. Portanto, não é uma situação ou/ou
em termos da palavra inglesa.
EXPIAÇÃO NA BÍBLIA
Expiação Traduzida em Palavras Gregas e Hebraicas
Na versão King James da Bíblia em inglês,11 a palavra expiação ocorre 81 vezes no
Antigo Testamento12 e apenas uma vez no Novo (Rm 5:11). Das 81 ocorrências no Antigo
Testamento, 77 estão agrupadas na seção do Pentateuco que se concentra
principalmente nos regulamentos para o tabernáculo hebraico.13 Todas elas pertencem
ao grupo de palavras hebraicas kpr.14 Quinze das ocorrências estão em Levítico 16, que

4
Dederen, “Christ: His Person and Work,” in Handbook of Seventh-day Adventist Theology, 173; Mitton,
“Atonement,” IDB, 1:309; W. S. Reid, “Atone, Atonement,” in The International Standard Bible
Encyclopedia (ISBE), rev. ed., ed. Geoffrey W Bromiley (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1979), 1:352; SDABD,
74; Clark M. Williamson, “Atonement Theologies and the Cross,” Encounter 71:1 (Winter 2010): 2.
5
Websters New International Dictionary, 176; The Oxford English Dictionary, 1:539.
6
Green, “Atonement,” NIDB, 1:344-345; Websters New International Dictionary, 176.
7
The Oxford English Dictionary, 1:539.
8
The American Heritage Dictionary, 84.
9
Dederen, “Christ: His Person and Work,” Handbook of Seventh-day Adventist Theology, 173.
10
Mitton, “Atonement”, BID, 1:309, observa que enquanto a palavra inglesa atonement originalmente
significava principalmente o estado de ser um, o uso moderno se concentra quase inteiramente no
significado derivado de “o processo pelo qual os obstáculos à reconciliação são removidos”.
11
O uso de expiação na versão King James é mencionado porque foi o texto de origem primária para a
reflexão adventista do sétimo dia sobre o significado da expiação.
12
vezes em Êxodo; 49 vezes em Levítico; 17 vezes em Números; e uma vez cada em 2 Samuel 21:3; 1
Crônicas 6:49; 2 Crônicas 29:24; e Neemias 10:33.
13
Da segunda metade de Êxodo até o livro de Números.
14
A forma nominal é kippur e a forma verbal kaphar. A forma substantiva kippur ocorre nove vezes e a
forma verbal kaphar ocorre setenta e duas vezes.

153
descreve os serviços no Dia da Expiação. Portanto, não é de surpreender que os
pioneiros adventistas, utilizando a versão King James, fossem atraídos para uma visão
de expiação que se concentra nos rituais do santuário hebraico e particularmente no Dia
da Expiação. E a falta geral de referências no Novo Testamento também levaria os
pioneiros adventistas a tratar o assunto em termos da evidência do Antigo Testamento
mais do que do Novo.
O significado da raiz de kpr no hebraico é cobrir (ou seja, cobrir o rosto) ou encobrir
(por exemplo, problema ou pecado).15 Tem o significado estendido de fazer as pazes e
proporcionar reconciliação, expiação, limpeza e expiação.16 Uma forma substantiva
expandida de kpr é kapporeth, que é usada 23 vezes para o “propiciatório” na Arca da
Aliança.17 A Arca, é claro, desempenhou um papel central nos serviços no Dia da
Expiação.
Observar os contextos em que essas palavras para expiação são encontradas revela
algumas coisas interessantes.18 A passagem que parece definir mais claramente
expiação é Levítico 17:11.19 Essa passagem poderia facilmente deixar a impressão de
que cada palavra para caso, foca-se unicamente no sangue e na sua manipulação. E isso
certamente é verdade para o Dia da Expiação (Lv 16:14-19).20 Mas o quadro mais amplo
do uso de grupos de palavras no Antigo Testamento exige que essa impressão seja
qualificada. A expiação no Antigo Testamento nem sempre é feita por sacrifício e
aplicação de sangue, mas também pode ser concedida com base em várias outras
ações.21

15
William L. Holladay, A Concise Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament: Based upon the
Lexical Work of Ludwig Koehler and Walter Baumgartner (Grand Rapids, MI: William B. Eerdmans
Publishing Company, 1971), 163. Some scholars suggest a related meaning, to “wipe or rub.” See Green,
“Atonement,” NIDB, 1:345; Mitton, “Atonement,” LDB, 1:310; SDABD, 74; Christopher J. H. Wright,
“Atonement in the Old Testament,” in The Atonement Debate: Papers from the London Symposium on
the Theology of the Atonement, ed. Derek Tidball, David Hilborn, and Justin Thacker (Grand Rapids, MI:
Zondervan, 2008), 75-76.
16
Holladay, A Concise Hebrew and Aramaic Lexicon, 163. See also G. K. Beale, A New Testament Biblical
Theology: The Unfolding of the Old Testament in the New (Grand Rapids, MI: Baker Academic Press, 2011),
487-488.
17
Outra palavra relacionada, kopher, implica resgate ou redenção. Veja Henri Blocher, “Biblical
Metaphors and the Doctrine of the Atonement”, Journal of the Evangelical Theological Society (JETS) 47:4
(dezembro de 2004): 644.
18
A fim de poder avaliar cuidadosamente todas as evidências, achei que seria importante examinar todos
os casos em que as palavras hebraicas subjacentes à palavra inglesa expiação ocorreram. As
categorizações dessas evidências são minhas e certamente podem ser contestadas, mas acho que o
quadro geral é razoavelmente claro e não afetado pelos detalhes dessas categorizações.
19
Terry Briley, “The Old Testament ‘Sin Offering and Christs Atonement,” Stone- Campbell Journal 3
(Spring 2000): 97-100; Samuel J. Mikolaski, “The Cross of Christ: The Atonement and Men Today,”
Christianity Today (March 13, 1961): 3-4; Leon Morris, The Atonement: Its Meaning and Significance
(Leicester, England: InterVarsity Press, 1983), 53. A séria importância do sangue na expiação é sublinhada
ainda mais em Levítico 10:16-20, onde Moisés repreende os filhos de Arão por queimar a oferta pelo
pecado em vez de trazer seu sangue para o santuário.
20
Veja a discussão em Beale, New Testament Biblical Theology, 487.
21
Green, “Atonement”, NIDB, 1:345; Mitton, “Atonement”, BID, 1:310. Existem várias passagens em que
há ausência de sangue e sacrifício e a expiação é concedida por outros motivos. A expiação pode ser
concedida após a aplicação de óleo (Lv 14:29), queima de farinha (Lv 5:11-13), queima de incenso (Nm

154
Várias palavras gregas são usadas para traduzir kpr no Antigo Testamento grego
(LXX). A tradução mais comum é pelo verbo exilaskomai e o substantivo exilasmos. A
palavra hebraica kapporeth (propiciatório) é normalmente traduzida como hilasterion.
Ocasionalmente, a LXX traduz kpr com a palavra grega lutron, que significa “resgate ou
redenção”.22 Visto que variações dessas palavras são encontradas no Novo Testamento,
elas ajudarão a deixar claro como se entendia que a expiação ocorreu na cruz de Jesus
Cristo.
Ler a expiação através das lentes das cerimônias do Santuário e particularmente do
Dia da Expiação levou os pioneiros adventistas a ver a expiação como tendo um foco
particular no julgamento investigativo e na purificação final do universo do pecado. Essa
visão mais ampla de Deus e do conflito cósmico os levou muitas vezes a negar que a
expiação foi completada na cruz.
Enquanto os pioneiros adventistas estavam realmente em algo importante, a única
referência à expiação na porção do Novo Testamento da Bíblia King James deveria ter
dado uma pausa. Essa referência é encontrada em Romanos 5:11.
A Linguagem da Expiação no Novo Testamento
Em Romanos 5:11, de acordo com a versão King James, a expiação está claramente
no contexto da cruz: “Também nos regozijamos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo,
por quem agora recebemos a expiação.”23 É verdade que as palavras da King James
(“agora recebemos”) podem ser lidas em termos do processo contínuo de intercessão
no santuário celestial. Mas a forma do indicativo aoristo no grego (elabomen) aponta
para uma singular ação conclusiva no passado, na cruz de Cristo. 24 Os benefícios dessa
ação são agora (freira) disponibilizados para aqueles que estão se regozijando (presente
contínuo – kauchomenoi) nEle. Portanto, uma imagem completa da linguagem da
expiação nas Escrituras indica que uma abordagem ou/ou está incorreta.25

16:41-50), pagamento em dinheiro (Êx 30:11- 16), execução (Nm. 25:1-13; 2 Sam. 21:1-6), presentes de
joias (Nm. 31:48-54), a libertação de um animal vivo (Lev. 16:10), e simples apelos a Deus com palavras
(Êx 32:30). Nos Salmos, o pecado é corrigido em grande parte na ausência de linguagem sacrificial ou de
expiação. Ver Christopher J. H. Wright, “Atonement in the Old Testament”, pp. 81-82. Nos textos não-
rituais do Antigo Testamento, a expiação apropriada para o erro moral é o arrependimento. Veja J.
Milgrom, “Atonement in the OT”, em The Interpreter’s Dictionary of the Bible: An Illustrated Encyclopedia,
suppl. vol., ed. Keith Crim (Nashville: Abingdon Press, 1976), 80-81. O sacrifício também pode ser usado
para outros propósitos além da expiação. Veja Blocher, “Biblical Metaphors and the Doctrine of the
Atonement,” JETS, 642.
22
Baseado no significado de “resgate/redenção” da palavra hebraica relacionada kdpher. Ver Milgrom,
“Atonement in the OT”, Suplemento do BID, 80.
23
Romanos 5:1-10 é sobre os benefícios que fluem da justificação e Romanos 5:12-21 contém a famosa
tipologia Adão/Cristo na qual a morte e o pecado entram na raça humana através de Adão e estes são
desfeitos através da vida obediente e morte sacrificial de Jesus Cristo.
24
Beale, New Testament Theology, 541.
25
Romanos 5:11 está no centro e no pivô de todo o capítulo. Veja a análise em Beale, New Testament
Theology, 540-542. Romanos 5:11 define a expiação da seguinte forma: Através da morte de Cristo as
pessoas foram restauradas de um estado de hostilidade para um relacionamento pacífico com Deus. Isso
se baseia no versículo um do mesmo capítulo (NVI), onde os crentes, “tendo sido justificados pela fé...

155
É interessante que a versão King James traduz apenas a forma substantiva da
palavra para expiação (katallagen) como “expiação”. As formas verbais da mesma
palavra ocorrem no versículo 10 (katellagemmen — “foram reconciliados”,
katallagentes — “tendo sido reconciliados”) e são traduzidas como “reconciliados”.26
Assim, a tradução King James na verdade mascara o fato de que “reconciliado” no
versículo 10 traduz uma forma raiz da mesma palavra como expiação no versículo 11.
As traduções mais modernas, portanto, estão corretas ao usar “reconciliação” em vez
de “expiação” em Romanos 5:11. Além disso, visto que os tradutores da King James
usaram “expiação” para a forma substantiva, mas traduziram “reconciliado” para a
forma verbal, é claro que eles entenderam “expiação” como sinônimo de
“reconciliação”.
Significado Estendido da Palavra Grega Katallassd
O significado da raiz da forma verbal katallassd é difícil de determinar, mas tem uma
ideia básica de “mudança” ou “troca”.27 A partir daí não fica longe a ideia de
“reconciliar”, como na “troca de hostilidade por uma relação de amizade”. 28 Quando
aplicado a Deus, o verbo está sempre ativo; quando aplicado a seres humanos, é sempre
passivo.29 Assim, a reconciliação é algo que flui de Deus para nós, e não o contrário. A
forma substantiva katallage corresponde ao significado do verbo, com o sentido de
“troca” ou “reconciliação”.30 Surpreendentemente, ambos os termos são
extremamente raros na LXX (Antigo Testamento grego). Dentro dos livros canônicos,
katallage é encontrado apenas em Isaías 9:5 e ali seu significado é obscuro.31
Reconciliação no Novo Testamento
A Bíblia começa com a suposição de que os seres humanos desde o início foram
projetados para estar em um relacionamento harmonioso com Deus (Gn 1:26-28). Mas
uma ruptura radical quebrou esta unidade (Gn 3:22-24; 6:5; Is 59:1-2; Rm 5:12; Ef 2:1).32
Assim, os seres humanos tornaram-se alienados (Ef 4:18) e hostis a Deus e uns aos

tenham paz com Deus por nosso Senhor Jesus Cristo”. O estado hostil de alienação de Deus introduzido
pelo primeiro Adão é superado pela morte e ressurreição do último Adão (Rm 5:12-21).
26
Não há diferenças em Romanos 5:10-11 entre o texto bizantino (no qual a Bíblia King James foi baseada)
e o texto acadêmico geralmente aceito hoje. Portanto, questões críticas de texto não afetam a
interpretação desses versículos.
27
Friedrich Biichsel, “Katallassd, etc.” in Theological Dictionary of the New Testament (TDNT), ed. Gerhard
Kittel, trans. and ed. Geoffrey W. Bromiley (Grand Rapids, MI: William B. Eerdmans Publishing Company,
1964), 1:254.
28
A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian Literature, 3rd ed., rev. and ed.
Frederick Danker, based on Walter Bauer, Griechisch-deutsches Woerter- buch zu den Schriften des
Neuen Testaments und der fruehchristlichen Literature, 6th ed. (Chicago: University of Chicago Press,
2000), 521.
29
Biichsel, “Katallassd, etc.” in TDNT, 1:255.
30
Ibid., 1:258. No léxico Bauer/Danlcer (521), katallage é definido como “o restabelecimento de um
relacionamento interrompido ou rompido”.
31
Ibid., 1:258.
32
Mark L. Y. Chan, “The Gospel and the Achievement of the Cross,” Evangelical Review of Theology 33 (1,
2009): 20; Reid, “Atone, Atonement,” ISBE, 1:353.

156
outros (Cl 1:21; Rm 5:10; 8:7).33 Isso não é verdade apenas para os gentios (Rm 1:23ss),
mas também de judeus (Rm 3:9-20, 23). A causa desse estranhamento é a desobediência
humana para com Deus e Sua lei (1 João 3:4) decorrente da falta de confiança (fé) em
quem Ele é (Rm 14:23).34 É aqui que entra o conceito de reconciliação.
O conceito de reconciliação está fundamentado no domínio dos relacionamentos
pessoais, rompidos e restaurados.35 Em contextos onde há inimizade, desconfiança ou
relacionamentos rompidos de todos os tipos, a reconciliação trata da cura e restauração
desses relacionamentos.36 Assim, a expiação no O Novo Testamento tem a ver com
como a cruz de Jesus Cristo cura a brecha entre Deus e a raça humana. Para obter uma
compreensão mais clara desse conceito, serão examinados os principais textos em que
esse grupo de palavras é usado, começando com Romanos 5:8-11.37
Paulo declara em Romanos 5:8 que a morte de Cristo, que ocorreu em uma época
em que os humanos ainda eram pecadores (antes de se voltarem para Deus), demonstra
o próprio amor de Deus para com a humanidade.38 Quando a cruz aconteceu, todos os
humanos não eram apenas pecadores, mas inimigos de Deus (v. 10) e a morte do Filho
de Deus reconciliou a humanidade com Deus. O pecado foi a causa raiz da inimizade, e
como os humanos foram incapazes de removê-lo, Deus o tirou do caminho na cruz.39 O
uso de Paulo de “foram reconciliados” (Rm 5:10, NIV)40 claramente coloca a
reconciliação no passado e não no presente do ponto de vista de nossa experiência.
Como passiva, a palavra também deixa claro que a reconciliação que aconteceu na cruz
foi inteiramente obra de Deus, a humanidade não teve parte nela.41 É objetiva, fora dos
humanos.
Paulo reitera seu ponto no versículo 11, mas do ponto de vista da pessoa convertida
e não da pré-conversão. Por meio de nosso Senhor Jesus Cristo “recebemos agora a

33
Mitton, “Atonement,” IDE, 1:311.
34
Dederen, “Christ: His Person and Work,” Handbook of Seventh-day Adventist Theology, 174.
35
I. Howard Marshall, “The Theology of the Atonement,” in The Atonement Debate: Papers from the
London Symposium on the Theology of the Atonement, ed. Derek Tidball, David Hilborn, and Justin
Thacker (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2008), 60; Morris, The Atonement, 132-150; C. M. Tuclcett,
“Atonement in the NT,” in The Anchor Bible Dictionary (Garden City, NY: Doubleday, 1992), 1:521.
36
Dederen, “Christ: His Person and Work,” Handbook of Seventh-day Adventist Theology, 181.
37
Embora Paulo seja o único escritor do Novo Testamento que usa a terminologia da reconciliação
(Romanos 5:8-11; 2 Coríntios 5:14-21; Efésios 2:11-16; Colossenses 1:20-23) , é central para sua
compreensão da cruz e está implícito em muitas outras partes do Novo Testamento, como Lucas 15:11-
31 e Mateus 5:23-24. Um conceito relacionado é a palavra paz que descreve o resultado do processo de
reconciliação. Aqueles em Cristo têm paz com Deus e também com os outros (Atos 10:36; Romanos 5:1;
8:6; Gálatas 5:22; Efésios 2:14-17; Colossenses 1:20). Veja Green, “Atonement”, NIDB, 1:346-347.
38
Green, “Atonement,” NIDB, 1:347; P. Jewett, “Atonement,” Zondervan Pictorial Encyclopedia of the
Bible (ZPEB), ed. Merrill C. Tenney (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1975), 1: 410. Este amor reconciliador
foi demonstrado na cruz, mas vai até a eternidade passada (João 17:6f; Efésios 1:4; 2 Timóteo 1:9-10).
Veja Reid, “Atone, Atonement”, em ISBE, 1:353.
39
Dederen, “Christ: His Person and Work,” Handbook of Seventh-day Adventist Theology, 181; I. Howard
Marshall, “The Death of Jesus in Recent New Testament Study,” Word and World 3:1 (Winter 1983): 18.
40
Esta tradução do particípio passivo aoristo (katallagentes) é padrão, sendo encontrada, por exemplo,
na King James Version, na New International Version e na English Standard Version.
41
Dederen, “Christ: His Person and Work,” Handbook of Seventh-day Adventist Theology, 181.

157
reconciliação (ou expiação)” (NASB). O “agora” no versículo 11 está em contraste com o
tempo da inimizade e pecaminosidade dos crentes. Paulo passa do tempo da cruz (nos
vv. 8 e 9) para o momento em que aquele ato de expiação passado é aplicado ao novo
crente (v. 11). A reconciliação é algo a ser “recebido” (elabomen), existe objetivamente
antes que um indivíduo a experimente e está fora e antes da resposta de um indivíduo.42
Surgindo do amor de Deus, a cruz foi o ato de reconciliação e expiação de Deus que é
aplicado aos seres humanos à medida que respondem à pregação do evangelho.43
Enquanto Jesus Cristo é o agente ativo da reconciliação, o Pai é seu autor. 44 “A dor do
Pai é tão importante quanto a morte do Filho”.45 A morte de Cristo, então, “possibilitou
a um Deus santo fazer pelos pecadores o que de outra forma Ele não poderia ter feito”.46
Em 2 Coríntios 5:14-21, Paulo fundamenta a reconciliação completamente na morte
de Cristo. O ato crucial é que “um morreu por todos” e, portanto, há uma sensação de
que todos de alguma forma morreram nessa ação (2Co 5:14). Então Paulo dá sua
declaração clássica sobre reconciliação nos versículos 18-20. A reconciliação vem de
Deus e Deus aqui (v. 18) é claramente distinto de Cristo, então Deus Pai está em vista.
Pelas ações de Jesus Cristo na cruz, Deus Pai é reconciliado com a humanidade e dá à
humanidade o ministério da reconciliação.
Ele elabora sobre isso no versículo 19: “Deus estava em Cristo, reconciliando
consigo o mundo” (KJV). J. I. Packer expressou isso lindamente: “Os dois amores, o amor
do Pai e do Filho, são um”.47 Essa reconciliação se baseia em “não lhes imputarem os
seus pecados” (minha tradução). A mensagem sobre essa reconciliação é então
entregue ou confiada a “nós”. Este último ponto é elaborado no versículo 20. Paulo e os
apóstolos tornaram-se embaixadores de Deus para convidar outros a participar dessa
reconciliação.
A passagem em 2 Coríntios 5 apresenta vários pontos críticos. Primeiro, distingue
claramente a obra de Cristo na cruz do propósito anterior do Pai de prover a
reconciliação. Cristo não muda o coração do Pai pela ação que Ele faz na cruz; antes, o
próprio Pai estava agindo em nosso favor por meio da obra de Cristo. 48 Em segundo

42
Ibid., 181; Morris, The Atonement, 139.
43
Rohintan K. Mody, “Penal Substitutionary Atonement in Paul,” in The Atonement Debate, 116.
44
Dederen, “Christ: His Person and Work,” Handbook of Seventh-day Adventist Theology, 181; Arland J.
Hultgren, “Salvation: Its Forms and Dynamics in the New Testament,” Dialogue: A Journal of Theology
45:3 (Fall 2006): 216, 221.
45
Gabriel Faclcre, “A Theology of the Cross,” Andover Newton Quarterly 16:2 (November 1975): 155,
quoting Jurgen Moltmann, The Crucified God, trans. R. A. Wilson and John Bowden (London: SCM Press,
1974), 243.
46
Dederen, “Christ: His Person and Work,” Handbook of Seventh-day Adventist Theology, 182.
47
J. I. Packer, “What Did the Cross Achieve? The Logic of Penal Substitution,” Tyndale Bulletin 25 (1974):
40.
48
Este ponto também é mencionado por Jesus em João 3:16 e 14:10. Veja Grace Adophsen Brame, “The
Cross: Payment or Gift?” Perspectives in Religious Studies 33:2 (Summer 2005): 170-172. No Novo
Testamento, Deus e Jesus são sempre retratados como o sujeito da expiação, nunca como seu objeto. Se
Deus fosse o objetivo, Jesus estaria dando Sua vida para 48. Este ponto também é mencionado por Jesus
em João 3:16 e 14:10. Veja Grace Adophsen Brame, “A Cruz: Pagamento ou Presente?” Perspectivas em
Estudos Religiosos 33:2 (Verão de 2005): 170-172. No Novo Testamento, Deus e Jesus são sempre
retratados como o sujeito da expiação, nunca como seu objeto. Se Deus fosse o objetivo, Jesus estaria

158
lugar, há um aspecto de “agora e ainda não” na reconciliação. 49 É uma ação completa
na cruz, fora da humanidade, de uma vez por todas.50 Por outro lado, a reconciliação
também é uma tarefa que os humanos devem fazer (vv. 18-19); ainda não aconteceu no
sentido mais amplo.51 A reconciliação só é completa quando os seres humanos
respondem ao que Deus já fez.52 Terceiro, há um forte sentido de troca ou substituição
na passagem. Através de uma morte “todos morreram” (5:14, NIV, NKJY), e Aquele que
não conheceu pecado foi feito pecado “para que nele fôssemos feitos justiça de Deus”
(5:21, KJV).
Em Colossenses 1:19-22, o conceito de reconciliação é expandido além da raça
humana para todo o universo.53 Cristo “é a imagem do Deus invisível” (Cl 1:15, KJV),
preeminente (1:18), e aquele em quem habita toda a plenitude de Deus (v. 19). Por meio
dele tudo no céu e na terra é reconciliado,54 fazendo a paz pelo sangue da cruz (v. 20).
O que aconteceu na cruz, portanto, proporciona expiação não apenas para a raça
humana, mas para todo o universo. No versículo 21, no entanto, Paulo recua e aborda a
condição em que a humanidade estava antes da cruz. Os seres humanos eram alienados
(afastados), hostis (inimigos) na mente e praticavam más ações. Essas mesmas pessoas
foram reconciliadas (apokatellaxen) “no corpo de sua carne pela morte” (v. 22, KJV). O
resultado final são seres humanos que são santos, irrepreensíveis e irrepreensíveis aos
olhos de Deus.
A passagem em Colossenses 1 traz várias coisas importantes. O foco nesta
passagem não está no Pai (como foi o caso em 2 Coríntios 5), mas em Jesus Cristo, que
carrega a plenitude de Deus em Si mesmo e, portanto, está qualificado para ser o agente
do lado de Deus do processo de reconciliação. A morte única de Jesus Cristo na cruz
reconciliou (ou seja, fez expiação) com Deus não apenas a raça humana, mas em certo
sentido todo o universo. Embora não negue o ensino bíblico sobre a expiação contínua
no santuário celestial, Paulo deixa claro nesta passagem que o ato decisivo da expiação
ocorreu na cruz. E a expiação não termina na cruz, mas resulta em vidas transformadas.
O texto final centrado na linguagem da reconciliação é Efésios 2:11-16. O foco não
está no lado de Deus na expiação, mas na necessidade de resposta humana.55 A
condição dos gentios antes da conversão é descrita no versículo 12 (ESV) como
“separados de Cristo, alienados da comunidade de Israel e estrangeiros às alianças da
promessa, sem esperança e sem Deus no mundo”. Mas “agora” (2:13) em Cristo, aqueles

entregando Sua vida para apaziguar Deus. Se Jesus fosse o objeto, Deus estaria punindo Jesus em Sua
morte. Mas a expiação nunca é expressa nas duas últimas maneiras. Green, “Expiação”, NIDB, 1:346.
49
Dederen, “Christ: His Person and Work,” Handbook of Seventh-day Adventist Theology, 181.
50
O grego expressa isso no modo indicativo combinado com tempos passados. A reconciliação é um fato
estabelecido que não pode ser alterado.
51
No versículo 20 isso é expresso com um imperativo aoristo (katallagete), o que significa que não
acontece completamente até que os humanos respondam ao que Deus fez.
52
Morris, The Atonement, 145.
53
Tuclcett, “Atonement in the NT,” ABD, 1:521.
54
Aorist infinitive (apokatallaxai), implicando um ponto no tempo em vez de um processo.
55
Dederen, “Christ: His Person and Work,” in Handbook of Seventh-day Adventist Theology, 182; Tuckett,
“Atonement in the NT,” ABD, 1:521.

159
que estavam longe “se aproximaram”56 pelo sangue de Cristo, uma referência à cruz.57
Na carne de Cristo na cruz (2:14), Ele pôs fim à hostilidade (inimizade) entre Deus e a
humanidade e também o “muro divisor” (2:14, ESV) entre os humanos. Por meio de
Cristo, gentios e judeus se tornaram um. Cristo agiu como Ele fez na cruz para que Ele
“reconciliasse”58 judeus e gentios com Deus e entre si. O impacto da cruz incluiu “matar”
(2:16, ESV) a inimizade.
Esta passagem em Efésios reitera o ato único na cruz como o evento decisivo na
expiação, mas foca mais do que as passagens anteriores no resultado da cruz – a
natureza contínua da expiação em seus efeitos sobre a igreja de Éfeso. Embora não se
fale aqui de um santuário celestial, ou da intercessão contínua de Cristo nos lugares
celestiais, a expiação na cruz e a expiação contínua no santuário não estão em conflito
uma com a outra. São duas partes de um conceito maior. A reconciliação e a expiação
envolvem tanto um indicativo (ou seja, ação passada, concluída) quanto um imperativo
(ou seja, algo que ainda precisa acontecer).59
Conclusão
O exame do uso bíblico da palavra expiação, juntamente com seu equivalente,
reconciliação, levou a algumas conclusões significativas. Primeiro, embora a expiação
não se limite à cruz, ela está claramente alicerçada no sentido bíblico. 60 É um ato
objetivo de uma só vez que remove todas as barreiras à reconciliação, exceto a resposta
humana. Em segundo lugar, há um sentido agora e um ainda não na expiação. A cruz é
um fato estabelecido, um evento único no passado. Mas a expiação e a reconciliação
não terminam aí — elas continuam na obra de Cristo no céu e no ministério da
reconciliação na terra.61 Essas ações contínuas funcionam para efetuar aquela resposta

56
Indicativo passivo aoristo (egenethete), implicando um ato único no passado com o qual os efésios não
tinham nada a ver, mas que teve um efeito poderoso em suas vidas.
57
Hultgren, “Salvation,” in Dialogue: A Journal of Theology, 220.
58
Subjuntivo ativo aoristo (apokatallaxe). O subjuntivo expressa probabilidade, neste contexto, o
propósito de Deus, então há uma implicação de reconciliação futura aqui.
59
Grove, IL: Inter Varsity Press, 2006), 98: Isso é lindamente expresso por NT Wright, Evil and the Justice
of God (Downers Grove, IL: Inter Varsity Press, 2006), 98: “A cruz não é apenas um exemplo a ser
seguido, é uma vitória a ser trabalhada, pondo-a em prática.”
60
Enquanto Ellen G. White pode dizer “A intercessão de Cristo em favor do homem no santuário celestial
é tão essencial para o plano de salvação quanto foi Sua morte na cruz” (The Great Controversy Between
Christ and Satan [Mountain View, CA: Pacific Press Publishing Association, 1911], 489), ela também é
muito firme que “O sacrifício de Cristo como expiação pelo pecado é a grande verdade em torno da qual
todas as outras verdades se agrupam” (Francis D. Nichol, ed., The Seventh-day Adventist Bible
Commentary [SDABC], seven volumes [Washington, DC: Review and Herald Publishing Association, 1956],
5:1137) e “a cruz... é o meio de expiação do homem” (6T 236). Ao falar sobre a cruz, ela poderia dizer: “As
condições da expiação foram cumpridas” (Manuscrito 138,1897). Na visão de Ellen White, veja Denis
Fortin, “The Cross of Christ: Theological Differences Between Joseph H. Wagoner and Ellen G. White,
Journal of the Adventist Theological Society 14:2 (Outono 2003): 134-139.
Um excelente resumo do que o Novo Testamento tem a dizer sobre a centralidade da cruz pode ser
encontrado em John R. W. Stott, The Cross of Christ (Downers Grove, IL: Inter-Varsity Press, 1986), 17-46.
Um argumento para um papel muito mais marginal para a cruz no Novo Testamento pode ser encontrado
em Robert M. Price, “The Marginality of the Cross”, Journal of Unification Studies 6 (2004-2005): 23-38.
61
Joel B. Green and Mark K. Baker, Recovering the Scandal of the Cross: Atonement in New Testament
and Contemporary Contexts (Downers Grove, IL: IVP Academic, 2000), 133-134.

160
humana que não foi completada na cruz. Assim, em certo sentido, a expiação é completa
na cruz, e em outro, não.
O PROBLEMA DA METÁFORA
Um pequeno aparte será útil antes de abordar o porquê e o como da cruz. Quando
se trata de assuntos espirituais, é muito difícil usar o discurso direto.
Conhecer Deus é como olhar para o sol.62 Deus é real, mas na experiência humana
cotidiana as pessoas não veem, ouvem ou tocam Deus (na Bíblia, Moisés e Jesus foram
exceções notáveis).63 Todos falam de Deus, portanto, envolve o alongamento da
linguagem humana. Quando se trata de assuntos espirituais, geralmente se fala de Deus
usando metáforas, analogias ou outras figuras de linguagem.64
Quando se trata de acertar as contas com Deus, por exemplo, a Bíblia
frequentemente faz uso de metáforas de tribunais. A condição humana é descrita em
termos de culpa e condenação.65 Os seres humanos estão legalmente fora de sincronia
com Deus. A salvação é então descrita em termos legais como justificação, absolvição e
vindicação. Por outro lado, se a condição humana for descrita em termos de dívida (uma
metáfora bancária ou financeira), a palavra de salvação apropriada seria perdão ou
possivelmente redenção.
As pessoas muitas vezes tratam essa linguagem como se fosse cientificamente
precisa com referência à sua salvação (que em si é uma metáfora baseada no reino das
operações de resgate ou cura), mas na verdade é metafórica, falando sobre algo além
dos cinco sentidos da linguagem. da existência concreta e cotidiana (o próprio concreto
é aqui uma figura de linguagem!). Outras metáforas bíblicas bem conhecidas são o corpo
de Cristo, o fruto do espírito e o pão da vida.
Quando se trata de explicar como a cruz de Jesus Cristo reconcilia a humanidade
com Deus, a linguagem se move imediatamente para o reino da metáfora. A metáfora é
baseada em uma semelhança entre algo que não pode ser descrito diretamente e algo
conhecido da experiência cotidiana. A analogia entre os dois mundos conceituais
expressa algo que é real e verdadeiro, mas raramente o faz de maneira completa.66 Há

62
Packer, “What Did the Cross Achieve?” em Tyndale Bulletin, 6-8, também observa o suporte bíblico para
este tema em Efésios 3:19 (ESV: “o amor de Cristo que excede todo o conhecimento”); Romanos 11:33-
36 (KJV: “Quão insondáveis são os seus juízos, os seus caminhos inescrutáveis”); e 1 Coríntios 13:9, 12
(KJV: “Porque em parte conhecemos e em parte profetizamos”)..
63
“É uma terra única de conhecimento que, embora real, não é plena; é o conhecimento do que é
discernível dentro de um círculo de luz contra o fundo de uma escuridão maior; é, em suma, o
conhecimento de um mistério, o mistério do Deus vivo em ação”, Packer, “What Did the Cross Achieve?”,
Tyndale Bulletin, 6.
64
Green and Baker, Recovering the Scandal of the Cross, 38-43,124; I. Howard Marshall, “The Theology
of the Atonement,” in The Atonement Debate, 50.
65
Tuclcett, “Atonement in the NT,” ABD, 1:518. Atonement
66
Uma boa discussão sobre metáfora pode ser encontrada em Blocher, “Biblical Metaphors and the
Doctrine of the Atonement,” JETS, 634-640.

161
semelhanças e diferenças. Pressionar qualquer metáfora para fazer o trabalho de
explicar tudo é distorcer a compreensão do todo.
Isso não implica em algum tipo de abordagem pós-moderna de “vale tudo” para as
Escrituras. Até Deus fala em analogias e modelos, mas eles são “modelos revelados” ou
“modelos controladores”.67 Os modelos de Deus são revelação, não especulação. São
formas de pensamento que o próprio Deus ensinou a Seus filhos. As metáforas bíblicas
operam como controles para modelagem teológica irrestrita.68 Embora os humanos
saibam apenas em parte, o que a Bíblia ensina é adequado tanto para a salvação quanto
para um relacionamento vivo com Deus.
Ao longo da história, a teologia cristã muitas vezes se concentrou em um ou outro
modelo de expiação do Novo Testamento e tentou tornar absoluto essa metáfora, como
se ela explicasse tudo. Mas essa nunca é a perspectiva dos escritores do Novo
Testamento, como será demonstrado.69 A maior justiça é feita à expiação na cruz se os
crentes estiverem abertos à grande variedade de metáforas e figuras de linguagem
usadas no Novo Testamento para expressar como Deus reconciliou o mundo Consigo
mesmo na cruz.70
Voltando a Romanos 5:8-11, nota-se a grande variedade de metáforas para a
expiação que ocorrem nessa única passagem. A linguagem do pecado e do sangue (vv.
8-9) é extraída do contexto cultual do antigo tabernáculo. A linguagem da inimizade e
da reconciliação vem do reino dos relacionamentos. E a linguagem da justificação vem
do tribunal. Paulo não se limita a uma única metáfora para descrever o que aconteceu
na cruz, e pode misturar várias metáforas em um único parágrafo!71 Quando se trata de
descrever o que Deus fez pela humanidade em Cristo, a linguagem humana é exposta
em toda a sua fraqueza . A Palavra de Deus é expressa na linguagem da humanidade!72
POR QUÊ A CRUZ?
Embora os cristãos conservadores concordem com os fatos da morte e ressurreição
de Jesus, eles divergem amplamente sobre o “porquê” da cruz. 73 Ao longo da história
cristã, clérigos e estudiosos debateram o significado da cruz como expiação sem chegar

67
Packer, “What Did the Cross Achieve?”, Tyndale Bulletin, 14-16.
68
Ibid., 12.
69
Tuckett, “Atonement in the NT,” ABD, 1:518; Ben Wiebe, “Cross Currents: Rethinking Atonement (with
Reflection on Campbell, Stone, and Scott),” Stone-Campbell Journal 13 (Fall 2010): 202.
70
Packer, “What Did the Cross Achieve? Tyndale Bulletin, 10, lembra Calvin, que observou que o amor de
Deus por nós e a hostilidade ao pecado (ao mesmo tempo) são compatíveis “de uma maneira que não
pode ser colocada em palavras”. Veja John Calvin, Institutes of the Christian Religion, II, xvii. 2. See also
Mark D. Baker, “How the Cross Saves,” Direction 36:1 (2007): 45; Steve Chalke, “The Redemption of the
Cross,” in The Atonement Debate, 37; Chan, “The Gospel and the Achievement of the Cross,” ERT, 23-24;
Green and Baker, Recovering the Scandal of the Cross, 124-126,134.
71
Tuckett, “Atonement in the NT,” ABD, 1:521.
72
Ellen G. White, Selected Messages, Book One (Washington, DC: Review and Herald Publishing
Association, 1958), 21.
73
S. Mark Heim, “Cross Purposes: Rethinldng the Death of Jesus,” Christian Century (March 22, 2005): 20.

162
a uma conclusão definitiva.74 A maioria desses debates foi fundamentada em um ponto
ou outro em metáforas ou modelos específicos encontrados no Novo Testamento.
Muitas vezes houve a tentativa de apresentar uma metáfora particular como se fosse a
única possível. Mas, como vimos, toda a riqueza do testemunho bíblico leva os leitores
a uma abordagem múltipla. Assim, este capítulo será encerrado com um levantamento
das principais metáforas75 pelas quais os escritores do Novo Testamento expressaram
sua compreensão do que era a expiação.76 Estes são geralmente fundamentados tanto
nas Escrituras do Antigo Testamento quanto na percepção dos escritores do Novo
Testamento de quem Jesus era e é.77
A Cruz Como Sacrifício
Como observado anteriormente, as palavras hebraicas para expiação (kpr,
kapporeth) estão fortemente associadas ao sistema sacrificial do Antigo Testamento (Êx
29:36; Lv 4:20; Nm 15:25).78 Dada a natureza da morte de Cristo, portanto, não é de
surpreender que o Novo Testamento use linguagem sacrificial para descrever a cruz.79 É
um tema importante em Hebreus, onde Jesus é descrito como o cumprimento e
extensão desse sistema sacrificial.80 Outras referências explícitas à morte de Jesus Cristo

74
Um bom resumo das visões clássicas sobre o significado da expiação pode ser encontrado em John
Sanders, “Introduction”, em Atonement and Violence: A Theological Conversation (Nashville: Abingdon
Press, 2006), xiii-xv. Um bom resumo das questões mais recentes no debate sobre o significado da
expiação pode ser encontrado em Sanders, Atonement and Violence, ix-xi.
75
Green e Baker, Recovering the Scandal of the Cross, 41.123, listam cinco metáforas principais no Novo
Testamento, assim como Blocher, “Biblical Metaphors and the Doctrine of the Atonement”, JETS, 629-630
Wayne Northey, “The Cross: Gods Peace Work Towards a Restorative Peacemaking Understanding of the
Atonement,” in Stricken by God? Nonviolent Identification and the Victory of Christ, ed. Brad Jersalc and
Michael Hardin (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2007), 356-357, lista dez, assim como Mark D. Baker, “How
the Cross Saves”, Direction 36:1 (2007): 46-55.
76
Pode-se argumentar que a reconciliação é uma metáfora entre muitas no Novo Testamento. E isso é
certamente verdade. Mas uma vez que o objetivo deste artigo é uma compreensão da atonement
[expiação] (uma palavra inglesa) e expiação é uma tradução de katalldsso em Romanos 5:11, parecia
apropriado começar com reconciliação como expressão do significado fundamental do que os tradutores
do Rei James Bible e os pioneiros adventistas entendidos por expiação. Outros aspectos da expiação na
cruz serão discernidos olhando para outras metáforas do que Deus fez na cruz.
77
N. T. Wright, “The Reasons for Jesus’ Crucifixion,” in Stricken by God? Nonviolent Identification and the
Victory of Christ, ed. Brad Jersak and Michael Hardin (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2007), 135-142.
78
Brame, “The Cross: Payment or Gift?” Perspectives in Religious Studies, 167; Briley, “The Old Testament
‘Sin Offering’ and Christ’s Atonement,” Stone-Campbell Journal, 94-97; Dederen, “Christ: His Person and
Work,” in Handbook of Seventh-day Adventist Theology, 175; Green, “Atonement,” NIDB, 1:345-346.
Briley ressalta que, embora o sacrifício fosse difundido no mundo antigo, havia diferenças significativas
entre os entendimentos sacrificial pagão e hebraico. Na compreensão hebraica não havia poder mágico
no sacrifício; seu valor estava unicamente na bênção de Deus. Também o sangue não desempenhava
nenhum papel nos antigos sacrifícios pagãos, e a santidade era exigida do ofertante. Entre os Padres da
Igreja, a metáfora do sacrifício aparece relativamente tarde em Cipriano, Eusébio e João de Damasco. Veja
G. W. Bromiley, “Atone; Atonement: History of the Doctrine,” em ISBE, 1:356.
79
Dederen, “Christ: His Person and Work,” Handbook of Seventh-day Adventist Theology, 175-180; Paul
Jewett, “Atonement,” ZPEB, 1:408; Marshall, “The Theology of the Atonement,” in The Atonement
Debate, 59-60; Milcolaski, “The Cross of Christ,” Christianity Today 3; Mitton, “Atonement,” IDB, 1:312;
Kathryn Tanner, “Incarnation, Cross and Sacrifice: A Feminist-Inspired Reappraisal,” Anglican Theological
Review 86:1 (Winter 2004): 48-56; Tuckett, ABD, 1:518-520.
80
Dederen, “Christ: His Person and Work,” in Handbook of Seventh-day Adventist Theology, 176; Green
and Baker, Recovering the Scandal of the Cross, 131; Geoffrey Grogan, “The Atonement in the New

163
como sacrifício inclui 1 Coríntios 5:7 (KJV: “Cristo, nossa páscoa, é sacrificado por nós”)
e Efésios 5:2 (ESV: “oferta e sacrifício de aroma agradável a Deus”).
A cruz como sacrifício também está implícita em referências frequentes ao sangue
de Cristo (Mt 26:28; Mc 14:24; Rm 3:25; 5:9; Ef 1:7; 2:13; Cl 1:20; 1Pe 1:18-19).81
Também está implícito em João 1:29, NVI, onde Jesus é descrito como “o Cordeiro de
Deus, que tira o pecado do mundo!”82 Pois Para os escritores do Novo Testamento, o
grande texto do Antigo Testamento que os levou a aplicar a linguagem sacrificial à morte
de Cristo foi Isaías 53,83, onde o Servo Sofredor foi conduzido como “um Cordeiro ao
matadouro” (Is 53:7), morreu como "uma oferta pelo pecado" (Is 53:10, KJV), e "levou
o pecado de muitos" (53:12).
Por que a cruz? A metáfora do sacrifício implica que a morte é a penalidade pelo
pecado (Gn 2:16-17; Ez 18:4, 20) e que a morte de uma vítima sacrificial substituiria ou
seria trocada pela morte do pecador.84 Uma vez que o livro de Hebreus nega que os
sacrifícios no santuário do Antigo Testamento fossem a base final para a remissão de
pecados, o sacrifício de Cristo não é um sacrifício entre muitos, mas o único sacrifício
que foi verdadeiramente significativo e pôs fim a todos os outros (Hb 9:25-26; 10:1-14).
Por meio do sacrifício de Cristo, os pecados do mundo podem ser perdoados.85
Infelizmente, os textos bíblicos relativos ao sacrifício nunca revelam totalmente a lógica
interna por trás de tais atos rituais. Está claro que o sacrifício é eficaz para restaurar as
relações corretas com Deus, como isso é menos claro.86 A morte de Jesus foi “por nós”

Testament,” in The Atonement Debate, 92; Steve Motyer, “The Atonement in Hebrews,” in The
Atonement Debate, 136-149. Os textos explícitos em Hebreus incluem 9:13-15, 22-28; 10:10,12, 26 e
13:11-12.
81
James D. G. Dunn, “Pauls Understanding of the Death of Jesus,” in Reconciliation and Hope: New
Testament Essays on Atonement and Eschatology Presented to L. L. Morris on His 60th Birthday, ed.
Robert Banks (Carlisle: The Paternoster Press, 1974), 125-141; Morris, The Atonement, 52-53, 63; Tuclcett,
“Atonement in the NT,” ABD, 1: 518. Dederen, “Christ: His Person and Work,” Handbook of Seventh-day
Adventist Theology, 175-177 aponta para Levítico 17:11 como um texto chave na associação do sangue
sacrificial com a expiação.
82
George L. Carey, “The Lamb of God and Atonement Theories,” Tyndale Bulletin 32 (1981): 97-122. Sobre
a relação da Páscoa com o sacrifício, veja Bruce H. Grigsby, “The Cross as an Expiatory Sacrifice in the
Fourth Gospel,” Journal for the Study of the New Testament 15 (July 1982); Morris, The Atonement, 88-
105. Veja também Green and Baker, Recovering the Scandal of the Cross, 130-131; Tuclcett, “Atonement
in the NT,” ABD, 1:518.
83
Milcolaski, “The Cross of Christ,” Christianity Today, 3; Tuclcett, “Atonement in the NT,” ABD, 1:518-
519. Excelentes interpretações de Isaías 53 à luz da expiação na cruz podem ser encontradas em Chan,
“The Gospel and the Achievement of the Cross”, ERT, 21-22; E. Robert Elcblad, “God Is Not to Blame: The
Servant’s Atoning Suffering According to the LXX of Isaiah 53,” in Stricken by God? Nonviolent
Identification and the Victory of Christ, ed. Brad Jersak and Michael Hardin (Grand Rapids, MI: Eerdmans,
2007), 180-204; Sue Groom, “Why Did Christ Die? An Exegesis of Isaiah 52:13—53:12,” in The Atonement
Debate, 96-114.
84
Dederen, “Christ: His Person and Work,” in Handbook of Seventh-day Adventist Theology, 176,178 a”,
no Manual de Teologia Adventista do Sétimo Dia, 176.178. De acordo com 2 Coríntios 5:14, nesta única
morte “todos morreram” (NVI, NKJV). O conceito de substituição ou troca também é claro no versículo 21
do mesmo capítulo.
85
Tuckett, “Atonement in the NT,” ABD, 1:519.
86
Briley, “The Old Testament ‘Sin Offering’ and Christ’s Atonement,” Stone-Campbell Journal, 93; Green,
“Atonement,” NIDB, 345. Talvez o significado do sacrifício nos tempos bíblicos fosse tão evidente para os
antigos que não precisava de explicação.

164
(1Ts 5:10), “pelos nossos pecados” (1Co 15: 3),87 e “para o perdão dos pecados” (Mt
26:28, NIV, ESV).
A Cruz como Resgate ou Redenção
Também foi observado que na LXX as palavras hebraicas para “expiação” (kpr,
kapporeth) eram algumas vezes traduzidas pela palavra grega para “resgate/redenção”
(lutron). Portanto, não deveria surpreender se lutron e seus derivados (apolutrose e
antilutron) fossem usados para explicar a expiação no Novo Testamento.88 De qualquer
forma, a linguagem do resgate ou redenção teve um rico pano de fundo no primeiro
século. No mundo gentio, escravos e prisioneiros de guerra podiam ser “redimidos”
pagando um preço de resgate adequado.89 Entre os judeus, essa linguagem se baseava
na libertação israelita da escravidão egípcia na época do Êxodo (Êx 6:6; 15:13; Dt 7:8).90
No Novo Testamento, a cruz de Cristo é descrita em linguagem de resgate/redenção
(Mc 10:45 e paralelos; Rm 3:24; Hb 9:12, 15; Ef 1:7; 1Pe 1:18 -19).91 Paulo também pode
usar a linguagem de ter sido “comprado por um preço” (1Co 6:20; 7:23, KJV). Estudiosos
têm debatido se a redenção de Deus de Israel no Êxodo e da raça humana na cruz de
fato exigiu o pagamento de um preço ou não.92 Mas há um forte senso de substituição
ou equivalência na forma grega antilutron (“resgate em lugar de”, veja 1Tm 2:6) e a
maneira como o resgate é expresso em Mc 10:45 (“resgate [lutron] no lugar de [anti]
muitos” – minha tradução).93 Resgate no Novo Testamento, no entanto, pode ser menos
sobre uma transação do que sobre o valor que Deus atribui à raça humana.94
Se alguém entende que o Novo Testamento aponta para o pagamento de um preço,
não há indicação a quem o preço foi pago, seja a Deus, Satanás ou alguma outra
entidade.95 O que fica claro com essa linguagem é que a expiação na cruz custou caro à
divindade. O perdão que os humanos recebem é gratuito através da cruz, mas não foi

87
Para uma análise aprofundada das implicações de 1 Coríntios 15:3 para a morte de Cristo, veja Chan,
“The Gospel and the Achievement of the Cross,” ERT, 29-30; Grogan, “The Atonement in the New
Testament,” in The Atonement Debate, 88; Martin Hengel, The Atonement: The Origins of the Doctrine in
the New Testament (Philadelphia: Fortress Press, 1981), 36-39; Mitton, “Atonement,” IDB, 1:312.
88
A ideia do resgate era muito popular entre os pais da igreja primitiva. Foi mencionado por Atanásio,
Gregório de Nissa, Gregório de Nazianzo, Ambrósio, Ambrosiaster e na Epístola a Diogneto. Veja Bromiley,
“Atone; Atonement: History of the Doctrine,” ISBE, 1:355-356.
89
Morris, The Atonement, 107-110; Tuckett, “Atonement in the NT,” ABD, 1:520.
90
Green, “Atonement,” NIDB, 346; Green and Baker, Recovering the Scandal of the Cross, 126; Morris,
113; Tuckett, “Atonement in the NT,” ABD, 1:520.
91
Marshall, “The Theology of the Atonement,” in The Atonement Debate, 60.
92
O debate clássico sobre se a linguagem da redenção na Bíblia exige o pagamento de um preço foi entre
Leon Morris, The Apostolic Preaching of the Cross, 3ª ed. (1965; repr., Londres: The Tyndale Press, 2000),
11-64 e David Hill, Greek Words and Hebrew Meanings: Studies in the Semantics of Soteriological Terms,
Society for New Testament Studies Monograph Series, 5 (Cambridge: Cambridge University Press, 1967),
49-81. Ver também Green, “Atonement”, NIDB, 346; Morris The Atonement, 116-119.
93
Dederen, “Christ: His Person and Work,” in Handbook of Seventh-day Adventist Theology, 177-178;
Green and Baker, Recovering the Scandal of the Cross, 127; Tuckett, “Atonement in the NT,” ABD, 1:521.
94
Brame, “The Cross: Payment or Gift?” Perspectives in Religious Studies, 172-173.
95
Green and Baker, Recovering the Scandal of the Cross, 128; Jewett, “Atonement,” ZPEB, 1:410. Esta
questão foi um ponto importante de discórdia no curso da história da igreja. Veja Bromiley, “Atone;
Atonement: History of the Doctrine,” ISBE, 1:355-360.

165
barato para Deus. O que Jesus suportou na cruz foi em favor de, no lugar de, toda a
humanidade.96
A Cruz como Hiasterion
Uma terceira palavra grega associada à linguagem de expiação do Antigo
Testamento é hilasterion, que foi consistentemente aplicada na LXX para o
“propiciatório” na arca da aliança (por exemplo, Lv 16:2ff). É transliterado aqui porque
não há equivalente em inglês estabelecido. Em Hebreus 9:5, hilasterion é usado na
forma comum do Antigo Testamento para descrever ou nomear o propiciatório no lugar
santíssimo do santuário hebraico.97 Não há nenhum significado teológico direto
declarado ali.98
O outro uso de hilasterion está em Romanos 3:25.99 Hilasterion em Romanos 3:25
é geralmente traduzido como “propiciação” (KJV, ESV) ou como “expiação” (RSV, NAB).
A Nova Versão Internacional esclarece sem esclarecer ao traduzir hilasterion como
“sacrifício de expiação”. Nas fontes gregas pagãs hilasterion traz a ideia de propiciação,
afastar a ira de alguém ou conciliar, geralmente pela oferta de um presente. 100 Nas
fontes judaicas e cristãs, a palavra geralmente significa expiação, anular a culpa ou pagar
a pena por um crime, anular o pecado e seus efeitos.101 O primeiro significado considera
o hilasterion em termos pessoais, enquanto o segundo o considera em termos
impessoais.102 Visões pagãs de ira e propiciação estão ausentes da visão bíblica de Deus:
Ele não é uma divindade caprichosa e vingativa cuja mente deve ser mudada por um

96
Dederen, “Christ: His Person and Work,” in Handbook of Seventh-day Adventist Theology, 178.
97
G. K. Beale aplica esse significado também a Romanos 3:25; veja G. K. Beale, A New Testament Biblical
Theology: The Unfolding of the Old Testament in the New (Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2011), 486-
489, enquanto Morris argumenta fortemente contra a aplicação desse uso a Romanos 3:25. Veja Morris,
The Atonement, 168.
98
Substantivos e verbos relacionados são encontrados em Hebreus 2:17 e 1 João 2:1-2 e 4:10. Veja Morris,
The Atonement, 170-172, para uma discussão sobre isso. Eles têm significado semelhante ao uso provável
em Romanos 3:25.
99
Romanos 3:25 está no ponto culminante de um processo de raciocínio que remonta ao primeiro capítulo
da epístola. Após um resumo introdutório do evangelho (Rm 1:16-17), Paulo fala da ira de Deus sendo
revelada contra o pecado (1:18), mas visto que o pecado deixou toda a raça humana em uma condição
sem esperança (1:18). 18—3:20), é necessária uma poderosa intervenção de Deus. Essa intervenção é
descrita por meio de múltiplas metáforas. É a manifestação da justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo
(3:21-22). É a justificação pela Sua graça através da redenção (apolutroseds) que está em Cristo Jesus
(3:24). Essa redenção é explicada ainda mais como um histerion através do Seu sangue (3:25). Assim, a
palavra hilasterion é uma parte crucial da solução que Deus oferece por causa do pecado humano.
100
Dederen, “Christ: His Person and Work,” in Handbook of Seventh-day Adventist Theology, 178;
Rohintan K. Mody, “Penal Substitutionary Atonement in Paul,” in The Atonement Debate, 124-127;
Tuckett, “Atonement in the NT,” ABD, 1:519.
101
Dederen, “Christ: His Person and Work,” in Handbook of Seventh-day Adventist Theology, 178; C. H.
Dodd, The Bible and the Greeks (London: Hodder, 1935), 82-95; Green, “Atonement,” NIDB, 345; Milgrom,
“Atonement in the OT,” IDB Supplement, 80-81; Mitton, “Atonement,” IDB, 1:313; Tuckett, “Atonement
in the NT,” ABD, 1:519.
102
Morris, The Atonement, 151-152, diz que você pode propiciar uma pessoa, mas você expia um pecado
ou um crime. Portanto, este dilema de tradução tem grande significado para o papel de Deus na expiação.
Existe alguém que precisa ser abordado ou apenas um objeto que precisa ser removido?

166
sacrifício esmagador.103 Mas no contexto de Romanos 3:25, ira e julgamento negativo
são central demais para ser ignorada em relação à solução que Deus provê, então há um
elemento de propiciação no uso de hilasterion por Paulo.104 Como alguém reconcilia o
amor de Deus com Sua ira contra o pecado?105
Deste ponto de vista, a santidade de Deus tornou a penalidade do pecado
inescapável. Mas o amor de Deus suportou a penalidade do pecado no lugar da
humanidade. Deus tomou sobre Si a penalidade do pecado. “O que a santidade de Deus
exigia, Seu amor proveu.”106 Na cruz, tanto a ira de Deus contra o pecado quanto Seu
amor pelo pecador são revelados. Ali a justiça e a misericórdia se beijam (Sl 85:10). “O
amor não encobre o pecado, mas efetivamente lida com ele.”107 Qualquer que seja o
entendimento da frase “a ira de Deus”, é importante notar que a ira de Deus não é
removida pela atividade humana, sua remoção é devida unicamente ao próprio Deus.108
Ele lidou com isso enquanto os humanos ainda eram pecadores, então o caminho para
a reconciliação está completamente aberto a todos.
Esse elemento de ira e propiciação não necessariamente diminui o amor de Deus,
pode até elevá-lo a alturas inimagináveis.109 Quanto maior o desafio que o pecado
apresenta, maior a ação de amor necessária para superá-lo. O desafio do pecado destaca
ainda mais o amor de Deus. Embora o hilasterion como metáfora seja desafiador no
mundo de hoje e facilmente incompreendido, também fornece uma dimensão bíblica
para entender a expiação na cruz.

103
Dederen, “Christ: His Person and Work,” em Handbook of Seventh-day Adventist Theology, 178;
Dodd, The Bible and the Greeks, 82-95.
104
Dederen, “Christ: His Person and Work,” in Handbook of Seventh-day Adventist Theology, 179; Mitton,
“Atonement,” IDB, Para uma forte defesa da propiciação como um aspecto importante da hilasterion no
Novo Testamento, veja Morris, The Atonement, 151-176. Alguns estudiosos recentes estão preocupados
com o fato de que visões como essa encorajam a violência em nome de Deus. Veja, por exemplo, Jurgen
Moltmann, “The Crucified God: Yesterday and Today: 1972-2002”, trad. Margaret Kohl, em Marit Trelstad,
Cross Examinations: Readings on the Meaning of the Cross Today (Minneapolis: Augsburg Fortress, 2006),
127-138; Marit Trelstad, Cross Examinations: Readings on the Meaning of the Cross Today, J. Denny
Weaver, “The Nonviolent Atonement: Human Violence, Discipleship, and God,” in Stricken by God?
Nonviolent Identification and the Victory of Christ, ed. Brad Jersak and Michael Hardin (Grand Rapids, MI:
Eerdmans, 2007), 316-355.
105
Para uma extensa discussão sobre a ira de Deus em ambos os testamentos e suas implicações para
hoje, veja Morris, The Atonement, 153-157,163-166.
106
Dederen, “Christ: His Person and Work,” in Handbook of Seventh-day Adventist Theology, 179.
107
Dederen, “Christ: His Person and Work,” in Handbook of Seventh-day Adventist Theology, 179-180.
108
Morris, The Atonement, 157.
109
Packer, "What Did the Cross Achieve?” Tyndale Bulletin, 41, observa que o afastamento divino de Jesus
na cruz foi ainda mais intenso porque Jesus experimentou toda a profundidade do amor do Pai. Para ele,
a substituição penal demonstrou a profundidade do amor do Pai, o que Ele estava disposto assumir a si
mesmo para salvar a humanidade. Timothy Keller, em Kings Cross: The Story of the World in the Life of
Jesus (New York: Dutton, 2011), 141-142, aponta que quando você ama pessoas feridas ou necessitadas,
há é sempre um custo para si mesmo. Philip Yancey aponta que somente alguém que foi ferido pode
perdoar. No Calvário, Deus escolheu ser ferido, “Surveying the Wondrous Cross: Understanding the
Atonement Is About More Than Grasping a Theory,” Christianity Today 53:5 (May 2009): 72.

167
A Cruz como Absolvição no Tribunal (Justificação)
Por que a cruz? Se o problema do pecado é descrito em termos de uma lei quebrada
que resulta em um estado de culpa, a solução é a absolvição (justificação) no tribunal de
julgamento de Deus.110 Essa absolvição é possibilitada por duas realidades; a cruz
esgotando a pena por quebrar a lei e a perfeita observância da lei de Jesus provendo a
“justiça” que é necessária no julgamento final (Rm 3:21-26; 5:12-21; 8:3-4).111 Para
colocar em outros termos, Cristo redimiu a raça humana da maldição da lei, tornando-
se essa maldição por eles (Gl 3:13). O conceito é usado de maneira semelhante fora de
Paulo em Lucas 18:9-14.
Hoje, legalismo é muitas vezes uma palavra suja, dando uma conotação negativa à
preocupação da Bíblia com aliança, lei, justiça e julgamento. Mas os sistemas legais não
precisam ser vistos como impessoais, duros, frios e insensíveis. Corretamente tratada, a
lei constitucional permite que pessoas com diferentes objetivos e interesses vivam
juntas em paz. E a aplicação da justiça imparcial chega muito perto da misericórdia na
experiência daqueles cujos erros foram corrigidos.112
Paulo argumenta que Deus é completamente justo tanto ao condenar e punir o
pecado quanto ao perdoar e aceitar os pecadores (Rm 3:23-26).113 Jesus Cristo, agindo
em favor do pecador, apagou o pecado humano por Sua morte (3:25; 5:9) e cumpriu a
justa exigência da lei por Seus perfeitos trinta e três anos e meio nesta terra (8:4). Assim,
de acordo com este modelo, o sacrifício de Cristo não é um compromisso de justiça, mas
realmente o demonstra (3:26). Por causa da justificação, o relacionamento pode ser
restaurado.114
É importante notar neste ponto que todas essas primeiras quatro metáforas de
expiação têm um elemento de substituição nelas. Deus em Cristo faz pelo pecador o que
o pecador é incapaz de fazer.115 Muitos escritos sobre expiação, portanto, destacam a
substituição como uma metáfora da expiação no Novo Testamento.116 Este estudo não,

110
The Greek word for justification (dikaiosune) means essentially the same thing as righteousness and/or
acquittal. See Mikolaski, “The Cross of Christ,” Christianity Today, 4; I. Howard Marshall, “The Cross of
Christ,” Christianity Today, 4; I. Howard Marshall, “The Death of Jesus in Recent New Testament Study,”
Word and World 3:1 (Winter 1983): 17-18; Morris, The Atonement, 183-185.
111
O único Pai da Igreja que chega perto de expressar este ponto de vista é Cirilo de Jerusalém. Veja
Bromiley, “Atone; Expiação: História da Doutrina”, ISBE, 1:356.
112
Morris, The Atonement, 178-179.
113
Dederen, “Christ: His Person and Work,” in Handbook of Seventh-day Adventist Theology, 180.
114
Ibid., 180.
115
De acordo com as Escrituras, na cruz Jesus substituiu Adão e Israel. Hans Boersma, “Eschatological
Justice and the Cross: Violence and Penal Substitution,” Theology Today 60 (2003): 186-199. See also
Richard L. Mayhue, “The Scriptural Necessity of Christs Penal Substitution,” Master’s Seminary Journal
20:2 (Fall 2009): 139-148; Thomas R. Schreiner, “Penal Substitution View” in The Nature of the
Atonement: Four Views, ed. James Beilby and Paul R. Eddy (Downers Grove, IL: IVP Academic, 2006), 67-
98.
116
A linguagem de substituição, representação e/ou sofrimento vicário era extremamente popular entre
os pais da igreja primitiva, sendo expressa por Irineu, a Epístola a Diogneto, Tertuliano, Atanásio, Eusébio,
Cirilo de Alexandria, Gregório de Nissa, Crisóstomo, Nestório de Constantinopla , e Agostinho. Veja

168
simplesmente porque não há palavra grega para “substituição” no Novo Testamento. A
substituição é um subproduto natural da maioria das outras metáforas, e não uma
metáfora central por si só. É assumido nas Escrituras em vez de provado e explicado.117
A Cruz Como Vitória Sobre Satanás/Pecado/Mal
A ideia de resgate/redenção lembra o Êxodo, onde a redenção de Israel por Deus
provou ser também uma vitória sobre os poderes malignos sob Faraó.118 De fato, a
liberdade de Israel não poderia ter sido obtida sem essa vitória prévia. A linguagem da
vitória é difundida no Novo Testamento.119 Ela pressupõe uma visão um tanto dualista
do universo em que os poderes espirituais e o pecado dominam a raça humana.120
Talvez o texto mais claro afirmando a vitória sobre os poderes do mal seja
Colossenses 2:14-15. Embora partes dessa passagem sejam difíceis, a mensagem
principal desses dois versículos é clara: A cruz de Jesus Cristo “desarmou os poderes e
as potestades” (Cl 2:15, NVI) por meio da cruz, resultando no perdão dos pecados pela
raça humana (2:13). A linguagem dos poderes (archas) e das autoridades (exousias)
traduz palavras gregas que têm referência consistente ao reino demoníaco (ver Rm 8:38;
1Co 15:24; Ef 3:10; Cl 2:10). Outra referência clara é Apocalipse 12:9-11, onde Satanás
é lançado do céu como acusador dos “irmãos” e é vencido na terra pelo “sangue do
Cordeiro”.121 A vitória final, é claro, é a vitória sobre a morte (1Co 15:57). Isso foi
conquistado por Cristo em Sua ressurreição e culmina na ressurreição daqueles que
creem em Cristo (1Co 15:20-22).
Por que a cruz? Porque era necessário derrotar os poderes do pecado e de Satanás,
libertando os seres humanos para retornarem a Deus.122 Jesus é o Campeão (substituto)

Bromiley, “Atone; Expiação: História da Doutrina”, ISBE, 1:355-356. “Atone; Atonement: History of the
Doctrine,” ISBE, 1:355-356.
117
Enquanto alguns preferem palavras como representação e vicário à substituição, Packer, Packer, “What
Did the Cross Achieve?” Tyndale Bulletin 17, observa que as três palavras são essencialmente sinônimos,
significando colocar uma pessoa ou coisa no lugar de outras. Eles querem fazer algo para que outros não
precisem fazer (Rm 5:8; Gl 3:13). Ver também Marshall, “The Death of Jesus”, Word and World, 20; Samuel
J. Milcolaski “A Natureza da Expiação; A Cruz e os Teólogos”, Christianity Today, 5.
118
A exposição clássica dessa visão da expiação é de Gustav Aulen, Christus Victor: An Historical Study of
the Three Main Types of the Idea of the Expiation, trad. A. G. Herbert (1931; repr., Londres: SPCK, 1965).
Resumos mais recentes da visão “Christus Victor” estão em Gregory A. Boyd, “Christus Victor View”, em
The Nature of the Atonement: Four Views, ed. James Beilby e Paul R. Eddy (Downers Grove, IL: IVP
Academic, 2006), 23-49; Paul R. Eddy e James Beilby, “The Atonement, an Introduction,” in The Nature of
the Atonement: Four Views, 12-14; Weaver, “The Nonviolent Atonement: Human Violence, Discipleship,
and God,” in Stricken by God?, 321-337. See also Tuckett, “Atonement in the NT,” ABD, 1: 521.
119
Também era popular entre os pais da igreja primitiva, incluindo Justino, Orígenes, Eusébio e Agostinho.
Veja Bromiley “Atone; Atonement: History of the Doctrine,” ISBE, 1:355-356.
120
Tuckett, “Atonement in the NT,” ABD, 1:521. Sin itself is seen as a malignant power in Romans 7:7-11.
121
Veja outras referências como João 12:31; 16:11; Romanos 8:35-38; 1 Coríntios 15:24-25; Filipenses 2:9-
11; Hebreus 2:14; 1 João 3:8; Apocalipse 5:5-10. Essa perspectiva muitas vezes coloca mais ênfase no
significado cósmico da morte de Cristo do que em seu papel na salvação humana. Veja Boyd, “Christus
Victor View”, em The Nature of the Atonement, 33.
122
Theung-Huat Leow, “‘The Cruciality of the Cross:’ P. T. Forsyth’s Understanding of the Atonement,”
International Journal of Systematic Theology 2:2 (April 2009): 197-198.

169
que derrota Satanás pela humanidade (cf. 1Sm 17:8-11).123 Na cruz, Satanás e seus
capangas dirigiram todo o mal que podiam sobre Jesus Cristo, mas Ele não respondeu
na mesma moeda. Assim, ele exauriu o poder do mal e o derrotou.124 Uma outra maneira
pela qual a cruz derrotou Satanás pode ser sugerida na próxima ideia de como a cruz
efetua a expiação.
A Cruz como Revelação do Caráter de Deus
Enquanto todos os modelos de expiação do Novo Testamento abordados até agora
se concentram no que Deus fez por meio de sacrifício, redenção, propiciação/expiação,
justificação e vitória para pavimentar o caminho para os seres humanos serem
reconciliados com Ele, esse modelo de expiação se concentra no lado humano da
equação, o efeito que a cruz tem sobre os seres humanos.125 Uma maneira que o Novo
Testamento retrata a condição humana é em termos de ignorância ou cegueira.126 Jesus
é Aquele “que traz luz e conhecimento e que revela a verdadeira natureza de Deus.”127
Esta perspectiva é, portanto, particularmente prevalente no Evangelho de João.128
No prólogo do Evangelho de João, a vinda de Jesus revela a glória e o caráter de
Deus (Jo 1:14). O relacionamento íntimo de Jesus com Deus permite que Ele faça a
“exegese” (exegesato) de Deus corretamente (1:18). Jesus é a “luz do mundo” (8:12;
9:5) que não apenas revela Deus, mas também expõe o verdadeiro caráter dos seres
humanos (3:18-21; 13:1-17). Ajudar Seus discípulos a conhecer a Deus está no centro da
missão de Jesus (17:3). E no centro desse “dar a conhecer” (17:26) está a cruz, que em
João é descrita como um “levantamento” (3:14) que permite a todos ver a glória de Deus
(17:1). A cruz de Cristo é, portanto, o momento supremo da revelação.129
No Evangelho de Marcos, todos, incluindo os discípulos de Jesus, lutam com quem
Jesus é (Mc 1:27; 2:6-7; 3:21; 4:10-13; 8:13-21). É somente no momento em que Jesus
morre que o centurião reconhece o que o narrador e Deus têm dito o tempo todo, Jesus
é o Filho de Deus (Mc 1:1, 9-11; 9:2-8; 15:39).130 É a cruz que revela quem é Jesus.
Este foco no conhecimento não é de caráter gnóstico, mas ecoa o conceito hebraico
de conhecimento como envolvendo relacionamentos pessoais íntimos (Gn 4:1,17,25; Dt

123
Chan, “The Gospel and the Achievement of the Cross,” ERT, 26-27; Packer, “What Did the Cross
Achieve?” Tyndale Bulletin, 20.

124
N. T. Wright, Evil and the Justice of God (Downers Grove, IL: Inter Varsity Press, 2006), 88-90.
125
Packer, “What Did the Cross Achieve?” Tyndale Bulletin, 19.
126
Green and Baker, Recovering the Scandal of the Cross, 132.
127
Tuclcett, “Atonement in the NT,” ABD, 1:521; Chan, “The Gospel and the Achievement of the Cross,”
ERT, 24-26.
128
Chan, “The Gospel and the Achievement of the Cross,” ERT, 24-26; Terence Forested, The Word of the
Cross (Rome: Biblical Institute Press, 1974), 113, 120: Green and Baker, 132-133. Os Pais da Igreja que
falam da expiação nestes termos incluem Justino, Clemente de Alexandria e Orígenes. Veja Bromiley,
“Atone; Expiação: História da Doutrina”, ISBE, 1:355-356.
129
Tuckett, “Atonement in the NT,” ABD, 1:521.
130
Green and Baker, Recovering the Scandal of the Cross, 132.

170
34:10; 2Cr 33:13; Is 55: 5; Os 6:3; 13:5).131 Por que a cruz? Fornecer aos seres humanos
a terra do conhecimento que os atrairá de volta a Deus.132
A Cruz como Padrão/Modelo
Enquanto “O que Jesus faria?” é uma frase bastante comum, o foco aqui não é a
vida de Jesus como um modelo para os seres humanos imitarem, mas especificamente
Sua morte na cruz.133 O Novo Testamento frequentemente encoraja os crentes a imitar
o Cristo crucificado.134 A cruz como padrão ou modelo de comportamento cristão é
explorada sob dois termos, “sofrimento missionário” e “crucificação”.135 Existem várias
passagens no Novo Testamento que chamam os crentes ao sofrimento abnegado em
favor do reino e segundo o padrão do próprio sofrimento de Jesus na cruz.136
Talvez o chamado mais conhecido à “crucificação” seja encontrado nos Evangelhos.
Em Marcos 8:34 (NAB) Jesus disse: “Quem quiser vir após mim renuncie a si mesmo,
tome a sua cruz e siga-me” (8:35-38; cf. Mt 16:24-27; Lc 9 :23-26). É no contexto da cruz
que Jesus convida os primeiros a serem os últimos e a se tornarem servos de todos (Mc
9:30-35; cf. Mt 17:22-23; 18:1-5). A cruz estabelece um novo padrão para liderança,
liderança servidora (Mc 10:42-45; Mt 20:25-28). Jesus convida Seus seguidores a segui-
Lo no contexto da cruz (Jo 12:26; cf. 20-25), então dá o exemplo lavando os pés dos
discípulos (Jo 13:12-17; cf. 34-35; 15:12-13). Hebreus 12:1-2 descreve a vida cristã como
uma corrida olhando para o Cristo crucificado como modelo. João exorta os crentes que,
se eles sabem que Jesus deu a vida por eles, eles devem fazer o mesmo uns pelos outros
(1Jo 3:16). E em nenhum lugar do Novo Testamento esta mensagem é mais clara do que
em 1Pe 2:21 (ESV): “Pois para isso fostes chamados, porque também Cristo sofreu por
vós, deixando-vos exemplo, para que sigais os seus passos.”
Paulo se deleita em se tornar um dos “loucos” de Cristo e exorta os coríntios a
seguirem seu exemplo firme e constante de viver a cruz (1Co 4:8-17; 11:1). Para Paulo,
isso não é tanto uma doutrina, mas um “modo de vida crucificada”.137 Este ensinamento
da crucificação torna-se explícito em 2 Coríntios 5:14-15, onde ele exorta que Um
morreu por todos, para que sejamos obrigados a viver não mais para nós mesmos, mas
para Aquele que morreu por nós (cf. Gl 5: 24; 6:14,17; Ef 5:1-2). Este ensino atinge um

131
Tuckett, “Atonement in the NT,” ABD, 1:522.
132
Este modelo parece mais eficaz quando combinado com um ou mais dos modelos objetivos de expiação
como sacrifício, resgate ou vitória. A cruz revela melhor o amor de Deus se for necessário de alguma
forma, se tiver um propósito diferente da revelação também. Veja Chan, “The Gospel and the
Achievement of the Cross”, ERT, 25-26. Um pai correndo para uma casa para salvar uma criança
demonstra amor. Correr para uma casa vazia em chamas para “demonstrar amor” não é tão eficaz. Veja
Blocher, “Biblical Metaphors and the Doctrine of the Atonement,” JETS, 645; Marshall, “The Theology of
the Atonement,” in The Atonement Debate, 62-63.
133
Os Pais da Igreja que falaram da cruz como exemplo ou modelo incluem Justino e Orígenes.
134
Jason B. Hood, “The Cross in the New Testament: Two Theses in Conversation with Recent Literature
(2000-2007),” Westminster Theological Journal 71 (2009): 286.
135
Michael J. Gorman, Cruciformity: Paul’s Narrative Spirituality of the Cross (Grand Rapids, MI: Eerdmans,
2001), 35, 48; Hood, “The Cross in the New Testament,” 287-291.
136
Hood, “The Cross in the New Testament,” 287.
137
Ibid., 288.

171
ponto alto quando Paulo aconselha em Efésios 5:25-28 (KJV): “Maridos, amai vossas
mulheres, como também Cristo amou a igreja e se entregou por ela”. Assim, para Paulo
é claro que o amor abnegado da cruz fornece o modelo para todos os aspectos da
vida.138
A cruz como uma nova aliança
O modelo final da expiação139 no Novo Testamento explica a cruz em termos de
uma nova aliança. De acordo com os Evangelhos Sinóticos, Jesus oferece Sua própria
interpretação da cruz em Seus comentários na última ceia (Mc 14:24; Mt 26:28; Lc
22:20).140 Em todas as três versões, o cálice representa o sangue da aliança e Lucas
acrescenta claramente o qualificador “novo”: “a nova aliança no meu sangue”. 141 O
sangue da (nova) aliança de Jesus é “derramado por muitos” (Mc 14:24, ESV), “para o
perdão dos pecados” (Mt 26:28), ou simplesmente “por vocês” (Lc 22:20).
Quando Jesus disse “a aliança”, Ele estava falando sobre a única aliança do Antigo
Testamento, fundamentada no evento fundamental da história de Israel, o Êxodo. 142
Afinal, Jesus estava presidindo a ceia da Páscoa enquanto falava essas palavras e uma
revisão dos eventos do Êxodo fazia parte do ritual da Páscoa.143 A aliança do Êxodo era
a aliança com Abraão, fundamentada na linguagem do Éden.144 Claramente, Jesus viu
Sua próxima morte como o evento decisivo em toda a história de Israel e, por extensão,
a história de toda a raça humana.145

138
No título de um livro, Richard Hays identifica a cruz como uma das principais fontes da ética do Novo
Testamento Richard B. Hays, The Moral Vision of the New Testament: Community, Cross, New Creation,
a Contemporary Introduction to New Testament Ethics (San Francisco, CA: Harper, 1999).
139
Este modelo vem por último apenas por duas razões. Primeiro, ela só recebeu atenção nos últimos
anos como modelo de expiação. Veja Michael J. Gorman, “Effecting the New Covenant: A (Not So) New,
New Testament Model for the Atonement,” ExAuditu 26 (2010): 26-59. Gorman baseia-se no trabalho de
R. Larry Shelton, Cross and Covenant: Interpreting the Atonement for 21st Century Mission (Milton
Keynes, Reino Unido: Paternoster Press, 2009) e Thomas F. Torrance, Atonement: The Person and Work
of Christ, ed. Robert T. Walker (Milton Keynes, UK: Paternoster Press, 2009) Este modelo vem por último
apenas por duas razões. Primeiro, ela só recebeu atenção nos últimos anos como modelo de expiação.
Veja Michael J. Gorman, “Effecting the New Covenant: A (Not So) New, New Testament Model for the
Atonement,” ExAuditu 26 (2010): 26-59. Gorman baseia-se no trabalho de R. Larry Shelton, Cross and
Covenant: Interpreting the Atonement for 21st Century Mission (Milton Keynes, Reino Unido: Paternoster
Press, 2009) e Thomas F. Torrance, Atonement: The Person and Work of Christ, ed. Robert T. Walker
(Milton Keynes, Reino Unido: Paternoster Press, 2009). Em segundo lugar, percebi que este capítulo
estava quase completo que eu havia escrito sobre esse modelo no passado sem conectar a ideia com “a
expiação”. Veja Jon Paulien, Meet God Again for the First Time (Hagerstown, MD: Review and Herald,
2003), 77-112, 126-136. Foi a leitura do artigo de Gorman (nota anterior) que me fez perceber que ele e
eu estávamos dizendo as mesmas coisas, mas ele estava falando sobre expiação na cruz. Este é
provavelmente o meu modelo favorito de expiação porque é tão solidamente bíblico e claramente
remonta ao próprio Jesus.
140
Gorman, “Effecting the New Covenant,” Ex Auditu, 29.
141
Alguns manuscritos omitem Lucas 22:20 inteiramente e alguns manuscritos de Mateus e Marcos
adicionam a palavra “novo”, mas estou trabalhando com o texto erudito grego padrão.
142
Gorman, “Effecting the New Covenant,” Ex Auditu, 29.
143
Paulien, Meet God Again, 102-103; Gorman, “Effecting the New Covenant,” Ex Auditu, 29.
144
Ibid., 29-34.
145
Ibid., 55-75.

172
No único relato da última ceia do Novo Testamento fora dos Evangelhos (1Co 11:23-
25), Paulo passa uma tradição semelhante, “este cálice é a nova aliança no meu sangue”
(v. 25). No livro de Hebreus, a palavra aliança aparece 16 vezes, quase metade das 33
ocorrências do Novo Testamento como um todo. Jesus é descrito como o Mediador de
uma nova (Hb 9:15; 12:24), eterna (13:20) ou melhor (8:6) aliança que é efetivada por
Seu sangue ou por Sua morte (10:19; 12:24; 13:20). Não só isso, a promessa da nova
aliança de Jeremias é citada duas vezes no livro (Hb 8:8-13; 10:16-18).146
O que torna essa linha de interpretação excitante é que aliança não é apenas uma
categoria importante em todo o Novo Testamento,147 mesmo onde a palavra aliança
não é usada, mas esse modelo tem o potencial de traçar um fio comum em quase todos
os modelos anteriores.148 Em resumo, a nova aliança prometida no Antigo Testamento
(Jr 31:31-34; Ez 11:17-20; 36:23-28) deveria ser um ato transformador e criativo de Deus
que geraria um renovado povo da aliança de Deus. Eles seriam libertados, restaurados,
perdoados, empoderados e permanentes.149 Os escritores do Novo Testamento
entenderam que o ato transformador de Deus ocorreu na cruz.150
CONCLUSÃO
Há uma grande variedade de metáforas para a expiação no Novo Testamento. Essas
metáforas não são apenas diversas, mas tendem a se entrelaçar, tornando difícil separá-
las e favorecer uma em relação às outras. Quanto mais essas várias metáforas forem
compreendidas e respeitadas, mais rica será a compreensão da mensagem da cruz. E
como o Evangelho está incorporado em uma variedade de culturas, ainda pode ser
descoberto que existem novas metáforas bíblicas que foram negligenciadas até agora.
Os crentes também podem ser guiados pelo Espírito para expressar a cruz de uma
maneira que os escritores do Novo Testamento não haviam pensado. Mas em todo
pensamento sobre a expiação, os crentes precisam ser guiados pelos modelos
inspirados colocados para eles nas Escrituras.
Que conclusões os crentes podem tirar deste breve levantamento da relação entre
a expiação e a cruz?151 A palavra inglesa para expiação está mais intimamente
relacionada ao conceito de reconciliação. A expiação fornece os meios e o incentivo para
que os seres humanos se reconciliem com Deus. No Novo Testamento, a expiação é
claramente focada na cruz, mas no livro de Hebreus o princípio da expiação continua na
obra celestial de Jesus Cristo.
A raça humana está em grande necessidade de expiação, sendo incapaz de salvar a
si mesma. Existem barreiras entre a raça humana e Deus em ambos os lados da equação.

146
Ibid., 30-31.
147
Jon Paulien, Meet God Again, 77-112,126-136.
148
A tentativa de trabalho de Gorman de fazer isso está nas páginas 55-58 de seu artigo seminal, “Effecting
the New Covenant”, Ex Auditu.
149
Ibid., 33-36.
150
Spelled out from Matthew to Revelation in ibid., 36-55.
151
Esta conclusão é modelada no estilo da conclusão do artigo de W. S. Reid, “Atone, Atonement”, ISBE,
1:354-355.

173
Por causa do pecado, a reconciliação é, antes de tudo, muito cara para Deus. Ele não
pode deixar de lado suas implicações levianamente. Também por causa do pecado, os
seres humanos precisam ser afastados da rebelião e voltar ao relacionamento com
Deus.
Embora o pecado seja uma barreira entre Deus e a raça humana, Deus não exige
sacrifício para desejar a reconciliação com a raça humana; em vez disso, Ele mesmo
provê amorosamente o sacrifício/resgate/expiação necessários para reconciliar tudo
consigo mesmo. Os seres humanos são chamados a responder à ação de Deus
reconciliando com uma ação própria.
Embora Deus tenha entregado os humanos às consequências de suas próprias
ações pecaminosas, Ele continuamente deseja ter comunhão com humanos pecadores.
Seu amor fornece tudo o que eles não podem realizar para que a expiação ocorra. A
expiação feita na cruz não se limita a alguns humanos ou mesmo a todos os humanos,
mas em certo sentido afeta todo o universo.
O Novo Testamento oferece uma variedade de modelos para explicar a expiação.
Não houve tentativa de definir uma visão como normativa em relação às outras, e vários
modelos podem ser misturados em uma única frase ou parágrafo.
De muitas maneiras, a expiação é tão inescrutável para os humanos quanto Deus.
O que a humanidade sabe com certeza é que Deus é retratado nas Escrituras como
infinitamente amoroso e infinitamente gracioso para com a humanidade errante. Seja
como for que se expresse a expiação na cruz, fica claro que Deus providenciou tudo o
que os seres humanos precisam para se reconciliarem com Ele. Assim, a palavra de Paulo
continua a soar: “Nós vos rogamos em nome de Cristo: reconciliai-vos com Deus” (2Co
5:20, NVI).

174
CAPÍTULO 11
O SIGNIFICADO DO MINISTÉRIO DE INTERCESSÓRIO DE
JESUS CRISTO EM NOME DA HUMANIDADE NO
SANTUÁRIO CELESTIAL
Jiří Moskala

O ministério intercessor de Jesus Cristo no santuário celestial é um ensinamento


central do adventismo do sétimo dia. A obra mediadora de Jesus só é possível por causa
de Sua morte excepcional, altruísta e de uma vez por todas pela humanidade (Hb 9:28).
A visão da obra mediadora de Cristo no céu não diminui de forma alguma o que
aconteceu na cruz como um ato divino de salvação único, inigualável, não repetível e
sem precedentes (Hb 10:12, 14), do qual todos os benefícios fluem para humanos.1 Nada
pode melhorá-la ou suplementá-la, e ninguém pode acrescentar nada ao extraordinário
sacrifício de Cristo. A salvação na cruz é de fato completa (Rm 3:21-6; 1Co 1:18,23-24;
2:2; Gl 2:16, 21; Ef 2:4-10). A teologia adventista diferencia entre a expiação “completa”
realizada por Jesus Cristo na cruz e a expiação “completa” em relação ao Seu ministério
de intercessão no céu em favor da humanidade.2 A expiação-salvação, portanto, não
está completa, porque ainda vivemos em um mundo pecaminoso. O ministério de Cristo
envolve a segurança de todo o universo enquanto Ele aplica Sua obra de redenção aos
crentes individuais (Dn 7:9-10, 13-14; 9:24-27; Ef. 1:7-10; Ap. 12: 7-12).3 Uma solução

1
Everett Ferguson sublinha que a “morte expiatória de Jesus foi [uma] obra única e irrepetível para a
salvação humana (Hb 10:12, 14). A morte sacrificial de Jesus, portanto, foi um ministério que a igreja não
pode continuar... Os sofrimentos redentores de Jesus foram completos e não podem ser adicionados”,
Everett Ferguson, The Church of Christ: A Biblical Ecclesiology for Today (Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1996), 282.
Ellen G. White explica: “A intercessão de Cristo em favor do homem no santuário celestial é tão essencial
ao plano de salvação quanto foi Sua morte na cruz. Por Sua morte Ele começou aquela obra que depois
de Sua ressurreição Ele ascendeu para completar no céu .... Ali se reflete a luz da cruz do Calvário”, The
Great Controversy (Boise, ID: Pacific Press, 1950), 489.
2
Veja, por exemplo, a declaração do ex-reitor do Seminário Teológico Adventista do Sétimo Dia, Dr. W.G.
C. Murdock, na sessão da Associação Geral de 1980 em Dallas, Texas: “Os adventistas do sétimo dia
sempre acreditaram em uma expiação completa que é não concluído”, citado em Morris L. Venden, Never
Without an Intercessor: The Good News About the Judgment (Boise, ID: Pacific Press, 1996), 140.
A plena unificação (isto é, a completa harmonia entre Deus e Sua criação) será alcançada quando o pecado
for erradicado e o mal não estiver mais presente (1 Coríntios 15:24-28; Efésios 1:10). Esta plena harmonia
será restaurada no final do Milênio (Ap. 21-22).
3
“Cristo está mediando em favor do homem, e a ordem dos mundos invisíveis é preservada por Sua obra
mediadora”, Ellen G. White, Messages to Young People (Nashville, TN: Southern Publishing, 1930), 254.
mas os anjos atribuirão honra e glória ao Redentor, pois mesmo eles estão seguros apenas pelos
sofrimentos do Filho de Deus. É pela eficácia da cruz que os habitantes dos mundos não caídos foram
protegidos da apostasia. Não apenas aqueles que são lavados pelo sangue de Cristo, mas também os
santos anjos, são atraídos a ele por seu ato culminante de dar sua vida pelos pecados do mundo”, Ellen
G. White, “The Home Missionary”, maio 1.1897.

175
duradoura para o problema do mal, no entanto, é complexa, envolvendo a obra
mediadora de Cristo no céu por um longo período de tempo.
UM QUEBRA-CABEÇA DIFÍCIL
Os teólogos encontram problemas aparentemente insuperáveis em relação ao
significado da obra de Jesus na terra hoje. Philip Yancey declara eloquentemente:*
Concluí, de fato, que a Ascensão representa minha maior luta de fé – não se isso aconteceu,
mas por quê. Ela me desafia mais do que o problema da dor, mais do que a dificuldade de
harmonizar a ciência e a Bíblia, mais do que a crença na Ressurreição e outros milagres... .
Para mim, o que aconteceu desde a partida de Jesus atinge o cerne da minha fé. Não teria
sido melhor se a Ascensão nunca tivesse acontecido? Se Jesus tivesse permanecido na terra,
ele poderia responder nossas perguntas, resolver nossas dúvidas, mediar nossas disputas de
doutrina e política.4

Acrescenta: “Ao ascender, Jesus correu o risco de ser esquecido.”5 A distância e a


invisibilidade de Deus perturbam a humanidade. Sua óbvia ausência física frustra os
humanos, especialmente em vista de atrocidades como guerra, estupro, exploração,
desastres naturais, morte, sofrimento e dor. As pessoas muitas vezes perguntam: Onde
está Deus agora, e o que Ele está fazendo?
A AFIRMAÇÃO BÍBLICA
A Bíblia declara poderosamente que Jesus Cristo está no céu (Mc 16:19; Lc 24:50-
51; At 1:9-11) e está intercedendo pelos humanos (indicado em Rm 5:10-21, mas
explicitamente ensinado em Rm 8:34; 1Jo 2:1). Esse ensinamento fundamental atesta
que o papel intermediário de Cristo é necessário para cumprir o plano de salvação. Jesus
Cristo é o Intercessor, Mediador e Sumo Sacerdote da humanidade, no santuário
celestial (Hb 4:15-16; 8:1-2). O autor de Hebreus apresenta um quadro elaborado de
Jesus Cristo como nosso Sumo Sacerdote e Mediador-Intercessor que está vivo e
intercede pelos pecadores (Hb 7:25). O Antigo Testamento aponta para o próprio Deus
como uma Testemunha ou Advogado celestial (Jó 16:19-20; cf. 33:23), e explica que o
Servo do Senhor faz “intercessão pelos transgressores” (Is 53:12).6
Este Servo Sofredor, a quem a igreja primitiva identificou como Jesus Cristo (At 8:27-
35), morreu pelos humanos em seu favor, perdoa seus pecados e lhes dá Sua justiça.
Assim, Sua obra concede os benefícios de Sua morte substitutiva aos pecadores (Is 53:3-
12)7
De acordo com o livro de Daniel, no tempo do fim, Miguel defenderá Seu povo para
livrá-los da opressão (Dn 12:1-2). Da mesma forma, Jesus estava representando Estêvão
quando ele foi apedrejado até a morte (Atos 7:55-56). Ao lado direito de Deus estão as

4
Philip Yancey, The Jesus I Never Knew (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1995), 229.
5
Ibid., 230.
6
A menos que indicado de outra forma, todas as citações das Escrituras são tiradas da BÍBLIA SAGRADA,
NOVA VERSÃO INTERNACIONAL8, NIV8 Copyright © 1973,1978, 1984, 2011 por Biblica, Inc.8 Usado com
permissão. Todos os direitos reservados no mundo inteiro. O itálico nas citações das Escrituras reflete a
ênfase adicionada pelo autor.
7
Há cinco cânticos do Servo do Senhor no livro de Isaías (42:1-9; 49:1-7; 50:4-9; 52:12-53:12; 61:1-3).

176
imagens bíblicas do ministério intercessor de Jesus Cristo. 8 Numerosos estudiosos
bíblicos e teólogos confirmam o ensino bíblico de que Jesus Cristo é o Intercessor da
humanidade,9 mas o que isso significa? O que a Bíblia quer transmitir com essa
terminologia? Que diferença faz para os problemas cotidianos que Ele “viva sempre para
interceder” (Hb 7:25) pela humanidade?
O QUE A INTERCESSÃO DE CRISTO NÃO SIGNIFICA
Antes de descrever o papel atual de Jesus no céu, primeiro é necessário sublinhar o
que o ministério intercessor de Jesus Cristo no santuário celestial não significa. Não
implica que Jesus deva (1) suplicar ao Pai celestial ou implorar a Ele que perdoe nossos
pecados; (2) apaziguar um Deus irado; (3) mudar a atitude do Pai em relação a nós; (4)
nem reconciliar Deus com a humanidade. Jesus e o Pai Celestial não estão envolvidos
em uma queda de braço celestial para determinar quem é mais forte, a fim de mostrar
favor ou raiva para com os humanos.
As Escrituras explicam claramente as razões para essas conclusões. Primeiro, Jesus
não precisa implorar ao Pai Celestial que nos ame. Ele mesmo o declarou: “Naquele dia
pedireis em meu nome. Não estou dizendo que pedirei ao Pai em seu nome. Não, o
próprio Pai os ama porque vocês me amam e creram que eu vim de Deus” (Jo 16:26-27).
Segundo, Jesus não precisa mudar a atitude do Pai em relação a nós – “Porque Deus
amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que
nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3:16). Cristo morreu por nós, porque
o Pai amou os humanos. Finalmente, os humanos devem ser reconciliados com Deus, e
não vice-versa. Esta é a nossa mensagem de reconciliação como embaixadores de Deus:
“Reconciliai-vos com Deus” (2 Coríntios 5:20). Os pecadores precisam ser trazidos de
volta a Ele; Deus está constantemente procurando pelos perdidos (Gn 3:9).10
Se Jesus Cristo precisasse apaziguar um Pai celestial irado, então Ele não seria
diferente dos deuses pagãos que exigem a pacificação e a expiação de sua ira por meio
de sacrifícios e presentes. Não se pode comprar o favor de Deus; assim, Jesus não precisa
suplicar ao Pai em nosso favor, mas satisfaz a justiça de Deus ao lidar com o pecado.

8
Existe uma diferença entre estar e sentar-se à direita de Deus. “Em pé” indica intercessão, enquanto
“sentado” refere-se ao governo, vitória, autoridade e realeza do ministério de Cristo (Mt 26:64; Mc 16:19;
Rm 8:34; Ef 1:20; Col. 3:1; Hb 12:2; cf. Sl 110:1). A permanência também se refere à ação do juiz que está
pronto para proferir a sentença judicial sobre o indiciado. Assim, o veredicto traz libertação e vitória ou
condenação.
9
Ver, por exemplo, Louis Berkhof, Systematic Theology, 4ª rev. e enl. ed. (repr.; Grand Rapids, MI:
Eerdmans, 1979); G. C. Berkouwer, The Work of Christ (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1965); Emil Brunner,
The Mediator: A Study of the Central Doctrine of the Christian Faith, trans. Olive Wyon (Filadélfia, PA:
Westminister Press, 1947); Millard J. Erilcson, Christian Theology, 3rd ed. (Grand Rapids, MI: Baker
Academics, 2013); Wayne A. Grudem, Systematic Theology: An Introduction to Biblical Doctrine (Grand
Rapids, MI: Zondervan, 1994); Edward Heppenstall, Our High Priest: Jesus Christ in the Heavenly Sanctuary
(Washington, DC: Review and Herald, 1972).
10
Romanos 5:10 declara: “Pois, se, quando éramos inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte
de seu Filho, muito mais, estando reconciliados, seremos salvos por sua vida” (NKJV). Em relação a um
sentido em que Deus foi reconciliado com a humanidade para que Sua justiça pudesse ser satisfeita
através da morte substitutiva de Jesus Cristo, e Sua ira propiciada (Rm 3:25; 2Co 5:18), veja o ponto nº 4
na seção “Conotações linguísticas”.

177
Assim, Ele é “justo e justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm 3:26, NKJV). Nosso
Pai Celestial ama as pessoas (Dt 33:3); Ele e Cristo estão totalmente unidos em seus
esforços para salvar a humanidade (Ef 1:3-10).11
PRÉ-REQUISITO NECESSÁRIO
A pré-condição essencial para a mediação de Cristo é a unidade de Seu ser Deus e
homem (ou seja, a divindade e humanidade da pessoa de Jesus Cristo). Ele veio para
salvar a humanidade caída. A encarnação de Cristo e Sua morte expiatória no Calvário
são qualificações fundamentais que abriram o caminho para Seu ministério de
intercessão. A cruz era um pré-requisito necessário para Sua obra mediadora salvífica
pela humanidade (Rm 3:23-26). Sua vitória sobre o pecado (Mt 4:1-11; Rm 8:3) e Sua
morte voluntária e substitutiva pela humanidade o qualificaram para ser seu
Intercessor.
O ministério intercessor de Jesus põe em prática os resultados da cruz, ampliando
a eficácia do Calvário. Jesus tornou-se pecado e maldição para a humanidade (Is 53:3-6;
2Co 5:21; Gl 3:13). O que foi realizado na cruz há quase dois mil anos deve agora ser
aplicado, atualizado e incorporado na vida de homens e mulheres para que sejam
restaurados à Sua imagem e tenham vida abundante (Jo 10:10). Ele é o Deus-Homem, o
Mediador da humanidade, porque Ele “se deu a si mesmo em resgate por todos os
homens” (1Tm 2:6; cf. Mc 10:45). Ele é o Mediador da humanidade porque Ele é o seu
Salvador. Sua intercessão é uma continuação de Sua atividade salvífica em favor da
humanidade, a realização e integração de Sua obra por todas as pessoas na cruz. Toda
pessoa precisa de Sua morte e vida para estar espiritualmente viva (Rm 3:24-25; 5:10;
1Co 1:24, 30; 2Co 5:14-17; Ef. 2:1, 4-6; Col. 3:3-4).
Raoul Dederen enfatiza o papel da morte de Cristo na cruz: “Enquanto Seu sacrifício
pelo pecado foi feito uma vez por todas na cruz (Hb 7:27; 9:28; 10:11-14), o Cristo
ascendido está disponibilizando a todos os benefícios de Seu sacrifício expiatório”.12 No
momento em que o pecado entrou no mundo, Jesus desceu do céu e interveio como o
Intercessor da humanidade em antecipação à Sua vitória na cruz. Essa realidade
proléptica é melhor descrita no livro de Apocalipse: “O Cordeiro que foi morto desde a
criação [ou melhor, ‘fundação; Grego: katabole] do mundo” (13:8).

11
Ellen G. White observa: “A expiação de Cristo não foi feita para induzir Deus a amar aqueles a quem Ele
odiava. ... Não devemos alimentar a idéia de que Deus nos ama porque Cristo morreu por nós, mas que
Ele nos amou de tal maneira que deu Seu Filho unigênito para morrer por nós”, The Signs of the Times,
30 de maio de 1895. “A expiação de Cristo não foi a causa do amor de Deus, mas o resultado desse amor.
Jesus morreu porque Deus amou o mundo”, The Review and Herald, 2 de setembro de 1890. “O Pai nos
ama, não por causa da grande propiciação, mas Ele providenciou a propiciação porque nos ama”, Bible
Echo and Signs of the Times, 1º de agosto de 1892.
12
Raoul Dederen, “Christ: His Person and Work,” in Handbook of Seventh-day Adventist Theology
(Hagerstown, MD: Review and Herald, 2000), 187.

178
O MINISTÉRIO DUPLO DE CRISTO
O papel de Cristo como Intercessor é duplo: (1) revelar e ministrar os mistérios da
bondade e riqueza de Deus à humanidade; e (2) apresentar as necessidades existenciais
da humanidade a Deus e assegurar sua salvação. Em outras palavras, Seu ministério
intercessor é um processo revelador e redentor para a humanidade, formando uma
unidade que não pode ser separada. Alister McGrath explica corretamente que “a
presença de Deus em Cristo destina-se a mediar entre um Deus transcendente e a
humanidade caída. Essa ideia de “presença como mediação assume duas formas
bastante distintas, mas em última análise complementares: a mediação da revelação,
por um lado, e da salvação, por outro”.13
Em primeiro lugar, Jesus sendo divino (Jo 1:1-3; Rm 9:5; Cl 1:15-18) representa a
Divindade. Como Mediador, ou seja, comunicador do divino, Ele revela o Pai, Seu caráter
e todos os valores da Divindade (Mt 11:27; Lc 10:22; Jo 1:14-18; 17:6). Porque Ele e o
Pai são um (Jo 10:30), Cristo também revela o Espírito Santo explicando o ministério do
Espírito (Jo 14:16-17; 15:26-27; 16:7-15) e intercedendo (entynchanein) para os santos
(Rm 8:27).14 Com a entrada do pecado (Gn 3:1-10) e a consequente distorção do caráter
de Deus, o nascimento e sacrifício de Cristo na cruz pela humanidade demonstra, de
forma crível e convincente, que Deus é o Deus de amor, verdade e justiça (2Cr 15:3; Sl
31:5; 89:14; Jr 10:10; Jo 1:14; 3:16; 14:6; Rm 1:17; 3:21; 5:5-8; 1Jo 4:16).
Provérbios 8:22-31 sugere o papel especial que Jesus assumiu como Mediador e
Comunicador entre o Deus trino e os seres criados. Desde o momento em que Deus
começou a criar seres no universo,15 Cristo apresentou os princípios de amor, governo
e vontade da Divindade aos mundos criados.
Quando o Novo Testamento usa o termo mesites (Gal. 3:19-20; 1 Tim. 2:5; Heb. 8:6;
9:15; 12:24) ou mesiteuein (Heb. 6:17), denota o que Deus está fazendo pelos humanos
através de Jesus Cristo. Ele veio do alto para estar conosco, Emanuel (Is 7:14; Mt 1:20-
23), um movimento de Deus em direção à humanidade, não o contrário. Ele veio viver
entre a humanidade como um ser humano frágil para revelar os valores, a verdade, os
ensinamentos de Deus e como Deus odeia o pecado e o mal. Ele nunca fica do lado do
opressor, mas do lado do oprimido. No sofrimento e angústia da humanidade, Ele sofre
com a humanidade (Is 63:9). Jesus é a autorrevelação ideal de Deus, o revelador da
verdade, porque Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida (Jo 14:6; cf. Êx 34:6-7). Ele não
apenas revela Deus e proclama a Palavra de Deus, mas é Ele mesmo a revelação e a
Palavra personificada de Deus na carne (Jo 1:1-3; Cl 2:9). Em Sua humanidade, Ele serviu
como exegeta (exegeomai) ao transmitir uma interpretação correta do verdadeiro
caráter de Seu Pai Celestial (Jo 1:18). Deste conhecimento existencial depende a vida

13
Alister E. McGrath, Christian Theology: An Introduction, 2nd ed. (Cambridge, MA: Blackwell Publishers,
1997), 346-347.
14
No caso do Espírito, a palavra grega mesites (mediador) não é usada.
15
Veja sobre este ponto um artigo seminal de Richard M. Davidson, “Proverbs 8 and the Place of Christ in
the Trinity,” Journal of the Adventist Theological Society 17, no. 1 (Spring 2006): 33-54.

179
eterna (Jo 17:3). Ele deseja desvendar as mentiras sobre a Divindade e reconstruir um
relacionamento amoroso e de confiança entre Ele e a humanidade.
Segundo, experimentando a verdadeira humanidade, Jesus Cristo (Mt 4:1-11; Lc
2:52; Jo 1:14; Rm 8:3; Fl 2:5-11; Cl 2:9; 1Jo 1:1-2; 4:2-3) compreende as lutas da
humanidade (Hb 4:15-16) e assim, como seu Representante (1Tm 2:5), pode mediar
eficientemente em seu nome entre o Pai Santo e a humanidade pecadora. O restante
deste capítulo enfoca esse aspecto do papel de Jesus como Intercessor da humanidade
no santuário celestial e busca uma compreensão mais clara de Seu ministério.
CONOTAÇÕES LINGUÍSTICAS
As Escrituras atestam que Jesus Cristo intercede (entynchanein) em favor da
humanidade diante do Pai celestial (Rm 8:34; Hb 7:25; 9:24) e que Ele é o Advogado da
humanidade (parakletos, 1Jo 2:1). Um estudo cuidadoso do vocabulário bíblico
relacionado ao ministério intercessor de Cristo pode ajudar um estudante sério das
Escrituras a descobrir o significado da função de Jesus como nosso Intercessor.
A palavra hebraica para “interceder” é paga', que significa basicamente “conhecer”
ou “encontrar” (Gn 23:8). Outro verbo é palal, traduzido como “orar” ou “interceder”
(1Sm 2:25; 7:5). Além disso, o termo khalah (II; apenas em pi'el) significa "pacificar",
"apaziguar" ou "interceder" (1Re 13:6).
O verbo grego entynchano significa também “se encontrar com” [para pedir,
suplicar]”, e como sua contraparte hebraica indica, de acordo com o contexto, se esse
encontro é positivo ou negativo (At 25:24; Rm 11:2).
A noção de parakletos significa literalmente “alguém que é chamado (para ajudar
ou ficar ao lado)”, portanto, “Ajudante”, “Advogado”, “Intercessor”. Jesus Cristo, assim
como o Espírito Santo, é chamado parakletos (Jo 14:16 [o Espírito Santo]; 1Jo 2:1 [Jesus
Cristo]), que significa: “Ele é Alguém chamado para ajudar” ou “Alguém para modo de
espera." Ele pode efetivamente ajudar cada pessoa com suas lutas diárias.
Jesus Cristo é um hilasterion (reconcialação, expiação, propiciação) de acordo com
Romanos 3:25. O equivalente hebraico desta expressão é kapporet (um propiciatório;
ver Lv 25:17; 16:15-17).16 Cristo é um sacrifício reconciliador ou expiatório (grego:
hilasmos; 1Jo 2:2; 4:10). Ele experimentou a ira de Deus porque Ele se tornou pecado
pela humanidade (2Co 5:21) e tomou sobre Si a maldição pelas transgressões da
humanidade (Gl 3:13-14) para que os humanos pudessem viver e ter a vida eterna (Jo
5:24-25; 11:25). A compreensão bíblica da ira ou ira do Senhor (Rm 1:18) é a reação

16
Existe um debate significativo entre os estudiosos do Novo Testamento sobre se a tradução correta da
palavra hilasterion significa “expiar” ou “propiciar”. Veja James E. Allman, “hilasskesthai: To Propitiate or
to Expiate?” Bibliotheca Sacra 172 (julho-setembro de 2015): 335-355; C. H. Dodd, “hilasskesthai, Its
Cognates, Derivatives, and Synonyms, in the Septuagint”, Journal of Theological Studies 32 (1930-31): 352-
360 Leon Morris, The Apostolic Preaching of the Cross (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1955): 144-213;
Roger Nichol, “C. H. Dodd and the Doctrine of Propitiation,” Westminster Theological Journal 17 (May
1955): 117-157; Valentin Zywietz, “Representing the Government of God: Christ as the Hilasterion in
Romans 3:25” (MA thesis, Andrews University, 2016).

180
antagônica, irreconciliável e ardente de Deus em relação ao pecado. É Sua atitude
apaixonada em relação a tudo que está irreversivelmente associado ao mal, porque o
pecado destrói o que é bom, valioso e belo. Deus não pode tolerar o mal porque se opõe
à Sua boa natureza (Sl 107:1). Deus é amor por definição (Dt 7:9; 1Jo 4:16) e só é
percebido como irado ao revelar Sua atitude intransigente em relação ao pecado e a
qualquer coisa que destrua a vida. O Deus Triúno concebeu uma solução muito cara para
o problema do pecado: o próprio Cristo. Seu sacrifício de amor concede reconciliação e
paz com a Divindade (Rm 5:9-11; 2Co 5:18-19; Cl 1:19-20). Ele é o propiciatório, o
sacrifício expiatório que cobre todos os pecadores arrependidos com Sua justiça,
removendo assim a causa da ira de Deus (2 Co 5:18). Todos os pecadores que admitem
que transgrediram Sua Palavra, a lei de Deus, confessam seus pecados aberta, honesta
e sinceramente, e aceitam a Cristo como seu Salvador, são perdoados; Deus é a sua
justiça (Sl 32:1-2; 51:1-12; Jr 23:5-6; 33:16; Rm 3:26; 1Jo 1:7-9). Michael Bird declara:
“Podemos dizer que quando o pecado é expiado, a ira de Deus é propiciada. Quando o
pecado é removido, a ira de Deus é aplacada.”17 No entanto, pecadores impenitentes
permanecem sob a ira de Deus (Jo 3:36).
A ira de Deus é revelada contra toda iniquidade, mas Jesus Cristo é um hilastério,
um propiciatório, um kapporet.18 A cruz foi uma revelação do amor e da justiça de Deus
(Sl 85:10; 101:1). Pela cruz, Deus demonstrou que Ele é justo, ao mesmo tempo que
justifica “aqueles que têm fé em Jesus” (Rm 3:26) e aceitam a Cristo como o
propiciatório (Rm 3:25). Sua justiça é manifestada por meio de Seu sacrifício final de
vida.
Jesus Cristo é o único Intercessor da humanidade (1Tm 2:2-6). Essa afirmação de
Paulo pretendia contrariar o ensino gnóstico de seu tempo, um mundo repleto de
diversos intercessores.19 Mas Paulo assegura a seus ouvintes que nenhum outro poder
pode se interpor entre Deus e este mundo, e que Cristo é totalmente Deus e totalmente
humano. Ele é o Intercessor da humanidade porque Ele se deu pela humanidade para
redimir a humanidade. Ninguém e nada na terra ou em todo o universo pode separar a
humanidade do amor de Deus (Rm 8:35-39).

17
Michael F. Bird, Evangelical Theology: A Biblical and Systematic Introduction (Grand Rapids, MI:
Zondervan, 2013), 406-407.
18
No santuário, o kapporet cobria a arca da aliança sob a qual estava a lei de Deus, o Decálogo (ver Êx
25:17-22). Na Septuaginta, o kapporet é traduzido como hilasterion (veja, por exemplo, Êx 25:17, 20-21;
31:7; Lev. 16:13-15; cf. Hb 9:5). Este propiciatório ou tampa de cobertura representava Jesus Cristo, Seu
sacrifício expiatório na cruz. Ele foi o sacrifício de expiação que Deus providenciou para cobrir os
pecadores e dar-lhes a graça transformadora. Paulo identifica Jesus como um propiciatório – “hilasterion”
ou “kapporet” (Romanos 3:25; 1 João 4:15). Jesus faz propiciação ou expiação (hilaskomai—Hb 2:17), e é
a propiciação ou sacrifício expiatório pelos pecados (1Jo 2:2; cf. “uma oferta pelo pecado”—Is 53:10).
19
Assim, por exemplo, Ivan T. Blazen em seu artigo “Jesus: Priest and Coming King”, em The Essential
Jesus: The Man, His Message, His Mission, ed. Bryan W. Ball e William G. Johnsson (Boise, ID: Pacific Press
Publishing Association, 2002), 251.

181
QUAL O SIGNIFICADO DO MINISTÉRIO DE INTERCESSÓRIO DE JESUS CRISTO EM
NOSSO NOME?
Cristo e o Pai se Encontram para Ajudar
Jesus Cristo e o Pai celestial se encontram (paga' e entynchano) e juntos ajudam
(parakletos) os humanos em seus problemas cotidianos e os capacitam a serem cristãos
vitoriosos. Todo o céu — o Pai, Jesus Cristo e o Espírito Santo — está unido para ajudar
os humanos em sua luta contra o pecado, Satanás e a tentação. Sem Sua ajuda, as
pessoas são impotentes e não podem resistir ao mal, mudar ou crescer espiritualmente
(Jo 15:5; cf. Fl 4:13).
O primeiro resultado tangível da reunião após a ascensão de Cristo foi o envio do
Espírito Santo aos crentes (Atos 2). Everett Ferguson afirma com razão:
Deus ajuda a pessoa a viver a sua salvação (Fp 2:12) de acordo com a vida cristão. O Espírito
Santo fornece o elo entre o batismo e a vida cristã. O Espírito Santo não apenas santifica
(1Co 6:11; 1Pe 1:2), mas também dá nova vida no batismo (Jo 3:5) e passa a residir no
convertido (At 2:38; 5: 30; Rm 8:9; 1Co 6:19). O Espírito Santo provê os contínuos benefícios
presentes da ação única de Deus na cruz e o compromisso único no batismo (há “um só
batismo” – Ef 4:5). Ele é o poder da vida cristã.20

Porque a humanidade agora tem livre acesso a Deus, as pessoas podem se


aproximar Dele diretamente através de Cristo sem a necessidade de qualquer mediação
humana (Hb 4:16; 10:19). “Cristo tornou possível o acesso direto a Deus no santuário
celestial. Esse acesso também está relacionado ao Espírito Santo. Por meio de [Cristo
Jesus], ambos [judeus e gentios] têm acesso ao Pai em um Espírito” (Ef 2:18). O Espírito
Santo provê uma vida que em certa medida já participa da vida futura (Ef 1:13-14; Hb
6:4).”21
O comentário de João: “Até aquele tempo não havia sido dado o Espírito, pois Jesus
ainda não havia sido glorificado” (Jo 7:39) precisa ser entendido corretamente. 22 Esta
proclamação não significa que o Espírito Santo não foi presente, ativo e engajado

20
Everett Ferguson, The Church of Christ: A Biblical Ecclesiology for Today (Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1996), 204. Considere também as seguintes declarações de Ellen G. White: “Por uma união com Cristo,
pela fé viva, somos privilegiados de desfrutar da eficácia de Sua mediação. Estamos crucificados com
Cristo, sepultados com Cristo, ressuscitados com Cristo, para andar em novidade de vida”, Signs of the
Times, 11 de outubro de 1899. “Todo aquele que romper com a escravidão e serviço de Satanás, e
permanecer sob a bandeira manchada de sangue do Príncipe Emanuel será mantido pela intercessão de
Cristo. Cristo, como nosso Mediador, à direita do Pai, sempre nos mantém em vista, pois é tão necessário
que Ele nos guarde por Suas intercessões quanto nos redimir com Seu sangue. Se Ele nos soltar por um
momento, Satanás está pronto para destruir. Aqueles comprados por Seu sangue, Ele agora mantém por
Sua intercessão”, MS 73, 1893, em Francis D. Nichol, ed., The Seventh-day Adventist Bible Commentary
(Washington, DC: Review and Herald, 1980), 6:1078.
21
Ferguson, The Church of Christ, 217.
22
Veja Lucas 24:49; João 14:16-17, 26; 15:26; 16:7; Atos 1:8. Veja também sete declarações do Novo
Testamento sobre o “batismo do/com/no/pelo Espírito Santo” (Mateus 3:11-12; Marcos 1:8; Lucas 3:16-
17; João 1:33; Atos 1: 5; 11:16; 1 Coríntios 12:13). Compare com Lucas 1:15 (João Batista); 1:41 (Isabel);
1:67 (Zacarias) - todos esses santos do Antigo Testamento foram cheios do Espírito Santo antes do
Pentecostes ou da glorificação de Jesus.

182
durante o período do Antigo Testamento (amplas evidências testificam contra esse
ponto de vista popular),23 mas significa que o Espírito do Senhor só podia operar
prolepticamente durante os tempos do Antigo Testamento e estava agindo em
antecipação à glorificação de Cristo (ou seja, a vitória de Jesus na cruz, Sua ressurreição
e ascensão). James Hamilton afirma: “O sentido em que o Espírito ainda está para ser
dado é que os crentes estão prestes a recebê-Lo na glorificação de Jesus.”24
A cruz validou historicamente as atividades dos Espíritos. A glorificação de Jesus
(veja Jo 13:31-32; 17:1-5)25 foi o selo que autenticava o envolvimento da obra do Espírito
Santo durante os tempos do Antigo Testamento em diante. Assim, a morte triunfante
de Jesus foi o pré-requisito para dar o Espírito de Deus ao mundo. E, ao mesmo tempo,
Sua atividade foi real, na justificação e afirmação da obra do Espírito Santo na
dispensação do Antigo Testamento.26
A intercessão de Jesus também é comparada à Sua oração por nós. Ao orar por Seus
seguidores, Ele os ajuda a se tornarem fortes na fé e unidos em amor e verdade (ver
João 17). A oração intercessória de Jesus por Seus discípulos e sucessivas gerações de
Seus seguidores é que eles sejam um modelo de unidade e fidelidade. Um bom exemplo
disso é Jesus orando por Pedro: “Eu roguei por você, para que sua fé não desfaleça” (Lc
22:32, NKJV). Ele quer que os crentes O conheçam (Jo 17:3; 2Pe 3:18); ser vitorioso nEle
(Ap 3:5, 21); amem uns aos outros (Jo 13:34-35); e sejam Seus discípulos ousados e
corajosos (Mt 14:27; At 4:13, 29; 23:11; 27:22, 25; 28:31; Fl 1:20).27

23
John Goldingay, “Was the Holy Spirit Active in Old Testament Times? What Was New About the Christian
Experience of God?” ExAuditu 12 (1996): 14-28; Wilf Hildebrandt, An Old Testament Theology of the Spirit
of God (Peabody, MA: Hendrickson Publishers, 1995).
24
James M. Hamilton, Jr., Gods Indwelling Presence: The Holy Spirit in the Old and New Testaments, New
American Commentary Studies in Bible and Theology, ed. E. Ray Clendenen (Nashville, TN: B&H Publishing
Group, 2006), 62, ênfase no original. Veja também, Geoffrey W. Grogan, “The Experience of Salvation in
the Old and New Testaments”, Vox Evangelica 5 (1967): 12-17; Sidney H. Hooke, “O Espírito Ainda Não
Era (João 7:39)”, Estudos do Novo Testamento 9 (1963): 372-380. Sidney H. Hooke, “The Spirit Was Not
Yet (John 7:39),” New Testament Studies 9 (1963): 372-380.
25
Pela vida sacrificial e morte vitoriosa pelos pecadores, Jesus Cristo glorificou Seu Pai e salvou a
humanidade. Cada crente nEle tem a vida eterna, o resultado glorioso de Seu sacrifício final pela
humanidade. O Pai glorificou a Jesus, isto é, o ressuscitou para a vida e O restaurou à Sua posição anterior
de glória (João 17:5; Atos 2:32, 36; 5:30-31; Fil. 2:8-9).
A morte de Cristo deu início não apenas a uma nova dimensão de Seu ministério, mas também aprovou
e autenticou tudo o que foi realizado anteriormente nos tempos do Antigo Testamento.
26
Walter C. Kaiser, Jr., “The Indwelling Presence of the Holy Spirit in the Old Testament,” Evangelical
Quarterly 82, nº 4 (2010): 315, “A vinda do Espírito Santo no Pentecostes foi uma obra muito
significativa em que o Espírito chegou em estado, visivelmente e dramaticamente, mostrando assim no
tempo e no espaço o que havia sido experimentado ao longo do Antigo Testamento não era irreal, mas
fazia parte de todo o plano de Deus”. Ele também faz uma pergunta pertinente: “Como todas essas
pessoas da antiga aliança poderiam ter crido e sido capacitadas a viver vidas santificadas se o Espírito de
Deus não habitasse nelas?” Para provar o ponto, ele fornece exemplos de crentes do Antigo
Testamento, como Enoque, Noé, José, Jó, Bezalel e Davi, ibid., 309.
27
Êxodo 32:31-32 fornece um excelente exemplo de tal ministério de oração onde Moisés intercede pelo
povo de Deus que pecou contra Ele fazendo um bezerro de ouro. Moisés pede perdão a Deus e até oferece
sua própria vida por eles.

183
Através da obra mediadora de Cristo, o Intercessor purifica as ações, orações,
adoração, obediência e louvores dos crentes que procuram expressar sua gratidão a
Deus. Todos precisam de Sua purificação. Ellen White comenta poderosamente sobre
este aspecto:
Cristo, nosso Mediador, e o Espírito Santo estão constantemente intercedendo em favor do
homem, mas o Espírito não intercede por nós como Cristo, que apresenta Seu sangue,
derramado desde a fundação do mundo; o Espírito opera em nossos corações, atraindo
orações e penitências, louvores e ações de graças. A gratidão que brota de nossos lábios é
o resultado do Espírito tocando as cordas da alma em santas lembranças, despertando a
música do coração.

Os serviços religiosos, as orações, o louvor, a confissão penitente do pecado, ascendem


dos verdadeiros crentes como incenso ao santuário celestial; mas, passando pelos canais
corruptos da humanidade, estão tão contaminados que, a menos que sejam purificados pelo
sangue, nunca poderão ter valor para Deus. Eles ascendem não em pureza imaculada, e a
menos que o intercessor que está à direita de Deus apresente e purifique tudo por Sua
justiça, isso não é aceitável a Deus. Todo incenso dos tabernáculos terrenos deve ser
umedecido com as gotas purificadoras do sangue de Cristo. Ele mantém diante do Pai o
censor de Seus próprios méritos, no qual não há mancha de corrupção terrena. Ele reúne
neste censor as orações, o louvor e as confissões de Seu povo, e com isso Ele coloca Sua
própria justiça imaculada. Então, perfumado com os méritos da propiciação de Cristo, o
incenso sobe diante de Deus total e inteiramente aceitável. Então respostas graciosas são
retornadas.

Oh, que todos possam ver que tudo em obediência, em penitência, em louvor e ação de
graças deve ser colocado sobre o fogo ardente da justiça de Cristo. A fragrância desta justiça
sobe como uma nuvem ao redor do propiciatório.28

Finalmente, como Intercessor, Jesus Cristo ajuda Seus seguidores a se conectarem


a Ele e serem ativos em Sua Igreja. “Estar em Cristo é estar na igreja, e estar na igreja é
estar em Cristo.”29 Ferguson comenta apropriadamente: “Não se está 'em Cristo' por
estar 'na igreja', mas 'na igreja' por estar 'em Cristo'... Ser salvo é estar em Cristo, e ser
cristão é ser membro da igreja”.30 Jesus dá a Seus seguidores o Espírito Santo para serem
Suas testemunhas fiéis: “Mas vocês receberão poder quando o Espírito Santo descer
sobre vocês; e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria, e
até os confins da terra” (Atos 1:8).
Cristo Salva
Jesus Cristo justifica e salva (Zc 3:1-7; Rm 8:1). Consequentemente, os crentes se
identificam com Ele (Rm 6:1-4; Ef 2:4-10). Ele é seu Substituto e Representante porque
Ele morreu por seus pecados (1Co 1:30; 15:3; 2Co 5:21). Sua morte substitutiva trouxe
vitória sobre as forças do mal e Satanás. Ele derrotou a morte (Rm 6:24; 1Co 15:21-
22,26, 54-55), e é por isso que Ele agora pode dar vida eterna aos Seus seguidores (Jo
5:24-25; 11:25).

28
Ellen G. White, MS 50, 1900, in Seventh-day Adventist Bible Commentary, 6:1077- 1078. Veja também
Ellen G. White, Patriarchs and Prophets (Boise, ID: Pacific Press, 1958), 353.
29
Claude Welch, The Reality of the Church (New York: Scribner s, 1958), 165.
30
Ferguson, The Church of Christ, 205.

184
De acordo com Hebreus 7:25, Jesus “pode salvar completamente”. O Intercessor da
Humanidade salva todos os que vêm a Ele como estão, confessando seus pecados.
Cristo, o Intercessor, reflete a função do Antigo Testamento do sacerdote e sumo
sacerdote que fez expiação pelo povo (Lv 16:19, 30) e reconectou o pecador com o Deus
santo e gracioso. No entanto, Jesus deu a Si mesmo como um sacrifício final pela
humanidade (Hb 9:25-26, 28), e Seu sangue purifica todos de seus pecados (Hb 5:9; 9:12;
1Pe 1:18-19). Os crentes são perfeitos nEle, “en Christo”, e Paulo enfatiza fortemente
sua habitação em Cristo (Rm 6:23; 8:1; 9:1; 12:5; 1Co 1:30; 4:15).
Jesus Cristo se identifica com Seu povo individualmente, e essa identificação é tão
próxima que é comparada à parte mais sensível do corpo: a pupila do olho. "Pois assim
diz o Senhor Todo-Poderoso... 'quem toca em você toca na menina do seu olho [do
Senhor]'" (Zc 2:8). “O Rei responderá: ‘Em verdade vos digo que tudo o que fizestes a
um destes meus irmãos e irmãs mais pequeninos, a mim o fizestes’” (Mt 25:40).
Exemplos bíblicos adicionais demonstram como Jesus se une intimamente com Seus
seguidores: “Ele responderá: 'Em verdade vos digo que tudo o que não fizestes a um
destes menores, a mim não o fizestes'” (Mt 25:45). “Ele caiu no chão e ouviu uma voz
que lhe dizia: ‘Saulo, Saulo, por que você me persegue?’ ‘Quem é você, Senhor? ‘Eu sou
Jesus, a quem vocês perseguem’, respondeu ele” (At 9:4-5). “Quem te ouve, me ouve;
quem te rejeita, a mim me rejeita; mas quem me rejeita, rejeita aquele que me enviou”
(Lc 10:16).
Jennings comenta com razão:
Jesus intercedeu no curso da própria pecaminosidade. ... Ele assumiu a nossa condição
terminal para conquistar, vencer e curar. 'Certamente ele tomou sobre si as nossas
enfermidades e carregou as nossas dores' (Is 53:5 NVI 1984). Sim, Jesus se tornou um de nós
para reverter todo o dano que o pecado causou à sua criação e restaurar nós, seus filhos, de
volta à unidade com Deus. Jesus veio para esmagar a cabeça da serpente (Gn 3:15)—para
destruir Satanás e erradicar a infecção do pecado deste mundo (Hb 2:14).31

Jesus leva cada pessoa à presença de Deus Pai e aplica os resultados da cruz (Ef 2:5;
Hb 9:24). Ellen White resume poderosamente o ensino bíblico:
Se você se entrega a Ele [Jesus Cristo] e O aceita como seu Salvador pessoal, então, por mais
pecaminosa que sua vida possa ter sido, por amor a Ele você é considerado justo. O caráter
de Cristo substitui o seu, e você é aceito diante de Deus como se não tivesse pecado. 32

Faça amizade com Cristo hoje. Coloque seu caso nas mãos do grande Advogado. Ele
pleiteará sua causa diante do Pai. Embora você tenha transgredido a lei e deva se declarar
culpado diante de Deus, Cristo apresentará seu precioso sangue em seu favor, e pela fé e
obediência e união vital com Cristo, você poderá ser absolvido perante o Juiz de toda a terra,
e ele será seu amigo quando a trombeta final soar, e as cenas da terra não existirem mais.33

31
Timothy R. Jennings, The God-Shaped Brain: How Changing Your View of God Transforms Your Life
(Downers Grove, IL: IVP Books, 2013), 82-83.
32
Ellen G. White, Steps to Christ (Nampa, ID: Pacific Press, 1956), 62.
33
Ellen G. White, Signs of the Times, July 27,1888.

185
Porque Jesus Cristo é o Intercessor da humanidade, todas as pessoas podem vir a
Ele com plena confiança, segurança e ousadia (Hb 3:6; 4:16; 10:19, 35; 1Jo 2:28; 4:17).
As pessoas podem vir a Ele sem medo, dúvida ou vacilação, pois nEle têm esperança (Hb
6:19; 7:19; 10:23; 1Pe 1:3). Ele é altamente qualificado para ser o Intercessor da
humanidade, pois Ele é um deles, seu Irmão mais velho, e Ele foi “tentado de todas as
maneiras, como nós, mas não pecou” (Hb 4:15; cf. 2:17-18). Ele é a Fonte de salvação
para todos que vêm a Ele (Hb 4:16; 5:7-9), e “agora já não há condenação para os que
estão em Jesus Cristo” (Rm 8:1).
Cristo Muda e Transforma
Salvação significa cura (Sl 6:2; 41:4; Jr 17:14; Os 14:4) e transformação (Rm 12:1-2;
2Co 6:14; 1Ts 5:23-24). Jesus Cristo não veio para salvar a humanidade “em” pecado,
mas “do” pecado (Mt 1:21). Ele deseja a santificação de cada pessoa (1Ts 4:3-4; Hb
12:14; 13:12) enquanto anda humildemente com o Senhor (Mq 6:8), perseverante (Ap
12: 14), e vivendo com os olhos fixos nele (Hb 12:1-2). Desta forma, cada crente refletirá
cada vez mais plenamente o caráter de Deus (2Co 3:18).
Hebreus 4:16 explica eloquentemente por que os humanos precisam do ministério
intercessor de nosso Sumo Sacerdote:34 “Aproximemo-nos, pois, com confiança do
trono da graça de Deus, para recebermos misericórdia e acharmos graça para precisar"
Como seres humanos quebrados e frágeis, as pessoas estão constantemente precisando
de Jesus e totalmente dependentes dEle. Cada crente é crucificado com Cristo (Rm 6:5-
6) para viver uma nova vida (Rm 6:4; 8:11; Ef. 1:15-21; 2:1-10). Ser uma nova criação em
Cristo (2Co 5:17) não significa que os crentes não tenham mais uma natureza
pecaminosa (Sl 51:5; Rm 7:14-20), mas que seus desejos pecaminosos estão sob
controle do Seu Espírito (Rm 6:11-14; 8:1-4). Cristo vive em cada pessoa (Gl 2:20; Fp
1:21). A natureza pecaminosa será mudada somente na segunda vinda do Senhor Jesus
Cristo (1Co 15:50-54; Fl 1:6; 3:20-21; 1Jo 3:1-3).
Jesus proclamou: “Sem mim nada podeis fazer” (Jo 15:5, NKJV). Paulo confessa:
“Tudo posso naquele que me fortalece” (Fp 4:13). Lutar contra a tentação, vencer o
pecado, travar uma luta bem-sucedida de fé (1Tm 6:12; 2Tm 4:7) e produzir bons frutos
duradouros são impossibilidades sem Cristo ou Seu Espírito. Somente Cristo é capaz de
impedir que os crentes caiam (Judas 24), porque Sua intercessão quebra o poder do
pecado, dá liberdade e liberta dos vícios e da escravidão do mal. Ele salva os crentes das
consequências do pecado – morte eterna, mas também os capacita a viver novas vidas
de acordo com Sua vontade (Ez 36:26-29; Rm 8:13-14). Somente Ele pode transformar
os crentes por Sua graça para que possam replicar Seu caráter amoroso, compassivo e
serviçal. Ele quer mudar cada pessoa pelo poder de Sua Palavra, Espírito e graça para
livrar cada pessoa do egoísmo, egocentrismo, autojustificação e esforço para ser o mais
forte. “O amor piedoso está em guerra com o princípio da sobrevivência do mais apto.”35

34
O livro de Hebreus afirma explicitamente nove vezes que Jesus Cristo é o Sumo Sacerdote (Heb. 2:17;
3:1; 4:14-15; 5:5, 10; 6:20; 7:26; 8:1; 9:11), e implica isso duas vezes (Hb 7:28; 8:13). No mesmo livro,
Jesus é chamado de Sacerdote seis vezes (5:6; 7:16-17, 21).
35
Jennings, The God-Shaped Brain, 83.

186
Ele deseja que os crentes sejam governados pelo Espírito, experimentem o Seu fruto,
contra o qual não há condenação (Gl 5:22-23).
Cristo Vindica / Defende Seu Povo
Jesus Cristo vindica Seus filhos contra as acusações de Satanás. O livro de Jó oferece
uma visão das acusações de Satanás contra os seguidores de Deus (Jó sendo uma figura
tipológica para eles), e como Deus se posiciona contra Satanás e por Seu povo (Jó 1:8-9;
2:4; 42).36 O livro do Apocalipse apresenta Deus como defensor da humanidade,
descrevendo Sua vitória na cruz:
Então ouvi uma grande voz no céu dizer: “Agora veio a salvação e o poder e o reino do nosso
Deus, e a autoridade do seu Messias. Pois o acusador de nossos irmãos e irmãs, que os acusa
dia e noite diante do nosso Deus, foi lançado para baixo. Eles triunfaram sobre ele pelo
sangue do Cordeiro e pela palavra do seu testemunho; eles não amavam tanto suas vidas a
ponto de recuar diante da morte. Portanto, regozijai-vos, ó céus e vós que neles habitais!
Mas ai da terra e do mar, porque o diabo desceu até você! Ele está cheio de fúria, porque
sabe que seu tempo é curto.” (Ap 12:10-12)

Jesus Cristo resistiu pessoalmente às acusações de Satanás quando O derrotou na


cruz (Jo 8:31; 16:11; Ap 12:7-10). Ele foi o vencedor, e Seus seguidores só podem ser
vitoriosos por causa Dele. Sua vitória é Seu presente para Seus filhos. Jesus Cristo não
apenas se opõe a Satanás, aos poderes das trevas e aos principados do mal (Ef 6:10-13),
mas também defende Seus filhos contra as acusações de Satanás (Ap 7:1; 12:10-12).
Jesus coloca uma cerca de proteção ao redor de Seu povo (2Re 6:17; Jó 1:10; Sl 34:7;
91:1-3; 103:1-5).
Assim, o ministério intercessor de Jesus Cristo significa que Ele se posiciona
pessoalmente contra Satanás para defender Seus filhos e silenciar seu acusador.
Jesus Cristo como Intercessor vindica Seu povo diante de todo o universo (Dn 7:9-
10, 13-14, 22; Ef. 3:10-11). Ele é simultaneamente Advogado e Juiz, para que Seus filhos
possam esperar com ousadia e sem medo o dia do julgamento (1Jo 2:28; 4:17). Por quem
Ele é, pelo que Ele realizou e pelo que Ele faz, Ele merece ser eternamente louvado (Rm
9:5; Ap 5:9-10, 12-13).
Jesus Cristo é o Intercessor de Seus filhos até o fim do tempo de graça (Ap 15:7-8;
22:11). No entanto, isso não significa que, após esse tempo, os crentes vivam sem a
ajuda do Espírito Santo ou sem Cristo (embora Ele termine Seu papel e ministério
específicos como seu Intercessor). Os crentes nunca viverão por conta própria,
independentes dEle. Essa dependência será mantida por toda a eternidade (Ap 22:1-4).
O Espírito Santo estará com Seu povo e os conduzirá pelo último curto período de
tempo, quando viverão sem o ministério intercessor de Cristo. Seu ministério de
intercessão não será mais necessário porque Ele os salvou completamente, iniciou neles
o processo de transformação poderosa e os justificou perante o universo (para detalhes,
veja Mt 25:1-10; 28:20; Jo 15: 5; Rm 8:14; 2Co 3:5; Fl 1:6; 3:12-15; 4:13; 1Ts 5:23, 24;

36
Para detalhes, veja meu artigo “The God of Job and Our Adversary,” Journal of the Adventist Theological
Society 15, no. 1 (Spring 2004): 104-117.

187
2Ts 3:3; Jd 24, 25; Hb 12:1, 2; Ap 3:10).37 Durante este curto período antes da segunda
vinda de Cristo, entre o fim do tempo de graça e a glorificação de Seus filhos, os
verdadeiros crentes precisarão ser cobertos pelos resultados da cruz, os méritos
expiatórios de Cristo, por causa de suas naturezas pecaminosas. Os crentes ainda
precisarão de uma “constante dependência do sangue expiatório de Cristo”.38
Um padrão incrível é observado em toda a Bíblia em relação ao ministério
intercessor de Cristo por Seu povo. Ele é por eles, nunca contra eles, e quer salvá-los.
Este ministério crucial é indispensável, como indica a seguinte declaração:
O que a intercessão compreende? É a corrente de ouro que une o homem finito ao trono
do Deus infinito. O agente humano que Cristo morreu para salvar importuna o trono de
Deus, e sua petição é aceita por Jesus, que o comprou com Seu próprio sangue. Nosso
grande Sumo Sacerdote coloca Sua justiça ao lado do suplicante sincero, e a oração de Cristo
combina com a do peticionário humano.39

Ellen White explica adequadamente a vasta eficácia do ministério intercessor de


Cristo:
Todas as bênçãos devem vir através de um Mediador. Agora, cada membro da família
humana é entregue inteiramente nas mãos de Cristo, e tudo o que possuímos - seja dinheiro,
casas, terras, poderes de raciocínio, força física, talentos intelectuais - neste presente A vida
e as bênçãos da vida futura são colocadas em nossa posse como tesouros de Deus para
serem gastos fielmente em benefício do homem. Cada dom é estampado com a cruz e traz
a imagem e inscrição de Jesus Cristo. Todas as coisas vêm de Deus. Desde os menores
benefícios até as maiores bênçãos, todos fluem através de um único Canal – uma mediação
sobre-humana aspergida com o sangue que é de valor incalculável porque era a vida de Deus
em Seu Filho.40

Seus filhos podem ir a Jesus com plena confiança porque tudo o que Ele faz, Ele faz
para a salvação deles. Suas ações são transparentes para eles, assim como para todo o
universo. Ele é um grande comunicador com Seus seres criados porque Ele quer que
todos entendam quem é Deus, bem como Seu caráter, propósitos e vontade. Ele não
esconde Seus propósitos de Seus seres criados; pelo contrário, Ele abre a Si mesmo e
Seus pensamentos, sentimentos, ações e o futuro a todos que desejam conhecer e
compreender. O ministério intercessor de Cristo é duplo: Ele revela o caráter de Deus e
Seus valores para a humanidade, e apresenta suas necessidades, lutas e problemas a
Deus. O Deus Triúno colabora estreitamente nesta dupla missão.
CONCLUSÃO
Uma decisão por Jesus Cristo significa salvação completa—vida eterna (Jo 5:24), e
Ele está sempre pronto para ajudar (Hb 4:15-16; 7:25; 1Jo 2:1; 1:8-9). O seguinte resume
as quatro principais funções de Jesus Cristo como nosso Intercessor. Primeiro, no
retorno de Jesus Cristo ao céu, Ele e o Pai celestial se reuniram para ajudar os humanos

37
Ellen G. White, Testimonies to Ministers and Gospel Workers (Nampa, ID: Pacific Press, 1962), 431;
White, Early Writings (Washington, DC: Review and Herald, 1945), 86; idem, Great Controversy, 615, 623.
38
White, Patriarchs and Prophets, 352.
39
Ellen G. White, That I May Know Him (Hagerstown, MD: Review and Herald, 1964), 78.
40
Ellen G. White, Faith and Works (Nashville, TN: Southern Publishing, 1979), 22.

188
em suas lutas diárias contra o mal. O primeiro resultado tangível dessa reunião em nome
da humanidade é que o Espírito Santo é dado aos crentes - veja Atos 2. Todo o céu está
unido para ajudar os crentes em suas lutas contra o pecado, Satanás e a tentação (Jo
15:5; Fl 4:13). Jesus ora por Seus filhos (Jo 17; Lc 22:32). Eles são cobertos pela vida
perfeita de Cristo e pelo sacrifício expiatório e são capacitados por meio de Seu poder
para testemunhar a outros. Segundo, Jesus Cristo salva completamente e se identifica
com Seus filhos quando eles entregam suas vidas a Ele (Zc 2:8; Mt 25:40, 45; At 9:4-6).
Jesus Cristo salva, justifica, santifica e transforma os crentes à Sua imagem (Zc 3:1-7).
Por causa de Sua bondade (Rm 2:4; Ef 1:7) Seus filhos se identificam com Ele (Rm 6:1-4;
Ef 2:4-10). Terceiro, o ministério intercessor de Cristo transforma Seus seguidores à Sua
semelhança; eles crescem Nele e em Sua graça, e se tornam cada vez mais semelhantes
a Ele (2Co 3:18; Cl 1:25-28; 2Pe 1:3-4; 3:18). Finalmente, Jesus Cristo justifica Seus filhos
contra as acusações de Satanás (Ap 12:10-12; Jó 1:8-9; 2:4; 42). Ele se levanta
pessoalmente contra eles; e porque Ele é o vencedor, a vitória de Seus filhos está segura
nEle quando eles O aceitam como o Senhor de suas vidas.
Conhecendo esta magnífica obra de Jesus Cristo “para” e “em” cada indivíduo, não
se pode fazer outra coisa senão dar-Lhe glória. A doxologia é a única resposta adequada
à Sua bondade: “Ora, àquele que é poderoso para fazer infinitamente mais do que tudo
quanto pedimos ou pensamos, segundo o seu poder que opera em nós, a esse seja a
glória na igreja e em Cristo Jesus. por todas as gerações, para todo o sempre! Amém”
(Ef 3:20-21).

189
CAPÍTULO 12
UNIDOS PARA SEMPRE NO NOVO CÉU E NA NOVA
TERRA DE DEUS
Roy E. Gane

O registro canônico da Bíblia começou com a criação impecável de Deus na Terra


firmada (Gn 1-2). Depois veio a deslealdade dos primeiros humanos ao não observarem
um limite estabelecido por seu Criador, o que precipitou um conjunto de consequências
devastadoras, culminando na morte, que os afligiria e as gerações subsequentes. Essas
consequências incluem afastamento da presença divina, falta de harmonia entre as
pessoas, dor, trabalho exaustivo para a sobrevivência, bem como sofrimento e morte
em todo o mundo natural que Deus criou como domínio da raça humana (Gênesis 3; cf.
Rm 5:12, 14, 17-19; 8:19-23). No entanto, Deus prometeu a destruição final da fonte do
mal, a saber, aquele que enganou Adão e Eva e os levou ao pecado (Gn 3:15). Isso
implicava que Deus desfaria os efeitos do mal e restauraria a perfeição de Sua Criação
para que o fim fosse como o começo.1
Os últimos capítulos da Bíblia profetizam o cumprimento final da promessa divina
de libertação: Satanás, seus seguidores, a morte e todo o mal serão destruídos
(Apocalipse 20), e então Deus recriará nosso mundo (Apocalipse 21- 22). Esta destruição
e recriação espelham com o início da Criação e a Queda em ordem quiástica:
A. Criação (Gênesis 1-2)
B. Cair no Mal (Gênesis 3)
B'. Destruição do Mal (Apocalipse 20)
A'. Nova Criação (Apocalipse 21-22)
O quiasma não é meramente uma construção literária. O mal, incluindo os seres
malignos que mancharam a Criação original, devem ser removidos antes que Deus faça
a Nova Criação. Quando Pedro se referiu ao “período de restauração [apokatastásis] de
todas as coisas sobre as quais Deus falou pela boca de Seus santos profetas desde os
tempos antigos” (At 3:21),2 ele não quis dizer que todos os seres humanos ou angélicos
seriam restaurados. Isso fica claro pelo fato de que os “santos profetas”, citados por
Pedro, não ensinavam a salvação universal, mesmo em seus escritos escatológicos (cf.

1
T. Desmond Alexander, From Eden to the New Jerusalem: An Introduction to Biblical Theology (Grand
Rapids: Kregel, 2008), 14.
2
A menos que indicado de outra forma, todas as citações bíblicas são retiradas da NEW AMERICAN
STANDARD BIBLE®, Copyright © 1960, 1962, 1963, 1968, 1971, 1972, 1973, 1975, 1977, 1995 pela The
Lockman Foundation. Usado com permissão. O itálico nas citações das Escrituras reflete a ênfase
adicionada pelo autor.

190
Is 66:24). Além disso, Pedro subsequentemente se referiu à destruição total daqueles
que não atenderam a Jesus (At 3:22-23; cf. Dt 18:15,18-19). Pedro pregou que as pessoas
precisavam se arrepender (At 3:19; cf. v. 26) para serem salvas (cf. 2:21, 38-40). Assim,
ele entendeu o ensino bíblico de destinos duplos: vida para aqueles que aceitam a
salvação por meio de Cristo e morte para aqueles que persistem na rebelião (cf., por
exemplo, Jo 3:16-18; Rm 6:23).3 O cosmos restaurado, com tudo e todos nele, será
perfeito de acordo com o plano original do Criador – após a remoção de todo mal.
Entre os finos suportes de livros de Gênesis 1-3 e Apocalipse 20-22, o resto da Bíblia
trata da luta épica de Deus para libertar a terra do mal a fim de cumprir seu plano para
ela. Assim como o reino do mal começou com uma fratura do relacionamento entre os
humanos e seu Criador, a Nova Criação deve começar com o difícil processo de
reconciliação relacional divino-humano para reintegrar o planeta Terra na comunidade
do universo de Deus nos níveis corporativo e individual (2Co 5:17-21). Seguem-se outros
aspectos da reconciliação (humano-humano) e da cura física.
Uma palavra comum em inglês para a base divinamente fornecida da reconciliação
é expiação, etimologicamente derivada de “at-one-ment” (ou seja, reintegração). Vastas
quantidades de pesquisas acadêmicas têm sido dedicadas ao processo de expiação
através da morte de Cristo, que é equivalente à morte de todos os humanos como
penalidade pelo pecado (Rm 6:23; 2Co 5:14), porque Ele é o Criador/Pai de todos (Is 9:6
[Hb. v. 5]; Lc 3:38; Jo 1:1-3, 14; Hb 1:2), e, portanto, todos estão Nele (cf. Hb 7:9-10). No
entanto, relativamente pouca atenção tem sido dada ao objetivo final da expiação: um
estado de harmonia eternamente reintegrado e restaurado com Deus e toda a Sua
Criação.4 Este é o tópico do presente capítulo.
Para discutir o objetivo da expiação, o escopo dessa palavra deve ser delineado para
determinar o que deve ser reintegrado e restaurado. Os cristãos tendem a pensar na
expiação principalmente em termos do que Cristo realizou por meio de Sua morte na
cruz para tornar possível a Deus perdoar os pecados da humanidade (1Jo 2:2; 4:10), e
secundariamente como a eficácia simbólica dos sacrifícios de animais israelitas que
tipologicamente prefiguravam e ensinavam sobre o sacrifício de Cristo, “o Cordeiro de
Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1:29). Nos textos do Antigo Testamento sobre
sacrifícios de animais, “fazer expiação” é uma tradução comum do verbo hebraico
kipper. No entanto, esta renderização é imprecisa. Em contextos de interação divino-
humana, kipper denota a remoção de um impedimento ao relacionamento (NJPS Lev.
4:20, 26, 31: “fazer expiação”) que é necessário antes da conclusão da reconciliação.

3
O termo apokatastasis (muitas vezes transliterado apocatastasis), que aparece em Atos 3:21 no sentido
de “restauração”, está associado ao ensino da salvação universal na teologia patrística, especialmente de
Orígenes (c. 185-251 dC). Veja John R. Sachs, “Apocatastasis in Patristic Theology,” Theological Studies 54
(1993): 617-40.
4
Veja, por exemplo, Daegeuk Nam, “The New Earth and the Eternal Kingdom”, em Handbook of Seventh-
day Adventist Theology, ed. Raoul Dederen (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2000), 947-968 e o
breve mas útil tratamento de Roy Adams, The Sanctuary: Understanding the Heart of Adventist Theology
(Hagerstown, MD: Review and Herald, 1993), 146- 148.

191
Assim, o que o kipper realiza é mais limitado do que “fazer expiação” indicaria, visto que
a expiação se refere à reconciliação como um todo, que também incluiria o perdão.5
Como o kipper representa um passo crucial no processo de reconciliação, seu uso é
instrutivo em relação ao escopo da expiação. O sentido básico de kipper não inclui
substituição. Em vez disso, alguém realiza kipper para a comunidade destruindo aqueles
que perturbam o relacionamento entre Deus e Seu povo (Nm 25:13). Nesse sentido, a
destruição final daqueles que persistem na rebelião contra Deus (Apocalipsed 20) pode
ser considerada como o kipper que purifica a comunidade cósmica.6
A substituição acrescenta uma dinâmica especial: uma parte inocente morre no
lugar dos pecadores. O sistema sacrificial israelita ilustra isso: O sangue de uma vítima
animal aplicado ao altar de Deus resgatou a vida daquele que trazia o sacrifício (Lv
17:11).7 A vida de um animal possuído por um humano não era realmente um substituto
adequado para vida humana (Hb 10:1-4, 11; cf. Sl 49:7-8 [Hb vv. 8-9]), mas oferecê-la
significava aceitação pela fé do sacrifício de Cristo em última análise eficaz (Hb 10:5-18).
Aqueles que aceitam (agora sem sacrifício animal) o sacrifício do divino Cordeiro de Deus
são resgatados para desfrutar a vida eterna no novo céu e nova terra (Ap 5:6-14; 21:22-
27; cf. Jo 1: 29; 3:16).
O substititucional kipper por meio de sacrifícios de animais apontando para o
sacrifício de Cristo remediou dois tipos básicos de problemas:8
Primeiro, era relacional. Dessa maneira kipper poderia servir como um pagamento
simbólico de “dívida” para compensar falhas morais (ou seja, ações pecaminosas) que
prejudicaram o relacionamento divino-humano, pré-requisito para o perdão divino (Lv
4:20, 26, 31).
Em segundo lugar, era físico. Kipper sacrificial poderia fornecer purificação da
impureza ritual física severa (Lv 12:7-8; 14:19), que tinha que ser mantida longe da
esfera de santidade ligada ao Deus da vida (7:20-21; 15:31), porque a impureza
representava o ciclo do nascimento à morte de decadência física e mortalidade (ou seja,
o estado de pecaminosidade) que resulta da ação pecaminosa (Rm 6:23).9 Kipper
também poderia simbolizar a remoção de um agente de deterioração, análogo à
impureza física humana, que afetou uma casa (ou seja, no ambiente humano; Lev.
14:53).

5
Roy Gane, Cult and Character: Purification Offerings, Day of Atonement, and Theodicy (Winona Lake, IN:
Eisenbrauns, 2005), 194.
6
Cf. kipper no bode de Azazel (Lv 16:10), que representa Satanás, que carrega sua própria
responsabilidade com relação aos pecados do povo de Deus; veja Roy Gane, Leviticus, Numbers, NIV
Application Commentary (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2004), 290-291, 295-297.
7
Cf. ibid., 302-304.
8
Gane, Cult and Character, 49-50,198-202.
9
Hyam Maccoby, Ritual and Morality: The Ritual Purity System and Its Place in Judaism (Cambridge:
Cambridge University Press, 1999), 49; cf. especialmente 31-32, 48, 50, 207-208; Gane, Cult and
Character, 201.

192
À luz do escopo dos efeitos do sacrifício de Cristo refletidos por essas funções de
kipper sacrificial, este capítulo analisa o resultado da expiação no novo céu e nova terra
para (1) relacionamentos divino-humano e humano-humano, e (2) relacionamentos
físicos. condições do homem e de seu ambiente. Cada seção explora evidências para o
objetivo da expiação de Apocalipse 21-22 e outras passagens escatológicas, juntamente
com evidências indiretas de comparação com a ordem inicial da Criação e o que mudou
na Queda (especialmente Gênesis 1-3).
RESTAURAÇÃO RELACIONAL E RECONCILIAÇÃO COM DEUS
Em Escatologia
Apocalipse 21:3 anuncia o estado restaurado das relações divino-humanas: “Eis que
o tabernáculo de Deus está entre os homens, e ele habitará entre eles, e eles serão o
seu povo, e o próprio Deus estará entre eles”. O versículo 7 enfatiza essa ideia com
linguagem de adoção para indivíduos que venceram na batalha contra o mal: “Eu serei
seu Deus e ele será meu filho”.10 Paulo descreve como esta vitória é alcançada pelos
filhos de Deus, permitindo que o Espírito os controlem (Rm 8:6, 9). O Espírito que vive
neles traz vida e os torna filhos de Deus, herdeiros de Deus (Rm 8:11, 15-17). A unidade
expressa em Apocalipse 21 culmina na realização do princípio “Emanuel” (“Deus está
conosco”) que une as fases sucessivas da aliança divina ao longo da história da salvação
(por exemplo, Gn 17:7-8; Êx 25: 8; Is 7:14; Jr 31:33).11
A restauração da unidade divino-humana, que Adão e Eva inicialmente
desfrutaram, mas depois perderam, foi prefigurada pela residência da presença de Deus
entre Seu povo escolhido no santuário/templo israelita (Êx 25:8).12 A diferença é que a
Nova Jerusalém “não precisa de templo nela, pois o Senhor Deus Todo-Poderoso e o
Cordeiro são o seu templo” (Ap 21:22). A questão não é que Deus ficará sem lar; de fato,
Apocalipse 7:15 diz que aqueles que são salvos servirão a Deus “no Seu templo”. Mas
na Nova Jerusalém não haverá necessidade de um templo no sentido de um lugar de
acesso restrito, incompleto e mediado a Deus que permitiria a interação com Ele por
pessoas defeituosas e mortais de tal forma que não seriam consumidas por Sua glória
revelada (Êx 33:20; Lv 16:2; Hb 12:29). Livre do pecado e da consequente mortalidade,
o povo de Deus desfrutará de pleno acesso a Ele: “verão o Seu rosto, e nas suas testas
estará o Seu nome (Ap 22:4). Assim como o Cristo encarnado, o “Cordeiro de Deus” (Jo
1:29), habitou entre os humanos (1:14) como um templo (Jo 2:19-21), sem barreiras
entre Ele e eles, assim o glorificado Cordeiro e “o Senhor Deus Todo-Poderoso” (Ap
21:22) servirão como foco irrestrito de adoração para Seu povo glorificado.
O fato de o povo de Deus habitar com Deus dentro da Nova Jerusalém, que é uma
cidade santa (Ap 21:2, 10), indica que eles serão santos como Ele é santo. Há muito
tempo, Deus ordenou ao Seu povo da aliança que O imitasse em santidade (o que requer

10
Apoc. 21:7. Cf. Oseias 1:10; 2:23; contraste com a linguagem de rejeição em 1:9.
11
Cf. O. Palmer Robertson, The Christ of the Covenants (Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed,
1980), 45-46.
12
Cf. Alexander, From Eden to the New Jerusalem, 20-25,190-91.

193
pureza) vivendo de acordo com seus princípios (Lv 11:44-45; 19:2; 20:26) porque eles
deveriam ser “um reino de sacerdotes e uma nação santa” (Êx 19:6; cf. 1Pe 2:9). Mas a
santidade iniciada por Deus dos habitantes da Nova Jerusalém e seu acesso a Deus serão
maiores. O fato de suas vestes brancas serem purificadas pelo sangue do Cordeiro (Ap
7:13-14) os qualifica para o serviço sacerdotal no templo de Deus “dia e noite” (v. 15).
Há várias indicações de que toda a sua cidade constituirá um espaço especialmente
sagrado e, nesse sentido, servirá como um templo – uma cidade-templo.
Primeiro, toda a Nova Jerusalém será uma cidade-templo, correspondendo ao
santo dos santos no templo israelita, pois “seu comprimento, largura e altura são iguais”
(Ap 21:16; cf. 1Reis 6:20). Isso implica que seu povo habitará no equivalente
escatológico do santo dos santos, como confirmado pelo fato de que “o trono de Deus
e do Cordeiro estará” na cidade (Ap 22:3). Considerando que apenas o sumo sacerdote
israelita tinha permissão para entrar no compartimento santíssimo do santuário, onde
a Presença divina era entronizada, e apenas uma vez por ano no Dia da Expiação e com
rituais especiais (Lv 16), todo o povo de Deus será capaz de manter um nível de
proximidade com Ele que teria sido letal para ele antes de sua glorificação.13
Segundo, o principal material da Nova Jerusalém é o ouro (Ap 21:18, 21), o metal
que cobria o interior do tabernáculo e seus móveis (Êx 25; 26:29; cf. 1Re 6:20- 22, 28,
30).
Terceiro, doze tipos de pedras preciosas que adornam as pedras fundamentais da
muralha da cidade, nas quais estão os nomes dos doze apóstolos (Ap 21:14,19-20), são
uma reminiscência de doze tipos de joias montadas no peitoral dos sumos sacerdotes,
que foram gravados com os nomes das tribos de Israel, de modo que ele levou seus
nomes sobre seu coração (Êx 28:17-21, 29). É como se a cidade inteira constituísse um
peitoral maciço no coração de Deus para significar Seu amor por Seu povo, representado
pelos apóstolos.
Quarto, os nomes das doze tribos estão escritos nas doze portas da cidade, três
portas em cada uma das quatro direções (Ap 21:12-13; cf. Ez 48:30-34), assim como três
tribos em cada uma das quatro direções estavam acampados ao redor do santuário de
Deus no deserto (Números 2).
Quinto, um anjo postado em cada portão da cidade (Ap 21:12) lembra os querubins
que Deus designou para barrar Adão e Eva da entrada do Jardim do Éden, que era como
a santa Nova Jerusalém, pois continha a árvore da vida (Gn 3:24). Em contraste, no
entanto, os anjos na Nova Jerusalém representam a segurança contínua dos humanos
dentro de seu espaço sagrado, mesmo depois que todas as ameaças das forças do mal
foram eliminadas (Ap 21:8; cf. Ap. 20) para que seus portões sempre possam
permanecer abertos (Ap 21:25; contraste Ez 44:2). Há muito mais na nova terra do que
a capital do Rei divino, mas os nomes das tribos (representando o povo de Deus) em

13
Fiorenza, Beale, and Mounce, quoted in Ranlco Stefanovic, Revelation of Jesus Christ: Commentary on
the Book of Revelation (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 2002), 588, 600; cf. Alexander,
From Eden to the New Jerusalem, 20,139.

194
seus portões indicam que a cidade é deles (cf. Nm 17:2-3 [Hb vv 17-18]) e têm o direito
de entrar lá a qualquer hora que quiserem e desfrutar de acesso à árvore da vida (Ap
22:2,14). A maldição que por tanto tempo os afastou de Deus e os manteve longe da
fonte da vida eterna (Gênesis 3) desaparecerá (Ap 22:3), removida pelo perdão de Cristo
(Rm 5:1-2), e pelo Espírito de Cristo vivendo neles (Rm 8:9), e pela redenção de seus
corpos (Rm 8:22-23).
Sexto, “nada impuro, e ninguém que pratique abominação e mentira, jamais
entrará” na cidade (Ap 21:27).14 A impureza é excluída do espaço sagrado, porque a
santidade, ligada ao Criador da vida, e a impureza, associada ao domínio da morte, são
antitéticas.15 A impureza não deve ser permitida para contaminar coisas que pertencem
à esfera sagrada centrada no santuário (cf. Lv 15:31) a fim de proteger a reputação de
Deus de associação com o estado de mortalidade, que resulta da ação pecaminosa (Rm
6:23). Assim, os israelitas foram proibidos de entrar em contato com coisas sagradas
enquanto estivessem em estado de impureza ritual física (por exemplo, Lv 7:20-21) e
indivíduos seriamente impuros foram enviados para fora do acampamento no deserto,
onde Deus habitava no meio deles em Seu santuário (Nm 5:1-4). O fato de Apocalipse
21:27 se referir àqueles que praticam abominação e mentira, em oposição àqueles
“cujos nomes estão escritos no livro da vida do Cordeiro”, implica que a impureza em
vista aqui é de natureza moral e não de ritual física. Na lei do Pentateuco, impurezas
morais que resultam de ações pecaminosas graves (por exemplo, imoralidade sexual,
idolatria, assassinato), em vez de estados físicos, são irremediáveis e, em última análise,
levam ao exílio da Terra Prometida (Lv 18, 20, 26; Nm 35:31-34).16 Em Cristo, até mesmo
esses pecados são perdoados para aqueles que desejam Seu perdão (Jr. 31:34; 1Co 6:11;
Rm 5:1, 6). No Apocalipse, aqueles que se recusam a abandonar as impurezas morais
que os separam de Deus, que conscientemente se apegam ao pecado acariciado e
recusam absolutamente o perdão de Cristo, serão irrevogavelmente barrados da última
Terra Prometida, o novo céu, a nova terra e o Novo Jerusalém.
Sétimo, Apocalipse 22:1-2 profetiza sobre o habitat da Nova Jerusalém para a
humanidade:
Então ele me mostrou um rio da água da vida, claro como cristal, vindo do trono de Deus e
do Cordeiro, no meio de sua rua. De cada lado do rio estava a árvore da vida, que produz
doze tipos de frutos, dando seu fruto todo mês; e as folhas da árvore eram para a cura das
nações.

Esses versículos fazem alusão a Ezequiel 47:1-12, que prediz que a água fluiria para
o leste sob o limiar de um futuro templo ideal. O volume de água cresceria para se tornar

14
Cf. a pureza de toda a escatológica Cidade do Temple Scroll from Qumran, 11Q19. No entanto, a
preocupação neste texto é com a exclusão da impureza ritual física; veja Hannah K. Harrington, The
Impurity Systems of Qumran and the Rabbis: Biblical Foundations, SBL Dissertation Series 143 (Atlanta:
Scholars Press, 1993), 55-58.
15
Jacob Milgrom, Leviticus 1-16, Anchor Bible 3 (New York: Doubleday, 1991), 731-3.
16
Jacob Milgrom, Leviticus 17-22, Anchor Bible 3A (New York: Doubleday, 2000), 1326; Jonathan Klawans,
Impurity and Sin in Ancient Judaism (Oxford: Oxford University Press, 2000), especially 21-31; Jay Sklar,
Sin, Impurity, Sacrifice, Atonement: The Priestly Conceptions (Sheffield: Sheffield Phoenix Press, 2005),
139-53.

195
um rio vivificante. “À beira do rio, de um lado e do outro, crescerá todo tipo de árvores
para alimentação. Suas folhas não murcharão e seus frutos não falharão. Eles darão
todos os meses, porque a sua água flui do santuário, e o seu fruto será para alimento e
as suas folhas para cura” (v. 12). A fonte da água em Ezequiel é a residência do templo
de Deus; em Apocalipse é o lugar da entronização divina na cidade santa onde Deus
habita com Seu povo.17
O reino eterno (Ap 22:5) do povo dependente de Deus sobre o domínio perdido (Gn
1:26-28) que Cristo reclama para eles (Dn 7:13,14,18,22, 27; Ap 3:21), que eles herdam
como filhos de Deus (Ap 21:7), estarão sempre sob Sua soberania suprema e eles O
servirão (Ap 7:15; 22:3). “O seu nome estará nas suas testas” (22:4; cf. 14:1), significando
que eles pertencem a Ele. Mas o fato de que “eles verão a Sua face” (Ap 22:4; ou seja,
terão acesso à sua presença) significa que eles serão servos de alto escalão em Seu reino
(cf. 2Re 25:19; Et 1:14—literalmente, “aqueles que veem a face do rei”).
O serviço humano a Deus sempre será voluntário. Ele salva os seres humanos,
primeiro fortalecendo sua liberdade de escolha. Sem essa liberdade, eles não poderiam
amá-Lo.18 Aqueles que “seguem o Cordeiro aonde quer que Ele vá” (Ap 14:4; cf. 7:17) o
farão na nova terra porque criaram o hábito de depender dEle. antes da erradicação do
pecado. Fortalecidos pela graça (Rm 5:20-21) e cheios do Espírito (1Co 3:16), eles terão
se mantido “castos” (Ap 14:4), totalmente honestos e irrepreensíveis (v. 5).19 Apesar dos
desafios extremos (“grande tribulação”), os salvos “lavaram as suas vestes e as
alvejaram no sangue do Cordeiro” (7:14). É evidente que a lei do amor de Deus (Mt
22:37-40) está em seus corações, colocada ali pelo próprio Deus (Jr 31:33), porque eles
O amam de todo o coração, alma e força (Dt. 6:5). O fato de não pecarem mais não
significa que não haja espaço para mais crescimento moral; seu amor por Ele e por
outros seres criados se expandirá por toda a eternidade à medida que aprenderem e
experimentarem mais de Sua graça.
Por Comparação com a Ordem do Início da Criação e a Queda
O fato de que a Nova Criação restaura o que foi perdido na Queda (Gênesis 3) implica
que a humanidade pode aprender sobre o cenário escatológico do protológico. No
mundo perfeito anterior, Deus criou os primeiros humanos à Sua imagem para exercer
domínio benevolente como Seus representantes (1:26-28). Eles trabalhariam para
manter a ordem em seu jardim (2:15), mas não para fornecer comida laboriosamente
para a sobrevivência (contraste 3:17-19). Eles tinham permissão para comer livremente

17
Cf. água que flui de Jerusalém no versículo 8 do oráculo escatológico de Zacarias 14.
18
Cf. Gregory A. Boyd, Satanás e o Problema do Mal: Construindo uma Teodicéia de Guerra Trinitária
(Downers Grove, IL: IVP Academic, 2001), 50-57. No entanto, Boyd também aponta que Deus estabeleceu
limites para a capacidade de Suas criaturas angélicas e humanas de continuar exercendo a liberdade de
se rebelar contra ele, Boyd, God at War: The Bible & Spiritual Conflict (Downers Grove, IL: InterVarsity,
1997) , 287.
19
Cf. o Servo Sofredor (Cristo) de Isaías 53, que foi morto como um cordeiro e não havia engano em sua
boca (w. 7-9).

196
da “árvore da vida” (2:9,16), podiam estar na presença imediata de Deus (vv. 19-22) e
não precisavam de roupas para evitar vergonha (v. 25).
O fato de que Deus se encontrou com eles em sua casa no Éden e nela continha a
árvore da vida (como a santa Nova Jerusalém em Apocalipse) indica que o Éden era um
espaço sagrado. Como o templo de Ezequiel e a Nova Jerusalém, havia um rio fluindo
dela (v. 10).
A única restrição ao primeiro casal foi a proibição de comer o fruto de uma certa
árvore (Gn 2:17; 3:3). Quando foram enganados para a desobediência, experimentaram
vergonha de sua nudez e temor de Deus (3:7-10). Quando Deus confrontou Adão, o
homem culpou indiretamente a Deus, que lhe dera sua esposa (vv. 11-12). A relação
divino-humana foi fraturada. Adão e Eva moralmente impuros não poderiam mais se
beneficiar da árvore da vida ou desfrutar da presença de Deus no santo Éden (vv. 23-
24). Além disso, o planeta Terra ficou sob o controle destrutivo de Satanás, o poderoso
ser caído que usurpou o domínio humano ao enganar nossos primeiros pais para segui-
lo (Ap 12:7-9), estabelecendo-se assim como o governante deste mundo (Jo 12:31). Os
humanos eram agora controlados pelo caos e pela alienação em relação a si mesmos,
aos outros e a Deus, e isso os afetava física, social e espiritualmente.20
À luz de Gênesis 1-3, a restauração da plena harmonia e felicidade ao final do
processo de expiação exigiria primeiro a cura do distanciamento entre os humanos e
seu Criador. Este processo é iniciado por Deus por causa de Seu grande amor e
misericórdia (Gl 3:15-16; Ef 2:4-5). Requer humilde admissão de culpa e um remédio
divinamente provido para o pecado, culpa, vergonha e medo (cf. Rm 5; 1Jo 1:9). Aqueles
que aceitassem o remédio poderiam retornar à presença de Deus e à árvore da vida no
espaço santo, e recuperariam o domínio perdido da terra. O processo de expiação
realiza todas essas coisas, culminando em Apocalipse 21-22. No entanto, o novo paraíso
é uma cidade e não um jardim, não há árvore proibida e seus ocupantes são inúmeros
descendentes de Adão e Eva, e não apenas o casal original. Como Desmond Alexander
aponta, “enquanto Endzeit [o fim] se assemelha a Urzeit [o começo], há progressão.
Enquanto Gênesis apresenta a terra como um potencial local de construção, Apocalipse
descreve uma cidade acabada.”21
RECONCILIAÇÃO COM OS HUMANOS
Em escatologia
Há vários indícios de que as relações entre os humanos na nova terra serão
harmoniosas. Na Nova Jerusalém não haverá encrenqueiros – “covardes, incrédulos,
abomináveis, assassinos, imorais, feiticeiros, idólatras e todos os mentirosos” – porque
eles terão sido destruídos (Ap 21:8; cf. Ap 20; 21:27; 22:15). Haverá uma grande

20
Graham McFarlane, “Atonement, Creation and Trinity,” in The Atonement Debate: Papers from the
London Symposium on the Theology of Atonement, eds. Derek Tidball, David Hilborn, and Justin Thacker
(Grand Rapids, MI: Zondervan, 2008), 196-197.
21
Alexander, From Eden to the New Jerusalem, 14. Parece também que enquanto Adão e Eva estavam
nus antes da queda (Gn 2:25), os humanos salvos na nova terra usarão roupas (Ap 7:9).

197
diversidade de nações e grupos étnicos (5:9; 21:24, 26), mas não haverá conflitos ou
racismo; todos viverão juntos em paz sob o governo do “Príncipe da Paz” (Is 9:6-7 [Hb
vv. 5-6]). O fato de que os portões da Nova Jerusalém nunca serão fechados mostra que
não haverá perigo de ataque (Ap 21:25). Os muros e portões maciços, com um anjo
posicionado em cada portão, significam a grandeza e segurança absoluta da capital real
do onipotente Rei divino, cuja presença fornece proteção final (cf. Zc 2:5), mas todas as
ameaças terão sidos vencidas (Apocalipse 20).
Não haverá maus vizinhos lá. Todos na cidade terão profundo amor por Cristo em
apreço pelo que Ele fez por eles. Perdoados e capacitados por Deus, eles permitiram
que Deus transformasse seu caráter. Eles são “aqueles cujos nomes estão escritos no
livro da vida do Cordeiro” (Ap 21:27), que voluntariamente pertencem a Deus (22:4),
porque sentiram sua necessidade de Sua graça gratuita (21:6; 22:17). Eles não são
“covardes e incrédulos” (21:8), mas venceram pela fé (v. 7).22 Justiça e santidade
envolvem guardar a lei do amor de Deus em todos os relacionamentos e interações,
tanto para com Ele como para aqueles a quem Ele criado (cf. 1 Ts 3:12-13).
Por Comparação com a Ordem do Início da Criação e a Queda
A sociedade humana começou com a criação de Eva e seu casamento com Adão. O
primeiro casal foi unido como “uma só carne” (Gn 2:24) à imagem de Deus para
igualmente co-governar a terra (1:26-28).23 Mas quando Adão admitiu comer o fruto
proibido, ele culpou diretamente sua esposa: “A mulher que me deste para estar
comigo, ela me deu da árvore, e eu comi” (3:12). A feliz harmonia no lar se foi; o
arrebatamento deu lugar à ruptura do relacionamento. Como parte do resultado
negativo de levar seu marido ao pecado (cf. v. 6), Deus a informou: “Contudo, o teu
desejo será para o teu marido, e ele te dominará” (v. 16). O casamento permaneceu,
mas a plena igualdade pretendida por Deus foi destruída. Esta não era uma ordem em
si, mas uma descrição de uma nova situação que a mulher enfrentaria em um mundo
caído.
O Big Bang da Queda destruiu as relações humanas. À culpa foi acrescentado ao
assassinato (Gn 4:8, 23) e muitos outros tipos de males morais. Já em Gênesis 6:5, a
avaliação de Deus sobre a humanidade é irremediavelmente negativa: “toda a intenção
dos pensamentos de seu coração era apenas má continuamente”
A cura divina dos relacionamentos humanos, que é absolutamente necessária para
o povo de Deus (cf. Ml 4:5-6; Ef 4:32), requer restauração do amor altruísta em harmonia
com Seu caráter de amor (1Jo 4:8), como demonstrado por Cristo (Jo 13:34; 15:12).
Cristãos que recebem amor divino em seus corações por meio do Espírito Santo (Rm
5:5), de modo que a lei do amor de Deus por Ele e por outras pessoas (Mt 22:37-40) está
escrita em seus corações (Jr 31:33), pode percorrer um longo caminho para realizar o

22
Cf. 2 Pedro 3:13 – “Mas, segundo a sua promessa, ansiamos por novos céus e nova terra, nos quais
habita a justiça”.
23
Sobre a plena igualdade dos sexos na Criação, veja Richard M. Davidson, Flame of Yahweh: Sexuality
in the Old Testament (Peabody, MA: Hendrickson, 2007), 22-35.

198
ideal da Criação para as relações humanas. Isso inclui o desfrute de um casamento
igualitário e fortemente unido que representa a imagem do Deus trino (cf. Jo 17:21-23;
Cl 1:19; 2:9). Mas a renovação completa da sociedade humana aguarda o eschaton,
quando o pecado e sua maldição e tentação serão removidos por Deus (Ap 20; 21:8, 27;
22:3,15) e a tristeza não existirá mais (21:4).
RESTAURAÇÃO FÍSICA
Em escatologia
Apocalipse 21 começa com a impressionante observação: “Vi um novo céu e uma
nova terra; porque o primeiro céu e a primeira terra passaram, e já não há mar” (v. 1).
Isto é nada menos que uma Nova Criação total do planeta Terra e sua atmosfera após a
destruição de todo mal, decadência e contaminação (Apocalipse 20). Ao contrário de
Gênesis 1-2, Apocalipse 21 não descreve o processo; ele simplesmente anuncia o
resultado. Em Gênesis 1, os mares permaneceram após o aparecimento da terra seca (v.
10), mas a nova terra escatológica não terá mar para separar e reduzir as áreas
habitáveis de seus habitantes terrestres. A multidão de pessoas salvas (Ap 7:9) será
capaz de se espalhar, e Deus tem muitas moradas para todos (João 14:2).
Na Nova Jerusalém, a glória divina fornecerá luz do dia constante (sem vida noturna
urbana ou perigo após o anoitecer!), sem necessidade de luz do sol ou da lua (Ap 21:23,
25; 22:5). Isso não significa que o sol ou a lua deixarão de existir ou que seus ciclos de
luz dia-noite não ocorrerão em nenhum outro lugar da terra (cf. 7:15 — “dia e noite”).
Em vez disso, o ponto é enfatizar o brilho e a permanência da Presença de Deus. Dias,
semanas e meses continuarão, conforme indicado pelo fato de que luas novas e sábados
serão momentos especiais de adoração (Is 66:23; cf. Ap 22:2 sobre o ciclo mensal da
árvore da vida).24
Deus transformará a experiência de vida de Suas criaturas, que foi devastada pela
Queda. Depois que o mal e a morte forem finalmente erradicados (Ap 20:9-10, 14-15),
todo o sofrimento físico e emocional anterior (fome, sede, abrasamento do sol, calor
excessivo, lágrimas, luto, choro, dor) ter ido para a nova terra (7:16-17; 21:4). Este será
o cumprimento final da profecia de Isaías de “novos céus e uma nova terra”, onde “as
coisas anteriores” nem serão lembradas, mas serão substituídas por alegria, vida longa,
satisfação, segurança, bênção e paz (Is 65:17-25).25 Em Apocalipse 7, o fato de que as

24
Cf. Emmanuel Uchenna Dim, The Eschatological Implications of Isa 65 and 66 as the Conclusion of the
Book of Isaiah, Bible in History (Bern: Peter Lang, 2005), 196, on Isaiah 66:23 —“Assim, como a primeira
criação culminou em a instituição do sábado (Gn 2,2-3), assim esta nova criação culminará na observância
reforçada do mesmo sábado”.
25
A profecia apocalíptica do Apocalipse, na qual há uma ruptura mais definitiva entre a era presente e a
próxima, vai além de Isaías, onde a vida longa não exclui a morte (Is 65:20; neste versículo, veja Dim, The
Escatological Implications, 107-110). No primeiro plano histórico, Isaías 65-66 parece fornecer
hiperbolicamente a esperança de uma grande renovação de Judá após o exílio babilônico. Por exemplo,
veja Daniel K. Bedialco, “Isaiahs ‘New Heavens and New Earth’ (Is 65:17; 66:22)”, Journal of Asia Adventist
Seminary 11.1 (2008): 1-20. No entanto, a linguagem da criação universal em Isaías 65:17-25 (com
afinidades com Gênesis 1) evoca uma imagem mais radical de transformação escatológica, incluindo a
recriação do cosmos. Por exemplo, veja Wann M. Fanwar, “Creation in Isaiah” (diss. de doutorado,

199
pessoas podem servir a Deus “dia e noite” (v. 15) também implica que não haverá mais
fadiga.
A ausência de morte não significa que a vida humana será independente de Deus,
o único que possui imortalidade inerente não emprestada (1Tm 6:16). Os seres humanos
glorificados continuarão a depender do Criador para seu sustento.26 O “rio da água da
vida... que vem do trono de Deus e do Cordeiro” (Ap 22:1) é para seu benefício (cf. Ap.
7:17; 21:6; 22:17), como é a “árvore da vida” que recebe a água divinamente provida,
que regularmente dá frutos para alimento e suas folhas são “para a cura das nações”
(Ap. 22:2; cf. Ez 47:12).27 O povo de Deus também receberá sua luz Dele (Ap 22:5).
O fato de que humanos glorificados precisarão de água e comida indica que eles
serão ressuscitados do “sono” temporário da primeira morte (Dn 12:2; 1Co 15:51; 1Ts
4:13-15) viver para sempre em forma corpórea, não com o presente corpo (soma)
natural/não espiritual (grego psuchikos) que se decompõe e morre, mas com o corpo
(soma) que é imortal porque é espiritual (pneumatikos; 1Co 15:44; cf. o contexto nos vv.
42-43, 45-54). O corpo é transformado (v. 52), mas a pessoa não se torna um espírito
desencarnado. O contraste de Paulo aqui é entre mortalidade versus imortalidade, não
entre material versus imaterial. Portanto, não há contradição com Lucas 24:39, onde o
estado pós-ressurreição de Jesus inclui “carne e ossos”.28 Interpretar aspectos da vida
na nova terra — água, árvore, frutas — como expressões metafóricas em vez de
entidades materiais criaria mais problemas do que resolveria. Se não existe um
verdadeiro “rio da água da vida” (Ap 22:1), a realidade do trono de Deus, de onde o rio
flui, ou a rua da cidade por onde ele flui (vv. 1-2) também será descontado? E a cidade
inteira em si, ou a nova terra? Esses elementos estão interligados e interdependentes,
e não há indicação textual de que sejam metáforas. “A cristandade ocidental herdou
uma visão alegórica do céu do platonismo de alguns de seus primeiros intérpretes, mas
o Novo Testamento enfatiza a ressurreição para a existência corporal, em última análise,
na nova terra.”29 “A terra pode ser purgada ou recriada, mas permanece 'a terra, não
um reino transcendente além dela.'”30
A “árvore da vida” na Nova Jerusalém parece ter a mesma função que a árvore com
o mesmo nome no Jardim do Éden: sustentar continuamente a vida (Gn 3:22; Ap 2:7;

Andrews University, 2001), 134-7. Sobre a aproximação de aspectos cronologicamente distintos, mas
espiritualmente relacionados em Isaías 65:17-25, veja John N. Oswalt, The Book of Isaiah: Chapters 40-66,
New International Commentary on the Old Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1998), 656-662.
26
Cf. Daniel 5:23 – “o Deus em cujas mãos estão o fôlego da sua vida e todos os seus caminhos”.
27
Sobre as possíveis explicações para esta função de “cura” das folhas em Apocalipse 22 (na nova terra,
onde o sofrimento se foi: 21:4) e seu pano de fundo em Ezequiel 47, veja, Alexander, From Eden to the
New Jerusalem, 156; Jacob Milgrom and Daniel I. Block, Ezekiel’s Hope: A Commentary on Ezekiel 38-48
(Eugene, OR: Cascade, 2012), 233; Stefanovic, Revelation of Jesus Christ, 585-593.
28
John C. Brunt, “Resurrection and Glorification,” in Handbook of Seventh-day Adventist Theology, 361-
362.
29
Craig S. Keener, Revelation, NIV Application Commentary (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2000), 502.
30
Ibid., 502n80, citando Norman Perrin, The Kingdom of God in the Teaching of Jesus (Philadelphia, PA:
Westminster, 1963), 69; cf. Nam, “A Nova Terra e o Reino Eterno”, no Manual de Teologia Adventista do
Sétimo Dia, 957. “The New Earth and the Eternal Kingdom,” in Handbook of Seventh-Day Adventist
Theology, 957.

200
22:2, 14). No Éden, as vidas perfeitas que deveriam ser sustentadas eram as de Adão e
Eva, cujos descendentes (nós) são baseados em carbono. Portanto, parece que os seres
humanos glorificados também terão corpos baseados em carbono. É verdade que Deus,
o Soberano da Nova Jerusalém, é intrinsecamente espírito imortal (Jo 4:24; 1Tm 6:15-
16) e, portanto, não depende de comida (por exemplo, Sl 50:13). No entanto, Ele pode
aparecer e interagir com aquelas de Suas criaturas que estão limitadas à forma corporal
(por exemplo, Gênesis 18).
O fato de que a perpetuação da vida humana dependerá da árvore da vida na Nova
Jerusalém (Ap 22:14) indica que qualquer um que não tenha acesso a ela morreria.
Portanto, o fato de que “fora estão os cães31 e os feiticeiros e os imorais e os assassinos
e os idólatras, e todo aquele que ama e pratica a mentira” (v. 15) significa que tais
indivíduos, que rejeitam a Deus, perecerão. Não há indicação de que suas vidas serão
sustentadas em um inferno eternamente ardente, para que os remidos testemunhem
suas contorções e suportem seus gritos ao longo das eras incessantes da eternidade.
Existem vários problemas importantes com a noção de um inferno sempre queimando:
1. Deus daria frutos da árvore da vida aos ímpios para mantê-los vivos no inferno? Se assim
for, isso contradiz o ensino bíblico de que somente aqueles que são salvos desfrutam do
direito a esse fruto (Ap 22:14). Considere Gênesis 3, onde Deus bloqueou os pecadores Adão
e Eva da árvore da vida precisamente para impedi-los de viver para sempre (vv. 22-24), e
como resultado, eles morreram (Gênesis 5:5 em relação à morte de Adão).

2. Em Apocalipse 20, o “lago de fogo” que destrói os ímpios cobre uma vasta área na
superfície da terra ao redor da Nova Jerusalém (vv. 8-10). Não há indicação em Apocalipse
21-22 de que o “lago” derretido permaneça como uma característica da nova terra.

3. Aqueles que são lançados no “lago de fogo” sofrem a “segunda morte”, que é a última
morte (Ap 20:14-15; 21:8). Portanto, eles morrem; eles não continuam vivendo eternamente
em miséria infernal. A linguagem do tormento eterno (20:10; cf. 14:10-11) significa que eles
são atormentados sem alívio até serem completamente queimados. Este fogo é “para
sempre” no sentido de que seus resultados são eternos (cf. Judas 7 re: Sodoma); é a morte
da qual não há retorno.32

Por Comparação com a Ordem do Início da Criação e a Queda


Gênesis 1-2 registra a criação do céu/céu e da terra, nos quais havia rios, árvores e
outros tipos de vegetação, metais preciosos e pedras, bem como muitos tipos de
criaturas vivas. Inicialmente não havia chuva, mas a neblina molhava a superfície da
terra. Os primeiros humanos deveriam cuidar do Jardim do Éden (2:15), mas não
precisavam cultivar o solo. Como alimento, parece que eles simplesmente colhiam

31
Conforme Dt 23:18.
32
Cf. Eduardo W! Fudge, o fogo que consome: um estudo bíblico e histórico da doutrina do castigo final,
3ª ed. (Eugene, OR: Cascade, 2011), 239-52; Boyd, Deus em Guerra, 288-90. Isaías 66:24 é comumente
citado como suporte para o tormento eterno. Por exemplo, veja Dim, The Escatological Implications, 197
– “Assim, embora mortos, os rebeldes continuarão a sofrer para sempre, tudo por causa de sua rebelião
obstinada”, mas aqui os rebeldes são “cadáveres” que sofrem vergonha permanente, não interminável.
dor. Para saber mais sobre este tópico, veja Edward W. Fudge e Robert A. Peterson, Two Views of Hell: A
Biblical & Theological Dialogue (Downers Grove, IL: IVP Academic, 2000), 32-33 versus 130-133.

201
plantas com sementes e árvores frutíferas (1:29; 2:9, 16). Animais e pássaros deveriam
comer plantas verdes (1:30). Não há evidência de predação aqui.
A Queda não interrompeu a cosmologia geral do planeta Terra. No entanto, a
maldição sobre o solo por causa de Adão parece ter reduzido sua fertilidade e trazido
plantas indesejáveis, de modo que um esforço considerável seria necessário para
cultivar o solo a fim de cultivar alimentos fora do Jardim do Éden (Gn 3:17-19, 23).33
Gênesis 3:21 implica a(s) primeira(s) morte(s) na história registrada: “O Senhor Deus fez
vestes de pele para Adão e sua esposa, e os vestiu”. Essas roupas de peles de animais
cobririam sua nudez e os manteriam aquecidos, necessidades que eles não tinham antes
de pecar. Humanos criados à imagem de Deus para ter domínio sobre a terra (1:26-28)
agora dependiam da vida de criaturas inferiores.
O grande Dilúvio, que foi devido à expansão radical do pecado humano, teve um
impacto muito maior na superfície da terra (Gn 7-8) do que as consequências imediatas
da Queda. O Dilúvio aprofundou os efeitos da Queda sobre a superfície da terra e pode
ter mudado a distribuição da terra versus o mar. Desde então, o crescimento da
população humana, a exploração dos recursos naturais e a poluição danificaram nosso
meio ambiente, incluindo a atmosfera terrestre, em ritmo acelerado.
Portanto, o remédio de Deus precisa ser abrangente: recriação não apenas de uma
nova terra, mas também de um novo céu (Ap 21:1). Desfazer os efeitos naturais da
Queda envolve a remoção da morte (1Co 15:54-55; Ap 20:14), doença, fome, sede, calor
excessivo (Ap 7:16), necessidade de meios artificiais de aquecimento ou agricultura
laboriosa, e danos físicos e predação por humanos ou por animais, que novamente serão
vegetarianos (Is 11:6-9; 65:25). Haverá restauração do acesso ao fruto da “árvore da
vida” (Ap 2:7), renovação da fertilidade da terra e rios puros (22:1). Então a vida dos
humanos será dependente da vida de outro, mas desta vez a vida será a do Cordeiro
divino (21:22-23, 27; 22:1, 3).
CONCLUSÃO
O objetivo da unificação por meio do sacrifício de Cristo é o cumprimento final do
plano original de Deus para a harmonia relacional e o bem-estar físico no planeta Terra
após o desvio mortal causado pelo pecado. Tendo derrotado o enganador do mal e suas
hostes na Grande Guerra, Deus realizará Seus propósitos salvíficos e de aliança
restaurando o domínio perdido de Adão e Eva e uma multidão de seus descendentes
em um novo mundo perfeito e uma cidade resplandecente onde o próprio Deus mora.
As visões escatológicas de João no Apocalipse e de outros profetas em livros bíblicos
anteriores revelam o caráter de Deus e dão esperança à humanidade, revelando os
contornos de Sua boa vontade para com os humanos, que são maiores do que qualquer
coisa que os humanos possam imaginar (1Co 2:9). Esta esperança dada por Deus motiva
a humanidade a aceitar o dom da salvação de Deus e a trabalhar com Ele para estender

33
Cf. maldições da aliança sobre israelitas rebeldes através de efeitos negativos sobre o mundo natural
em Levítico 26 e Deuteronômio 28.

202
o convite do Evangelho a todos os outros para que eles também possam desfrutar do
Paraíso com o amoroso Criador. Mesmo agora, em um mundo quebrado e gemendo que
antecipa alienação, revolta e sofrimento sem precedentes (por exemplo, Dn 12:1), os
seguidores de Cristo formam um novo templo por seu acesso a Deus através do Espírito
Santo (Efésios 2). Portanto, Seus filhos devem viver juntos em unidade “como cidadãos
da Nova Jerusalém”.34

34
Alexander, From Eden to the New Jerusalem, 191.

203
SEÇÃO 4
GRAÇA MARAVILHOSA: OS CRENTES PODEM GANHAR
SUA SALVAÇÃO?

Uma das questões relativas à salvação que os cristãos procuram entender é a


relação entre a graça de Deus e as obras humanas. A Bíblia ensina que a salvação é
realizada pela graça de Deus através da fé e, portanto, não por obras humanas. Ao
mesmo tempo, também ensina que Deus provê o dom da fé que opera por amor para
cumprir a lei de Deus (Ef 2:8-9; ver também Rm 11:6; 13:8,10; Gl 5:6,14). Este ensino
bíblico indica que existem várias dimensões da realidade da salvação que precisam ser
entendidas em relação adequada umas com as outras.
A salvação é toda pela graça porque o problema do pecado desqualifica a
humanidade para um relacionamento eterno com Deus e porque uma expiação perfeita
foi realizada em Cristo para que a humanidade possa ser reconciliada com Deus.
Portanto, porque os humanos foram corrompidos pelo pecado, eles são totalmente
incapazes de receber a salvação de Deus sem Sua ajuda. Além disso, porque Deus
providenciou uma expiação completa em Cristo, não há nada que os humanos possam
fazer para ganhar a salvação.
Além disso, no entanto, Deus capacitou os seres humanos a exercer fé e receber a
salvação para que a justiça da lei de Deus seja cumprida neles (Rm 8:4). Isso significa que
Deus, em certo sentido, capacitou os humanos a ganhar sua salvação? A salvação é
iniciada pela graça e depois continuada e aperfeiçoada pelas obras? Como justificação,
santificação e glorificação estão relacionadas umas com as outras na salvação pela
graça? Essas e outras perguntas relacionadas são respondidas nesta quarta seção.
Os autores dos capítulos da seção quatro apresentam estudos históricos e bíblicos
sobre a salvação pela graça de Deus. O primeiro capítulo, de autoria de John Reeve,
fornece uma visão histórica das visões cristãs da salvação pela graça. O segundo
capítulo, escrito por George Knight, apresenta um estudo da graça preveniente de Deus
que capacita os humanos a receber ou recusar o dom da salvação de Deus. No terceiro
capítulo, Ivan Blazen fornece um estudo de como a graça de Deus realiza a justificação
e santificação dos pecadores. Finalmente, no quarto capítulo, Woodrow Whidden e
Hans LaRondelle apresentam como a graça de Deus aperfeiçoa e glorifica aqueles que
são eternamente salvos.

204
CAPÍTULO 13
GRAÇA: UMA BREVE HISTÓRIA
John W. Reeve

Graça é favor imerecido.1 Paulo começa e termina suas cartas com


pronunciamentos de graça. O livro de Atos está cheio da graça de Deus operando nos
discípulos e por meio deles. De acordo com João, todos receberam a graça e ela vem
por meio de Jesus Cristo (Jo 1:16-17). Paulo diz aos crentes que eles são justificados pela
graça (Rm 3:24) e que eles permanecem pela graça (Rm 5:2). Efésios 2:8 declara que os
crentes são salvos pela graça. Hebreus 4:16 tanto descreve o trono de Deus em termos
de graça como também diz que todos são convidados a receber a graça ali. A graça como
um dom gratuito é um tema importante no Novo Testamento. Parece um pouco
chocante, então, quando se lê em Origens (ca. 185-254)2 On First Principles (escrito ca.
230)3 sobre sua sugestão de que alguns podem ter direito, ou merecer, os dons do
Espírito e como alguns podem merecer ser santificados por Sua graça.4 Como alguém vê
a graça depende de como vê a salvação. A salvação é produzida pela ação humana, pela
ação da igreja ou pela ação de Deus? A história dos ensinamentos cristãos sobre a graça
sugere que todas essas três fontes de ações foram creditadas com a salvação humana,
e muitas vezes com uma mistura de duas ou mais delas.
O ensino de Paulo sobre graça e salvação, como ficou famoso em Romanos 3-8,
destaca a justificação como um dom gratuito da graça (3:24) e que todos os humanos
são pecadores que não fazem o bem (3:10-12, 23), significando que a observância da lei
não pode ser o caminho para a justiça (3:20-21). No entanto, o ensino de Paulo também
enfatiza as reivindicações éticas da nova vida em Cristo (Rm 6:1-2), cuja vida é possível

1
“Grace,” Oxford Encyclopedia of the Reformation, ed. Hans J. Hillerbrand (Nova York: Oxford University
Press, 1996), 2:184; “Grace”, Webster’s New World College Dictionary, 5ª edição, ed. Andrew N. Sparks,
et ai. (Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 2016), 628. Considerando que a definição do dicionário da
palavra graça com base em seu uso na língua inglesa é variada e complexa, optei por me concentrar na
definição teológica que dominou a reforma do século XVI.
2
Ronald E. Heine, “The Alexandrians,” in The Cambridge History of Early Christian Literature (CHECL), ed.
Frances Young; Lewis Ayres and Andrew Louth (Cambridge: Cambridge University Press, 2004), 117.
3
Originalmente escrito em grego sob o título nepi Apycbv (Peri Archdn, Concerning the Archons) veja os
Pais Ante-Nicenos (ANF), 4:235. Origens sobre os primeiros princípios foi escrito durante seus anos
alexandrinos, que Eusébio coloca antes de 232, quando partiu para Cesaréia na Palestina. Ele só está
disponível para nós em pequenos pedaços e fragmentos em grego, mas está completo em latim, conforme
traduzido em 397 por Rufinus, em Heine, “The Alexandrians”, em CHECL, 121-122.
4
Origen, On First Principles, Preface 3; Book 1.3, ANF, 4:239, 255. Orígenes, Sobre Primeiros Princípios,
Prefácio 3; Livro 1.3, ANF, 4:239, 255. Em ambos os lugares Rufinus, o tradutor latino desta obra de
Orígenes, usa a palavra latina merere, que significa “merece”, para denotar o caráter merecedor da
pessoa que recebe a graça e a dons do Espírito. O grego original de Orígenes, do qual só agora temos
fragmentos, era provavelmente alguma forma da palavra ahoto (axiod), que tem o significado básico de
“considerar digno”. Veja A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian
Literature, 3ª ed., ed. Frederick William Danker (Chicago, IL: University of Chicago Press, 2001).

205
através da reconciliação pelo Seu sangue (Rm 5:9-11), e na qual os crentes se oferecem
a Deus como instrumentos de justiça (Rm 6:13) através da habitação do Espírito (Rm
8:11). Assim, Paulo diz que os crentes têm a obrigação (opheiletai) de viver de acordo
com o Espírito (Rm 8:12) e podem esperar compartilhar dos sofrimentos de Cristo, bem
como de Sua glória (Rm 8:17). É este último detalhe, a obrigação ética de viver uma vida
justa no poder do Espírito, que se tornou o foco da discussão da graça pelos cristãos dos
séculos II e III.5
GRAÇA MAIS MÉRITO
Ao longo dos primeiros séculos cristãos, antes da mais conhecida controvérsia sobre
a graça entre Agostinho e Pelágio no século V, havia uma ênfase nas exigências éticas
de viver a fé que incluía um aspecto do mérito humano. Inicialmente, essa conceituação
de viver uma vida santa foi percebida como responsabilidade de todos os cristãos, mas
foi especialmente percebida nos mártires cristãos.6 Mais tarde, tornou-se associado
principalmente ao monaquismo.7 J. William Harmless sugere que, “os primeiros monges
cristãos estavam no negócio de fazer o cristianismo comum extraordinariamente bem.”8
Esta seção seguirá a passagem de um entendimento de que todos os cristãos têm uma
responsabilidade viver éticamente em resposta à salvação fornecida por Deus, como
Paulo ensinou, a uma compreensão de que o esforço humano acrescenta ou até prepara
o caminho para a graça de Deus. À medida que o foco no mérito humano para a salvação
se intensificava, percebeu-se que apenas um pequeno grupo de cristãos santos poderia
alcançar esse mérito, os mártires e ascetas.
Inácio de Antioquia (ca. 110)9 apelou aos cristãos em Roma não para salvá-lo do
martírio, mas para permitir que ele através da morte alcançasse a vida copiando Cristo:
“permitam-me ser um imitador da paixão de meu Deus”.10 Nesse contexto, Inácio
enfatizou a obrigação de copiar Jesus Cristo, mas foi além para destacar uma
recompensa por tal conquista. No entanto, em outra carta, Inácio também sugeriu que
“se Ele nos recompensasse de acordo com nossas obras, deixaríamos de existir”.11 Como
tal, Inácio ilustra a tensão sentida ao longo da história cristã entre merecer uma

5
B. Studer, “Grace,” in Encyclopedia of Ancient Christianity (EAC), ed. Angelo Di Berardino, trans. Eric E.
Hewett, et al. (Downers Grove, IL: IVP Academic, 2014), 2:168.
6
Susan Ashbroolc Harvey, “Martyr Passions and Hagiography,” in The Oxford Handbook of Early Christian
Studies, ed. Susan Ashbroolc Harvey and David G. Hunter (Oxford: Oxford University Press, 2008), 603.
7
Eva-Maria Faber, “Grace,” in Encyclopedia of Christian Theology (ECTh), ed. Jean-Yves Lacoste (New York:
Routledge, 2005), 2:647.
8
J. William Harmless, SJ, “Monasticism,” in The Oxford Handbook of Early Christian Studies, 510.
9
É impossível datar Inácio com precisão (ver ANF, 1:45, 48), e a discussão continua; veja Graydon F.
Snyder, “Ignatius of Antioch”, na Encyclopedia of Early Christianity (EEC), 2ª ed., ed. Everett Ferguson
(Nova York: Garland, 1999), 559.
10
Ignatius of Antioch, Epistle to the Romans 6, 8, in ANF, 1:76-77. Veja o fio de referências ao longo de
suas cartas à sua própria realização do martírio à imitação de Cristo em Snyder, “Ignatius of Antioch”, EEC,
559-560.
11
Ignatius of Antioch, Epistle to the Magnesians 10, in ANF, 1:63.

206
recompensa por ações morais em seguir o exemplo de Cristo e favor imerecido em
receber melhor do que os crentes merecem.
Mais tarde, Justin Mártir (ca. 110 - ca. 165)12 falou em termos que enfatizou a
capacidade humana de escolher boas ou más ações: "Nós seguramos para ser verdade,
que punições e castigos, e boas recompensas, são dados de acordo com o mérito das
ações de cada homem."13 Nesse contexto, ele se viu argumentando contra aqueles que
falsamente acusaram cristãos de fatalismo por causa de sua crença na profecia, então,
Justin argumentou fortemente em favor da responsabilidade humana. Ele foi insistir que
"a menos que a raça humana tenha o poder de evitar o mal e escolhendo bem pela livre
escolha, eles não são responsáveis por suas ações".14 Em outro contexto, argumentando
que os cristãos ensinam uma punição de irregularidades na vida após a morte, mas mais
rigorosos do que os ensinamentos de Platão,15 Justin usa o argumento de que aqueles
que escolhem bem, e "por suas obras mostram-se dignos de seu projeto (de Deus), são
considerados dignos ... de reinar em companhia com ele, sendo entregue a corrupção e
sofrimento."16 Note que Justin está falando de como os humanos vieram da mão de
Deus com livre arbítrio. Ao manter seu argumento simples, Justin não faz distinção na
capacidade humana de escolher antes ou depois da queda. Embora o contexto de seu
argumento em seu propósito apologético o faça falar com mais força, e simplesmente,
de comportamento ético cristão, no entanto, as palavras reais de Justin falam em favor
de recompensas salvíficas para as obras humanas. Observe suas palavras para o Trypho:
"O Espírito Santo censura os homens porque eram feitos como Deus, livre de sofrimento
e morte, desde que guardassem seus mandamentos, e fossem considerados
merecedores do nome de seus filhos, e ainda assim, tornando-se como Adão e Eva,
operando a morte por si."17
Teófilo de Antioquia,18 em seu único trabalho existente, para Autolycus (Autolycum
ad, ca. 180),19 também enfatiza o conjunto de opções antes dos humanos pré-queda, e
então ele argumenta uma escolha semelhante para humanos pós-queda. Em referência
a Adão, o primeiro criado humano, Teófilo escreveu: "Se ele fosse voltar para a vida da
imortalidade, mantendo o mandamento de Deus, ele ganharia a imortalidade como uma
recompensa dele e se tornaria um Deus; Mas se ele se voltasse para a morte,

12
ANF, 1:159; Theodore Stylianopoulos, “Justin Martyr,” in EEC, 647.
13
Justin Martyr, 1 Apol. 43, in ANF, 1:177.
14
Ibid
15
Ibid., 8
16
Ibid., 10, in ANF, 1:165.
17
Justin Martyr, Dial. 124, in ANF, 1:262.
18
Eu escolho não tentar uma datação em vida de Teófilo de Antioquia. A data de nascimento dada por
Marcus Dods (ANF, 2:87-88), ele admite, é de pura conjectura, Dods prossegue sugerindo que a única data
sólida na vida de Teófilo de qualquer fonte é a data de sua sucessão de Eusébio como bispo em Antioquia
como o oitavo ano de Marco Aurélio, ou 168.
19
A data para Ad Autolycum é citada em Frederick W. Norris, “Theophilus of Antioch”, na CEE, 1122.
Significativamente, Norris data apenas o trabalho de Theophiluss, não sua vida. Esta data é baseada no
término da cronologia que Teófilo deu no livro três. A entrada final (Auto. 3.27-28) é a morte do
“Imperador Aurélio Veras”, em 169, o que nos leva a crer que o livro foi escrito antes da morte de Marco
Aurélio, falecido em 180.

207
desobedecendo a Deus, ele seria responsável por sua própria morte." Teófilo continuou,
agora em referência a todos os seres humanos: "Pela desobediência, o homem ganhou
morte por si mesmo, por isso, por obediência à vontade de Deus quem quer que possa
obterá a vida eterna para si". Continuando, a próxima declaração de Teófilo contém a
ideia de graça e salvação: "Deus nos deu uma lei e os santos mandamentos; Quem as
realizam podem ser salvos."20 Essa ênfase de Teófilo sugere uma dependência
compartilhada entre os humanos e a Deus para a salvação.
Os escritores cristãos do segundo século estavam principalmente interessados em
ética e estilo de vida, e não em distinções teológicas claras,21 incluindo distinções sobre
graça. Irineu de Lyon (escrita ca. 190)22 pode ser incluído nessa declaração, mas sua
articulação que há "um Deus que é o criador do mundo e o pai de Jesus Cristo, que há
uma economia divina de salvação e uma revelação"23 mostra Irineu sendo um pensador
mais sistemático do que seus antecessores. Para entender Irineu sobre a salvação
precisamos ver seu estresse sobre a recapitulação de Cristo em Adão. Jesus Cristo, como
humano, consegue onde Adão, o primeiro humano, fracassou,24 e também morreu
como o sacrifício redentor, a fim de dar o dom da vida eterna aos seres humanos:
"Através da carne de nosso Senhor, e através de seu sangue fomos salvos."25 Como tal,
Irineu antecipa, mas não diferencia claramente, vários dos ingredientes da salvação que
são mais tarde articulados: Liberdade para escolher, substituição, salvação e
crescimento pela graça.
Clemente de Alexandria (ca. 160-215)26 e Orígenes falam em termos de se tornar
“digno de receber o poder da graça de Deus”,27 mas Orígenes desenvolve a ideia mais
detalhadamente em seu prefácio de sua obra agora conhecida como On First Principles,
Orígenes sugere que os dons do Espírito são dados apenas àqueles que os merecem, e
que o significado correto das escrituras “não é conhecido por todos, mas somente por
aqueles sobre quem a graça do Espírito Santo é concedido na palavra de sabedoria e
conhecimento.”28 Ele chama essas pessoas de “amantes da sabedoria” que “se
preparam para serem dignos e honrados receptores de sabedoria” e que obtiveram do
Espírito Santo “o dom da linguagem, da sabedoria, e de conhecimento”. Esses poucos,
como Orígenes descreve ainda, são aqueles que “se voltam para o Senhor” e são capazes

20
Teófilo de Antioquia, Auto. 2.27. As citações de Teófilo de Antioquia são da tradução de Robert M.
Grant, Teófilo de Antioquia: Ad Autolycum (Oxford: Clarendon Press, 1970).
21
Frances Young, “Christian Teaching,” in CHECL, 103
22
Mary Ann Donovan, One Right Reading? A Guide to Irenaeus (Collegeville, MN: Liturgical Press, 1997),
8-10. Considerando que a única data sólida que temos na vida de Irineu é sua viagem a Roma como líder
cristão da Gália em relação aos martírios de 177, Irineu denota Eleutério como décimo segundo e atual
bispo de Roma (ca. 174 - ca. 189) como ele escreveu suas listas de bispos agora encontradas em Contra
as Heresias 3.3.3.
23
Mary T. Clark, RSCJ, “Irenaeus,” in EEC, 587.
24
Irenaeus, Against Heresies 5.21.1-2, in ANF, 1:548-550.
25
Ibid., 4.14.2, 3, ANF, 1:541-542; see also 3.19.1-3, in ANF, 1:448-449.
26
Walter H. Wagner, “Clement of Alexandria,” in EEC, 262-263.
27
Clemente de Alexandria, Strom. 4,22, em ANF, 2:435; ver também 5.1, em ANF, 2:445: “‘Pois pela graça
somos salvos:’ não, de fato, sem boas obras.”
28
Origen, Preface to Princ. 3, 8, in ANF, 4:240-241.

208
de ver as escrituras “com rostos descobertos” que “mereceram ser santificados por Sua
graça”.29 Assim, de acordo com Orígenes, a salvação e a compreensão da Escritura só
estão disponíveis para aqueles em quem o Espírito Santo opera: "A operação do Espírito
Santo não ocorre de forma alguma naqueles ... que são dotados de fato de razão, mas
estão engajados em maus caminhos." Orígenes deixa isso ainda mais claro quando
continua: “Somente naquelas pessoas penso que a operação do Espírito Santo ocorre,
que já estão se voltando para uma vida melhor, ... que estão engajadas na realização de
boas ações, e que permanecem em Deus.”30 Na visão de Orígenes, a graça santificante,
a salvação e o Espírito Santo estão disponíveis apenas para aqueles que já mudaram
suas vidas e ações, pessoas que Orígenes chama de “santos”.
Pode-se argumentar que Orígenes e Clemente estão falando nesses lugares apenas
de graça santificante, e que eles entenderiam que também há graça que precede. Deve-
se admitir que Orígenes também argumenta que o Pai e o Filho estão sempre operando
tanto em santos quanto em pecadores, mas que esse trabalho deve ser entendido em
grande parte como tendo fornecido a eles existência e pensamento racional. 31 Na
verdade, ele fala de um “ministério especial do Senhor Jesus Cristo àqueles a quem ele
confere por natureza o dom da razão, por meio do qual eles são capacitados a ser
exatamente o que são”. Esta é claramente uma manifestação de graça, mas Orígenes
imediatamente volta sua atenção para “outra graça do Espírito Santo, que é concedida
aos merecedores”. Essa graça Orígenes iguala ao vinho novo que não pode ser
derramado em odres velhos. “Os homens devem andar em novidade de vida, para que
recebam o vinho novo, isto é, a novidade da graça do Espírito Santo”. Ele conclui: “O
Espírito Santo é conferido somente aos santos.”32 Orígenes argumenta abertamente que
as pessoas devem se voltar para uma vida de boas obras por conta própria, antes que
possam merecer os dons do Espírito Santo. Sua ênfase na capacidade humana de se
comportar é construída em sua visão de Cristo, como nosso irmão, oferecendo uma
salvação pelo exemplo.33 Orígenes continua ensinando um perfeccionismo capacitado
pelo Espírito Santo, mas a mudança inicial é feita pelos santos para eles mesmos. Para
Orígenes, os santos começam sua própria salvação e depois dependem do Espírito Santo
para terminá-la.
Muitos outros professores e bispos cristãos primitivos de muitas localidades
seguem um padrão semelhante aos desses alexandrinos, Clemente e Orígenes. Gregório
de Nissa (ca. 340 - ca. 395) “preservou a primazia de Deus como fonte de todo bem,

29
Origen, Princ. 1.1.2, 3, in ANF, 4:242.
30
Origen, Princ. 1.3.5, in ANF, 4:253.
31
Ibid., 1.3.8, in ANF, 4:255.
32
Ibid., 1.3.7, in ANF, 4:254.
33
Orígenes vê o Filho como “sendo Deus pela participação na divindade do Pai”, não por natureza. John
W. Reeve, “The Trinity in the Third and Fourth Centuries”, em Woodrow Whidden, Jerry Moon e John W.
Reeve, The Trinity: Understanding Gods Love, His Plan of Salvation, and Christian Relationships
(Hagerstown, MD: Review e Herald, 2002), 138. Para uma discussão das ramificações sobre a salvação da
baixa cristologia de Orígenes, veja Darius Jankiewicz, “Lessons from Alexandria: The Trinity, the
Soteriological Problem, and the Rise of Modern Adventist Anti-Trinitarianism,” Andrews University
Estudos do Seminário 50.1 (2012): 5-24.

209
mantendo a responsabilidade humana em responder livremente ao chamado de Deus
por um processo contínuo de conversão.”34 Nissa ensinou que os esforços ascéticos
humanos foram atendidos pela graça responsiva de Deus. “Gregory articulou isso como
sinergia, um trabalho conjunto de esforço humano e graça de Deus.”35
Uma das visões dominantes que surgiram nos primeiros cinco séculos de escritores
cristãos a respeito da salvação é que os humanos nascem em uma condição pecaminosa,
afastando-se de Deus, mas são capazes por si mesmos de se voltar para Deus, e por si
mesmos começam a caminhar em direção a Deus. A graça entra em cena para perdoar
pecados passados e capacitar a caminhada em direção a Deus para uma caminhada com
Deus. No século V, duas ideias muito diferentes vêm à luz.
AGOSTINHO E A CONTROVÉRSIA PELAGIA
Pelágio (ca. 350 - ca. 425),36 um monge das Ilhas Britânicas, veio a Roma por volta
de 405 e se esforçou para reformar os cristãos em Roma até que a invasão de Alerico
forçou muitos a fugir de Roma em 409.37 Pelágio então fez um circuito pela Europa
cristã, terminando na Palestina, defendendo a ideia de que os humanos não eram tão
ruins no nascimento, mas aprenderam padrões de comportamento pecaminoso ao
serem criados em um ambiente pecaminoso. O que veio a ser conhecido como
pelagianismo foi a ideia de que todos os humanos nascem sem pecado, mas que cada
pessoa é vítima do pecado ao escolhê-lo, assim como Adão e Eva fizeram. A implicação
óbvia desta visão é que se o pecado é meramente uma escolha e não parte integrante
de uma natureza pecaminosa, então basta uma escolha para superá-lo. No
pelagianismo, Jesus Cristo não é tanto Salvador, mas exemplo. A graça é para o perdão
dos pecados passados, mas a escolha de não mais pecar é uma capacidade humana, não
uma graça especial de Cristo.
Agostinho de Hipona (354-430)38 não poderia ter discordado mais, embora sua
compreensão real do pelagianismo possa muito bem ter vindo mais dos ensinamentos
de Celéstios, seu colega norte-africano do século V,39 do que do próprio Pelágio.40
Agostinho sustentou fortemente que todos os humanos desde Adão, exceto Jesus, o
segundo Adão, nascem com uma natureza pecaminosa. Agostinho corrige esse grande
erro do Pelagianismo ensinando que os humanos nascem pecadores e são incapazes de
mudar por seu próprio poder.41 Agostinho argumentou que somente pela graça os
humanos podem reconhecer sua condição pecaminosa, perceber o perdão oferecido

34
David L. Balas, O. Cist., “Gregory of Nyssa,” in EEC, 495-497.
35
Karen Jo Torjesen, “Grace”, in EEC, 482. Para uma discussão aprofundada da posição de Gregório em
contraste com Agostinho e Pelágio, ver Ekkehard Muhlenberg, “Synergism in Gregory of Nyssa”, Zeitschrift
fur die Neutestamentliche Wissenschaft 68 (1977): 93-122, especialmente 109.
36
Joanne McWilliam, “Pelagius, Pelagianism,” in EEC, 887.
37
Brinley Roderick Rees, Pelagius: A Reluctant Heretic (Rochester, NY: Boydell, 1988), 1.
38
Margaret R. Miles, “Augustine,” in EEC, 148.
39
Michael P. McHugh, “Celestius (Fifth Century),” in EEC, 228-229.
40
Rees, Pelagius, 2-3,10-11.
41
Isso não quer dizer que todos os aspectos do ensino de Agostinho sobre o pecado original sejam
biblicamente corretos. Por exemplo, sua explicação de que o pecado é transmitido através da fecundação
sexual claramente carece de apoio bíblico.

210
pelo sacrifício de Cristo, experimentar o convite de Deus atraindo-os para Si, e
respondendo através da escolha de permitir que Ele os salve e os mude.42 Em outras
palavras, Agostinho identificou que a graça não era apenas o perdão daqueles que
escolheram Deus e se voltaram para ele. Em vez disso, Deus inicia o processo dando Sua
graça antes de qualquer ação, conhecimento ou escolha do humano. Este conceito é
chamado de graça preveniente, a graça que vem antes da salvação. É essa graça
preveniente que garante que Deus inicie a salvação cortejando os pecadores e
capacitando-os a mudar. Essa graça preveniente não é necessária para os pelagianos ou
aqueles mestres anteriores que sustentavam que os humanos eram capazes de se voltar
para Deus por conta própria, como Orígenes, João Crisóstomo e muitos outros.
O problema com a solução de Agostinho para o erro do pelagianismo foi que ele foi
longe demais. Ele corretamente ensinou que os humanos nasceram pecadores,
incapazes de iniciar um relacionamento salvífico com Deus, e que a graça preveniente
de Deus iniciou o relacionamento salvífico, mas ele transformou todo o processo de
salvação em um monergismo do lado de Deus. O termo é construído sobre monos (um,
singular ou apenas) e ergos (trabalho), e no contexto de salvação significa que toda
atividade de salvação é de Deus, os humanos não podem fazer nada, nem mesmo ter
uma escolha capacitada. No entendimento de Agostinho, mesmo a graça preveniente
não podia ser resistida. O monergismo contrasta o termo sinergismo (trabalhar juntos),
onde tanto Deus quanto o humano têm um papel na salvação. A maioria dos teólogos
cristãos antes de Agostinho e também depois dele até a Reforma Protestante eram
sinergistas de algum tipo. O monergismo de Agostinho baseava-se no conceito de que
humanos salvos estavam predestinados a serem salvos e não tinham escolha alguma.
Embora a visão de predestinação de Agostinho estivesse centrada muito mais na igreja43
e nações44 do que a predestinação mais individualista adotada mais tarde por Lutero e
João Calvino, ela compartilhava alguns dos mesmos problemas. Ou seja, não deixou
espaço para qualquer escolha humana em relação à salvação. “Foi o ensino de Paulo
sobre a graça que forneceu a Agostinho o fundamento de sua própria doutrina muito
mais abrangente e sofisticada; mas ele levou sua interpretação desse ensinamento a

42
J. Patout Burns, “Grace: The Augustinian Foundation,” in Christian Spirituality: Origins to the Twelfth
Century, ed. Bernard McGinn, John Meyendorff, and Jean Leclercq, World Spirituality 16 (New York:
Crossroad, 1997), 336-337.
43
“Agora, se o aprisionamento e fechamento do diabo significa que ele não pode enganar a Igreja, sua
soltura deve significar que ele poderá fazê-lo novamente? Deus me livre! Pois ele nunca enganará a Igreja
que foi predestinada e escolhida antes da fundação do mundo, da qual se diz que ‘o Senhor conhece os
que são Seus’”, Augustine, Civ. 20.8, in Augustine: The City of God Against the Pagans, trans. R. W. Dyson,
Cambridge Texts in the History of Political Thought Series, ed. Raymond Guess and Quentin Skinner
(Cambridge: Cambridge University Press, 1998), 982-983..
44
“Por estar assim amarrado e calado, então, o diabo está proibido e impedido de seduzir as nações que
pertenciam a Cristo: as nações que ele anteriormente seduziu ou manteve em escravidão. Pois Deus
escolheu essas nações antes da fundação do mundo, para livrá-las do poder das trevas e para transportá-
las para o reino de Seu querido Filho, como diz o apóstolo. (Cf. Ef 1:4)”, ibid., 20.7 in Augustine: The City
of God, 981.

211
limites que o deixaram com uma teoria da predestinação inaceitável para a maioria dos
teólogos posteriores - embora não para Calvino.45
Então, na controvérsia pelagiana, Pelágio acertou que os humanos têm uma escolha
em sua própria salvação, mas ele entendeu errado que os humanos nasceram sem
pecado, escolheram o pecado com base no ambiente pecaminoso e, em seguida,
optaram por não pecar com base em suas próprias habilidades. O pelagianismo teve um
papel muito grande para o humano em sua compreensão do sinergismo.
Agostinho acertou em que os humanos são pecadores desde o nascimento e são
incapazes de sequer considerar a salvação ou um relacionamento com Deus sem a graça
preveniente de Deus cortejando, convidando e capacitando suas escolhas e fé. O que
Agostinho errou é que a salvação é apenas para os predestinados, nascidos em igrejas e
nações cristãs, e para alguns que são chamados para fora do paganismo. Agostinho
ensinou que aqueles predestinados à salvação não têm escolha: eles não podem recusar
a salvação. Embora não tenha cunhado o termo calvinista graça irresistível, Agostinho
ensinou algo muito semelhante a isso em sua compreensão monergística da salvação.
DOIS TIPOS DE SEMIPELAGIANISMO
Como o nome sugere, o semipelagianismo é como o pelagianismo, pois coloca
muita responsabilidade pela salvação no humano e não em Deus, mas não na extensão
do pelagianismo. Não existe uma definição única e simples de semipelagianismo porque
ele vem em muitas formas, além de ser visto de muitas perspectivas diferentes. Por
exemplo, um calvinista severo veria qualquer contribuição humana na salvação como
semipelagianismo, até mesmo uma resposta capacitada por Deus ao chamado gracioso
de Deus.
Os dois tipos de semipelagianismo abordados nesta seção representam (1) aqueles
que acreditam que os humanos podem cooperar individualmente com Deus nas obras
de salvação e (2) aqueles que acreditam que as obras da igreja corporativa garantem
sua salvação.
A maioria dos professores cristãos antes de Agostinho ensinou que os humanos têm
a capacidade inata de se voltar para Deus e iniciar o processo de sua própria salvação.
No rescaldo imediato do monergismo de Agostinho, incluindo uma predestinação
seletiva e uma graça que não podia ser recusada, houve uma reação a favor da escolha
humana. Infelizmente, esse retorno ao livre-arbítrio também incluiu um retorno ao
primeiro tipo de semipelagianismo: os humanos podem cooperar nas obras de salvação.
João Cassiano (ca. 365 - ca. 433)46 se opôs ao monergismo de Agostinho como muito
simplista em relação à graça divina e à vontade humana. Os modelos sinérgicos que ele
desenvolveu dentro de sua obra Conferences [Conferências], escritos como um registro
de conversas entre monges ascetas, foram posteriormente denominados “semi-

45
Rees, Pelagius, 53.
46
Paul C. Burns, CSB., “John Cassian,” em EEC, 219.

212
Pelagianismo” e condenados no Concílio de Orange em 529.47 Os dois modelos de graça
e vontade de Cassiano, desenvolvidos em Conf. 13, foram recentemente rotulados de
“modelo cooperativo” e “modelo alternativo”.48 Ambos os modelos incluem a
cooperação humana com Deus nas obras de salvação e correspondem ao primeiro tipo
de semipelagianismo discutido anteriormente. Apesar de sua condenação em Orange,
eles refletem duas linhas contínuas no pensamento monástico. Além disso, o apelo de
Cassiano à regra de fé na igreja na Conf. 13.11.4,5 sugere o segundo tipo de
semipelagianismo.
No modelo cooperativo, Cassiano sugere que algumas pessoas, e ele se refere
especificamente aos ascetas de força de vontade do tipo que estão participando de suas
conversas gravadas, desejam praticar a santidade e viver vidas justas e envolvem suas
vontades nessa prática. Cassiano argumenta que todos os seres humanos têm as
sementes da virtude em sua alma por terem sido criados por Deus, e embora ele
reconheça que Deus fornece a germinação das sementes até a perfeição, ele também
reage contra a prestação de todas as boas obras a Deus: “Portanto, devemos estar
atentos para não atribuir todas as boas obras das pessoas santas ao Senhor de tal forma
que não atribuamos nada além do que é ruim e perverso à natureza humana”49 Nesse
modelo cooperativo, “a graça de Deus inicia e inspira o livre arbítrio para o bem, mas o
livre arbítrio pode escolher seguir ou resistir às ações da graça em cada estágio do
processo de perfeição”.50 Cassiano parece estar afirmando um poder compartilhado da
vontade entre Deus e os humanos nas boas ações da salvação. A analogia de um
agricultor diligente tentando plantar é usada para ilustrar a cooperação entre o ser
humano e Deus: a ansiedade de uma noite inteira será proveitosa para aqueles que
trabalham se não for favorecida pela misericórdia do Senhor”51
O modelo cooperativo de João Cassiano contém uma visão elevada da capacidade
humana em cooperar com Deus na salvação. É semelhante aos modelos anteriores que
sugeriam que os humanos se preparam para sua própria salvação. Compara-se bem com
o que Agostinho reclamou ser a posição de Ticônio (fl. 370-390),52 o escritor donatista
das sete Regras de interpretação das escrituras. Em relação à regra cinco, “sobre as
promessas e a lei”, que Agostinho diz que deveria ser chamada “sobre a graça e os
mandamentos”, Agostinho repreendeu: “Ticônio fez um bom trabalho em seu
tratamento, mas ainda deixou algo a desejar. Ao discutir fé e obras, ele disse que nossas
obras nos são dadas por Deus pela força de nossa fé, mas que a própria fé vem de nós

47
Faber, “Grace,” in ECTh, 2:648; Karen Jo Torjesen, “Grace,” in EEC, 483.
48
Alexander Y. Hwang, “Manifold Grace in John Cassian and Prosper of Aquitaine,” Scottish Journal of
Theology 63.1 (2010): 97-101.
49
John Cassian, Conlatio, 13.12.5-7; quoted in Boniface Ramsey, OP, trans., John Cassian: The
Conferences, ACW 57 (New York: Paulist, 1997), 479-480.
50
Hwang, “Manifold Grace,” SJT, 98.
51
Cassian, Conlatio 13.3.3; Ramsey John Cassian: The Conferences, 468.
52
Pamela Bright, “Tyconius,” in EEC, 1148.

213
de tal maneira que não a temos de Deus”.53 Essa compreensão de Ticônio representa
muitos que disseram que os humanos iniciam sua própria fé, uma posição
compartilhada pelo modelo cooperativo de João Cassiano, embora às vezes Cassiano
fale em termos de humanos tendo fé aperfeiçoada. Ironicamente, no segundo modelo
identificado na décima terceira das Conferências, o “modelo alternativo”, João Cassiano
parece estar dizendo exatamente o oposto.
Depois de citar uma série de passagens de Paulo, Cassiano afirma que, para algumas
pessoas, Deus “atrai os que não querem a salvação, remove daqueles que querem pecar
os meios de cumprir seus desejos e graciosamente impede aqueles que estão se
apressando no que é mal.”54 Isso soa mais como a predestinação irresistível de
Agostinho do que o sinergismo de Cassiano. No entanto, Cassiano continua citando
“sete conjuntos de passagens bíblicas, cada uma contendo pelo menos uma passagem
que apoia a iniciativa divina (graça) e pelo menos uma passagem que apoia a iniciativa
humana (livre-arbítrio)”.55 Cassiano conclui então que tudo isso significa “que em cada
um desses casos tanto a graça de Deus quanto nosso livre arbítrio são afirmados, pois
mesmo por sua própria atividade uma pessoa pode ocasionalmente ser levada a desejar
a virtude, mas ela sempre precisa ser ajudada pelo Senhor.”56
Assim, tanto o modelo cooperativo quanto o modelo alternativo descrito por João
Cassiano incluem cooperação entre a graça de Deus e as habilidades naturais, incluindo
o livre-arbítrio e as virtudes internas. Como tal, ambos os modelos de Cassiano
representam o primeiro tipo de semipelagianismo, o da cooperação individual na
salvação. O modelo cooperativo de Cassiano funciona para os monges fortes e ascetas,
enquanto o modelo alternativo visa os fracos, mas ambos retêm as sementes internas
da virtude, bem como pelo menos algum livre arbítrio. Em seu resumo da décima
terceira das Conferências, Cassiano registra a respeito do manejo da salvação por Deus
que “às vezes ele inspira o início da salvação e coloca em cada pessoa uma fervorosa
boa vontade, enquanto às vezes ele concede a realização da obra e a perfeição da
virtuosidade . ... Alguns ele apoia enquanto eles se apressam e correm, enquanto outros
ele atrai relutantes e resistindo e os compele a uma boa vontade.”57
João Cassiano também representa o segundo tipo de semipelagianismo,
dependendo da igreja corporativa, embora em um grau muito menor do que muitos
outros. Perto do final das Conferências 13.11, Cassiano se refere à “regra da fé da
Igreja”58 como algo que ele retém propositalmente em relação à salvação. Mais tarde,
ele afirma que está alinhado com todos os pais da igreja universal. Ensinar dentro da
regra da fé tem sido um objetivo importante da maioria dos professores cristãos desde

53
Augustine, Doctr. chr., 3.46; quoted in Edmund Hill, O.P., trans., Teaching Christianity: De Doctrina
Christiana, The Works of Saint Augustine: A Translation for the 21st Century, vol. 1, ed. John E. Rotelle,
OSA (Hyde Park, NY: New City Press, 1996), 190.
54
John Cassian, Conlatio 13.9.1; Ramsey, John Cassian: The Conferences, 474.
55
Hwang, “Manifold Grace,” SJT, 99
56
John Cassian, Conlatio 13.9.4; Ramsey, John Cassian: The Conferences, 475.
57
John Cassian, Conlatio 13.18.2; Ramsey, John Cassian: The Conferences, 490.
58
Quoted in Ramsey, John Cassian: The Conferences, 477-478.

214
Irineu e Orígenes.59 Foi Cipriano de Cartago (ca. 200-258)60 quem mais dramaticamente
inicializou o ensino de que a igreja é responsável pela salvação.
Cipriano de Cartago e suas experiências em torno da perseguição deciana em 249-
251 esclareceram para os católicos, e mesmo para os donatistas posteriores, a relação
entre a salvação e a Igreja. No rescaldo da perseguição, os cristãos de Cartago e das
áreas vizinhas que haviam considerado os mártires e os presos como confessores para
direção espiritual e até perdão agora tiveram que lidar com seu bispo retornado que
havia fugido da cidade durante a perseguição, contra a escrita distinta de seu
predecessor norte-africano e mentor teológico, Tertuliano (fl. 200).61 Cipriano teve de
restabelecer a ordem na igreja com sua própria autoridade moral posta em questão. Ele
convocou um sínodo de bispos do norte da África, que o reconheceriam como seu líder
como bispo metropolitano da província do norte da África. Lá ele afirmou sua autoridade
oficial para restabelecer a unidade da Igreja. Em suas cartas e em seu tratado intitulado
On the Unity of the Church, [Sobre a Unidade da Igreja], ele resumiu três princípios que
se tornaram padrões da ordem da Igreja Católica:
1. “Pode mais ter Deus por Pai, quem não tem a Igreja por Mãe.”62 Isso atesta a
crença de Cipriano, que estava ganhando apelo universal, de que a salvação só está
disponível através da Igreja. Através do batismo e da Eucaristia a Igreja ofereceu a
salvação aos seus membros.

2. “A Igreja é fundada sobre os bispos, e cada ato da Igreja é controlado por esses
mesmos governantes.”63 “Para Cipriano, a unidade da igreja e, portanto, a própria
possibilidade de salvação, reside no ofício do bispo. .”64

3. “É manifesto onde e por quem a remissão dos pecados pode ser dada; a saber, o
que é dado no batismo. Antes de tudo, ele deu esse poder a Pedro, sobre quem ele
edificou a Igreja, e de onde ele designou e mostrou a fonte da unidade - o poder, a
saber, que tudo o que ele soltou na terra deve ser solto no céu ___ De onde
percebemos que somente aqueles que são colocados sobre a Igreja e estabelecidos
na lei do Evangelho, e na ordenança do Senhor, podem batizar e dar a remissão dos
pecados.”65

Isso colocou a autoridade espiritual da salvação firmemente nas mãos dos bispos
somente; negava que os confessores ou os presbíteros por sua própria autoridade
pudessem oferecer a graça de Deus. Através deste Cipriano também afirmou que

59
John W. Reeve, “Understanding Apostacy in the Christian Church,” in Message, Mission and Unity of
the Church (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2013), 156-160.
60
Robert D. Sider, “Cyprian,” in EEC, 306.
61
“Mais glorioso o soldado traspassado com um dardo na batalha, do que aquele que tem uma pele
segura como fugitivo”, Tertuliano, De fuga, 10 in ANF, 4:122. A data de floração de Tertuliano é de Robert
D. Sider, “Tertuliano”, em CEE, 1107.
62
Cyprian, Unit, eccl., 6; in ANF, 5:423.
63
Cyprian, Ep. 26.1, in ANF, 5:305.
64
Roger E. Olson, The Story of Christian Theology: Twenty Centuries of Tradition and Reform (Downers
Grove, IL: IVP Academic, 1999), 121.
65
Cyprian, Ep. 72.7, in ANF, 5:381.

215
nenhum herege ou cismático poderia oferecer salvação. Esse conceito é construído
sobre a compreensão de Tertuliano da ordernação,66 que coloca o bispo como sumo
sacerdote, no ápice da hierarquia da autoridade espiritual, que foi construída, ao longo
da Idade Média, na igreja como o canal da graça. Esta segunda posição semipelagiana
está no nível institucional: a instituição humana da igreja cooperando com Deus para
conceder graça. Assim, tanto o semipelagianismo individual quanto o semipelagianismo
corporativo colocam muita ênfase no lado humano do sinergismo. Tanto o
semipelagianismo individual quanto o corporativo retratam os humanos como
cooperando com Deus nas obras de salvação, em vez de depender de Deus para as obras
de salvação e cooperar em uma resposta à salvação capacitada por Deus.
GRAÇA NA IDADE MÉDIA
Embora Cipriano nunca tenha pretendido esse resultado exato, na Idade Média a
igreja afirmou controle exclusivo sobre a salvação, destacando a diferença e a distância
da igreja conforme retratada no Novo Testamento. O próprio Cipriano sentiu que toda
a salvação vinha de Deus. Roger Olson defende Cipriano pessoalmente, enquanto ainda
mostra o dano de sua trajetória teológica no capítulo habilmente matizado de Olson
sobre Cipriano:
Apesar das polêmicas protestantes posteriores contra o sistema penitencial que surgiu da
teologia de Cipriano, o próprio Cipriano não era culpado de obras de justiça ou auto-
salvação. Em nenhum lugar ele sugeriu que uma pessoa pode ganhar a salvação como
recompensa por boas obras... Por outro lado, a suspeita de que Cipriano involuntariamente
contribuiu para uma crescente tendência ao moralismo e obras de justiça dentro da igreja
não é totalmente injustificada.67

Houve uma mudança na compreensão de ser salvo através da prática correta


(ortopraxia) durante o segundo século, para ser salvo através da crença correta
(ortodoxia) a partir do terceiro século. Ambos são semipelagianos em seu foco porque
colocam as ações e crenças humanas em um equilíbrio cooperativo com a graça de Deus
como meio de salvação. A afirmação de Cipriano de que não havia salvação fora da igreja
passou a ser aplicada ao sistema sacramental dos bispos ortodoxos usando o depósito
de méritos dos mártires e santos ascetas para aplicar aos cristãos comuns fracos e
necessitados.
Agostinho fornece a proteção da ortodoxia da igreja em seu argumento de
Apocalipse 20:1-3 que Satanás não pode fazer a igreja errar porque ele está preso:
Agora, se o aprisionamento e fechamento do diabo significa que ele não pode enganar a
Igreja, sua libertação deve significar que ele será capaz de fazê-lo novamente? Deus me

66
“É a autoridade da Igreja, e a honra que adquiriu santidade através da sessão conjunta da Ordem, que
estabeleceu a diferença entre a Ordem e os leigos Tertullian Exh. cast., 7; in ANF 4:54; “De dar [batismo],
o sumo sacerdote (que é o bispo) tem o direito: em seguida, os presbíteros e diáconos, mas não sem a
autoridade dos bispos, por causa da honra da Igreja, que sendo preservada, a paz é preservada”,
Tertuliano, Bapt., 17, em ANF, 3:677.
67
Olson, Story of Christian Theology, 120.

216
livre! Pois ele nunca enganará a Igreja que foi predestinada e escolhida antes da fundação
do mundo, da qual se diz que “o Senhor conhece aqueles que são Seus”. 68

Peter Lombard (c. 1100 - 1160)69 assegura os sete sacramentos para a igreja no livro
4 The Sentences [As Sentenças] tanto em número quanto em significado, não por ser
original, mas por sistematizar.70 Como teólogo, ele faz distinções cuidadosas quanto a
quem é o autor da graça e quem é o servo da graça. Como em sua descrição da eficácia
do batismo, Lombard argumenta que o Senhor é o autor da graça invisível que perdoa
os pecados no batismo, mas que o servo que batiza perdoa os pecados “pelo sacramento
visível”.71 Ele entende corretamente que o Senhor é a única fonte de graça, mas ele
entende errado que a ação humana perdoa os pecados. Mas isso não é o pior de longe.
Outros que o seguem sem suas finas distinções teológicas simplesmente usam os
sacramentos como se o poder fosse deles com base em sua ordenação.
Bernardo de Claraval (1090-1153) eleva o nível de hierarquia da igreja,
especialmente do papado, como amicus sponsa, amigo da noiva. O papa foi encarregado
de proteger a igreja como a noiva de Cristo, levando os crentes à salvação. “Bernard
desenvolveu neste trabalho uma teoria da plenitude do poder papal que seria de imensa
importância para o final da Idade Média. Sua ideia era que o Papa estava na hierarquia
do céu e da terra, não apenas acima de todo poder secular, mas também acima de todos
os outros na Igreja.”72
No final da Idade Média, a igreja na Europa assumiu a tarefa de cuidar
exclusivamente da salvação em nome de Deus através dos sete sacramentos fornecidos
através da estrutura hierárquica do papa através dos ordenados aos leigos e acreditava-
se que seja sem erro no entendimento de Deus, dos humanos, e da graça salvadora que
dispensava. Além disso, o sistema capacitava pessoas sem escrúpulos a tirar vantagem
do sistema autoritário, trazendo para si poder, dinheiro e licença para agir como
quisessem. O dom gratuito da graça de Deus foi amplamente ofuscado. É realmente uma
graça incrível que Deus tenha alcançado as pessoas em meio a tudo isso, mas Ele o fez.
O PROTESTO PARA RECONFIRMAR A GRAÇA DE DEUS
Os protestos contra o sistema e os abusos do sistema surgiram como uma
redescoberta da graça. Muitos conceitos diferentes de compreensão da graça foram
tentados. Alguns achavam que a remoção dos abusos e das pessoas sem escrúpulos
resolveria o problema de menosprezar a graça de Deus. Outros achavam que bastaria

68
Augustine, Civ., 20.8, in Dyson, trans., City of God, 982-983.
69
Tony Lane, A Concise History of Christian Thought, rev. and exp. ed. (Grand Rapids, MI: Baker Academic,
2006), 113.
70
Justo L. Gonzalez, A History of Christian Thought in One Volume (Nashville, TN: Abingdon, 2014), 202.
71
Peter Lombard, Sent., 4.5.3.4, in Giulio Silano, trans., Peter Lombard: the Sentences, Book 4 On the
Doctrine of Signs, Mediaeval Sources in Translation, vol. 48, ed. Joseph Goering and Guilio Silano (Toronto:
Pontifical Institute of Mediaeval Studies, 2010), 31.
72
G. R. Evans, Fifty Key Medieval Thinkers (New York: Routledge, 2002), 96.

217
reduzir o número de sacramentos a apenas dois do Novo Testamento, o batismo e a
Ceia do Senhor. No entanto:
aqueles que afirmam que os sacramentos têm o poder de justificar e conceder graça
também estão enganados. Seu erro consiste em confundir a “figura” do sacramento com a
“verdade” nele. . . . Tal confusão leva à superstição, que consiste em colocar a fé naquilo
que não é Deus. Isso perverte a própria natureza do sacramento, cujo propósito é
precisamente excluir qualquer outra reivindicação de justificação e focalizar a fé em Jesus
Cristo. De fato, o próprio Cristo é a verdadeira substância de todos os sacramentos, pois ele
é a fonte de sua força, e eles prometem e concedem nada além dele. 73

Lutero e Calvino: Monergismo Novamente; Graça Comum


Embora Guilherme de Ockham (1285-1347),74 John Wyclif (ca. 1329 - 1384),75 e Jan
Hus (falecido em 1415)76 tenham contribuído para a ideia de uma reforma do
cristianismo que não remontasse às leis de Justiniano (Imperador 527-565),77 mas
voltando à mensagem da própria Bíblia, Martinho Lutero (1483-1546)78 geralmente é
creditado por iniciar a Reforma Protestante em 1517 com suas 95 Teses contra a venda
de indulgências. A Tese 82 atingiu a própria essência do problema da igreja papal ser o
canal da graça ao desafiar: “Por que o papa não liberta todos do purgatório por amor
(uma coisa santíssima) e por causa da suprema necessidade de suas almas? Esta seria
moralmente a melhor de todas as razões. Enquanto isso, ele redime inúmeras almas por
dinheiro”79 Esse protesto floresceria em uma compreensão renovada da graça, acima e
contra o semipelagianismo orientado pela igreja que era tão prevalente na escolástica
medieval.
As lutas espirituais de Martinho Lutero quando jovem foram em grande parte
causadas por Gabriel Biel [ca. 1425-1495] ensinando sobre a graça.80 Biel ensinou que
Deus infunde graça nas almas daqueles que removem os obstáculos da graça “cessando
o ato do pecado, deixando de consentir com ele e provocando um bom movimento em
direção a Deus”.81 Isso se parece muito com a graça conquistada pelos santos de
Orígenes e ensinada no modelo cooperativo de João Cassiano. Lutero ficou perturbado

73
Gonzalez, Christian Thought in One Volume, 259
74
Evans, Fifty Key Medieval Thinkers, 150-151. Ockham ensinou que os governantes seculares e os
conselhos da igreja tinham mais autoridade do que os papas.
75
Ibid., 158-164. Wyclif não apenas insistiu e trabalhou para a tradução da Bíblia para o vernáculo, mas
também ensinou que as Escrituras tinham mais autoridade do que todos os papas, clérigos e ordens de
monges. Ele encorajou a pregação bíblica como mais importante para a salvação do que a Eucaristia.
76
Olson, The Story of Christian Theology, 370: “Tão semelhante era a teologia de Martinho Lutero a Hus
que muitos o rotularam de 'o Hus saxão'”
77
F. Donald Logan, A History of the Church in the Middle Ages (Nova York: Routledge, 2002), 30; “O direito
canônico, com seu enorme impacto na igreja medieval, tomou sua forma e, de fato, muito de sua
substância a partir das reformas legais do imperador Justiniano”, ibid., 33
78
Olson, Story of Christian Theology, 375.
79
Ibid., 378.
80
Lane, Concise History of Christian Thought, 143-144.

81
Gabriel Biel, Commentary on the Sentences 2.27.1, quoted in Lane, Concise History of Christian
Theology, 145.

218
porque “não pôde satisfazer a pré-condição para a salvação”.82 Lutero descobriu,
primeiro nos Salmos, e mais tarde no livro de Romanos, que a graça não é conquistada,
mas recebida como um dom gratuito de Deus. “O verdadeiro arrependimento deve ser
visto como o resultado, e não a precondição, da graça.”83 Para simplificar, Lutero
aprendeu a depender de Deus para fazer o que Lutero não podia: iniciar a salvação com
dons da graça.
Esse avanço levou Lutero a querer estudar e ensinar apenas a Bíblia e Agostinho,
não os escolásticos medievais.84 Infelizmente, Lutero falhou onde Agostinho falhou, e
onde João Calvino (1509-1564)85 falhou, ao passar de um sinergismo incorreto que dava
muita responsabilidade ao humano pela salvação para um monergismo onde a vontade
humana está sempre limitada86 e a resposta a obra de salvação de Deus é puramente
passiva.
Antes de abordar Jacó Armínio e a resposta teológica à passividade total na
predestinação, há outro entendimento de graça que é adotado por João Calvino: graça
comum. A ideia básica da graça comum não é ruim, pois ensina que Deus dá dons a
todas as pessoas, não apenas àqueles que respondem positivamente a Ele. Isso é
verdade. Deus dá as bênçãos da vida e da chuva para todos os tipos de pessoas, não
apenas para aqueles que aceitaram Sua salvação. Assim, este dom da graça é comum a
todos. Onde Calvino erra é quando argumenta que essa graça comum não é um convite
à salvação. Para Calvino, a vontade de Deus é absoluta. Então, se Ele quiser te salvar,
você será salvo. Se não, você estará perdido. Ponto final.87 O próprio Calvino minimizou
a predestinação como consequência da soberania de Deus e Sua iniciativa na salvação.
Seus sucessores reimaginaram a predestinação como um princípio central do
pensamento reformado sobre a soberania de Deus.88 No que diz respeito à graça, no
entanto, uma completa falta de escolha humana na questão da salvação, como no
monergismo, deixa a graça salvadora como apenas para alguns e não para outros
(expiação limitada) e como irresistível. Mas aqui está a falha no conceito de graça
comum de Calvino: uma vez que é para todos, não pode ser útil para a salvação. Parece
um presente falso. Um indivíduo pode ser grato a Deus pelas bênçãos, mas não pode
responder a Deus em um relacionamento. Isso é estranho. Em vez disso, o que parece
ser verdade é que todos os dons de Deus são convites para um relacionamento salvífico,
de modo que a graça comum é um subconjunto da graça preveniente.

82
Alister McGrath, Reformation Thought: An Introduction, 2nd ed. (Oxford: Blackwell, 1993), 94. Observe
a excelente discussão de Lutero chegar a um acordo com a justiça de Deus como um dom e não como Sua
ira em ibid., 93-101.
83
Ibid., 96-97.
84
McGrath, Reformation Thought, 102.
85
Olson, Story of Christian Theology, 408.
86
Lane, Concise History of Christian Thought, 158. Lane aponta que Lutero vai ainda mais longe do que
Agostinho em relação à vontade humana predestinada não ter escolhas, não apenas a incapacidade de
escolher o bem.
87
McGrath, Reformation Thought, 125-126.
88
Ibid., 123.

219
Jacó Armínio: Graça Preventiva, Escolha Fortalecida
Jacó Armínio (1560-1609)89 ensinou que toda graça é de um tipo, e tudo leva à
salvação, e é oferecida a todos. Isso não quer dizer que ele não reconheceu diferentes
formas de graça, ou que existem muitos dons diferentes dados gratuitamente por Deus;
é só que Deus está tentando salvar a todos (João 12:32), então todos os Seus dons são
como convites para a salvação. Semelhante ao uso da graça preveniente por Agostinho,
Armínio a descreve como os passos iniciais em Deus chamando cada pessoa para
permitir que Ele salve essa pessoa. Deus, como Armínio O vê, quer estar em um
relacionamento próximo com a humanidade. Isso é totalmente diferente da visão
escolástica de Deus como atemporal e, portanto, onisciente.90 Desta forma, Teodoro
Beza (1519-1605)91 e outros calvinistas após Calvino explicam como é que Deus
predestina, elege e conhece o resultado ao mesmo tempo. Na opinião deles, para Deus,
todo o tempo é um. Armínio, também um calvinista pós-Calvino, treinado por Beza, está
tentando entender como a predestinação pode ser entendida para não deixar Deus
responsável tanto pelo pecado de Adão quanto pelos pecados dos predestinados à
perda eterna. Ao estabelecer “a causa final na predestinação”, Armínio argumenta que
está tudo bem se Deus pré-conhecer e a partir desse conhecimento predestina:
Mas se você pensa que Deus, desde a eternidade, sem qualquer preexistência de pecado,
em Sua presciência, determinou ilustrar Sua própria glória por misericórdia e justiça
punitiva, e, para que pudesse garantir esse objetivo, decretou criar o homem bom, mas
mutável, e ordenado para que ele caia, para que assim haja lugar para esse decreto, digo
que tal opinião não pode, em meu julgamento, ser estabelecida por nenhuma passagem da
Palavra de Deus.92

Armínio está claramente mais preocupado com a verdade bíblica e uma visão
correta de Deus do que apenas com a soberania de Deus. Algumas páginas depois ele
afirma: “Pois nesse caso, a culpa poderia ser justa e merecidamente imputada a Deus,
que seria a causa do pecado.”93
John Wesley, Santificação sem Perfeccionismo
John Wesley (1703-1791)94 levou a sério esta mensagem de Armínio sobre a graça
preveniente permitindo a escolha pessoal na salvação. John Wesley, junto com seu
irmão Charles (1707-1788),95 o grande escritor de hinos, George Whitfield (1714-

89
Olson, Story of Christian Theology, 454.
90
90. Olson, Story of Christian Theology, 457.
91
Ibid., 456.
92
Jacob Arminius, “An Examination of Predestination and Grace in Perkins’ Pamphlet,” Part 1, quoted in
John D. Wagner, ed., Arminius Speaks: Essential Writings on Predestination, Free Will, and the Nature of
God (Eugene, OR: Wipf and Stock, 2011), 97.
93
Ibid., 104.
94
Ibid., 510-511.

95
Lane, Concise History of Christian Thought, 214.

220
1770),96 e outros compartilharam o pietismo97 de seu tempo e começaram um “Holy
Club” na Universidade de Oxford. Mais tarde, eles experimentaram uma consciência de
salvação pessoal e desencadearam o Grande Despertar na Inglaterra e nas colônias
americanas. Wesley expressou sua experiência de garantia pessoal da graça e salvação
de Deus em seu diário:
À noite, fui muito a contragosto a uma sociedade em Aldersgate Street, onde se estava lendo
o prefácio de Lutero à Epístola aos Romanos. Cerca de um quarto antes das nove [8:45h],
enquanto ele descrevia a mudança que Deus opera no coração por meio da fé em Cristo,
senti meu coração estranhamente aquecido. Senti que confiava em Cristo, somente em
Cristo, para a salvação; e foi-me dada a certeza de que ele havia tirado os meus pecados,
sim os meus, e me salvou da lei do pecado e da morte.98

A ênfase de John Wesley na vida convertida de santidade o tornou suscetível ao


perfeccionismo; ele até experimentou por um tempo o conceito de perfeição
instantânea. O que salvou Wesley de uma compreensão perfeccionista da salvação foi
sua dupla ênfase na graça preveniente e no amor de Deus. Para Wesley, a perfeição
cristã não é “infalibilidade espiritual. Wesley deixou claro que o cristão ainda está sujeito
ao pecado, e não possui conhecimento absoluto, julgamento absoluto ou desempenho
absoluto.”99 Como citado anteriormente, Wesley confiava em “Cristo, somente Cristo”,
para sua salvação. Isso inclui sua ênfase no “poder para começar”, ou graça preveniente,
que Cristo inicia a salvação.100 Também inclui que Cristo fornece justificação, “o ponto
de mudança”.101 Também inclui a experiência do novo nascimento, ou transformação:
“Wesley chamou de atividade de Deus de renovar nossas naturezas caídas.” 102 Wesley
era um forte proponente da santificação capacitada por Deus. No entanto, ele não
mudou para um entendimento semipelagiano de que de alguma forma os humanos
podem passar sem graça e perdão após a renovação. De fato, Wesley encarregou
aqueles que sentiam ter experimentado a perfeição cristã a “avançar para a perfeição”,
referindo-se ao crescimento no amor cristão. “A perfeição cristã é assim. Há uma graça
santificadora que pode operar na vida de alguém por um momento.” A experiência pode
ser notada e descrita. Mas a experiência perde todo o seu significado quando é
divorciada da atividade maior da graça antes e depois. A graça de Deus nos leva ao lugar
da perfeição cristã (vista estreitamente), e nos leva depois da experiência em si.”103

96
Gonzalez, Christian Thought in One Volume, 307.
97
Lane, Concise History of Christian Thought, 166-167. Lane, História Concisa do Pensamento Cristão, 166-
167. O pietismo é uma atitude religiosa cristã que enfatiza uma fé pessoal e sincera em Jesus Cristo e a
necessidade de nascer de novo. Dentro dessa atitude não basta ser membro batizado ou crer em um
conjunto de doutrinas; é preciso “experimentar o Espírito Santo na conversão e na vida nova”.
98
John Wesley, Journal of John Wesley, 24 May 1738, quoted in Lane, Concise History of Christian
Thought, 213.
99
Wesley, “Christian Perfection,” in Steve Harper, John Wesleys Message for Today (Grand Rapids, MI:
Zondervan, 1983), 92.
100
Ibid., 39-46.
101
Ibid., 49-59.
102
Wesley, “The New Birth,” in Harper, John Wesleys Message for Today, 65.
103
Ibid., 94.

221
John Wesley colocou o amor de Deus no centro de sua pregação e ensino,104 o que
lhe permitiu colocar a confiança em Deus no centro de sua compreensão da salvação.
Essa ênfase na confiabilidade de Deus, juntamente com a graça preveniente, permitiu
que Wesley evitasse as tendências pelagianas e dependesse de Deus para sua salvação,
do início ao fim, cada passo dependendo de Deus.
Ellen White, Steps to Christ [Caminho a Cristo]: Sinergismo Capacitado por Deus
Junto com Joseph Bates (1792-1872)105 e Tiago White (1821-1871),106 Ellen White
(1827-1915)107 foi a fundadora da Igreja Adventista do Sétimo Dia.108 Ela desempenhou
um papel profético na formação do adventismo bem como um papel teológico, pois ela
confirmou as escolhas teológicas bíblicas da denominação, orientou a aplicação de
políticas e liderou as nuances de como viver a vida cristã como adventista. Ela escreveu
prolificamente tanto no nível pessoal quanto em artigos e livros para a igreja
corporativa. Seu livro mais lido e mais vendido é seu livro de 1892 intitulado Steps to
Christ.109 Ele contém treze capítulos que são fáceis de ver seguindo um caminho de
passos para um relacionamento mais profundo com Jesus Cristo como salvador. A cada
passo ela mostra como Deus inicia a interação e fortalece o passo. Começando com o
amor de Deus pela humanidade e a absoluta incapacidade do pecador de reconhecer
sua falta e necessidade de Deus, White mostra que o próprio desejo de ter algo melhor
é um dom poderoso de Deus para cada pecador que permite que os pensamentos
continuem. O mesmo pode ser dito do arrependimento: “Não podemos nos arrepender
sem o Espírito de Cristo para despertar a consciência, assim como não podemos ser
perdoados sem Cristo”.110 A confissão também é um dom poderoso de Deus: “A menos
que ele ceda ao poder convincente do Espírito Santo, ele permanece em cegueira parcial
para o seu pecado. Suas confissões não são sinceras e sérias.”111 A fé não vem do
pecador, mas é fortalecida dentro do pecador que está disposto a deixar Deus trabalhar.
Na obra da salvação, o pecador não está cooperando com Deus, mas permitindo
que Deus trabalhe nele. Deus faz a obra de chamar, cortejar, permitir o arrependimento
e a confissão, o perdão e a mudança. O papel do pecador na descrição de White sobre
o relacionamento salvífico é a disposição de deixar Deus trabalhar em cada passo à
medida que Deus move o pecador através da graça preveniente para a graça perdoadora
e a graça salvadora e para a graça transformadora, repetindo os passos e avançando

104
Olson, Story of Christian Thought, 512.
105
George R. Knight, ed., Autobiography of Joseph Bates, Adventist Classic Library (Berrien Springs, MI:
Andrews University Press, 2004), viii, xiv
106
Ellen G. White, Life Sketches: Ancestry, Early Life, Christian Experience, and Extensive Labors, of Elder
James White, and His Wife, Mrs. Ellen G. White (Battle Creek, MI: Steam Press, 1880), 9.
107
Arthur L. White, Ellen G. White: The Early Years, 1827-1862 (Hagerstown, MD: Review and Herald,
1985), 9.
108
George R. Knight, Joseph Bates: The Real Founder of Seventh-day Adventism (Hagerstown, MD: Review
and Herald, 2004), ix.
109
Ellen G. White, Steps to Christ (Chicago, IL: F. H. Revell, 1892).
110
Ellen G. White, Steps to Christ (Washington, DC: Review and Herald, 1908), 26.
111
Ibid., 40.

222
conforme necessário.112 Esta não é uma cooperação semipelagiana entre Deus e o
pecador para compartilhar a obra da salvação. Esta é a salvação do lado de Deus e a
vontade de ser salvo do lado do pecador. É sinérgico, mas todo o trabalho é iniciado e
capacitado por Deus:
O coração de Deus anseia por Seus filhos terrenos com um amor mais forte que a morte. Ao
entregar Seu Filho, Ele derramou para nós todo o céu em um presente. A vida, morte e
intercessão do Salvador, o ministério dos anjos, a súplica do Espírito, o Pai operando acima
e por meio de todos, o interesse incessante dos seres celestiais — todos são alistados em
favor da redenção do homem.113

Ellen White fala ousadamente do esforço humano em trabalhar para Deus e para a
salvação de outros. Ela fala da vida de Cristo na terra sendo de esforço, não de facilidade,
e é um exemplo para todos os crentes: “Ele trabalhou com esforço persistente,
fervoroso e incansável pela salvação da humanidade perdida... graça de Cristo estará
pronto para fazer qualquer sacrifício, para que outros por quem Ele morreu possam
compartilhar o dom celestial”.114 Para Ellen White, os esforços e obras dos humanos,
então, não são para obter a salvação, mas são uma resposta amorosa aos dons gratuitos
da salvação concedidos em amor por Deus.
CONCLUSÃO
Na história da interpretação da graça, desde o apóstolo Paulo até a Igreja Adventista
do Sétimo Dia, tem havido uma luta constante entre depender da igreja e depender de
si mesmo para a salvação, ao invés de depender de Deus. Para aqueles que dependem
de Deus para sua salvação, tem havido uma luta entre ver a escolha de Deus de salvar
como seletiva e irresistível, ou universal e resistível. Na história da Igreja Adventista do
Sétimo Dia, houve esses mesmos tipos de lutas. Felizmente, Caminho a Cristo foi escrito
e é amplamente lido. Infelizmente, era extremamente necessário para uma
denominação adventista que estava tão empenhada em restaurar uma compreensão
correta da lei de Deus que tendia a uma visão de salvação que dependia demais das
habilidades do pecador e não o suficiente de Deus. Sem rodeios, havia muitos
semipelagianos nas fileiras que precisavam da mensagem de que a salvação vem
somente de Deus, não da cooperação com Deus. A cooperação com Deus na salvação
tem prevalecido demais ao longo da história da igreja cristã, tanto em termos de
humanos tendo uma parte das obras, ou operações, na salvação (como era evidente em
João Cassiano), quanto nas operações do a igreja sendo a garantia da salvação (como se
tornou a norma na igreja medieval, conforme resumido por Peter Lombard).
O problema com o conceito de cooperação humana na salvação é que somente
Deus tem o poder de operar no contexto do pecado. O pecador não tem habilidade para
operar sua saída do pecado; o pecador depende das operações de Deus em seu favor.

112
“A obra da graça de Deus sobre todos os seres humanos os prepara para receber Sua oferta de
salvação” (The Ellen G. White Encyclopedia, ed. Denis Fortin and Jerry Moon [Hagerstown, MD: Review
and Herald, 2013], 250. Para uma conversa mais completa sobre o entendimento de Ellen White sobre a
graça preveniente, veja a seção intitulada “Wesleyan Methodism,” pp. 248-255).
113
Ellen G. White, Steps to Christ (Mountain View, CA: Pacific Press Publishing Association, 1956), 21.
114
Ibid., 78.

223
No entanto, se a salvação fosse um monergismo completo, como afirmaram Agostinho,
Lutero e Calvino, não haveria liberdade de escolha. Pior ainda, liberdade de escolha é
precisamente o que falta ao pecador, sem graça preveniente. O fio da história da graça
que percorre Jacó Armínio, João Wesley e Ellen White restaura a escolha humana no
contexto dos convites fortalecedores de Deus por meio da graça preveniente. A graça
preveniente também permite logicamente que Deus convide todos a aceitar a salvação
sem tornar esses convites irresistíveis. Com a escolha capacitada por Deus restaurada
através da graça preveniente, o papel dos pecadores na salvação é permitir ou rejeitar
os dons graciosos das operações salvadoras de Deus em favor de cada pecador,
capacitando o pecador salvo a querer e agir de acordo com a lei de Deus em resposta
ao amor de Deus.

224
CAPÍTULO 14
A GRAÇA QUE VEM ANTES DAQUILO QUE DIZEMOS SER
GRAÇA
George R. Knight

A graça tem muitos sabores. Há a graça justificadora pela qual Deus considera os
indivíduos justos, a graça transformadora pela qual Ele os torna novas criaturas, a graça
capacitadora pela qual Ele os energiza para andar na vida dura, e a graça perdoadora
quando eles falham no andar cristão. E esses são apenas alguns dos sabores.
A graça é absolutamente central para todo o plano de salvação na Bíblia, e no
contexto de uma humanidade pecadora, vivendo em um planeta pecaminoso, toda
graça é destinada por Deus para levar à salvação. No entanto, a natureza da graça não
fica muito tempo no ar além de sua definição como favor imerecido ou Deus dando aos
pecadores o que eles não merecem. Uma definição mais precisa e útil é “graça é um
termo abrangente para todos os dons de Deus para a humanidade, todas as bênçãos da
salvação, todos os eventos através dos quais se manifesta a autodoação de Deus. A graça
é um atributo divino que revela o coração do único Deus, a premissa de toda bênção
espiritual.”1 Novamente, “a graça é o favor demonstrado por Deus aos pecadores. É a
boa vontade divina oferecida àqueles que não a merecem inerentemente nem podem
esperar ganhá-la. É a disposição divina de trabalhar em nossos corações, vontades e
ações, de modo a comunicar ativamente o amor abnegado de Deus pela humanidade
(Rm 3:24; 6:1; Ef 1:7; 2:5-8).”2
A partir dessas definições, fica claro que o tópico da graça é muito mais abrangente
do que a maioria das pessoas imagina que seja. O tópico para este capítulo é “a graça
que vem antes”. Mas a pergunta que precisa ser feita é: Antes de quê? E a resposta é
antes da graça salvadora. Aqui está uma forma absolutamente essencial de graça que
tem sido praticamente ignorada nas discussões adventistas sobre salvação e até mesmo
na maioria dos ensinamentos denominacionais sobre salvação. No entanto, é central
para a compreensão bíblica da obra salvadora de Deus.
O PROBLEMA E A NECESSIDADE
O problema é que a maioria das pessoas confunde livre-arbítrio com livre graça.
Mas os pecadores em seu estado não renovado realmente têm livre-arbítrio? A resposta
da Bíblia é um inequívoco não. Como foi observado no capítulo 8, os indivíduos nascem
com uma natureza pecaminosa, ou o que Ellen White chama de “uma inclinação” para

1
Thomas C. Oden, The Transforming Power of Grace (Nashville: Abingdon, 1993), 33.
2
Ibid.

225
o pecado.3 O ensino bíblico sobre o pecado e a depravação total significa que cada parte
da vida humana foi infectada pelo pecado, incluindo o coração, a mente e a vontade,
tanto que Paulo se refere a indivíduos não renovados como escravos do pecado, vivendo
nas trevas, duro de coração e alienado de Deus (Rm 6:12-17; Ef 4:18).
Como é que pessoas em tal condição podem escolher Deus? A resposta curta é que
eles não podem. Somente a ajuda divina torna essa escolha possível.
Nesta conjuntura, deve haver um exame dos três argumentos contra o livre-arbítrio
em indivíduos não renovados e em favor de sua necessidade da graça que precede a
graça salvadora. O primeiro argumento, fundamental para a discussão, é que Jesus
negou categoricamente a ideia de que pessoas não renovadas pudessem escolher segui-
lo. “Ninguém”, afirmou, “pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o trouxer” (Jo
6:44).4 Novamente: “Eu, quando for levantado da terra, todos atrairei a mim” (Jo 12:32).
De acordo com Jesus, não é o livre-arbítrio, mas o Seu poder cheio de graça que atrai os
indivíduos a Ele. O livre-arbítrio voltar-se para Deus não é nem mesmo uma
possibilidade. Mas por que?
Essa pergunta leva a duas outras razões bíblicas contra o início da salvação pelo
livre-arbítrio. Uma delas é, como observado anteriormente, as Bíblias ensinam sobre a
depravação e a escravização da vontade humana. Paulo coloca o assunto sem rodeios
quando escreve que as pessoas estão “mortas em delitos e pecados” (Ef 2:1, NKJV). Com
essa passagem em mente, um pensador sobre o assunto sugeriu que um pecador não
pode se voltar para Deus mais do que os cadáveres podem se entregar em seus
túmulos.5 Romanos 3:9-20 repetidamente leva esse pensamento para casa quando
demonstra que “ninguém busca a Deus” (v. 11) Jesus afirma isso quando afirma que
“sem mim nada podeis fazer” (Jo 15:5). E aqueles mortos em pecado não podem
entender as coisas espirituais (Rm 8:7-8; 1Co 2:14), então como eles poderiam se voltar
para Deus? Eles permanecerão nessa condição de mortos até que a graça de Deus os
torne vivos (Ef 2:1-5).
Enquanto antes da queda Adão tinha livre arbítrio, desde aquela época os humanos
em seu estado não renovado têm vontades distorcidas que são incapazes de escolher
Deus. John Wesley resume a posição da Bíblia sobre o assunto de forma sucinta quando
escreve que “a condição do homem após a queda de Adão é tal que ele não pode voltar
e preparar-se, por sua própria força natural e boas obras, para a fé e invocar a Deus.”6

3
Ellen G. White, Education (Mountain View, CA: Pacific Press, 1952), 29.
4
Salvo indicação em contrário, todas as citações das Escrituras são retiradas da Versão Padrão Revisada
da Bíblia, copyright © 1946, 1952 e 1971 da Divisão de Educação Cristã do Conselho Nacional das Igrejas
de Cristo nos Estados Unidos da América. Usado com permissão. Todos os direitos reservados. O itálico
nas citações das Escrituras representa a ênfase acrescentada pelo autor.
5
John W. Fletcher, The Works of the Rev. John Fletcher, vol. 1, ed. Abraham Scott (London: Thomas
Allman, 1836), 229.
6
John Wesley, The Works of John Wesley, vol. 5, ed. John Emory (New York: J. Emory and B. Waugh,
1831), 39.

226
Essa conclusão leva a outra importante razão bíblica de por que os humanos não
podem iniciar o processo de salvação escolhendo seguir a Deus: a salvação é cem por
cento somente pela graça do começo ao fim. "Pois pela graça você foi salvo por sua fé;
e isto não vem de vocês, é dom de Deus; não por causa de obras, para que ninguém se
glorie” (Ef 2:8-9).
O problema com a ideia de que os pecadores podem iniciar o processo de salvação
em suas vidas por meio do livre-arbítrio é que esse mesmo ensinamento não apenas
contradiz Jesus e Paulo, mas também torna essa escolha do livre-arbítrio uma obra de
mérito humano e dá crédito a alguns humanos que fizeram escolhas melhores do que
outros. Assim, por um mal-entendido do livre-arbítrio, muitos têm caminhado na justiça
das obras e, de fato, terão algo para se gabar por toda a eternidade. No entanto, a Bíblia
dá todo o crédito por toda a salvação somente a Deus. A salvação é somente pela graça.
Ponto final. A Bíblia não tem declarações condicionais que possam permitir que o livre
arbítrio humano inicie o processo. “Ninguém”, afirma Jesus, “pode vir a mim, se o Pai
que me enviou não o trouxer” (Jo 6:44). Ellen White está plenamente em harmonia com
essa posição:
Muitos estão confusos quanto ao que constitui os primeiros passos na obra da salvação.
Pensa-se que o arrependimento é uma obra que o pecador deve fazer por si mesmo, a fim
de que possa vir a Cristo. Embora seja verdade que o arrependimento deva preceder o
perdão,... ainda assim, o pecador não pode se arrepender ou preparar-se para vir a Cristo.
... O primeiro passo para Cristo é dado pela atração do Espírito de Deus; como o homem
responde a esta atração, ele avança em direção a Cristo para que ele possa se arrepender.
O arrependimento não é menos dom de Deus do que o perdão e a justificação, e não pode
ser experimentado a menos que seja dado à alma por Cristo.7

Este problema teológico genuíno foi resolvido de duas maneiras básicas. A primeira
é a predestinação absoluta, na qual a vontade é basicamente aniquilada quando Deus
decreta que alguns indivíduos serão salvos. A segunda é que a graça de Deus entra em
operação antes da graça salvadora, restaurando assim o livre arbítrio e dando aos
indivíduos a possibilidade de escolher seguir o desenho de Cristo. Os teólogos deram o
nome de graça preveniente àquela graça que precede e prepara o caminho para a graça
salvadora.
AS CARACTERÍSTICAS DA GRAÇA PREVENIENTE
Antes de explorar as características da graça preveniente, o termo precisa ser
definido e sua relação com a graça comum deve ser examinada. O termo preveniente
vem do latim e significa “vir antes”. Em termos de salvação, vem antes de tudo no
processo de redenção. Em relação à declaração de Jesus em João 6:44, pode ser vista
como o início do processo pelo qual Jesus “atrai” uma pessoa para Si. Como tal, prepara
o coração do incrédulo para responder às boas novas da salvação em Cristo.
H. Orton Wiley oferece uma definição útil quando descreve a graça preveniente
desta forma:

7
Ellen G. White, Selected Messages (Washington, DC: Review and Herald, 1958), 1:390-391.

227
... aquela graça que “vai antes” ou prepara a alma para a entrada no estado inicial de
salvação. É a graça preparatória do Espírito Santo exercida para com o homem indefeso no
pecado. Como respeita o culpado, pode ser considerado misericórdia; na medida em que
respeita os impotentes, é um poder capacitador. Pode ser definida, portanto, como aquela
manifestação da influência divina que precede a plena vida regenerada.8

A definição de Thomas Odens também é perspicaz e ajuda a preencher o quadro. A


graça preveniente, escreve ele, “antecede à capacidade de resposta humana de modo a
preparar a alma para a escuta eficaz da Palavra redentora. Essa graça precedente
aproxima as pessoas de Deus, diminui sua cegueira aos remédios divinos, fortalece sua
vontade de aceitar a verdade revelada e permite o arrependimento. Somente quando
os pecadores são assistidos pela graça preveniente, eles podem começar a entregar seus
corações à cooperação com formas subsequentes de graça.”9
Deve-se notar que a graça preveniente não é um termo bíblico. Por outro lado, é
um conceito bíblico que é consistentemente evidente na apresentação bíblica da
salvação. Exemplos são encontrados em João 6:44 e 12:32, nos quais Jesus deixa claro
as limitações da capacidade humana e fala de Seu poder de atração; João 1:9, que fala
de Jesus iluminando cada pessoa que vem ao mundo; e Romanos 2:12-14, que apresenta
a obra de Deus nos corações dos pagãos.
Outro tópico preliminar na discussão é a relação da graça preveniente com a graça
comum. A graça comum é definida por Millard Erickson como “graça estendida a todas
as pessoas pela providência geral de Deus” em coisas como “sua provisão de sol e chuva
para todos”.10 A graça comum provê não apenas para a sustentação de Deus de um
mundo pecaminoso, mas também fornece o fundamento teológico para uma
consciência de Deus e consciência do certo e do errado, mesmo para pessoas seculares
(Rm 1:19-2:15), e para justiça nas sociedades seculares, apesar da depravação humana.
Ainda assim, aqueles na tradição teológica arminiana/wesleyana “não acreditavam
que a graça comum por si só fosse suficiente para desejar o bem”. Em vez disso, Roger
Olson aponta, “uma infusão especial de graça sobrenatural é necessária até mesmo para
o primeiro exercício de uma boa vontade para com Deus”.11 Essa infusão especial é a
graça preveniente.
Mas o que é graça preveniente? Quais são suas características gerais? A primeira é
que é universal. Assim como os resultados do pecado de Adão são universais, também
na justiça de Deus o dom da graça preveniente através do Espírito Santo é um dom
universal para cada pessoa. Assim, assim como Cristo morreu “como resgate por todos”
(1 Tm 2:6), também “a graça de Deus se manifestou para a salvação de todos os homens”
(Tt 2:11). Foi com essa perspectiva universal em mente que Cristo afirmou que “quando
for levantado da terra”, “atrairei todos a mim” (João 12:32). E João 3:16 proclama que

8
H. Orton Wiley, Christian Theology (Kansas City, MO: Beacon Hill Press of Kansas City, 1952), 2:345-346.
9
Oden, Transforming Power of Grace, 47.
10
Millard J. Erickson, The Concise Dictionary of Christian Theology (Grand Rapids: Baker, 1986), 69.
11
Roger E. Olson, Arminian Theology: Myths and Realities (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2006),
42.

228
“Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu único Filho”, para “que todo aquele
que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”. “Todos” e “quem” incluem todos os
que já nasceram e não apenas aqueles que tiveram a sorte de nascer em uma nação
cristã ou perto de uma estação missionária. Cristo é a “verdadeira luz” que “ilumina a
todo homem” (Jo 1:9, NASB).
A autora adventista Ellen White reconheceu a natureza universal da graça que vem
antes da graça salvadora quando escreveu que “onde quer que haja um impulso de
amor” que “estende para abençoar e elevar outros, é revelada a operação do Espírito
Santo de Deus. Nas profundezas do paganismo, homens que não tiveram conhecimento
da lei escrita de Deus, que nunca ouviram o nome de Cristo, realizaram ações que
demonstram “a operação de um poder divino. O Espírito Santo implantou a graça de
Cristo no coração do selvagem”. Ela continua apontando que a “Luz que ilumina a todo
homem que vem ao mundo” (Jo 1:9), está brilhando em sua alma; e esta luz, se atendida,
guiará seus pés para o reino de Deus.”12 O dom universal da graça preveniente é um fato
da justiça de Deus em Seu desejo de que “nenhum pereça, mas que todos cheguem ao
arrependimento” (2Pe 3:9).
Um dos aspectos infelizes da história cristã é que alguns têm confundido a graça
preveniente universal com a justificação universal. O primeiro é um ensino bíblico, mas
o segundo não é.
Uma segunda característica principal da graça preveniente é que ela é uma graça
irresistível, embora sua obra no coração humano possa ser resistida. É irresistível porque
o Espírito Santo trabalha com cada pessoa que vem ao mundo, quer essa pessoa queira
Seu ministério ou não. Ainda assim, simplesmente porque Deus fornece graça
preveniente a cada pessoa nascida no mundo não significa que ela deva responder
positivamente a ela. Uma vez que um aspecto da graça preveniente é a restauração da
liberdade de escolher a favor ou contra Deus, a obra dessa graça pode ser resistida (Mt
23:37; Jo 5:40; At 7:51; Hb 10:29). Assim, embora a graça preveniente seja irresistível,
sua obra na vida de uma pessoa pode ser resistida. Wiley observa que uma pessoa “pode
resistir, mas não pode escapar”.13 Como resultado, a graça preveniente fornece
possibilidade universal, mas não salvação universal. Ela abre o caminho para a graça
salvadora, mas essa provisão adicional deve ser aceita ou rejeitada.
Esse pensamento traz o círculo completo da discussão – de volta ao tópico do livre-
arbítrio. No capítulo 8 notou-se que desde a Queda a vontade humana foi danificada e
tem uma inclinação para o mal. Em suma, os humanos não renovados não têm livre
arbítrio, mas uma vontade inclinada para o mal e para longe de Deus. Por outro lado, a
Bíblia retrata os indivíduos como sendo livres para escolher por Deus ou contra Ele e
Seus caminhos (Js 24:15; Mt 23:37; Jo 5:40; 7:17; Ap 22:17).

12
Ellen G. White, Christs Object Lessons (Washington, DC: Review and Herald, 1941), 385; cf. Ellen G.
White, The Desire of Ages (Mountain View, CA: Pacific Press, 1940), 638.
13
Wiley, Christian Theology, 2:355.

229
Não é difícil ver como as pessoas podem escolher resistir a Deus se suas vontades
estão corrompidas e inclinadas para o mal. Mas como é que eles podem escolher por
Deus? A resposta é uma “vontade livre, que, embora inicialmente presa pelo pecado, foi
trazida pela graça preveniente do Espírito de Cristo a um ponto em que pode responder
livremente ao chamado divino”.14 Oden refere-se a essa vontade livre como “liberdade
habilitada pela graça”.15 Adam Clarke, ao comentar Filipenses 2:12, destaca o processo
quando observa que “Deus dá poder à vontade, o homem quer por meio desse poder”.16
Com esses fatos em mente, e com o ensino do Novo Testamento sobre a vontade em
vista, não se deve dizer que as pessoas que responderam a Deus têm livre-arbítrio, mas
sim que eles têm livre-arbítrio, que é o terceiro maior característica da obra da graça
preveniente.
A quarta característica é que a conversão é a dobradiça que liga a obra da graça
preveniente à da graça salvadora. Quando reagida positivamente, a graça preveniente
resulta em graça salvadora. A graça claramente tem uma natureza progressiva: a graça
preveniente é o estágio da graça que permite uma resposta positiva a Deus, mas não
perdoa o pecado nem salva. Em vez disso, leva à convicção do pecado e permite que a
fé se desenvolva, mas não obriga a uma resposta de fé. No entanto, posiciona uma
pessoa para fazer uma escolha de fé positiva por Deus através do livre-arbítrio. É nesse
ponto que a graça progride para a fé salvadora em termos de justificação, santificação
e eventual glorificação. No processo, o livre-arbítrio passa a agir como livre-arbítrio na
tomada de decisões espirituais e na escolha de cooperar com Deus, que é ativo na vida
“tanto no querer como no realizar, segundo a sua boa vontade” (Fp 2:13). Ou, como diz
Oden, “a graça preveniente é a graça que começa a capacitar a pessoa a escolher ainda
mais cooperar com a graça salvadora”, é “aquela graça que nos ajuda a receber mais
graça”.17
Finalmente, a graça preveniente é a graça responsável, porque posiciona uma
pessoa para fazer uma escolha de fé por Deus, o que leva a uma responsabilidade
contínua por toda a vida pós-conversão da pessoa. A alternativa, é claro, é a
compreensão da predestinação da vontade caída que coloca toda a responsabilidade e
escolha sobre Deus e teoricamente poderia levar a um cristianismo passivo que não vê
compulsão para escolher continuar a viver de acordo com a vontade de Deus. Da
perspectiva da graça preveniente, o poder para escolhas e vidas responsáveis existe
desde o início da vida moral. Essas escolhas vão direto para a vida pós-conversão à
medida que os indivíduos vivem de acordo com a graça salvadora.

14
Olson, Arminian Theology, 164.
15
Oden, Transforming Power, 95.
16
Adam Clarke, The New Testament of Our Lord and Saviour Jesus Christ (New York: Abingdon, n.d.),
2:497.
17
Thomas C. Oden, John Wesleys Scriptural Christianity: A Plain Exposition of His Teaching on Christian
Doctrine (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1994), 243-244.

230
A FUNÇÃO DA GRAÇA PREVENIENTE COMO O ESPÍRITO SANTO ABRE A
POSSIBILIDADE DE CONVERSÃO
Roger Olson destaca as várias funções – ou o que pode ser considerado como sub-
graças – quando escreve que “a graça preveniente é simplesmente a graça de Deus que
convence, chama, ilumina e capacita, que precede a conversão e torna possível o
arrependimento e a fé”.18 A Bíblia apresenta o Espírito Santo como agente ativo em cada
um desses processos, atraindo os seres humanos para Deus e para a conversão.
Em relação à convicção, Jesus disse a Seus discípulos pouco antes de Sua
crucificação que Ele enviaria o Espírito que “convencerá o mundo do pecado, da justiça
e do juízo” (Jo 16:8). Uma parte desse processo de convicção é levar os indivíduos à
consciência de sua condição pecaminosa pessoal. Essa função é absolutamente crucial
no processo de conversão, pois sem a consciência da pecaminosidade pessoal, as
pessoas não sentirão necessidade de algo melhor. A convicção do pecado e a esperança
de uma vida mais plena que a acompanha leva à confissão e ao desejo por essa vida.
Uma segunda função da graça preveniente é o chamado de pessoas pelo Espírito,
um processo identificado por alguns como “graça do chamado”.19 Em seu nível mais
nebuloso e universal, esse chamado é o que Jesus chama de atrair todas as pessoas para
Si (Jo 6:44; 12:32). Em um nível mais concreto e específico, essa função de vocação do
Espírito está diretamente relacionada à Palavra de Deus e à pregação das boas novas de
salvação em Cristo. Nesse sentido, Paulo pode escrever aos tessalonicenses que Deus
“te chamou por meio do nosso evangelho” (2Ts 2:14). Essa mesma relação entre o
Espírito e o agente humano no chamado também é ilustrada em 2Co 5:20, em que Paulo
escreve: “Somos embaixadores de Cristo, Deus fazendo o seu apelo por nosso
intermédio”. Por causa do efeito chamador da graça preveniente, os cristãos são
definidos como aqueles que Deus “chamou das trevas para a sua maravilhosa luz” (1Pe
2:9).
Uma terceira função do Espírito Santo na graça preveniente é a iluminação, ou
iluminação, das mentes dos indivíduos para que possam ver melhor a verdade de Deus.
A importância da iluminação no processo de vocação/convicção que leva à conversão
torna-se evidente à luz do fato de que pessoas não espirituais não podem compreender
a verdade espiritual (1Co 2:14). Parte da dificuldade é que “o deus deste mundo cegou
o entendimento dos incrédulos, para que não vejam a luz do evangelho da glória de
Cristo” (2Co 4:4). Assim, se uma compreensão clara deve ser desenvolvida, deve ser por
iniciativa de Deus.
A iluminação, deve-se notar, vem em dois níveis. Em seu nível mais amplo, é por
meio dessa revelação geral que Deus deu a todas as pessoas no mundo natural (Rm 1:19-
20). Em uma frente mais estreita, refere-se à vantagem adicional da revelação especial
fornecida por Deus nas escrituras (2Tm 3:15-17). O Espírito opera por meio desses dois

18
Olson, Arminian Theology, 35.
19
Oden, Transforming Power, 49.

231
agentes em Sua obra de iluminação. Assim, todo indivíduo tem algum testemunho de
Deus quando se trata da obra de atrair a graça preveniente.
Uma quarta função da graça preveniente é capacitar os pecadores a responder ao
chamado de Deus. Uma coisa é ouvir a verdade, ser convencido e sentir o chamado de
Deus, mas sem o poder de responder, é tudo em vão. É o poder energizante do Espírito
Santo que torna possível o arrependimento e a fé. Por causa da escravidão da vontade
e da escravidão humana ao pecado (Rm 6:12-16), as pessoas não têm o poder necessário
para responder ao chamado de Deus. Os pecadores devem ser habilitados se quiserem
responder à atração e convicção de Deus.
Stanley Grenz ilustra a dinâmica do processo de habilitação quando escreve que
“enquanto o foco principal do trabalho de iluminação do Espírito é a mente, ele
direciona a capacitação para a vontade humana. A tarefa do Espírito é conquistar e
fortalecer a vontade, a fim de que o indivíduo deseje e seja capaz de responder ao
chamado de Deus”.20 Outras descrições do processo de habilitação afirmam que “a
graça opera para permitir que a vontade queira o bem”21 e “quebra a escravidão da
vontade de pecar e libera a vontade humana para decidir contra o pecado e se submeter
a Deus”.22
Embora a graça preveniente não seja o estágio da graça que perdoa pecados ou
salva, é o estágio que capacita a vontade a responder ao chamado de Deus para que as
pessoas possam ser salvas. O resultado final é que as boas novas estão em todas as
etapas do processo de salvação. É “o poder de Deus para a salvação” (Rm 1:16) que leva
homens e mulheres que responderam à obra do Espírito de convencer, chamar, iluminar
e capacitar a vontade a escolher o caminho da fé. Assim, a fé é a resposta adequada do
pecador à graça preveniente, mas mesmo essa fé deve ser vista como um dom do
Espírito. Essa escolha de fé leva ao novo nascimento (Jo 3:3, 5), que é em si uma
experiência divina, em vez de natural, pois Deus fornece “poder” para os indivíduos “se
tornarem filhos de Deus” (Jo 1:12-13).
BENEFÍCIOS RESULTANTES DA GRAÇA PREVENIENTE
Além de explorar o grande trabalho realizado em humanos por meio da graça
preveniente, é importante apreciar alguns de seus “benefícios colaterais” teológicos. A
primeira é que ajuda as pessoas a entender os ensinamentos bíblicos que são
problemáticos ou parecem contraditórios. Assim é que a graça preveniente ajuda as
pessoas a entender tanto a soberania divina quanto a liberdade humana.23 Sem uma
compreensão da graça preveniente, uma pessoa é forçada a escolher entre esses dois
conceitos, predestinação (ou seja, a vontade humana não tem parte) por um lado, ou
pelagianismo (ou seja, obras) por outro. Kenneth Collins destaca o fato de que a doutrina
da graça preveniente ajuda as pessoas a “manter juntos, sem qualquer contradição, os

20
Stanley J. Grenz, Theology for the Community of God (Nashville, TN: Broadman & Holman, 1994), 541.
21
Oden, Transforming Power, 95
22
Olson, Arminian Theology, 172.
23
Veja Thomas A. Langford, Practical Divinity: Theology in the Wesleyan Tradition, rev. ed. (Nashville,
TN: Abingdon, 1998), 1:28.

232
quatro motivos da depravação total, salvação pela graça, responsabilidade humana e
oferta de salvação a todos”.24 Isso é uma grande realização – muito além de abordagens
teológicas alternativas para esses ensinos bíblicos.
Um segundo benefício teológico da graça preveniente é que ela fornece uma
compreensão lógica da justiça de Deus. Seu ensino de que Deus está atraindo tudo para
Ele através de Sua graça apresenta um Deus que ama todos os Seus seres criados, não
apenas alguns deles. Aqueles que optam pela alternativa predestinariana estão presos
a um dilema inescapável – a saber, “se a salvação não é de forma alguma condicionada
pela resposta humana, então por que Deus não salva a todos?”25 Quão justo é um Deus
que condena eternamente uma parcela da população que não tinha capacidade de
responder à verdade divina ou, alternativamente, vivia muito longe do cristianismo para
ouvir a mensagem do evangelho pregada?
Um terceiro benefício teológico da graça preveniente, intimamente relacionado
com a justiça de Deus, é que ela eleva a responsabilidade humana ensinada na Bíblia.
Em contraste com a tentação de passividade e antinomianismo (isto é, ilegalidade)
encorajada pela predestinação ou outras teologias que implicam que não faz diferença
como as pessoas vivem porque Deus toma todas as decisões importantes
unilateralmente, a doutrina da graça preveniente reflete a posição bíblica de que todo
ser humano é responsável perante Deus em algum nível pelas escolhas que faz. É
somente de acordo com tal compreensão da responsabilidade humana que Deus
poderia ser visto como um juiz justo.
ADVENTISMO E GRAÇA PREVENIENTE
A graça preveniente está no centro da teologia adventista do sétimo dia, embora a
maioria dos membros da igreja provavelmente nunca tenha ouvido o termo antes de ler
este livro e mesmo que a maioria deles tenha uma visão inadequada do livre-arbítrio. As
preocupações adventistas com a justiça de Deus, a responsabilidade humana e a tensão
entre a soberania de Deus e a importância da resposta humana tornam importantes
para a denominação os insights relacionados à graça preveniente.
A declaração atual de crenças fundamentais do adventismo reflete tanto a
depravação quanto a graça preveniente, embora nenhum termo seja usado. No artigo 7
observa que Adão “descendentes compartilham” sua “natureza decaída e suas
consequências. Eles nascem com fraquezas e tendências para o mal.”26 Essa declaração
apresenta implicitamente os efeitos do pecado como contaminação, depravação e
incapacidade espiritual (ver capítulo 8), embora não sejam definidos explicitamente
usando essa terminologia.

24
Kenneth J. Collins, The Scripture Way of Salvation: The Heart of John Wesley’s Theology (Nashville, TN:
Abingdon, 1997), 45.
25
John B. Cobb, Jr., Grace and Responsibility: A Wesleyan Theology for Today (Nashville, TN: Abingdon,
1995), 36.
26
Todas as edições do Manual da Igreja Adventista do Sétimo Dia e do Anuário da denominação desde
1980 contêm uma cópia completa da declaração atual das “crenças fundamentais” da igreja.

233
De maneira semelhante, as ideias centrais da graça preveniente são apresentadas
no artigo 5, sobre o Espírito Santo, embora a terminologia esteja faltando. A frase chave
é “Ele atrai e condena os seres humanos; e aqueles que respondem Ele renova e
transforma à imagem de Deus”. O artigo 10, sobre a experiência da salvação, também
reflete uma compreensão definida da graça preveniente: “Conduzidos pelo Espírito
Santo, sentimos nossa necessidade, reconhecemos nossa pecaminosidade, nos
arrependemos de nossas transgressões e exercemos fé em Jesus... Esta fé que recebe a
salvação vem pelo poder divino da Palavra e é o dom da graça de Deus”.
Alguns teólogos adventistas do século XX apresentaram entendimentos claros da
graça preveniente e alguns até usaram a própria frase,27 mas em geral eles foram mais
claros sobre depravação e incapacidade do que sobre o ponto de partida inicial da
salvação. Para muitos havia confusão sobre o livre arbítrio ser o ponto de origem, uma
vez que haviam demonstrado a queda dessa mesma vontade.28
A escritora mais clara sobre o assunto durante a maior parte da história da
denominação foi Ellen White. Ela foi bastante explícita sobre a depravação e a
incapacidade espiritual e a graça preveniente, embora nunca tenha usado esses termos
específicos. Sobre os efeitos do pecado, ela afirma que “pelo pecado todo o organismo
humano é perturbado, a mente é pervertida, a imaginação corrompida. O pecado
degradou as faculdades da alma.”29 Com sua compreensão explícita dos efeitos
corruptores do pecado, não é de surpreender que ela também tenha uma visão bem
definida da graça preveniente. Considere sua declaração de que “muitos estão confusos
quanto ao que constitui os primeiros passos na obra da salvação”. Ela continuou
observando que “o primeiro passo para Cristo é dado através da atração do Espírito de
Deus; à medida que o homem responde a essa atração, ele avança em direção a Cristo
para se arrepender”.30
Outra declaração muito explícita sobre incapacidade espiritual e graça preveniente
é encontrada em Steps to Christ [Caminho a Cristo], no qual ela observa:
... é impossível para nós, por nós mesmos, escapar do poço do pecado... Nossos corações
são maus, e não podemos mudá-los... Educação, cultura, exercício da vontade, esforço
humano, todos têm sua própria esfera, mas aqui eles são impotentes. Eles podem produzir
uma correção externa de comportamento, mas não podem mudar o coração. ... Deve haver

27
Irwin Henry Evans, This Is the Way: Meditations Concerning Justification by Faith and Growth in
Christian Graces (Washington, DC: Review and Herald, 1939); Edward W. H. Vick, Let Me Assure You of
Grace, of Faith, of Forgiveness, of Freedom, of Fellowship, of Hope (Mountain View, CA: Pacific Press,
1968); Hans K. LaRondelle, Christ Our Salvation: What God Does for Us and in Us (Mountain View, CA:
Pacific Press, 1980); George R. Knight, Sin and Salvation: Gods Work for Us and in Us (Hagerstown, MD:
Review and Herald, 2008).
28
George R. Knight, “Seventh-day Adventism, Semi-Pelagianism, and Overlooked Topics in Adventist
Soteriology: Moving beyond Missing Links and toward a More Explicit Understanding” (paper, Arminian
and Adventism Symposium, Andrews University, October 2010).
29
Ellen G. White, The Ministry of Healing (Mountain View, CA: Pacific Press, 1942), 451; see also
Woodrow W. Whidden II, Ellen White on Salvation: A Chronological Study (Hagerstown, MD: Review and
Herald, 1995), 41-46.
30
White, Selected Messages, 1:390.

234
um poder operando de dentro, uma nova vida do alto, antes que os homens possam ser
mudados do pecado para a santidade. Esse poder é Cristo. Somente sua graça pode vivificar
as faculdades sem vida da alma e atraí-la para Deus, para a santidade.31

Essa é uma declaração tão clara quanto se poderia desejar ao contemplar uma
compreensão adventista da graça que vem antes da graça salvadora.

31
Ellen G. White, Steps to Christ (Mountain View, CA: Pacific Press, n.d.), 18.

235
CAPÍTULO 15
A GRAÇA QUE JUSTIFICA E SANTIFICA
Ivan T. Blazen

As palavras justificação e santificação encontram seu desenvolvimento conceitual


mais completo nos escritos do apóstolo Paulo. Portanto, este capítulo se concentrará na
apresentação de Paulo desses dois temas.1
O SIGNIFICADO DA JUSTIFICAÇÃO
No início é importante notar a relação entre os termos em inglês justification e
righteousness*. Parecem ser duas palavras diferentes, mas na linguagem do Novo
Testamento, são basicamente a mesma palavra baseada no mesmo radical grego que
em inglês significa “justo, reto”. A justificacion poderia ter sido melhor traduzida como
“rightification”[palavra que não existe em inglês]. Consequentemente, é importante
entender que justificar significa “conceder righteousness [justificação]”, e conceder
righteousness significa “justificar”.
* NT.: Sobre o uso dos sinônimos justification e righteousness na língua inglesa
traduzidos simplesmente na língua portuguesa como justificação consulte Tratado de
teologia, p. 315.
Antecedentes Forenses e um Novo Relacionamento
Justificação é uma palavra forense, que indica que deve ser entendida em termos
do pronunciamento que um juiz faz em um processo judicial. Se o juiz decidir contra o
acusado, o veredicto é de condenação, mas se o juiz decidir pelo acusado, é proferido o
veredicto de absolvição (justificação). Em outras palavras, a culpa ou inocência é
estabelecida pelas constatações e pronunciamento de um juiz. Assim, a justificação tem
um sentido declarativo em que o réu não é justificado, mas é declarado justo.
Este uso forense é o pano de fundo primário para o ensino do Novo Testamento
sobre justificação. No entanto, o caráter forense da justificação, embora vital para a
compreensão bíblica do termo, não esgota o ensino das Escrituras. Particularmente no
Novo Testamento, os julgamentos e relacionamentos do tribunal são traduzidos na
chave superior da graça perdoadora e do relacionamento pessoal com Deus, e o
conceito de Deus como Juiz é ultrapassado, embora não substituído, pela ideia de Deus
como Pai. Em outras palavras, o significado forense da justificação flui para a teologia

1
Salvo indicação em contrário, todas as citações das Escrituras são retiradas da Bíblia da Nova Versão
Padrão Revisada, copyright © 1989 Divisão de Educação Cristã do Conselho Nacional das Igrejas de Cristo
nos Estados Unidos da América. Usado com permissão. Todos os direitos reservados. Os itálicos nas
Escrituras refletem a ênfase acrescentada pelo autor.

236
das riquezas inesgotáveis e superabundantes do dom da graça de Deus em Cristo. É isso
que estabelece uma relação totalmente nova e correta entre Deus e a humanidade.
A Justiça de Deus
Falar de um relacionamento correto com Deus é falar da justiça de Deus. A carta de
Paulo aos Romanos, com importante apoio de Gálatas e Filipenses, é a fonte mais
saliente das Escrituras para entender a justiça de Deus e a justificação que ela traz. A
abordagem inicial de Paulo ao tópico começa em Romanos 1:16-17. Aqui ele apresenta
a tese que prosseguirá no restante da carta. Ele declara que o Evangelho – a
proclamação do Filho de Deus como Messias (Salvador) e Senhor (1:3) – conduz
poderosamente à salvação. Isso acontece porque o evangelho é o locus para a revelação
da justiça de Deus. Essa revelação é absolutamente essencial para que os humanos
sejam salvos de sua injustiça e da justa ira de Deus sobre ela.
Paulo pinta um quadro sórdido das profundezas do pecado humano em Romanos
1:18—3:20. Aqui estão o pecado primordial da idolatria gentia que flui para a
imoralidade (1:18-32) e o pecado judaico de julgamento sobre os gentios sendo
acompanhado de hipocrisia (2:1). Assim, seja o judeu que tem a lei escrita ou o gentio
que tem a lei interior da consciência, todos pecaram (2:12-15; 3:9). Consequentemente,
ninguém escapa das garras do pecado, e a lei, embora dê o conhecimento do pecado,
não pode livrar dele e trazer justificação (3:19-20).
Em Romanos 3:21, que retoma o tema de 1:16-17, uma dimensão inteiramente
nova é trazida à vista, introduzida pela palavra revolucionária “mas”. O mundo inteiro é
culpado diante do tribunal de Deus e aguarda a execução (3:19-20) ... “mas”. Claramente
uma revolução e reversão da situação humana é sinalizada aqui, pois a palavra apenas
muda as coisas para o lado oposto. O humano, mas muitas vezes transforma a esperança
em desespero, mas o divino, mas transpõe o desespero em esperança. No lugar da
injustiça humana (3:19) vem a justiça restauradora de Deus que é apropriada somente
pela fé (3:22; cf. 1:17), e pela qual Deus salva a humanidade culpada de Sua ira justa.
O que se entende por justiça de Deus, então, não é um estado estático de retidão
em Deus, mas a fidelidade da aliança de Deus em ação para a salvação do povo de Deus.
Isso está de acordo com uma classe significativa de textos do Antigo Testamento,
particularmente em Isaías e nos Salmos, onde a justiça de Deus, às vezes traduzida como
“libertação” ou “vindicação”, é sinônimo de Sua salvação. Isso pode ser visto
claramente, por exemplo, em Isaías 46:13: “Eu trago para perto a minha libertação
[justiça] ... e a minha salvação não tardará”. Versículos da mesma importância em Isaías
são 51:5; 54:8; 56:1; 59:16; 61:10. O próprio Deus é mencionado como Aquele que
“anuncia vindicação [justiça], poderoso para salvar” (Is 63:1). De fato, Deus é “um Deus
justo e Salvador” (45:21; também Sl 31:1; 40:10; 51:4; 71:15; 98:2; 143:11).
Há uma série de facetas na concessão de Deus de Sua justiça salvadora e justificação
dos pecadores. Estes podem ser enumerados como se segue.

237
Justificação como Absolvição
Diretamente relacionado ao fundo forense ou jurídico da justificação está o
conceito de absolvição, cujo oposto é a condenação. Este par de palavras contrastantes
é encontrado em Deuteronômio 25:1; Provérbios 17:15; Mateus 12:37; Romanos 5:16,
18; 8:33-34; e 2 Coríntios 3:9. Assim, na justificação, Deus salva os pecadores da
condenação por seus pecados (Rm 8:1) absolvendo-os no tribunal da justiça divina.
Justificação como Atribuição de Justiça
A passagem mais importante para definir o significado de justificação é Romanos 4.
Aqui Abraão, que na tradição judaica dos dias de Paulo era considerado um modelo de
virtude e um homem de perfeição,2 é apresentado como uma ilustração do que o
antepassado do cristianismo segundo a carne encontrou, e o que o resto da
humanidade, os ímpios, também podem encontrar (4:1, 22-24). No pensamento
judaico, como ecoou na primeira parte do versículo 2, acreditava-se que Abraão foi
justificado por suas obras, inferindo-se que ele se vangloriava. Paulo demole essa visão
no final do versículo 2, deixando claro que Abraão não podia se vangloriar diante de
Deus, o que torna toda jactância vazia. O corolário disso é que a justificação não pode
ser pelas obras. Assim, Romanos 4:2 mostra o que Abraão não encontrou, enquanto o
versículo 3, citando Gênesis 15:6, descreve o que ele encontrou. Ele descobriu que sua
fé, gerada pela promessa de Deus, “foi-lhe imputada como justiça”. Isso significa que a
justificação, que de um ponto de vista é a absolvição, pode, de outro, ser entendida
como o cálculo da justiça. Este cálculo, contagem ou imputação de justiça ocorreu
quando Abraão creu em Deus.
A observação da linha de argumentação de Gênesis 15:1 a 15:6 é instrutiva. Três
estágios principais emergem: a promessa divina de bênção, a resposta humana de fé e
o pronunciamento divino de justiça. Em outras palavras, quando Deus confronta a
humanidade com Sua Palavra de graça, e os humanos a aceitam com fé, o veredicto de
Deus sai: “Sua fé é contada como justiça”, isto é, “Sua fé é pronunciada como uma
resposta correta à Minha graça e indicativo de um relacionamento correto Comigo”.
Uma posição correta com Deus resulta da interação causa-efeito entre promessa e fé. A
promessa suscita fé, e a fé recebe a promessa. O argumento de Paulo em Romanos 4:3
é que se há um reconhecimento divino da justiça, tal justiça nunca pode ser considerada
como uma conquista da humanidade, mas apenas como a graça de Deus. Isso é
esclarecido em Romanos 4:4-5. O versículo 4 indica como as coisas funcionam no nível
humano: as pessoas trabalham e recebem salários, não graça, por isso. O versículo 5,
por outro lado, indica como as coisas operam no nível divino: ao abandonar o trabalho
pela justiça em favor de confiar (ter fé) no Deus que justifica o ímpio, essa confiança ou
fé é considerada justiça.
Falar dos ímpios como sendo justificados ou considerados justos era uma afirmação
radical, na verdade chocante. Para os contemporâneos judeus de Paulo, parecia apoiar

2
C. K. Barrett, The Epistle to the Romans, rev. ed., Blacks New Testament Commentary (London: A 8c C
Black, 1991), 82.

238
a impiedade – daí as acusações contra Paulo em Romanos 3:8; 6:1; e 6:15—e
diretamente contrário às Escrituras Hebraicas, que dizem que Deus não absolverá os
ímpios (Êx 23:7) e que aqueles que justificam os ímpios ou condenam os justos são uma
abominação a Deus (Pv 17: 15; cf. Is 5:23). Neste mundo de pensamento, Deus declara
que somente os justos são justos (cf. 1 Reis 8:32).
Que resposta pode ser dada ao aparente dilema ético que as palavras de Paulo
apresentam? De acordo com os Salmos, o próprio Deus é justificado em Sua condenação
do mal (Sl 51:4). O que justifica Deus, então, em justificar os ímpios em vez dos
piedosos? O salmista ainda implorou: “Não entres em juízo com o teu servo, porque
nenhum vivente é justo diante de ti” (143:2). Assim, para o salmista, o veredito do
julgamento de Deus sobre os injustos só poderia ser um: “Culpado!” No entanto, no uso
de Paulo dos termos forenses justiça e justificação, ele ensina que Deus entra em
julgamento com Seu povo injusto e, incrivelmente, o veredicto não é “Culpado!” mas
“Justo!” O que se apoia essa aparente contradição? Primeiro, deve-se lembrar que Paulo
ensinou que “todos, tanto judeus como gregos, estão sob o poder do pecado” (Rm 3:9).
Assim, se alguém fosse justificado, teria que ser dentre os ímpios. Em segundo lugar,
Paulo não ensinou meramente que Deus justificou o ímpio, mas que Deus justificou o
ímpio que colocou sua fé e confiança nEle (4:5). Estas são pessoas que responderam de
forma arrependida “Sim!” ao veredito de Deus sobre eles como pecadores e se lançaram
sobre a misericórdia de Deus. Este já é um novo alinhamento com Deus, um dizer
“Amém!” para Deus. Ter fé é, de fato, a resposta certa a Deus. Terceiro, a fé que essas
pessoas têm está no sacrifício expiatório que Deus providenciou como meio de
justificação (3:24-25).
Justificação como Perdão Divino
Em Romanos 4:6-8 Paulo chega ao cerne da questão. Depois de discutir Abraão e um
texto proeminente, Gênesis 15:6, agora ele se volta para Davi e outro texto
proeminente, Salmo 32:1-2. Era um ditado do Antigo Testamento que um testemunho
importante deveria ser estabelecido por pelo menos duas testemunhas (Dt 17:6), então
Paulo apresenta Abraão e Davi. Além disso, Paulo apresentou sua crença de que a lei e
os profetas testemunham a justificação pela fé (Rm 3:21), então ele apresenta Abraão
como a testemunha da lei e Davi como a testemunha dos profetas (ou seja, do restante
do Antigo Testamento). O que Paulo, com efeito, faz é usar o testemunho de Davi para
explicar mais plenamente o significado do reconhecimento da justiça a Abraão. A base
sobre a qual Paulo fez isso foi aplicando a segunda das sete regras de interpretação
bíblica do rabino Hillel, gezerah shawah, que lida com expressões equivalentes. 3 De
acordo com esse princípio, uma palavra ou frase encontrada em um texto das Escrituras
poderia ser explicada por o significado que tem em outro texto bíblico. Visto que a
palavra contar aparece não apenas em Gênesis 15:6, mas também em Salmo 32:1-2,
considerada como uma unidade de pensamento, Paulo usa o último texto de Salmos,

3
Herman L. Strack, Introduction to the Talmud and Midrash (Philadelphia, PA: The Jewish Publication
Society of America, 1931), 93-94.

239
com seu triplo paralelismo, para iluminar o texto anterior de Gênesis. Quando isso é
feito, o significado interno da justificação ou o reconhecimento da justiça se revela. A
justificação passa a significar o perdão do pecado ou, o que dá no mesmo, a cobertura
do pecado ou sua não imputação ao crente. A culpa se foi, o pecado é coberto para que
não apareça para julgamento e todas as acusações são retiradas. O último membro
desta tríade de ideias que explicam o conteúdo da justificação encontra um eco
significativo em 2 Coríntios 5:19: “em Cristo Deus estava [na cruz] reconciliando consigo
o mundo, não lhes imputando as suas transgressões”. Assim, por meio de uma nuance
ou outra, o perdão está no cerne da justificação. Em harmonia com isso, Ellen White diz:
“Perdão e justificação são uma e a mesma coisa.”4
Justificação como Vida Escatológica e Nova Criação
Há um outro ingrediente no significado de justificação que também é encontrado
em Romanos 4. A justificação não se refere apenas ao reconhecimento da justiça, mas
também à concessão da vida eterna. Paulo menciona isso em uma frase pungente em
Romanos 5:18, onde ele fala de “um ato de justiça de um homem” (a cruz) como levando
à “justificação e vida”. Esta tradução poderia igualmente e, talvez melhor, ser traduzida
como “justificação vivificante” ou “justificação que resulta na vida”. Assim, a justificação
traz não apenas perdão, mas vida. Em Romanos 4:17 isso é visto com total clareza. Paulo
fala aqui de Abraão em pé “na presença de Deus... que vivifica os mortos e chama à
existência as coisas que não existem”. Paulo aqui utiliza duas grandes realidades das
Escrituras para explicar a plenitude da justificação: Criação – Deus chama à existência as
coisas que não existem – e Ressurreição – Deus dá vida aos mortos. Em outras palavras,
a justificação é uma nova criação na qual o poder de Deus está presente para trazer vida
àqueles que estão espiritualmente mortos. 2 Coríntios 5:17 afirma: “Se alguém está em
Cristo, nova criatura é: tudo o que era velho já passou; veja, tudo se tornou novo!”
Gálatas 6:15 concorda com isso quando, em uma carta em que a justificação é o tema
principal, Paulo diz que a circuncisão e a incircuncisão não contam para nada, mas o que
realmente conta é uma nova criação. Isso está de acordo com a base rabínica de Paulo,
segundo a qual quando um gentio se converteu ao judaísmo, esse gentio era
considerado uma “nova criatura” através do perdão dos pecados.5 O conceito de
novidade é encontrado em Romanos 6:4 que fala de alguém que foi unido a Cristo como
andando em “novidade de vida”, uma referência à vida escatológica do século vindouro
manifestando-se na existência presente.
Em termos de Romanos 4, a justificação, embora tenha um cenário legal no
pronunciamento de um juiz, vai além dela ao falar do relacionamento pessoal do crente
com Deus que tanto perdoa seu pecado (juízes não perdoam pecado) quanto, como
Criador , faz dele uma nova criatura na qual a vida eterna já está presente.

4
Ellen G. White, Ms 21,1891.
5
Joachim Jeremias, Infant Baptism in the First Four Centuries, trans. David Cairns (London: SCM Press,
1960), 33, 36; W. D. Davies, Paul and Rabbinic Judaism: Some Rabbinic Elements in Pauline Theology, 2nd
ed. (London: SPCK, 1955), 119; Arthur Darby Nock, Early Gentile Christianity and Its Hellenistic
Background, Harper Torchboolcs (New York: Harper and Row, 1964), 64.

240
Justificação como Troca de Senhorios
Outro componente, sem o qual as implicações amplas da justificação não serão
vistas, é encontrado em Romanos 6. Muitas vezes, este capítulo é pensado para lidar
principalmente com o assunto da santificação como uma realidade após a justificação.
Certamente, santificação como palavra (vv. 19, 22) e conceito (vv. 2, 4, 6, 13, 17-19, 22)
está presente no capítulo. No entanto, essas referências devem ser vistas à luz do
propósito para o qual Romanos 6 foi escrito no contexto do argumento de Paulo. A
ocasião para o capítulo foi o mal-entendido do ensino de Paulo sobre a justificação pela
fé somente, sem a lei (Rm 3:21-4:25). Esse ensino foi mal concebido para significar que
os crentes poderiam justificadamente praticar o mal para que o bem venha (3:8), o que
significava que os cristãos poderiam continuar no pecado para que a graça abundasse
(6:1). Esta foi uma dedução errônea do ensino de Paulo de que quando a lei veio no
Sinai, longe de o pecado ser abolido, as transgressões abundaram, apenas para serem
supridas pela superabundância da graça (5:20). Alguns de origem judaica pensavam que
tal construção equivalia não apenas à justificação dos ímpios, mas também à justificação
da impiedade. Para anular essa visão, Paulo escreveu Romanos 6. Seu principal
argumento para esclarecer seu ensino é que na vida dos crentes ocorreu uma
transferência ou troca de senhorios. O pecado costumava ser o senhor (vv. 17, 20), mas
como resultado do batismo em Cristo e Sua morte (w. 3-4), ocorre a morte para o
senhorio do pecado, e o senhorio de Cristo começa. Na linguagem forense de Romanos
8:3, Cristo condenou judicialmente o pecado na carne e, assim, o pecado perdeu seu
caso no tribunal e, portanto, é privado de autoridade ou custódia da vida do cristão. Em
outras palavras, a liberdade do pecado como senhor é o resultado da união com Cristo.
É notável e esclarecedor que a palavra grega empregada em Romanos 6:7 para afirmar
que a liberdade do reino do pecado ocorreu é a palavra que normalmente significa
“justificar”. Esta palavra, quando usada com a preposição de significa, na voz passiva,
“estar livre de”, como em Atos 13:39. Em uma construção paralela em Romanos 6:18,
22, o verbo grego “libertar” é usado na voz passiva com de para indicar liberdade da
escravidão do pecado. Não pode haver dúvida de que, para Paulo, a justificação, além
do perdão dos pecados, envolve a libertação do antigo senhorio do pecado. Essa
liberdade recém-descoberta é a raiz da qual emerge o fruto da santificação, mencionado
em Romanos 6. A justificação é uma realidade muito mais poderosa do que um mero
ajuste legal nos livros do céu. É um destronamento daquela autoridade ilegítima que
impede uma vida santificada e o estabelecimento daquela autoridade divina que a
capacita. O restante deste capítulo se concentrará na santificação como resultado, ou
fruto, da justificação.
O SIGNIFICADO DA SANTIFICAÇÃO
Santificação, ou santidade, de uma forma ou de outra, é um dos conceitos mais
significativos e frequentes (mais de mil ocorrências) mencionados nas Escrituras. A
questão é tão crucial que os crentes são admoestados a lutar pela “santidade sem a qual
ninguém verá o Senhor” (Hb 12:14). A santificação está fundamentada na realidade
cristológica de Cristo como Salvador e Senhor. Assim como a Salvação de Cristo nunca

241
pode ser separada de Seu senhorio, a salvação como dom nunca pode ser separada da
salvação como reivindicação; graça e fé nunca podem ser separadas de obras ou frutos;
a vida de Cristo nunca pode ser separada de viver para Cristo; e a justificação nunca
pode ser desconectada da santificação. A seguir, a santificação será discutida em termos
de seus dois componentes principais: o relacional e o moral.
Um Novo Relacionamento e Status
Santificação, como também justificação, é uma palavra relacional. Seu significado
básico tem a ver com ser desassociado ou separado. Isso é ilustrado pelo sétimo dia que
Deus separou do resto da semana para ser Seu dia especial (Gn 2:3; Êx 20:8-11). Nesse
sentido relacional, a palavra santificação, aplicada à humanidade, não é antes de tudo
uma questão de moral, mas de pertencer a Deus como consagrado ou separado para
Ele. O chamado de Deus à santidade é bem expresso em Levítico 19:2: “Sereis santos,
porque eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo”. A santidade de Deus significa que Ele é
“Totalmente Outro”, totalmente único e transcendente. Deus é santo em si mesmo, de
modo que pode ser chamado de “Santo” (Is 10:17; Os 11:9) a quem os Serafins clamam
“Santo, santo, santo é o Senhor dos exércitos” (Is 6:3). O povo de Deus é santo ou
santificado apenas em um sentido derivado, santo em virtude de uma relação com Ele.
Por Sua própria ação, Deus os consagrou a Si mesmo.
É neste contexto que 1 Coríntios 1:2 deve ser entendido. Apesar dos muitos
problemas morais e teológicos sérios que os coríntios tinham, Paulo ainda os chama de
“os santificados em Cristo Jesus, chamados para serem santos”. O tempo perfeito em
grego que é usado aqui em “santificado” aponta para uma ação completa no passado
que tem resultados contínuos no presente. Os coríntios já foram santificados ou
separados como Seu povo pelo poder consagrador de Seu chamado. Isso não é
santificação no sentido ético, mas no sentido relacional. Enquanto a santificação no
sentido moral é a obra de uma vida inteira,6 a santificação no sentido relacional, pela
qual os crentes se tornam propriedade de Deus e parte de Seu povo, é, como a
justificação, uma obra de um momento. Isso é corroborado por 1 Coríntios 6:11, que
coloca a lavagem, a santificação e a justificação no passado como produto da atividade
do Senhor Jesus Cristo e do Espírito de Deus – razão pela qual cada verbo está na voz
passiva, o chamado passivo divino. O fato de que a santificação pode ser acoplada à
justificação, ela própria um termo relacional, como um evento passado e até mesmo
listada antes da justificação, mostra que tanto a santificação, no sentido relacional,
quanto a justificação, ela própria um termo relacional, são raízes gêmeas do crescimento
moral.
No sentido discutido até agora, a santificação refere-se a Deus separando um povo
para pertencer a Si mesmo. A nota de ser o povo de Deus também é encontrada em 1
Coríntios 1:2 onde, seguindo a declaração de que os coríntios foram santificados, é dito
que eles foram “chamados para serem santos”. Aqui “ser” não está no texto grego e,
embora apropriado para uso em português, não deve ser entendido como se referindo

6
Ellen G. White, Acts of the Apostles (Mountain View, CA: Pacific Press, 1911), 560-61.

242
a um status que ocorrerá em algum momento no futuro indefinido. Em virtude do fato
de que os coríntios já eram santificados, eles já eram santos. A mesma raiz é usada em
grego tanto para santificação quanto para santo. É porque as pessoas pertencem a Jesus
Cristo (ou seja, são santificadas nEle) - que elas podem ser chamadas de santas. É por
isso que Paulo dirige suas cartas aos santos. Eles se tornaram tais pela ação de Deus em
santificá-los ou separá-los. O termo santos, então, que quase sempre ocorre no plural,
significa “o povo de Deus” ou “o próprio povo de Deus”.
Crescimento Moral em Bondade
Da raiz da santificação como pertencimento emerge a santificação como devir. O
primeiro, como o “já” da atividade consagradora de Deus, leva ao “ainda não” da
atividade transformadora de Deus (2 Coríntios 3:18). O primeiro já foi concluído; este
último continua. O próprio céu será uma incessante aproximação a Deus.7
Uma das passagens mais importantes da Escritura para a santificação como
mudança moral é Romanos 6. Nesse capítulo Paulo afirma que o cristão, como aquele
que morreu para o pecado como senhor, não vive mais sob seu domínio (vv. 2, 14). Com
a crucificação do velho eu, o poder possessivo do pecado sobre o corpo foi quebrado
para que o crente não precise mais prestar serviço servil ao pecado (v. 6). Esta morte
definitiva é simbolizada pelo rito do batismo. O batismo não representa apenas um
compromisso cristão com Cristo, aceitando-o como seu novo Senhor. É também um
sinal da unificação dos crentes com os principais eventos soteriológicos pelos quais a
redenção completa foi adquirida, a saber, a morte e ressurreição de Cristo (vv. 3-4). Em
consequência da união do crente com o Senhor crucificado e ressurreto, ele ou ela deve
(1) andar em novidade de vida (v. 4); (2) não deixar o pecado reinar em seu corpo mortal
(v. 12); e (3) entregar seus membros a Deus como instrumentos ou armas de justiça ao
invés de pecar como instrumentos ou armas de maldade (v. 13).
Quanto ao primeiro deles, a novidade de vida é uma referência à vida escatológica
dos tempos vindouros. O cristão foi agarrado por esta vida, e sua caminhada de vida
neste mundo deve ser transformada por ela.
Assim, a participação do crente nas realidades da era vindoura é manifestada e
atestada pela maneira como ele anda (ou seja, conduz sua vida moral).8 Deve haver um
profundo contraste entre a pessoa não convertida e a convertida: “Pois assim como
outrora apresentastes os vossos membros à impureza... assim agora apresentai os
vossos membros como escravos da justiça para santificação” (Romanos 6:19). Uma vez
que os crentes não são seus porque foram comprados por um preço, eles têm o poder
de glorificar a Deus em seus corpos (1Co 6:19-20).
A segunda consequência da união do crente com o Senhor crucificado e ressurreto
é que o cristão não precisa e, portanto, não deve deixar o pecado reinar em seu corpo
mortal, para obedecer aos desejos contínuos do corpo (Rm 6:12). Embora o velho eu

7
Ellen G. White, The Desire of Ages (Mountain View, CA: Pacific Press, 1898), 331-332.
8
Para saber mais sobre este tópico see Ivan T. Blazen, “Salvation” in Handbook of Seventh-day Adventist
Theology, ed. Raoul Dederen (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2000), 297.

243
tenha sido crucificado e o domínio real do pecado sobre o corpo tenha sido quebrado
(v. 6), o corpo ainda pertence a era antiga - é por isso que é chamado de corpo mortal
(v. 12) - e, assim tem desejos contínuos. Estas são as avenidas pelas quais o pecado busca
reconquistar o trono de seu antigo súdito. Assim, enquanto o cristão é libertado do reino
do pecado, ele ou ela não é libertado, deste lado da ressurreição para a vida imortal, da
influência do pecado. A única coisa que pode impedir o pecado de restabelecer seu
domínio é a mesma coisa que acabou com ele em primeiro lugar, a graça de Deus (v.
14). Assim, o cristão ainda está sujeito à tentação por meio dos antigos apetites
corporais, mas pela graça de Deus e do Espírito de Deus, o crente pode encontrar vitória
sobre os apetites que se tornam atos da carne que caracterizam a vida (Rm 8:13; Gl 5:16-
25).
Em terceiro lugar, como Romanos 6:13 instrui, os crentes são solicitados a entregar
seus corpos e seus membros a Deus como instrumentos ou armas de justiça em vez de
pecar como armas da maldade. Esta é a guerra cristã, e ajuda a definir as implicações da
morte para o pecado mencionadas em 6:2. A morte para o pecado não significa, mesmo
após a troca de senhorios do pecado para Cristo, que o pecado não tenha mais relação
com a vida dos crentes. Em vez disso, a morte para o pecado significa que, tendo sido
libertos do pecado como senhor, os crentes devem lutar contra o pecado como inimigo.
Tendo sido liberados da soberania dos pecados, eles devem combater a solicitação dos
pecados. O cristão tem paz com Deus, mas ele ou ela nunca mais deve estar em paz com
o pecado, mas agressivamente hostil a ele.

244
CAPÍTULO 16
A GRAÇA DA PERFEIÇÃO CRISTÃ
Hans K. LaRondelle e Woodrow W. Whidden

Cristo explicou como o amor do Pai celestial, fluindo imparcialmente tanto para o
bem como para o mal, é um amor perfeito que deve ser imitado ou refletido pelos
verdadeiros filhos de Deus. Este conceito do Novo Testamento de perfeição cristã é
encontrado em Mateus 5:43-48. A perfeição cristã implica uma experiência pessoal do
amor salvífico do Deus de Israel e a manifestação de seu poder santificador em amor
sincero a todos os que precisam de nossa ajuda.
PERFEIÇÃO CRISTÃ COMO INCORPORADA NA SOTERIOLOGIA DO NOVO
TESTAMENTO
O contexto do serviço abnegado aos outros encontrado na história do jovem rico
em Mateus 19:21 estabelece o fundamento para toda a experiência da graça
aperfeiçoadora. Perfeição, então, não é a busca de ideais éticas ou mesmo o esforço
para imitar ou copiar a vida de Cristo independente dEle, mas é o pertencer a Ele de
todo coração e indiviso e viver com Ele por Seu poder salvador e santificador. Assim, a
perfeição cristã é definida não por aqueles que vivem apenas de acordo com a lei moral,
mas por pertencer e seguir o Senhor Jesus vivo com um coração puro. Todos esses
seguem o Cordeiro aonde quer que Ele vá (Ap 14:4).
O próprio fundamento de qualquer experiência cristã de aperfeiçoar a graça inclui
obediência à vontade de Deus fortalecida pela graça e é experimentada no coração de
qualquer discípulo totalmente dedicado ao serviço de Cristo e de Seus filhos humanos.
Tal dedicação só pode surgir de um coração que foi levado a confiar em Cristo Jesus
como o Cristo que converte, perdoa e transforma (santifica). Torna-se assim bastante
evidente que a experiência da perfeição cristã é tecida no próprio conjunto das várias
facetas da experiência pessoal de salvação de cada verdadeiro crente.
Para qualquer pessoa que esteja no caminho da conversão, a entrega total a Cristo
como Senhor é o passo inicial e essencial no processo de mudança consciente de caráter.
Isso inclui seis fases subsequentes e definitivas. Incluídos nestas experiências estão:
1. Perdão, ou perdão para todos os pecados, ou como é mais tecnicamente
conhecido, justificação pela fé somente nos méritos imputados de Cristo;
2. Santificação pela fé nos méritos conferidos por Cristo;
3. Chegar ao lugar na experiência de santificação onde o crente está acabado com
pecados de premeditação deliberada e atitudes que estão constantemente
desculpando pecados conhecidos ou defeitos de caráter;
4. A experiência da perfeição atingirá então um estágio em que não haverá
compromisso com o pecado e a tentação, não importa quão severa seja a prova.

245
Em outras palavras, aqueles que receberem o “selo do Deus vivo” descrito em
Apocalipse 13 e 14 serão tão perfeitos que preferirão morrer a desobedecer
conscientemente a qualquer mandamento de Deus claramente revelado;
5. A perfeição sem pecado, tanto na natureza quanto no caráter, só será
plenamente realizada quando a glorificação do corpo ocorrer na segunda vinda
de Cristo. Pela primeira vez na história humana, desde a queda, o povo de Deus
poderá dizer que é “sem pecado” no sentido mais absoluto da palavra. E depois
há a fase final da experiência redimida da perfeição cristã;
6. O constante crescimento de caráter que todos os salvos experimentarão à
medida que crescerem dinamicamente à semelhança de Cristo por toda a
eternidade!
Assim, o que se segue será uma breve exposição de cada uma dessas variadas
facetas do que pode ser chamado de taxonomia bíblica da perfeição. A redenção de
Cristo em sua plenitude é distinguida no Novo Testamento por dois aspectos ou fases, a
presente salvação da justificação e santificação pela fé em Cristo, por um lado, e a futura
salvação da glorificação no segundo advento de Jesus Cristo, por outro lado. Como o
conceito do reino de Deus, também a perfeição é um presente e uma realidade
presente; contudo, em outro sentido, é uma promessa a ser realizada apenas no
estabelecimento final do reino da glória. Esta dupla distinção Paulo também se aplica ao
conceito de crentes como filhos de Deus. Em Romanos 8:14, ele assegura aos cristãos
que eles já se tornaram “filhos [e filhas] de Deus”, pois são guiados pelo Espírito de Deus.
“Pois os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus.”1
Esta presente segurança redentora Paulo então sublinha ao declarar: “E por ele
clamamos 'Aba, Pai'. O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos
de Deus” (vv. 15-16). No entanto, quando o apóstolo passa a se debruçar sobre a glória
futura a ser revelada aos crentes, ele faz a notável declaração de que “[enquanto nós,
humanos, temos o Espírito de Deus, nós] gememos interiormente enquanto esperamos
ansiosamente pela adoção à filiação, a redenção de nossos corpos” (v. 23).
A relação de Deus e o crente como Pai e filho, portanto, é tanto uma realidade
presente, em um sentido real, quanto a realidade futura, em outro sentido. A diferença
é determinada pelo significado dos dois adventos de Cristo. O mesmo princípio se aplica
ao uso da perfeição com o apóstolo Paulo. Por um lado, ele pode dizer que os crentes
em Cristo são perfeitos nEle e podem crescer juntos em um corpo perfeito ou
masculinidade e feminilidade espiritualmente maduras (Cl 1:28; 3:14; 4:12; Ef 4: 13; 1Co
14:20). Por outro lado, Paulo enfatiza que a perfeição final ainda não chegou e ainda é
futura (1Co 13:10). Somente na glória do segundo advento Cristo varrerá o imperfeito.

1
A menos que indicado de outra forma, todas as citações das Escrituras são retiradas de THE HOLY BIBLE,
NEW INTERNATIONAL VERSION®, NIV® Copyright © 1973,1978,1984, 2011 por Biblica, Inc.® Usado com
permissão. Todos os direitos reservados no mundo inteiro.

246
Fase 1: Perfeição como Justificação pela Fé Somente
Quando o crente responde ao poder de atração da graça convincente de Deus e se
rende ao senhorio de Cristo, tal pessoa é então aceita por causa do fazer e morrer de
Cristo, e é declarado perfeitamente sem pecado em um sentido legal ou forense. Isso
então se torna o fundamento eficaz de toda experiência subsequente de transformação
do caráter à semelhança de Cristo. Os versículos-chave da Bíblia são 1 João 1:9 e 2:1-2:
“Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e
nos purificar de toda injustiça”. “Mas, se alguém pecar, temos Advogado junto ao Pai,
Jesus Cristo, o Justo. Ele é o sacrifício expiatório pelos nossos pecados, e não apenas
pelos nossos, mas também pelos pecados do mundo inteiro”. Assim, o crente recém-
convertido está em um novo relacionamento legal com Deus e o status “em Cristo” traz
consigo a bênção da perfeição legal absoluta (2Co 5:17-21).
Fase 2: Perfeição como Fruto da Santificação
A perfeição como santificação inclui o crescimento dinâmico à semelhança do
caráter de Cristo. Paulo sustentou o corpo humano como uma boa e santa criação de
Deus, que deveria ser consagrada ao serviço de Deus. Em contraste, com aqueles cujo
“deus é seu estômago, e... [cuja] glória está em sua vergonha. A mente deles está
voltada para as coisas terrenas” (Fl 3:19), Paulo renunciou explicitamente a toda justiça
própria ou perfeição (vv. 8-12). Buscando sua justiça exclusivamente em Cristo, Paulo
ansiava por sua derradeira perfeição na ressurreição dos mortos (v. 11): “Não que eu já
tenha obtido tudo isso, ou que já tenha chegado ao meu objetivo, mas prossigo para
alcançar aquilo para que Cristo Jesus me conquistou” (v. 12).
Filipenses 3:12-15 fornece uma das definições mais claras de perfeição no Novo
Testamento. Para aqueles que estão avançando em direção ao alvo pelo prêmio da
soberana vocação de Deus em Cristo, o próprio fato de seu progresso em alcançar o
prêmio é chamado de maturidade cristã ou ser perfeito: “Todos nós, então, que somos
maduros (perfeito) deve ter tal visão das coisas” (v. 15). Assim, a genuína perfeição ou
maturidade cristã inclui o crescimento dinâmico à semelhança da justiça perfeita de
Cristo. A perfeição como crescimento na graça tem a ver com o fato de que tal
crescimento envolve uma luta, o que sugere fortemente que tal perfeição não é
estritamente sem pecado. Paulo tinha uma comunhão tão íntima de coração com o
Cristo vivo que podia testificar: “Porque para mim o viver é Cristo” (Fp 1:21), e “Já estou
crucificado com Cristo; já não sou eu que vivo, mas Cristo que vive em mim; e a vida que
agora vivo na carne, vivo-a pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si
mesmo por mim” (Gl 2:20). Com este testemunho profundo, o apóstolo toca na luta
interior cristã, que ele mesmo conhece (1Co 9:27), e que ele desenvolve mais
plenamente em Gálatas 5:16-24 e Romanos 7:14-25.
Paulo não disse que seu eu, ele mesmo, foi morto a tiros ou enforcado, mas foi
crucificado, o que indica um processo de morte prolongado. Embora um crucificado
estivesse legalmente morto e exterminado, na realidade, tal pessoa poderia viver por
vários dias e noites na cruz, mas em crescentes sofrimentos e agonias. Esta ilustração

247
pode servir para esclarecer a mensagem dos apóstolos em Gálatas 5 e Romanos 7. Esta
ilustração pode servir para esclarecer a mensagem dos apóstolos em Gálatas 5 e
Romanos 7. Por um lado, os cristãos batizados têm que se considerar, pela fé em Cristo,
legalmente mortos para o pecado e para a lei condenatória de Deus (Rm 6:11; 7:4). Por
outro lado, descobrem que o velho eu ainda está vivo na realidade empírica; que as
tendências herdadas e cultivadas para o mal e a transgressão ainda enviam seus desejos
e impulsos ao coração purificado.
É um fato significativo que nenhuma carta apostólica no Novo Testamento
pressupõe uma igreja sem pecado ou uma vida cristã sem a batalha permanente com o
eu. Todos os escritos do Novo Testamento estão repletos de exortações e advertências
morais para combater o bom combate contra a carne, o mundo e os poderes das trevas.
Para os crentes batizados, no entanto, não há desespero ou derrota necessária nesta
batalha. Cristo habita em seus corações e dá a vitória (1Co 15:57). Os crentes são
chamados a serem "fortes no Senhor e no seu poder" (Ef 6:10). Sendo guiado por Seu
Espírito, o fruto do Espírito pode ser desenvolvido: “amor, alegria, paz, paciência,
benignidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio” (Gl 5:22-23). Paulo,
portanto, convoca: “Assim eu digo, andai no Espírito, e não satisfarás os desejos da
carne... Mas, se sois guiados pelo Espírito, não estais debaixo da lei” (Gl 5:16-18). Tiago
acrescenta a importante ideia de que as várias provações da vida do cristão operam
como a prova de sua fé, que produz firmeza e, neste modo de batalha, perfeição de
caráter (Tg 1:2-4; compare também Rm 5:3-4). Essas admoestações apostólicas
mostram que a vida cristã não é de mera paz e alegria. Pelo contrário, o caminho da
perfeição ou santificação cristã conhece profundidades inexprimíveis de luta, tristeza e
arrependimento, além das alturas da alegria redentora. O caminho da perfeição cristã
nunca pode ser sentir-se santo ou sem pecado, porque Deus gradualmente revelará
mais e mais os defeitos do caráter de uma pessoa através de uma compreensão e
eficácia cada vez maiores de Sua santidade, lei espiritual dele. A consciência de ambas
as verdades simultaneamente na experiência cristã madura de Paulo é a prova mais
profunda de que a perfeição cristã não é apenas uma vida de alegria extática ou
exaltação emocional, mas também uma vida de submissão fiel e lutadora ao nosso
divino Senhor e Salvador. Lutando no poder divino de toda a armadura de Deus (Ef
6:13ss), o cristão é chamado a destruir todos os obstáculos à sua conexão viva com Deus
e a “levar cativo todo pensamento, para torná-lo obediente a Cristo” ( 2Co 10:5). O
cristão não pode aceitar outros deuses diante Dele. Cristo quer reproduzir Sua própria
perfeição de caráter naqueles que foram originalmente criados à Sua semelhança e
imagem.
“E todos nós, que com o rosto descoberto contemplamos a glória do Senhor,
conforme a sua imagem estamos sendo transformados com glória cada vez maior, que
vem do Senhor, que é o Espírito” (2 Coríntios 3:18). Esta é a perfeição cristã dinâmica e
crescente que o apóstolo Paulo exalta e com santa paixão exorta a igreja primitiva e,
portanto, a iO imperativo da aliança do Antigo Testamento para seguir a Yahweh não é
anulado, mas cumprido e concretizado no verdadeiro seguimento de Cristo. Para os
crentes, conhecer a Cristo e amá-lo com toda a sua alma e todo o seu coração não

248
significa renunciar a Yahweh nem a apostasia de Moisés e dos profetas de Israel. Pelo
contrário, somente por meio do Filho, “que é ele mesmo Deus” (João 1:18), o Pai pode
ser conhecido, amado, obedecido e plenamente honrado.
Fase 3: Nenhum Ato de Premeditação Pecaminosa e Atitudes de Desculpa para
Pecar
A exposição de João sobre o amor em sua primeira carta dele monta um caso mais
convincente para esta importante fase da perfeição cristã: “Ninguém nascido de Deus
continuará a pecar, porque a semente de Deus permanece em eles; não podem
continuar pecando, porque são nascidos de Deus” (1Jo 3:9). O apóstolo João
evidentemente proclama apenas um amor cristão, que consome o pecado na vida dos
crentes. Quando os cristãos estão realmente em Cristo, e Cristo neles, eles “andarão na
luz, como ele está na luz” (1 João 1:7). “Quem diz, eu o conheço”, mas não faz o que
manda é um mentiroso, e a verdade não está nessa pessoa. Mas se alguém obedece à
sua palavra, o amor a Deus é verdadeiramente realizado (aperfeiçoado) nele. É assim
que sabemos que estamos nele: Quem afirma viver nele deve viver como Jesus viveu”
(1 João 2:4-6). Assim, para João, a perfeição cristã é mais do que impecabilidade; é uma
comunhão moral e um relacionamento dinâmico de amor da alma com Cristo, revelando
o mesmo caráter de amor santo que Cristo. Então não haverá temor no coração do
crente pelo dia do julgamento ou vergonha quando Cristo aparecer em Sua santa glória:
“É assim que o amor se torna completo (aperfeiçoado) entre nós para que tenhamos
confiança no dia do julgamento: neste mundo somos como Jesus. Não há medo no amor.
Mas o amor perfeito expulsa o medo, porque o medo tem a ver com o castigo. Aquele
que teme não é aperfeiçoado no amor. Nós amamos porque ele nos amou primeiro”
(1Jo 4:17-19; também 2:28).
Enquanto a alma estiver unida a Cristo e o Espírito de Cristo habitar nessa pessoa,
essa alma não pode pecar, diz o apóstolo em 1Jo 3:9. A caminhada do cristão regenerado
na luz não implica, no entanto, qualquer consciência ou sentimento de impecabilidade.
Pelo contrário, andar na luz significa uma dependência contínua da graça perdoadora e
mantenedora de Deus. Em outras palavras, a vida vitoriosa do cristão não é o resultado
automático de uma natureza sem pecado. Não há justiça inerente ao cristão antes de
sua glorificação final no dia de Deus. Portanto, o crente pode cair em pecado
novamente, como aparece na consolação de João: “Meus queridos filhos, escrevo-vos
isto para que não pequeis. Mas, se alguém pecar, temos Advogado junto ao Pai, Jesus
Cristo, o Justo” (1Jo 2:1).
Longe de ser escrita como uma desculpa para pecar ou caminhar nas trevas, esta
mensagem reconfortante revela a consciência de que nos filhos de Deus renascidos, a
velha natureza pecaminosa está em ação, sempre lutando pelo domínio. O
conhecimento das concupiscências inerentes da carne e dos olhos (1Jo 2:16), levará o
crente a um profundo arrependimento de coração e autocondenação. Somente a
confiança implícita na palavra de absolvição de um Deus que é “maior do que nossos
corações” (1Jo 3:20), enquanto caminhamos em amorosa obediência a Ele, “descansará
nossos corações em sua presença” (1Jo 3:19). Tal confiança implícita na palavra de

249
absolvição de Deus não levará a atos presunçosos de pecado por parte de um verdadeiro
crente.
Quando João distingue entre pecado mortal e pecado não mortal (1Jo 5:16-17), ele
está apenas continuando a doutrina do pecado da antiga aliança, que diferenciou
nitidamente entre pecado deliberado e presunçoso e pecado não intencional, que
depois se arrepende (Nm 15:27-31; Sl 19:13-14). O apóstolo quer esclarecer, finalmente,
que o cristão é guardado do pecado mortal ou presunçoso porque ele ou ela está sendo
guardado deste modo de pecar pelo Espírito de Cristo que habita nele. O filho de Deus
não está mais sob o poder dominante do maligno, como está o mundo (1Jo 5:18-19).
Fase 4: Lealdade sem Pecado na Crise Final da História Cristã
Muito intimamente relacionada com a perfeição, definida como a ausência de atos
pecaminosos, premeditação voluntária e atitudes de desculpar o pecado, é a quarta
fase. Haverá um grande teste escatológico de perfeita obediência para aqueles que
cultivaram o hábito da confiança constante no poder da graça perdoadora e
transformadora (e não pensando “em como satisfazer os desejos da carne” [Rm 13:14])
e que vivem para ver a vinda do Senhor. Isso ocorre na grande luta entre a crise do selo
de Deus versus a marca da besta que é graficamente apresentada em Apocalipse 12-14,
especialmente nas passagens-chave de 12:17 e 14:12. Esses versículos familiares
sugerem fortemente que no último tempo da história na terra haverá um grupo de
seguidores fiéis de Cristo que seguirão lealmente o Cordeiro, mesmo diante da ameaça
de morte. Embora eles não pareçam reivindicar qualquer perfeição da natureza sem
pecado, as imagens sugerem fortemente um caráter perfeito daqueles “que guardam
os mandamentos de Deus e a fé de Jesus”.
Fase 5: Natureza e Caráter Sem Pecado na Segunda Vinda: Sem Pecado na
Glorificação
A redenção de Cristo em sua plenitude distingue entre os dois aspectos da salvação
presente, justificação e santificação, e a salvação futura da glorificação no segundo
advento de Jesus Cristo, que inaugura o estabelecimento final do reino da glória. E é
nesta gloriosa conjuntura do plano de salvação que se pode afirmar positivamente que
os santos são sem pecado, não apenas em caráter, mas também em natureza corporal,
moral e mental. Paulo classicamente declara essa gloriosa realidade futura: “E dali
aguardamos um Salvador, o Senhor Jesus Cristo, que, pelo poder que o capacita a
colocar tudo sob seu controle, transformará nossos corpos humildes para que sejam
semelhantes aos seus. corpo glorioso” (Fl 3:20-21; cf. 1Co 15:51-54).
Fase 6: Crescimento Dinâmico na Graça por Toda a Eternidade
Esta fase final de perfeição refere-se ao crescimento eterno no caráter do povo de
Deus durante as eras incessantes da eternidade. Isso se baseia no entendimento de que
o amor de Deus é infinito; e assim, aqueles que estão com Ele “em Cristo” por toda a
eternidade terão infinitas possibilidades de crescimento em conhecimento, alegria e
amor. Verdadeiramente agora os crentes só veem como “em um espelho

250
obscuramente” (NKJV), mas então chegará um tempo em que eles estarão “face a face”
e com Paulo então serão capazes de dizer “então eu conhecerei completamente, assim
como eu sou plenamente conhecido” (1Co 13:12). Maranata!
RESUMO
Então, o que significa ser um crente perfeito em Cristo? Antes de tudo, significa
estar totalmente submetido ao senhorio de Cristo na vida – perfeitamente
comprometido em fazer Sua vontade enquanto se desenha consistentemente os
poderosos rascunhos de Sua graça concertada de convicção, justificação e santificação.
Significa crescer à semelhança do Cristo amoroso, sendo diariamente preenchido com a
obra frutífera do Espírito Santo de Deus. Ser perdoado ou justificado significa
permanecer legalmente perfeito em Cristo e não estar mais sob a condenação da santa
lei de Deus. Tal crente perfeitamente perdoado nunca abusará da graça de Deus através
de pecados de premeditação deliberada ou se entregará a atitudes de desculpa para
qualquer pecado conhecido ou propensão pecaminosa, seja ela herdada ou cultivada.
Essa atitude de lealdade plena e diária a Cristo também estará aberta à obediência pela
graça, não importa qual seja o custo terreno. E para aqueles que vivem a última grande
crise de prova descrita em Apocalipse 12-14, eles aspirarão experimentar o ápice da
perfeição, aquela mudança de caráter e natureza que será concedida com o toque final
da imortalidade na segunda vinda de Jesus. E então será seu propósito supremo crescer
à semelhança do caráter amoroso e justo de Cristo por toda a eternidade no abençoado
reino celestial. Mesmo assim, venha, Senhor Jesus, e faça o que for necessário para
trazer uma eventualidade tão gloriosa!

251
SEÇÃO 5
ABENÇOADA SEGURANÇA: OS CRENTES PODEM TER
CERTEZA SOBRE SUA SALVAÇÃO?

Nas seções anteriores do livro foi mostrado que todas as partes de cada pessoa
humana foram afetadas adversamente pelo pecado, deixando os humanos incapazes de
se salvarem, ou mesmo de se voltarem para Deus por conta própria. Portanto, a salvação
é necessariamente fundamentada na graça de Deus. Deus revigora o poder de escolha
através da graça preveniente. Esta graça não é limitada, mas é de fato oferecida a todos
(Mt 18:14; Jo 3:15). Ao mesmo tempo, esta graça não é irresistível; pode ser recusado
por aqueles que recusam o perdão de Deus. Deus corteja e convida todos a aceitarem
Seu dom de salvação.
Isso nos leva a uma série de questões relativas à perseverança, proteção, segurança
e confiança na salvação. Os crentes podem ter certeza de que são salvos? Eles podem
perder sua salvação? É verdade que uma vez que os crentes são salvos, eles sempre
serão salvos? Como os crentes podem ter certeza de que continuarão a experimentar a
salvação? Como eles podem ter certeza de que têm salvação agora e no futuro e não
serão rejeitados no julgamento vindouro?
Esta seção sobre a abençoada certeza da salvação começa com um capítulo de
Abner Hernandez-Fernandez e Jerry Moon que aborda a história da perseverança e
segurança. Depois, há um capítulo sobre o Espírito Santo e garantia por Jo Ann Davidson.
No terceiro capítulo, Woodrow Whidden discute a questão da segurança em conexão
com o ensino bíblico sobre a perfeição cristã. O capítulo final, de Richard Davidson,
aborda a questão importantíssima de como os crentes podem ter certeza em relação ao
ensino bíblico sobre o julgamento de Deus no fim dos tempos. Cada um desses capítulos
contribui para a compreensão de que a certeza da salvação vem de Deus e não de si
mesmo.

252
CAPÍTULO 17
DOS APÓSTOLOS AO ADVENTISMO: UMA BREVE
HISTÓRIA SOBRE A SEGURANÇA DA SALVAÇÃO
Jerry Moon e Abner Hernandez-Fernandez

A busca pela certeza quanto à futura vida eterna é tão antiga quanto a humanidade.
Os termos: certeza da salvação, perseverança na salvação e uma vez salvo, sempre salvo
têm uma história que remonta a dois milênios. O objetivo deste capítulo é fornecer uma
introdução prática desses termos e o que eles significavam em determinadas épocas e
contextos históricos, começando a história com Cristo e os apóstolos, passando pela
igreja primitiva até Agostinho, passando pela Idade Média até Lutero, que redescobriu
a certeza neotestamentária da salvação — então uma ideia completamente
revolucionária. Depois que Lutero destruiu a negação medieval da segurança, Calvino
procurou substituí-la por uma doutrina bíblica completamente sistemática. Muitos
pensaram que Calvino havia conseguido. Mas Jacó Armínio, que considerava Calvino tão
altamente a ponto de creditá-lo com “um certo espírito de profecia”,1 foi o mesmo
homem que apontou a fraqueza no sistema de Calvino. Armínio negou que Deus tenha
criado propositalmente alguém para a destruição eterna, embora esse fosse um dos
argumentos contemporâneos pensados para reforçar a segurança dos “eleitos” (ou seja,
aqueles predestinados para a vida eterna). Armínio morreu sem ver o fruto de seu
trabalho, mas John Wesley, um século depois, teceu pressuposições arminianas em uma
teologia metodista que reforçava a certeza da segurança presente, enquanto apontava
para uma solução para o problema da segurança última. Ellen G. White, que foi criada
como metodista, formou uma ponte de Wesley para os Adventistas do Sétimo Dia, que
ainda mantêm uma visão essencialmente Wesleyana do caminho da salvação.
A SEGURANÇA DA SALVAÇÃO NA IGREJA PRIMITIVA
O evangelho de Cristo e dos apóstolos incluiu duas ênfases opostas: a certeza da
salvação presente em Jesus (Jo 3:16; 10:28), e um reconhecimento cauteloso da
fraqueza humana e potencial para perder a salvação (por exemplo, 1Co 9: 27; 10:12).
No Novo Testamento, a base da salvação e a segurança contra a apostasia futura são as
mesmas: um conhecimento íntimo de Cristo através de um relacionamento pessoal ao
longo da vida com Ele (Jo 17:3). A palavra operativa é vitalícia porque a vida consiste em
um relacionamento de fé com Jesus. A Escritura diz: “Deus nos deu a vida eterna, e esta
vida está em Seu Filho. Aquele que tem o Filho tem a vida; aquele que não tem o Filho
de Deus não tem a vida” (1Jo 5:12).2 Portanto, a proteção essencial contra a apostasia
futura é simplesmente tornar o relacionamento com Jesus por toda a vida (Jo 15:1-8).

1
Carl Bangs, Arminius: A Study in the Dutch Reformation (Eugene, OR: Wipf & Stock, 1998), 287.
2
Salvo indicação em contrário, todas as citações das Escrituras são extraídas da New King James Version®.
Copyright © 1982 por Thomas Nelson. Usado com permissão. Todos os direitos reservados.

253
Assim, a ênfase do Novo Testamento na necessidade de perseverar até o fim nunca foi
uma exortação comportamental unilateral, mas um lembrete para persistir em um
relacionamento pessoal com Jesus. A necessidade de perseverança sempre esteve
ligada a uma relação de fé e segurança. Mas à medida que a propagação agressiva do
Evangelho pela igreja deu lugar a uma coexistência mais passiva com o mundo antigo, a
influência do mundo sutilmente mudou o foco da igreja do Salvador todo-suficiente para
uma ênfase pessimista na fragilidade humana e no potencial de perder salvação, até que
a mensagem da igreja se tornou amplamente legalista.
Neste contexto, o Novo Testamento enfatiza a necessidade de perseverança até o
fim (veja, por exemplo, Mt 24:13; Jo 15:5-7; Rm 2:7; 5:3-4; 2Ts 1:4; 3:5; 1Tm 4:16; Hb
6:11; 10:36; Tg 1:12 e Ap 2:2-3) que permanece um tópico popular nos escritos da igreja
primitiva. Como os cristãos enfrentaram a possibilidade contínua de perseguição e
provações por sua fé, os líderes da igreja destacaram a importância da perseverança e
firmeza fiéis. Escrevendo aos filipenses, Policarpo exortou-os a “perseverar
continuamente” juntos em “nossa esperança e no penhor da nossa justiça, que é Jesus
Cristo”.3 Seu chamado à perseverança foi cuidadosamente construído sobre a fidelidade
de Jesus Cristo até o fim como modelo exemplar para todos os crentes. Assim como
Jesus “suportou todas as coisas por nós”, os crentes devem se tornar “imitadores de Sua
paciência”.4
De fato, o objetivo de replicar perfeitamente a vida de Cristo levou os pais da igreja
primitiva a colocar uma forte ênfase no papel dos indivíduos na perseverança cristã na
fé.5 Ensinavam que os crentes deveriam viver uma vida moral e ética, produzindo
abundantes frutos de boas obras. Por exemplo, Inácio (c. 110) pregou que “a árvore se
manifesta por seus frutos; assim, aqueles que se professam cristãos serão reconhecidos
por sua conduta. Pois agora não há exigência de mera profissão de fé, mas que um
homem seja encontrado continuando no poder da fé até o fim”.6 A perseverança diária
implica, então, uma vida cotidiana de comportamento ético e moral em prol do
Evangelho e de Cristo.
Isso não significa, no entanto, que toda a ênfase foi colocada no esforço humano.
Em vez disso, eles acreditavam que o papel humano na fidelidade contínua dos cristãos
é sustentado pela graça de Deus. É a graça de Deus que capacita a capacidade humana
de perseverar. É também Deus quem protege a fé dos crentes de se afastar dEle. Assim,
os Pais da Igreja entendiam o papel da graça na perseverança como poder auxiliar e
protetor. Tertuliano apontou claramente que nenhum crente verdadeiro poderia ceder
às tentações, enganos e perseguições de Satanás, porque Cristo está “absolutamente

3
Polycarp of Smyrna, The Epistle of Polycarp to the Philippians 8, in The Apostolic Fathers, Justin Martyr,
Irenaeus, vol. 1 of The Ante-Nicene Fathers (ANF), ed. Alexander Roberts, James Donaldson, and A. C.
Coxe (Peabody, MA: Hendrickson, 2012), 1:35.
4
Ibid.
5
Veja Irenaeus, Against Heresies 4.37 (ANF, 1:518-521).
6
Ignatius of Antioch, Epistle of Ignatius to the Ephesians 14 (ANF, 1:55).

254
comprometido” com a proteção da fé do crente.7 Da mesma forma, Cipriano salientou
que Deus providenciou “cuidados mais do que abundantes... para preservar o homem
depois que ele já foi redimido!”8 Assim, enquanto os humanos exercem perseverança
diária, Deus fortalece e preserva sua fé.
O entendimento de que a perseverança deve ser o resultado de um esforço
conjunto de Deus e dos humanos está diretamente relacionado à forte ênfase da igreja
primitiva no livre-arbítrio humano. Para Irineu “todos os homens são da mesma
natureza” e Deus fez todos eles “agentes livres desde o princípio”, tanto nas obras
quanto na fé. Portanto, por um lado, os indivíduos são capazes de “reter-se e fazer o
que é bom” ou, por outro lado, “desobedecer a Deus e perder o que é bom”. 9 Essa
compreensão da liberdade da natureza humana ajudou a explicar por que tentações
corporais, ideias heréticas ou perseguição brutal podem levar muitos cristãos a se
afastarem de sua fidelidade a Cristo.
Tertuliano expressou com precisão a possibilidade de cair. Deus previu “que a fé,
mesmo após o batismo, estaria em perigo; que a maioria, depois de alcançar a salvação,
seria perdida novamente, por sujar o vestido de casamento, por não fornecer óleo para
suas tochas”.10 Tertuliano acreditava que, devido à fraqueza e volatilidade da vontade
humana, é impossível ter a certeza presente da salvação final. Perder a salvação é
sempre possível. Os Pais da Igreja temiam ter convicção absoluta da salvação e
perseverança futuras, porque isso poderia levar à autoconfiança, orgulho espiritual e
complacência.11 Eles achavam que se os crentes estivessem absolutamente certos sobre
a segurança futura, poderiam ficar satisfeitos com sua vida espiritual e perder sua
atitude vigilante em relação ao pecado.
Portanto, a igreja primitiva geralmente via a segurança completa como não apenas
impossível, mas perigosa, inclinando-se ao excesso de confiança ou falsa confiança,
orgulho de coração e conduta negligente. Enquanto a vida durar, os crentes devem lutar
continuamente “a batalha da fé”. No período patrístico antes de Agostinho, a segurança
presente e a esperança de perseverança até o fim estavam em tensão contínua com a
possibilidade de cair da fé no futuro.
AGOSTINHO E A SEGURANÇA DA SALVAÇÃO
Um dos primeiros tratamentos sistemáticos da doutrina da perseverança surgiu da
pena de Agostinho de Hipona (354-430). Seu tratado Sobre o Dom da Perseverança,
escrito em 428-429 no meio de sua batalha contra Pelágio, defendia o papel único da
graça de Deus na perseverança dos santos. É somente por um dom divino, diz Agostinho,

7
Tertullian, Defuga in persecutione 2 (ANF, 4:117).
8
Cyprian, On the Works and Alms 8.1 (ANF, 5:476).
9
Irenaeus, Against Heresies 4.37 (ANF, 1:519).
10
Tertullian, Antidote for the Scorpion’s Sting 6 (ANF, 3:639).
11
Gregg R. Allison, Historical Theology: An Introduction to Christian Theology (Grand Rapids, MI:
Zondervan, 2011), 544.

255
que os crentes “perseveram em Cristo até o fim”.12 Portanto, a perseverança até o fim
é tão completamente dependente da graça de Deus para os indivíduos quanto a fé
inicial.13 Citando Jeremias 32:40, Agostinho insistiu que, assim como Deus trabalha para
“que venhamos a ele, Ele trabalha para que não nos afastemos”. 14 Logicamente, ele
concluiu: “Esta, portanto, é a mão de Deus, não nossa, para que não nos afastemos de
Deus.”15
Para Agostinho, a menos que os crentes recebam o dom da perseverança, a
fidelidade até o fim é impossível. Ele até argumentou que a razão pela qual Adão e Eva,
que desfrutavam de todos os tipos de capacidades morais, éticas e espirituais, foram
incapazes de manter sua natureza imaculada, foi porque Deus não lhes concedeu a graça
da perseverança.16 Da mesma forma, os crentes contemporâneos podem possuir várias
virtudes sagradas, mas se eles finalmente abandonam a fé, é certo e justo que eles não
têm “em nenhum grau aquela perseverança ... pela qual se persevera em Cristo até o
fim.”17 Assim, a possibilidade sempre presente de cair da fé é um aviso. Os crentes nunca
devem presumir “que a perseverança é dada a qualquer um até o fim, exceto quando o
próprio fim tiver chegado, e aquele a quem [perseverança até o fim] foi dado tiver
perseverado até o fim”.18
Neste ponto é importante observar duas características essenciais da doutrina da
perseverança de Agostinho. Primeiro, para Agostinho, a graça da perseverança como
um dom divino não durará apenas por um tempo, mas os crentes a desfrutarão
continuamente até o fim. “A perseverança até o fim”, escreveu enfaticamente
Agostinho, “não está realmente perdida quando já foi dada”.19 Ele explicou ainda:
“quando esse dom de Deus é concedido... nenhum dos santos deixa de manter sua
perseverança”.20 Ele apoiou seu caso citando 1Jo 2:19: “Eles saíram de nós, mas na
verdade não nos pertenciam. Pois se eles tivessem pertencido a nós, eles teriam
permanecido conosco; mas sua partida mostrou que nenhum deles nos pertencia” (NVI).
Para Agostinho, a infidelidade, a rebelião e a tentação demonstram que tal crente,
embora regenerado,21 não tinha a graça da perseverança. Por outro lado, evidências de
vitória sobre o pecado e uma vida diária de santificação até o fim confirmam o dom da
perseverança na vida do crente. De fato, como muitos de seus predecessores, Agostinho

12
Augustine, On Perseverance 1, in Augustin: Anti-Pelagian Writings, vol. 5 of The Nicene and Post-Nicene
Fathers (NPNF1), Series 1, ed. Philip Schaff, trans. Peter Holmes and Robert Ernest Wallis, intro, by Rev.
Benjamin B. Warfield (Peabody, MA: Hendrickson, 2012), 5:526, 548.
13
“Afirmo que tanto o início da fé quanto a perseverança nela, até o fim, são, de acordo com as Escrituras
– das quais já citei muitas – dom de Deus”. Agostinho, On Perseverance 54 (NPNF1, 5:547).
14
Augustine, On Perseverance 14 (NPNF1, 5:530), translation modernized.
15
Ibid.
16
Augustine, On Rebuke and Grace 26 (NPNF1, 5:482).
17
Augustine, On Perseverance 1 (NPNF1, 5:526).
18
Augustine, On Perseverance 10 (NPNF1, 5:529).
19
Augustine, On Perseverance 11 (NPNFl, 5:529).
20
Augustine, On Perseverance 9 (NPNF1, 5:529).
21
Norman Geisler observa corretamente: “Agostinho e seus seguidores até a Reforma acreditavam que
alguns dos regenerados não eram eleitos e não perseverariam”. Chosen But Free: A Balanced View of
Gods Sovereignty and Free Will (Bloomington, MN: Bethany House, 2010), 106n60.

256
sustentou que suportar a perseguição e enfrentar a morte por Cristo é a prova final da
perseverança e a recepção da graça da perseverança.22
Em segundo lugar, Agostinho vinculou intimamente seu conceito de perseverança
à sua doutrina da eleição (ou seja, predestinação para a salvação). Porque os eleitos de
Deus recebem o dom da perseverança, nenhum eleito pode deixar de perseverar na
graça.23 Curiosamente, Agostinho não sustentou que todo crente é um dos eleitos.
Segundo ele, a regeneração não envolve necessariamente perseverança contínua até o
fim.24 Nem todos os crentes, mas somente os eleitos, recebem a graça da perseverança.
Assim, para Agostinho, os verdadeiros crentes enfrentam a possibilidade real de perder
a salvação, enquanto os eleitos não correm esse risco, pois, em sua visão, a eleição
garante o recebimento do dom da perseverança.
Por fim, deve-se notar que, para Agostinho, só Deus sabe ao certo quem
perseverará até o fim. Isso levanta a questão: o conhecimento de Deus da salvação final
oferece alguma segurança para os crentes? A resposta é que o conhecimento de Deus
não dá segurança aos crentes individualmente, porque os crentes não podem saber com
certeza se foram eleitos. Assim, Agostinho deixou seus leitores (supostamente crentes)
em total estado de incerteza.25 Para ser justo com Agostinho, deve-se notar que, para
dar aos crentes uma medida de esperança, ele deu alguns conselhos. Primeiro, ele
aconselhou os crentes a orar continuamente pelo dom da perseverança, pois esse dom
é dado em resposta à oração sincera.26 Em segundo lugar, ele aconselhou os crentes a
“confiarem em Deus” e não no poder humano para perseverança até o fim, porque os
cristãos “são ordenados a ter sua esperança nEle”.27 Por fim, Agostinho aconselhou os
pregadores a apresentar esta doutrina com cuidado para não ofender, para não
desencorajar a fé ou a obediência de seus ouvintes. Mesmo os pregadores, aconselhou
Agostinho, não devem “mencionar a possibilidade de os ouvintes serem rejeitados”.28
Em resumo, segundo Agostinho, a graça da perseverança é um dom de Deus
concedido soberanamente aos crentes eleitos. Ninguém, exceto por uma revelação
especial, pode ter certeza de que a perseverança resultará na salvação final. Para
Agostinho não há certeza presente da salvação presente nem certeza presente da
salvação final. Os cristãos devem esperar até o momento da morte para descobrir a
vontade de Deus para seu destino eterno.
A VISÃO CATÓLICA ROMANA E A SEGURANÇA DA SALVAÇÃO
A visão dominante da Idade Média era que a salvação é a recompensa de Deus pelas
boas obras. “Mesmo Agostinho sucumbiu à noção de que a salvação é alcançada como

22
Augustine, On Perseverance 2 (NPNF1, 5:526).
23
Oxford Dictionary of the Christian Church, 1997 ed., s.v. “Election.”
24
Augustine, On Perseverance 10, 33 (NPNF1, 5:529, 538).
25
Augustine, On Perseverance 62 (NPNF1, 5:550).
26
Augustine, On Perseverance 10 11 (NPNF1, 5:529).
27
Augustine, On Perseverance 62 (NPNF1, 5:550).
28
Eugene TeSelle, Augustine (Nashville, TN: Abingdon, 2006), 69; cf. Augustine, On Perseverance 57-62
(NPNF1, 5:549, 550).

257
recompensa por fazer o bem.” Ele ensinou que “a graça capacita o crente a fazer obras
que agradam a Deus e, assim, alcançar a salvação”.29 A consequência inevitável de fazer
das obras humanas a base do favor de Deus é que a certeza sem nuvens se torna
impossível. O consenso da teologia medieval era que os crentes comuns não podem ter
certeza da salvação. Tomás de Aquino, o maior dos teólogos escolásticos, argumentou
que, além de uma revelação direta de Deus ao indivíduo, é impossível saber se alguém
recebeu a graça de Deus.30
Este erro teológico eventualmente precipitou a Reforma. O terremoto que abalou
a igreja no século XVI teve muitas causas contribuintes. Mas a causa principal da
Reforma foi que “a igreja foi incapaz de satisfazer o desejo do homem por uma garantia
genuína de salvação”. A igreja ensinava que não poderia haver certeza de salvação sem
uma revelação especial de Deus para o indivíduo, e que alguém buscasse tal revelação
“teria sido considerado presunçoso”.31 Um texto-chave foi Eclesiastes 9:1 (Vulgata), “O
homem não sabe se é digno do amor ou do ódio de Deus”.32 Toda a tradição escolástica
concordava que nesta vida presente “o homem não é capaz de conhecer. . . com plena
certeza, se ele tem graça ou não”.33 Se alguém não pode saber se tem a graça de Deus,
nem a justificação presente nem a salvação futura podem ser conhecidas com certeza.
A única exceção seria uma revelação direta, como a promessa a Paulo em 2 Coríntios
12:9: “Minha graça te basta”. Mas os cristãos comuns não podiam esperar revelação
direta; eles só poderiam esperar por uma “certeza conjectural” baseada em indicadores
como “alegria no que é bom” e “paz de consciência” – mas como estes podem aparecer
heréticos e outras pessoas enganadas, eles são apenas um indicador possível, não um
garantia da graça.34 Assim, Joel Beeke descreve a visão da segurança da salvação de
Tomás de Aquino como “uma certeza conjectural baseada em obras”.35
O que Tomás de Aquino afirmou, o Concílio de Trento definiu como dogma – um
ensinamento cuja “aceitação é necessária para a salvação”.36 O décimo segundo capítulo
de Trentos “Decreto de Justificação” declara como dogma o ensino de que “a garantia
da graça é virtualmente impossível 'nesta vida mortal'”.37 Os Cânones I-XXXIII “Sobre a
justificação” anatematizam todos os aspectos principais do entendimento protestante

29
Justo L. Gonzalez, A Concise History of Christian Doctrine (Nashville, TN: Abingdon, 2005), 174.
30
Matthew C. Hoskinson, Assurance of Salvation: Implications of a New Testament Theology of Hope
(Greenville, SC: Bob Jones University Press, 2010), 16-18.
31
Bernhard Lohse, A Short History of Christian Doctrine from the First Century to the Present
(Philadelphia, PA: Fortress, 1966), 159.
32
O consenso protestante seria que nenhum humano é “digno” do amor de Deus, mas Deus os ama de
qualquer maneira, porque é da Sua natureza amar e porque eles são Seus filhos.
33
Gabriel Biel, “Luthers Most Important Scholastic instrutor”, citado em Sven Grosse, “Salvation and the
Certitude of Faith: Luther on Assurance”, Pro Ecclesia 20, no. 1 (Inverno 2011): 68.
34
Ibid.
35
Joel Beeke, The Quest for Full Assurance (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1999), 13.
36
Our Sunday Visitor’s Catholic Encyclopedia, 1991 ed., s.v. “Dogma.”
37
Philip Schaff, The Creeds of Christendom, vol. 2 (New York: Harper & Brothers, 1919), 103, citado em
Hoskinson, Assurance of Salvation, 19.

258
de segurança.38 Esta continua a ser a posição oficial católica romana sobre a certeza da
salvação.39
LUTERO E A SEGURANÇA DA SALVAÇÃO
A doutrina da impossibilidade da certeza certa levou Martinho Lutero (1483-1546)
à crise pessoal através da qual descobriu a verdade sobre a certeza. A descoberta de
Lutero foi simplesmente esta: uma vez que as promessas de Deus são baseadas em Seu
caráter imutável, não no desempenho variável do crente, as promessas são para todos
que escolhem crer nelas. A doutrina da segurança de Lutero não era meramente uma
construção teórica, mas uma robusta confiança e segurança que triunfava sobre todo
medo. Já em sua primeira série de palestras sobre os Salmos (1513-1515), ele começou
a se afastar da tradição medieval de “incerteza” em relação à segurança. Comentando
o Salmo 119:49-50, 111, Lutero exclamou:*
Aquilo que Deus prometeu alegra o coração dos que nele crer e esperam por ele. Portanto,
nós exultamos nesse ínterim, na fé e na esperança das coisas futuras, aquelas coisas futuras
que Deus nos prometeu. Portanto, de fato, exultamos porque estamos certos de que Ele não
engana, mas sim, que cumprirá o que prometeu, e que tirará de nós toda aflição do corpo e
da alma, e nos dará tudo o que é bom, e isso sem fim.40

Sven Grosse aponta que em sua palestra sobre Romanos 8:16 (“O próprio Espírito
testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus”), “Lutero identifica este
testemunho, que o Espírito Santo dá ao espírito humano, com a confiança do coração
humano em Deus.”41 Lutero afirma que Romanos 8:33, “Quem intentará acusação
contra os eleitos de Deus?” significa que temos certeza de que nenhum pecado será
imputado contra nós.” Da mesma forma, o apóstolo fala de como “sabemos que em
tudo Deus coopera para o bem daqueles que o amam, chamados segundo o seu
propósito” (Rm 8:28). Finalmente, ele declara em Rm 8:38s. que ele está certo de que
nada o separará do amor de Deus”.42
Em contraste, Lutero acusou a igreja de produzir deliberadamente dúvidas
generalizadas sobre a certeza.
Os teólogos [católicos]... distorceram [Eclesiastes 9:1] de tal maneira que eles... extinguiram
completamente a certeza da fé em Cristo... ensinando e inculcando nada mais religioso nos
corações sofredores do que dizer-lhes que eles deve estar em dúvida e incerteza sobre a
graça e o amor de Deus para conosco, independentemente de quão irrepreensíveis sejam
nossas vidas.43

38
Schaff, quoted in Hoskinson, Assurance of Salvation, 19, n. 9-13.
39
Veja Hoskinson, Assurance of Salvation, 18-21.
40
Martin Luther citado em Grosse, Salvation and the Certitude of Faith, 69.
41
"Testimonium istud sitfiducia cordis in Deiim - 'esta testemunha é a confiança do coração em Deus'."
Lutero, citado em Grosse, Salvation and Certitude, 69.
42
Luther citado em Grosse, Salvation and Certitude, 69 (emphasis in original).
43
Martin Luther, Notes on Ecclesiastes, in Luthers Works, vol. 15, ed. Jaroslav Pelikan (Saint Louis, MO:
Concordia Publishing, 1972), 3-4.

259
Para Lutero, aqueles que alimentavam dúvidas fundamentais sobre o caráter
misericordioso de Deus cometeram nada menos do que “uma blasfêmia terrível e
extremamente comum” porque “eles presunçosamente desprezam e odeiam as
palavras e promessas, ou . . . dizem que têm dúvidas e não sabem se Deus é compassivo
a tal ponto.”44 Essa ideia “se origina de um coração blasfemo que não pensa que Deus é
verdadeiro”.45 Assim, eles “atribuem inconstância e falta de confiança a Deus”.46 Tal
visão de Deus, Lutero concluiu, “declara publicamente que Deus é um mentiroso”.47
Assim, a descoberta da segurança de Lutero tornou-se um fator importante em seu
rompimento com Roma.48 A doutrina de segurança de Lutero é básica para sua teologia,
porque a falta de segurança torna a verdadeira fé e confiança em Deus quase
impossíveis.49
Matthew C. Hoskinson mostra que Lutero baseou sua doutrina de segurança em
três fundamentos. O primeiro e mais importante foi “o caráter imutável de Deus”
mediado aos humanos por meio de Cristo, nosso Sumo Sacerdote. “O segundo e terceiro
fundamentos de segurança... são ambos subjetivos, fluindo das promessas objetivas de
Deus por meio de Cristo. Uma delas é a vida de obediência que a fé salvadora produz”.
A obediência constitui “evidência inferencial de que alguém é um recipiente da graça de
Deus”. Mas a certeza vem primeiro, antes mesmo da obediência; somente depois que a
certeza produz a fé que resulta em obediência, a obediência pode fornecer segurança.50
A terceira base de segurança, o testemunho do Espírito Santo (Rm 8:16; Gl 4:6; 1Ts
1:5), também se baseia nas promessas de Deus nas Escrituras. Hoskinson explica que
essa “conexão das promessas de Deus com a obediência do crente e o testemunho do
Espírito”, protege o crente “contra o legalismo, por um lado, e o subjetivismo, por outro.
Pode haver três bases de segurança... mas apenas um objeto correto da fé salvadora”—
o caráter e as promessas de Deus em Cristo.51
Em um sermão sobre Gálatas 4:1-7, Lutero explicou que o crente deve ter “não
temer ou vacilar que ele é devoto e é filho de Deus pela graça, mas deve haver apenas
temor e preocupação sobre como ele, portanto, permanecerá constante até o fim... pois

44
Martin Luther, Lectures on Genesis, Chapters 21-25, in Luthers Works, vol. 4, ed. Jaroslav Pelikan
(Saint Louis, MO: Concordia Publishing House, 1964), 144.
45
Ibid., 145.
46
Ibid.
47
Ibid.
48
“Até certo ponto não é incorreto dizer que a descoberta reformadora consistiu formalmente na
descoberta da palavra da promessa que perdoa e dá certeza”. Martin Brecht, Martin Luther: His Road to
Reformation 1483-1521, trad. James L. Schaaf (Filadélfia, PA: Fortress Press, 1985), 236; cf. Grosse,
Salvação e Certeza, 67; Lohse, A Short History of Christian Doctrine, 159, e Hosldnson, Assurance of
Salvation, 21-24.
49
“A soma de nossa religião é esta: que um homem esteja seguro e seguro em sua própria consciência”.
Veja Martinho Lutero, “Lectures on 1 Timothy”, em Luthers Works, vol. 28, ed. Hilton C. Oswald (St. Louis,
MO: Concordia, 1973), 325; cf. Hosldnson, Garantia de Salvação, 24.
50
Hosldnson, Assurance of Salvation, 26-28.
51
Ibid., 29.

260
tal fé não se gaba de obras ou de si mesma, mas somente de Deus e de Sua graça.”52
Aqui Lutero retrata o crente, não como vacilante entre o medo e a esperança, mas
usando tanto o medo quanto a esperança como “duas grades de proteção” para
proteger de “falsos extremos”.53 Nas palavras de Lutero, “o medo barra o caminho para
a direita, mas a misericórdia barra o caminho para a esquerda; uma é a [falsa] certeza,
a outra é o desespero, uma é a vanglória, a outra é a perda da esperança em Deus”.54
Em Romanos 4:7, “Bem-aventurados aqueles cujas iniquidades são perdoadas”, Lutero
comentou que os crentes são “simultaneamente injustificados e justificados ...
Enquanto os santos guardarem seus pecados sempre em mente e implorar a Deus por
justificação em virtude de Sua misericórdia, então Deus os aceitam como justificados...
A verdade é que eles são pecadores, mas pela aceitação de nosso Deus misericordioso,
eles são justificados”.55 Em suma, aqueles que se humilham como pecadores diante de
Deus serão justificados; mas aqueles que confiam em seus próprios méritos serão
desqualificados. Quando os crentes olham para si mesmos, não podem ver nada de
bom, mas se lançam à misericórdia de Deus e são aceitos e justificados. Mas se eles
pretendem basear a segurança em sua obediência ou boas obras, Deus expõe suas obras
como nada além de pecado. Portanto, a verdadeira fé sempre permanece focada no
Salvador misericordioso, nunca em qualquer dignidade humana.
Assim, Lutero afirmou a segurança presente baseada na fé presente no caráter e
nas promessas de Deus. O crente pode saber sem dúvida que Deus é misericordioso,
cumpre Suas promessas, ouve a oração e perdoa os pecadores. Nas palavras de Grosse:
“Se ele crer, e enquanto ele crer, sua salvação futura está assegurada, e ele também
está certo de sua eleição”.56 Por outro lado, Lutero reconheceu que a certeza absoluta
da salvação final está além do conhecimento humano. Como Grosse explica, “ninguém
alcança a salvação a menos que seja eleito para ela por Deus, então a certeza da salvação
teria que ser simultaneamente a certeza da predestinação para a salvação”.57 Lutero
não acreditava que alguém pudesse ter certeza infalível de sua própria eleição (ou seja,
predestinação para a salvação). A suposição de que alguém poderia ter certeza absoluta
de sua própria eleição foi um desenvolvimento posterior na teologia calvinista.
CALVINO E A SEGURANÇA DA SALVAÇÃO
João Calvino (1509-1564), vinte e seis anos mais jovem que Lutero, pertencia à
próxima geração de reforma. Nascido na França, passando sua carreira madura em
Genebra, na Suíça, ele construiu sobre os fundamentos de Lutero, elaborando e
sistematizando o que Lutero havia começado. Uma edição padrão de Institutas de
Calvino dá mais de trezentas páginas para a exposição da fé e segurança.58 A principal

52
Martin Luther, citado em Grosse, Salvation and Certitude, 77.
53
Ibid.
54
Ibid., 78.
55
Ibid., 72.
56
Ibid., 77.
57
Grosse, Salvation and Certitude, 76.
58
John Calvin, Institutes of the Christian Religion, vols. 20 and 21 of Library of Christian Classics, ed. John
T. McNeill, trans. Ford Lewis Battles (Philadelphia, PA: Westminster, 1960), 3.1-19.

261
entre suas objeções à doutrina romana era a inclusão de obras humanas meritórias
como base para a justificação.
Calvino concordou com Lutero que a certeza repousa em uma base objetiva e
fundamental – o caráter e as promessas de Deus – mais duas bases de sustentação
subjetivas, o testemunho interior do Espírito e a vida obediente do crente.59 Calvino
definiu a fé como “[1] um conhecimento firme e certo da benevolência de Deus para
conosco, [2] fundamentado na verdade da promessa dada gratuitamente em Cristo,
tanto [3] revelada em nossas mentes como [4] selada em nossos corações pelo Espírito
Santo”.60 Descompactando esta definição, (1) “conhecimento firme e certo” significa o
tipo de certeza baseado na experiência pessoal. O verdadeiro crente considera a
bondade de Deus como indubitável. (2) Este senso de certeza é fundado antes de tudo
na “verdade da promessa dada gratuitamente” da palavra de Deus em Cristo. A
promessa é confiável porque o próprio Deus é verdadeiro e imutável, e porque Sua
Palavra em Cristo e nas Escrituras é totalmente confiável. (3) A confiabilidade da
promessa de Deus é “revelada às nossas mentes” por revelação geral, as evidências do
poder e amor de Deus em Suas obras criadas; por revelação especial e uma verificação
pessoal dos crentes de que Sua palavra escrita é confiável; e pela própria experiência
dos crentes de Seu amor e poder em ação em sua vida. (4) A promessa de Deus também
é “selada em nossos corações pelo Espírito Santo” (ou seja, por uma revelação subjetiva
de Seu amor a cada pessoa individualmente). Por esta definição, Calvino afirma que uma
assim chamada fé que não produz segurança não é fé genuína.61 Assim, Calvino insiste
que aquele que crê que Cristo morreu pelo mundo, mas não sabe se Cristo morreu “por
mim”, ainda não tem fé verdadeira. “Só é verdadeiramente um crente aquele que,
convencido por uma firme convicção de que Deus é um Pai bondoso e bem-intencionado
para ele, promete a si mesmo todas as coisas com base em sua generosidade; que
confiando nas promessas da benevolência divina para com ele, se apega a uma
expectativa indubitável de salvação”.62 Esta é uma afirmação ousada, que Calvino mais
tarde qualifica, admitindo que “mesmo a fé fraca é fé real”,63 mas seu ponto é claro.
Aquele que crê que Cristo morreu pelo mundo, mas não sabe se Cristo morreu “por
mim”, ainda não tem fé plena e forte. Ao tornar a segurança intrínseca à fé, Calvino liga
a segurança presente à segurança última. Ele acredita que até que alguém tenha certeza
presente, ele ou ela não tem fé verdadeira, e se alguém tem fé verdadeira, ele ou ela
tem certeza final. Calvino conclui que os crentes não “compreendem bem a bondade de
Deus a menos que colhamos dela o fruto de grande certeza”.64 A certeza deve ser
fundamentada na bondade de Deus porque “a falta de segurança gera uma
incapacidade de obedecer”.65 A certeza possibilita a obediência. Visto que “tudo o que
não vem da fé é pecado” (Rm 14:23), sempre que o crente toma um curso de ação que

59
Hoslcinson, Assurance of Salvation, 39.
60
Calvin, Institutes 3.2.7.
61
Hoslcinson, Assurance of Salvation, 32; Calvin, Institutes 3.2.16.
62
Calvin, Institutes 3.2.16.
63
Ibid. 3.2.17-19.
64
Ibid. 3.2.16.
65
Hoslcinson, Assurance of Salvation, 34.

262
duvida ser a vontade de Deus, ele não está agindo com fé, mas com presunção.
“Somente quando perdemos toda a ansiedade por nossa própria conta, podemos estar
de todo o coração em nos sacrificar pelo serviço de Deus.”66
Apesar de toda a sua ênfase na certeza como intrínseca à fé verdadeira, Calvino
citou a jactância de Pedro de que ele nunca negaria a Cristo como uma advertência a
todos os crentes contra o perigo do orgulho e da autoconfiança. “Identificando a falta
de confiança como um extremo e a autoconfiança como o outro, Calvino traça um meio-
termo” exposto em Filipenses 2:12-13”: “Desenvolva sua própria salvação com temor e
tremor; pois é Deus quem opera em vocês tanto o querer como o realizar.”67 Assim,
Calvino implicitamente reconheceu que somente quando o crente continua no
relacionamento com Cristo que dá a certeza presente é que ele mantém essa certeza no
futuro.
A visão de Calvino sobre segurança estava intimamente relacionada à sua crença na
dupla predestinação: a premissa de que antes da criação do mundo, Deus havia
predeterminado irrevogavelmente quem seria perdido e quem seria salvo. A favor de
Calvino, deve-se notar que ele negou veementemente que os crentes “devem começar
com a predestinação na busca da segurança da salvação”.68
O conceito calvinista de dupla predestinação atraiu muitos porque parecia tornar
possível determinar com certeza se alguém está entre os eleitos e, assim, conhecer seu
destino final. A ideia de uma garantia irreversível (“uma vez salvo, sempre salvo”)
baseia-se no raciocínio pré-destino: que ninguém poderia ser convertido a menos que
já estivesse predestinado (eleito) para a salvação, portanto a conversão prova a eleição
(predestinação para a salvação). Continua o silogismo de que os predestinados à
salvação não podem, em circunstância alguma, ser perdidos; portanto, a “perseverança”
na salvação é garantida.
Embora seja comumente pensado que a doutrina da dupla predestinação oferece
maior segurança ao crente, ela realmente não oferece. Se alguém perde a fé, a visão
calvinista pode facilmente levar o apóstata a pensar que ele ou ela foi divinamente
predestinado à condenação e, portanto, sem esperança. Calvino advertiu seus leitores
contra tal conclusão,69 mas continua sendo uma possibilidade lógica de suas
pressuposições. Se fosse verdade que Deus havia predeterminado a condenação da
maioria da humanidade, então as chances seriam melhores do que 50-50 de que uma
pessoa que está se afastando de Cristo pode não estar apenas escorregando

66
Ronald Wallace, Calvins Doctrine of the Christian Life (Grand Rapids, MI: Eerd- mans, 1989), 299,
quoted in Hoskinson, 34.
67
Hoslcinson, Assurance of Salvation, 39
68
Calvin, “Second Defense of the Sacraments”, em Tracts and Treatises on the Doctrine and Worship of
the Church, vol. 2 do Tratado e Série de Calvino, trad. Henry Beveridge (Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1958), 2:343, citado em Hosldnson, Assurance of Salvation, 40-41 (grifo nosso). As Institutas de Calvino
incluíam a predestinação, não sob a doutrina de Deus, mas como um argumento de apoio dentro da
doutrina da salvação, depois que ele estabeleceu firmemente a doutrina da segurança com base na fé.
Veja Calvino, Institutas 3.21.1.
69
Calvin, Institutes 3.24.4; veja também Hosldnson, Assurance of Salvation, 40-41.

263
temporariamente, mas pode estar entre os eternamente não eleitos. É mais bíblico
afirmar que não há garantia bíblica à parte de um relacionamento contínuo com Cristo.
“Esta é a vida eterna: que conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a
quem enviaste” (Jo 17:3; cf. 15:1-7).
ARMÍNIO E A SEGURANÇA DA SALVAÇÃO
Jacó Armínio (1560-1609) abordou a questão da perseverança e segurança
motivados essencialmente por preocupações pastorais e não por especulações
teológicas. Carl Bangs relata que, enquanto Armínio desempenhava tarefas pastorais
durante a peste bubônica em Amsterdã, ele apoiou espiritualmente dois indivíduos em
seus leitos de morte que estavam completamente desesperados devido à falta de
segurança.70 O próprio relato de Armínio sobre sua intervenção serve como um exemplo
de sua compreensão teológica da certeza da salvação. De acordo com o diálogo de
Armínio com esses dois indivíduos, a segurança pode ser definida como a certeza no
coração do crente da remissão dos pecados, confirmada pelo testemunho do Espírito
Santo. De fato, a firme crença de que os próprios pecados foram perdoados é
necessariamente seguido pela certeza da salvação; segurança é o resultado previsível
de crer que “Deus reconciliou o mundo consigo mesmo em Cristo”.71
Dessa maneira, Armínio correlacionou diretamente a fé pessoal em Jesus Cristo com
a certeza da salvação. A fé, diz Armínio, torna possível “ser persuadido com certeza”. 72
Da perspectiva de Armínio, a fé no que Deus fez para a redenção dos seres humanos por
meio de Jesus Cristo é a base sólida da certeza. Ele apontou fortemente a fonte de sua
confiança: “Sou um crente,' ou creio em Cristo;—portanto sou salvo', ou sou eleito.”73
Keith Stanglin e Thomas McCall afirmam corretamente que de acordo com a teologia de
Armínio , “para segurança, basta olhar para Cristo e para o Deus de amor e graça que
ele [Cristo] revela”.74 Em suma, para Armínio, a fé presente em Cristo e Sua obra
reconciliadora é a base básica para a segurança presente. A certeza cristã da salvação é
simplesmente uma questão de confiar em Cristo, em Seu amor e em Sua graça.
Além disso, Armínio afirmou que o testemunho interior do Espírito Santo, uma
consciência pura e a evidência real dos frutos da fé corroboram a certeza da salvação
que a fé em Cristo traz para a vida dos crentes.75 De fato, o Espírito Santo testifica à
consciência do crente sobre Sua própria obra salvífica no coração do crente. O Espírito
Santo não apenas capacita a vontade humana de crer, mas também é o instrumento

70
Bangs, Arminius, 174.
71
Ibid, (emphasis in original).
72
W. Stephen Gunter, Arminius and His Declaration of Sentiments: An Annotated Translation with
Introduction and Theological Commentary (Waco, TX: Baylor University Press, 2012), 142.
73
James Arminius, The Works of James Arminius, vol. 3, trans. James Nichols and William R. Bagnall
(Grand Rapids, MI: Baker Book, 1956), 497.
74
Keith D. Stanglin and Thomas H. McCall, Jacob Arminius: Theologian of Grace (New York: Oxford
University Press, 2012), 187.
75
Veja Gunter, Arminius and His Declaration, 142.

264
operativo de Deus para a perseverança na bondade.76 Com tal certeza da salvação, os
cristãos podem enfrentar a morte e “aparecer diante do trono da graça sem medo
ansioso ou terrível pavor da condenação.”77 Assim, após as promessas das Escrituras, a
evidência real de uma vida cristã, o testemunho do Espírito Santo e uma consciência
pura também produzem certeza de salvação na vida do crente.
Armínio fez um grande esforço para reavaliar a ideia reformada a respeito da
segurança eterna dos santos. Por um lado, ele sustentou que os crentes a quem Deus
deu a verdadeira fé têm o poder espiritual para obter vitória sobre “Satanás, o pecado,
o mundo e sua própria carne”.78 A assistência divina, diz Armínio, fornece
continuamente os meios necessários para os crentes vencerem as tentações e
“permanecerem diligentes, em guarda”.79 Portanto, “não é possível a Satanás, por sua
astúcia ou poder, seduzi-los ou arrastá-los para fora das mãos de Cristo”.80 Em outras
palavras, para Armínio não há causas eficientes ou deficientes na obra de salvação de
Deus que poderiam levar os crentes a um afastamento de sua experiência cristã. Deus
providenciou meios suficientes para que todos os crentes perseverem na fé e nas boas
obras e obtenham o propósito final de Deus, a salvação eterna.
Por outro lado, no entanto, a visão mais sinérgica da salvação de Armínio o levou a
considerar cuidadosamente o testemunho das Escrituras sobre a possibilidade de
apostasia.81 Um argumento fortemente enfatizado em seus escritos é que os humanos,
assistidos pela graça de Deus, não são agentes passivos, mas ativos na dinâmica da
salvação.82 Portanto, da mesma maneira que eles podem decidir livremente crer e
aceitar a oferta de salvação de Deus, eles também podem decidir não crer em Deus,
afastar-se das boas obras e, consequentemente, perder completamente sua salvação.
Stanglin e McCall apontam que “levando em conta todo o corpo de seus escritos, fica
claro que Armínio assumiu que os verdadeiros crentes podem cair” da graça.83
No entanto, embora os verdadeiros crentes realmente falhem em suas batalhas
contra o pecado, eles são “na maioria dos casos . . . trazido de volta” ao arrependimento
pela obra do Espírito Santo.84 De fato, este parece ser o contexto em que sua afirmação

76
Arminius, Works, 3.372-373.
77
Gunter, Arminius and His Declaration, 142.
78
Ibid., 141.
79
Ibid.
80
Ibid.
81
Armínio encontrou uma tensão real entre as passagens que afirmam a possibilidade de se afastar de
Cristo e aquelas que parecem indicar a perseverança incondicional dos santos. Sobre a possibilidade de
apostasia, Armínio escreveu que “há passagens das Escrituras que parecem indicar isso”. No entanto,
“outras passagens da Escritura podem ser produzidas [apoiando] a doutrina oposta (afirmando a
perseverança incondicional)” Gunter, Arminius and His Declaration, 142. Cf. 141-142.
82
Arminius, Works, 2:192.
83
Stanglin e McCall, Jacob Armínio: Teólogo da Graça, 173; Armínio, Works, 1:530: Armínio, em seu artigo
On Regeneration and the Regenerate, aponta claramente que as pessoas regeneradas ainda são 'capazes
de cometer pecado' e 'entristecer o Espírito Santo por seus pecados', Works, 2:502 . Nesse contexto, ele
cita Davi como o exemplo que mostra que mesmo os verdadeiros crentes podem perder completamente
sua salvação a menos que se arrependam. “Se Davi tivesse morrido no exato momento em que pecou
contra Urias por adultério e assassinato, ele teria sido condenado à morte eterna” (ibid.).
84
Stanglin and McCall, Jacob Arminius: Theologian of Grace, 173.

265
“Eu nunca ensinei que um verdadeiro crente, quer total ou definitivamente se afaste da
fé e pereça”85, deve ser entendido. O equilíbrio proposto por Armínio parece ser que,
enquanto os pecados reais são uma possibilidade e uma realidade na vida dos crentes,
a apostasia absoluta de acordo com sua leitura das Escrituras permanece apenas como
uma possibilidade em suas experiências. Ele levou muito a sério as passagens de
advertência das Escrituras. Tais passagens levaram Armínio a acreditar que a única
atitude segura86 para os discípulos de Cristo é “permanecer diligente, vigilante e
implorar” a assistência contínua de Deus.87 Consequentemente, enquanto os crentes
mantiverem sua fé nas promessas de salvação de Deus, enquanto aceitarem
continuamente a assistência e a graça subsequente de Deus, eles não cairão da bênção
eterna dada aos santos.
A compreensão de Armínio sobre perseverança influenciou fortemente as ideias
teológicas de seus seguidores sobre este tópico. Certamente, se os cristãos pecam e não
se arrependem, a possibilidade de que eles possam perder sua salvação é real.88 Por
exemplo, os pastores Remonstrantes em 1621 declararam: [verdadeiros e santos
crentes] retrocedem pouco a pouco e até perderem completamente sua fé e caridade
anteriores.”89
Para concluir, de acordo com Armínio, a segurança cristã da salvação depende de
uma fé diária em Cristo apoiada pelo testemunho conjunto do Espírito Santo e da
consciência humana. Essa fé olha para Cristo como seu “pioneiro e consumador” (Hb
12:2, NVI). Além disso, a perseverança diária em tal fé e boas obras, pela graça
assistencial de Deus, aumenta a segurança da salvação na vida do crente. No entanto,
Armínio reconheceu que a possibilidade de apostasia é sempre uma realidade presente
na experiência humana. Os cristãos, então, devem orar continuamente, clamando pela
ajuda de Deus para confrontar sua carne e as artimanhas de Satanás. Por essa razão,
pode-se concordar com Bangs que, da perspectiva da fragilidade e fraqueza humana, na
teologia de Armínio “não há certeza presente da salvação final”.90 No entanto, da
perspectiva do amor, poder e desejo apaixonado de Deus de salvar Seus filhos amados,

85
Gunter, Arminius and His Declaration, 142
86
Ellen White faz uma declaração semelhante: “Não há segurança para o filho de Deus a menos que ele
receba diariamente uma nova e renovada experiência ao olhar para Jesus. Ao contemplá-lo dia a dia, ele
refletirá sua imagem e, assim, representará seus atributos divinos. Sua única segurança está em colocar-
se diariamente sob a orientação da palavra de Deus, em trazer diariamente seu curso de ação à prova de
indagação: “É este o caminho do Senhor?” Uma vida divina representará Jesus Cristo e será antagônica a
os costumes, práticas e padrões do mundo”, “Por que o Senhor espera”, The Review and Herald (28 de
julho de 1896).
87
Gunter, Arminius and His Declaration, 141.
88
Veja Mark A. Ellis, ed. and trans., Arminian Confession of 1621 (Eugene, OR: Pickwick, 2005), 82.
91. See Keith Stanglin, Arminius on the Assurance of Salvation: The Context, Roots, and Shape of the
Leiden Debate, 1603-1609 (Leiden: Brill, 2007), 234-235.
89
Ibid.
90
Bangs, Arminius, 348.

266
na teologia de Armínio realmente há esperança presente de salvação final que traz
alegria e paz duradouras ao coração crente.91
JOHN WESLEY E A SEGURANÇA DA SALVAÇÃO
Enquanto Armínio lidou com a certeza da salvação principalmente como um pastor
tentando confortar alguns de seus membros, John Wesley (1703-1791) abordou o tópico
de sua própria experiência como alguém que conhecia Jesus, mas não tinha certeza de
sua própria salvação. Durante fortes tempestades enquanto cruzava o Atlântico para a
Geórgia, Wesley notou quão acentuado era o contraste entre seu próprio medo da
morte e a atitude pacífica dos morávios.92 Em uma conversa com o líder morávio August
Spangenberg na Geórgia em 1736, Wesley faz pergunta mais chocante de sua vida: “O
Espírito de Deus testifica com o seu espírito que você é um filho de Deus?”93 Wesley não
sabia como responder. Essa entrevista revelou que, apesar de sua formação teológica,
ele “não tinha o testemunho do Espírito Santo de que era filho de Deus”.94 Ele ainda não
havia encontrado a segurança, a confiança e a certeza da salvação desfrutadas pelos
cristãos da Morávia.
Dois anos depois, em 24 de maio de 1738, Wesley finalmente começou a ter a
certeza da salvação que tanto buscava.
À noite, fui muito a contragosto a uma sociedade em Aldersgate Street, onde se estava lendo
o prefácio de Lutero à Epístola aos Romanos. Cerca de um quarto para as nove [8:45h],
enquanto ele descrevia a mudança que Deus opera no coração por meio da fé em Cristo,
senti meu coração estranhamente aquecido. Senti que confiava em Cristo, somente em
Cristo para a salvação; e foi-me dada a certeza de que Ele havia tirado meus pecados, sim,
os meus, e me salvou da lei do pecado e da morte.95

Daquele momento em diante, ele queria que cada seguidor de Cristo


experimentasse o que ele tinha, porque ele via a segurança como a única alternativa
para “um estado constante de medo em relação à salvação de sua alma”.96 Em seus
sermões, Wesley defendeu três fundamentos para a certeza cristã da salvação. Primeiro,
a certeza é obtida pelo testemunho interior do Espírito Santo à consciência humana.
Segundo, o fruto do Espírito Santo na vida dos crentes evidencia que eles são filhos de
Deus. Finalmente, esses dois fundamentos de segurança são apoiados pelo testemunho
da Sagrada Escritura.
Wesley definiu o testemunho interior do Espírito como “uma impressão interior na
alma, pela qual o Espírito de Deus testemunha imediata e diretamente ao meu espírito
que sou um filho de Deus; que Jesus Cristo me amou e se entregou por mim; que todos

91
Veja Keith Stanglin, Arminius on the Assurance of Salvation: The Context, Roots, and Shape of the Leiden
Debate, 1603-1609 (Leiden: Brill, 2007), 234-235.
92
Kenneth J. Collins, John Wesley: A Theological Journey (Nashville, TN: Abingdon, 2003), 56-58.
93
John Wesley, Journal of the Rev. John Wesley, ed. Nehemiah Curnoclc (London: Epworth Press, 1938),
1:151.
94
Kenneth J. Collins, “Wesleys Life and Ministry” in The Cambridge Companion to John Wesley, ed. Randy
L. Maddox and Jason W. Vickers (New York: Cambridge University Press, 2010), 46.
95
Wesley, Journal, 475-476.
96
Allan Coppedge, John Wesley in Theological Debate (Wilmore, KY: Wesley Heritage, 1987), 140.

267
os meus pecados sejam apagados, e eu, mesmo eu, estou reconciliado com Deus”.97
Wesley sustentou que o testemunho do Espírito Santo é necessariamente o primeiro
fundamento de segurança:
Devemos ser santos de coração e santos na vida antes de podermos estar conscientes de
que o somos; antes que possamos ter o testemunho de nosso espírito [humano], de que
somos interior e exteriormente santos. Mas devemos amar a Deus, antes que possamos ser
santos... Ora, não podemos amar a Deus, até que saibamos que Ele nos ama... E não
podemos conhecer seu amor perdoador por nós, até que seu Espírito o testemunhe aos
nossos espírito.98

Assim, o testemunho do Espírito Santo dá aos cristãos a certeza do amor de Deus


por eles, seu próprio amor por Deus, sua justificação e regeneração, antes que possa
haver qualquer vida de santidade. Isso implica que o testemunho do Espírito Santo traz
certeza da justificação presente, aceitação como filho de Deus e perdão de todo pecado.
No entanto, Wesley estava bem ciente da subjetividade de tal testemunho interior.
Os cristãos podem se tornar presa fácil da “presunção, de uma mente natural e da ilusão
do diabo”.99 Por esta razão, ele vinculou intimamente o testemunho do Espírito Santo a
um fundamento mais objetivo de salvação, a presença observável do fruto do Espírito
Santo na vida dos crentes. De acordo com Wesley, as evidências das Escrituras que
validam o testemunho interior do Espírito Santo incluem convicção do pecado,
arrependimento, obediência fiel aos mandamentos de Deus e o fruto do Espírito
(Gálatas 5:22-23).100 Wesley raciocinou: “A Palavra de Deus diz que todo aquele que tem
o fruto do Espírito é filho de Deus; a experiência, ou consciência interior, me diz que
tenho o fruto do Espírito; e, portanto, concluo racionalmente, portanto, sou um filho de
Deus”.101 Indiscutivelmente, na teologia de Wesley, enquanto o testemunho interior do
Espírito Santo traz a certeza da justificação, o testemunho de uma consciência pura em
harmonia com Deus traz a certeza da santificação diária ou regeneração contínua.
Wesley observa que a evidência do fruto do Espírito pode ser “nublada por um tempo”
e “nem sempre de fato [visível] no mesmo grau”. “Nem alegria nem paz... nem amor”
sempre permanece no mesmo nível.102 Obviamente, Wesley antecipou que a convicção
obtida no momento da justificação pelo testemunho interior do Espírito seria reforçada
por um crescimento contínuo na semelhança de Cristo.
Além disso, para Wesley, é no testemunho conjunto do Espírito Santo e da
consciência humana que a certeza da salvação se torna completa. Embora ele falasse do
testemunho do Espírito Santo como anterior ao testemunho da consciência humana, ele
realmente rejeitou a ideia de que eles pudessem testemunhar separadamente. Em seu
Sermão 11, Wesley advertiu: “Ninguém jamais presuma descansar em qualquer suposto

97
John Wesley, “The Witness of the Spirit,” in The Works of the Reverend John Wesley, vol. 1, ed. John
Emory (New York: J. Emory and B. Waugh, 1831), 94.
98
Ibid., 89.
99
Ibid.
100
Ibid., 64-68.
101
Ibid., 94.
102
Ibid., 100, 95.

268
testemunho do Espírito, que é separado do fruto dele. Se o Espírito de Deus realmente
testificar que somos filhos de Deus, a consequência imediata será o fruto do Espírito.”103
Ao mesmo tempo, ele também exortou seus ouvintes:
Que ninguém descanse em qualquer suposto fruto do Espírito sem o testemunho. Pode haver
antegozos de alegria, de paz, de amor... antes que o Espírito de Deus testemunhe com nosso
Espírito que temos “redenção no sangue de Jesus, sim, o perdão dos pecados”. Sim, pode
haver um grau de longanimidade, de gentileza, de fidelidade, mansidão, temperança (...
pela graça preventiva de Deus) ... mas de modo algum é aconselhável descansar aqui; ... Se
formos sábios, estaremos continuamente clamando a Deus, até que seu Espírito clame em
nosso coração, Abba, Pai!104

Portanto, de acordo com Wesley, a certeza da salvação só é uma certeza real


quando o Espírito de Deus e o espírito humano ao mesmo tempo testificam sobre a
realidade da fé, justificação e santificação. Este testemunho combinado assegura aos
crentes que eles são verdadeiramente filhos de Deus.
Finalmente, Wesley continuamente apelava para as Escrituras como o pilar de
sustentação de sua teologia da segurança. O testemunho do Espírito Santo e o
testemunho da consciência humana são mais ou menos baseados na experiência
pessoal e, portanto, em certa medida, evidências subjetivas. Embora ele tenha admitido
que “estritamente falando”, a certeza “é uma conclusão extraída em parte da Palavra
de Deus e em parte de nossa própria experiência”, ele apontou várias vezes, “esta
doutrina é fundamentada nas Escrituras”.105 A experiência humana, então, embora
amplamente palpável na vida de “uma grande multidão” de crentes, é apenas uma
indicação, embora crítica, confirmando o ensino bíblico.106 Allan Coppedge
corretamente aponta que para Wesley as Escrituras “serviam como seu padrão, e se um
homem visse em sua própria vida o que a Bíblia descreve como evidência de filiação,
então ele poderia racionalmente ter certeza de que ele era um filho de Deus”.107
Assim, Wesley insistiu que todo cristão deveria desfrutar de plena certeza “além de
qualquer dúvida razoável”108 da presente justificação, regeneração, santificação e
participação como filho de Deus nos benefícios da salvação. A segurança, ele sustentou,
é “um privilégio comum dos filhos de Deus”109 e “o próprio fundamento do
cristianismo”.110
Wesley parece fazer uma cuidadosa distinção entre a doutrina da segurança e a
doutrina da perseverança cristã na fé. Enquanto a segurança diz respeito à realidade

103
Ibid., 100.
104
Ibid., 100.
105
Ibid., 94, 97.
106
Ibid., 96.
107
Coppedge, Wesley in Theological Debate, 141.
108
Wesley, “The Witness of the Spirit,” 107.
109
Wesley, citado em Robert Southey, The Life of Wesley: The Rise and Progress of Methodism (London:
Paternoster-Row, 1820), 1:295.
110
Wesley, citado em Kenneth J. Collins, A Real Christian: The Life of John Wesley (Nashville, TN: Abingdon,
1999), 87.

269
presente do crente, a perseverança lida principalmente com o futuro. Richard R
Heitzenrater observa assim que, para Wesley, “a certeza nunca é uma convicção ou
garantia de perseverança final ou um lugar no céu”.111 Em seu tratado sobre
perseverança, Wesley sustentou que a certeza da salvação “não prova que todo crente
perseverará, mais do que todo crente está assim plenamente persuadido de sua
perseverança”.112
Como, então, Wesley entende a doutrina da perseverança final dos santos? Em seu
tratado, Serious Thoughts upon the Perseverance of the Saints [Pensamentos Sérios
sobre a Perseverança dos Santos], Wesley reclama que, embora grandes volumes
tenham sido escritos sobre o assunto, eles não esclareceram a questão para os crentes
comuns. Portanto, ele preparou um “tratado curto e claro” sobre o que ele entendia
como o ensino bíblico sobre perseverança.113 Ele começou definindo santos como
aqueles que atualmente desfrutam da salvação que traz segurança por meio do
testemunho do Espírito Santo e dos frutos do Espírito. Sua principal pergunta é: Algum
desses santos com plena certeza pode se afastar totalmente da fé a ponto de perder a
salvação eterna?
Wesley fez um grande esforço para explicar que, infelizmente, a resposta bíblica
para essa pergunta é sim. Ele afirmou: “Por esta autoridade, creio que um santo pode
cair; que aquele que é santo ou justo no julgamento do próprio Deus pode, no entanto,
cair de Deus a ponto de perecer para sempre”.114 Não obstante, Wesley encoraja seus
seguidores a não se desesperarem, mas a confiarem em Deus. “É somente o poder de
Deus, e não o nosso, pelo qual somos mantidos um dia ou uma hora.”115 Para ele, o
futuro de um crente permanece seguro nas mãos de Deus. De fato, não é para o futuro
que os crentes devem olhar, mas para sua alegria presente na certeza do perdão, para
a realidade do fruto do Espírito presentemente evidente em suas vidas, e para o
testemunho contínuo do Espírito de que eles são filhos de Deus.116
UMA VISÃO ADVENTISTA DA SEGURANÇA DA SALVAÇÃO
O movimento adventista começou na década de 1830 como uma redescoberta
interdenominacional da doutrina do segundo advento pré-milenista de Cristo. A
decepção da expectativa de que Cristo viria em 1844 fragmentou o movimento, mas

111
Richard P. Heitzenrater, “The Founding Brothers,” in The Oxford Handbook of Methodist Studies, ed.
William J. Abraham and James E. Kirby (New York: Oxford University Press, 2009), 47; cf. Coppedge,
Wesley in Theological Debate, 142; Kenneth J. Collins, The Theology of John Wesley: Holy Love and the
Shape of Grace (Nashville, TN: Abingdon Press, 2007), 137.
112
John Wesley, “Serious Thoughts upon the Perseverance of the Saints,” The Works of the Reverend John
Wesley, vol. 10, 3rd ed. (London: James Nichols, 1830), 291.
113
Ibid., 284.
114
Ibid., 285. O tratado de Wesley cita passagem após passagem da Escritura para provar que a
perseverança está condicionada a uma caminhada diária em santidade de vida; veja, por exemplo,
Ezequiel 18:24; 33:13-18; João 8:51; 15:1-6; Romanos 11:17,20-22; e 1 Timóteo 1:18-19.
115
Ibid., 293.
116
Ibid., 295-297.

270
motivou mais estudos bíblicos que levaram à formação da denominação adventista do
sétimo dia em 1863.
Uma grande influência no desenvolvimento da Igreja Adventista e seu sistema de
crenças foi o dom profético exercido por Ellen G. White (1827-1915). Os adventistas
encontram semelhanças notáveis entre suas visões e ensinamentos e as visões e
ensinamentos dos profetas bíblicos. Enquanto eles sustentam que ela não é uma profeta
canônica, e seus escritos não carregam o mesmo nível de autoridade das Escrituras, eles
acreditam que ela recebeu revelação especial pela inspiração do Espírito Santo.117 Ela
frequentemente defendia o ideal de que “somos reformadores”,118 e considerava o
movimento adventista como uma continuação da Reforma realizada por Lutero, Calvino
e Wesley.
A compreensão geral dos White sobre o caminho da salvação tem muito em comum
com o protestantismo clássico. Como Lutero, ela repudiou totalmente a ideia de que o
mérito humano pudesse contribuir de alguma forma para a justificação de um pecador,
e exaltou a cruz de Cristo como o fundamento de toda certeza.
Que o assunto fique claro e claro que não é possível efetuar qualquer coisa em nossa posição
diante de Deus ou no dom de Deus para nós através do mérito da criatura. Se a fé e as obras
compram o dom da salvação para alguém, então o Criador tem obrigação para com a
criatura. Aqui está uma oportunidade para a falsidade ser aceita como verdade. Se alguém
pode merecer a salvação por qualquer coisa que faça, então ele está na mesma posição que
o católico para fazer penitência por seus pecados. A salvação, então, é em parte por dívida,
que talvez seja ganha como salário. Se o homem não pode, por nenhuma de suas boas obras,
merecer a salvação, então deve ser totalmente pela graça, recebida pelo homem como
pecador porque ele recebe e crê em Jesus. É totalmente um dom gratuito... A justificação é
totalmente da graça e não é obtida por quaisquer obras que o homem caído possa fazer.119

Como Calvino, White citou a queda de Pedro como uma advertência perpétua a
todos os que são tentados a igualar a segurança presente com a perseverança futura
final. “A queda de Pedro não foi instantânea, mas gradual. A autoconfiança o levou a
acreditar que ele estava salvo, e passo após passo foi dado no caminho descendente,
até que ele pudesse negar seu Mestre. Nunca podemos confiar em nós mesmos com
segurança ou sentir, deste lado do céu, que estamos seguros contra a tentação.”120

117
Seventh-day Adventist Believe: An Exposition of the Fundamental Beliefs of the Seventh-day Adventist
Church, 2nd ed. (Silver Spring, MD: Ministerial Association of the General Conference of Seventh-day
Adventists, 2005), 247-261; George E. Rice, “Spiritual Gifts,” in Handbook of Seventh-day Adventist
Theology, ed. Raoul Dederen (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2000), 610-650.
118
Veja, e.g., Ellen G. White, Testimonies for the Church, vol. 6 (Boise, ID: Pacific Press, 1948), 179.
119
Ellen G. White, Faith and Works (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2003), 19-20; cf. 23.
Originalmente em Ellen G. White, 1888 Materials (Washington, DC: The Ellen G. White Estate, 1987), 812-
813.
120
Ellen G. White, Christ's Object Lessons (Washington, DC: Review and Herald, 1941), 155. A citação
continua: “Aqueles que aceitam o Salvador, por mais sincera que seja sua conversão, nunca devem ser
ensinados a dizer ou sentir que eles são [finalmente, irrevogavelmente] salvos. Isso é enganoso. Cada um
deve ser ensinado a nutrir esperança e fé; mas mesmo quando nos entregamos a Cristo e sabemos que
Ele nos aceita, não estamos fora do alcance da tentação. ... Aqueles que aceitam a Cristo, e em sua
primeira confiança dizem: Estou salvo, correm o risco de confiar em si mesmos. Eles perdem de vista sua

271
Embora ela nunca tenha mencionado Armínio em seus escritos, ela certamente
concordou com ele que o pecado não fazia parte do plano original de Deus. 121 Foi
Satanás quem retratou o “Criador como o autor do pecado, do sofrimento e da morte”,
levando as pessoas a ver Deus como “duro e exigente” e “vigiando para denunciar e
condenar, não querendo receber o pecador enquanto houvesse um desculpa legal para
não ajudá-lo.”122 White retrata Deus amando apaixonadamente os perdidos, apesar de
sua depravação, e concedendo graça àqueles que ainda não O amam. Ela não usou os
termos técnicos depravação total ou graça preveniente, mas expressou conceito
semelhante em linguagem diferente.
[Depravação:] O homem pelo pecado foi separado da vida de Deus. Sua alma está
paralisada pelas maquinações de Satanás, o autor do pecado. Por si mesmo, ele é incapaz
de sentir o pecado, incapaz de apreciar e apropriar-se da natureza divina. Se fosse colocado
ao seu alcance, não há nada nele que seu coração natural desejasse. O poder fascinante de
Satanás está sobre ele. Todos os subterfúgios engenhosos que o diabo pode sugerir são
apresentados à sua mente para impedir todo bom impulso. Todas as faculdades e poderes
dados a ele por Deus foram usados como arma contra o divino Benfeitor. Assim, embora o
ame, Deus não pode conceder-lhe com segurança os dons e bênçãos que deseja conceder.

[Graça:] Mas Deus não será derrotado por Satanás. Ele enviou Seu Filho ao mundo, para
que, ao tomar a forma e natureza humanas, a humanidade e a divindade combinadas nEle
elevassem o homem na escala de valor moral com Deus.

[Graça:] Não há outro caminho para a salvação do homem. “Sem mim”, diz Cristo, “nada
podeis fazer” (João 15:5). Por meio de Cristo, e somente de Cristo, as fontes da vida podem
vitalizar a natureza do homem, transformar seus gostos e fazer fluir suas afeições para o
céu. Pela união da natureza divina com a humana, Cristo pôde iluminar o entendimento e
infundir Suas propriedades vivificantes através da alma morta em delitos e pecados.123

Contra a ideia de que Deus predestinou alguém à reprovação, ela apresentou uma
metanarrativa do conflito cósmico entre o bem e o mal que retrata Deus criando apenas
criaturas perfeitas – e honrando-as com um presente de liberdade moral genuína apesar
de sua queda em total desamparo. Ela sustentou que somente o amor dado livremente
dá a Deus alguma alegria. Uma afeição mecanicista de criaturas que não tinham
capacidade de fazer o contrário não seria um reflexo verdadeiro do amor de Deus.
Assim, ela retratou Deus como voluntariamente autolimitando o exercício de Sua
soberania, a fim de criar anjos e humanos como agentes morais livres, porque, a menos
que fossem livres para rejeitar Deus, eles não poderiam amá-Lo voluntariamente.
White foi diretamente influenciada por Wesley, porque ela nasceu (1827) em uma
devota família metodista apenas trinta e seis anos após a morte de John Wesley (1791).

própria fraqueza e sua constante necessidade de força divina. Eles não estão preparados para os ardis de
Satanás, e sob tentação muitos, como Pedro, caem nas profundezas do pecado. Somos admoestados:
“Aquele que pensa estar em pé, cuide para que não caia.” 1 Coríntios 10:12. Nossa única segurança está
na constante desconfiança de nós mesmos e na dependência de Cristo”, acrescentou a ênfase. White
acreditava na certeza bíblica; ela apenas se opôs à autoconfiança ou complacência que tão facilmente
precipita uma queda.
121
Ellen G. White, Great Controversy (Mountain View, CA: Pacific Press, 1911, 1950), 535-536.
122
Ellen G. White, Prophets and Kings (Mountain View, CA: Pacific Press, 1917), 311.
123
Ellen G. White, Selected Messages (Washington, DC: Review and Herald, 1958), 1:340-341.

272
Aos quatorze anos, Ellen Harmon White foi batizada na Igreja Metodista Episcopal em
Portland, Maine. Sua descrição de sua própria experiência de conversão foi fortemente
colorida pelos entendimentos metodistas de justificação e santificação. Ela lembrou que
“enquanto eu orava, o fardo e a agonia da alma que eu havia suportado por tanto tempo
me deixaram, e a bênção do Senhor desceu sobre mim como o orvalho suave”.124 Muitos
metodistas americanos na década de 1830 sustentavam uma visão de santificação
instantânea. White buscou essa experiência e aparentemente pensou que a havia
recebido, mas depois reinterpretou sua experiência, não como uma santificação
instantânea, mas como o testemunho do Espírito Santo de que Deus havia perdoado
seus pecados e a aceitava como Sua filha.125
Seus escritos maduros descrevem a santificação como “a obra de uma vida”, não
no sentido de que a santificação não pode ser experimentada imediatamente, mas no
sentido de que, como produto de um relacionamento pessoal livremente escolhido com
Cristo, permanece livre e fluido, um relacionamento que deve continuar a ser escolhido
enquanto durar a vida.126 É um relacionamento seguro porque Cristo continua a escolher
o crente, e Sua escolha do crente não vacila. Para o crente que guarda cuidadosamente
todo impulso em direção à independência de Cristo, a fim de permanecer em constante
e confiante submissão a Cristo como Senhor e Mestre, a graça e o poder de Cristo
virtualmente garantem o resultado da fé.127 Mas o crente não é preservado por um
decreto estático que impede a queda. Pelo contrário, o crente é mantido pelo poder do
amor divino, um Amor tão grande que conseguirá salvar “todos os que não interpõem
uma vontade perversa e assim frustram Sua graça”.128

124
James White, Life Sketches: Ancestry, Early Life, Christian Experience, and Extensive Labors of Elder
James White, and His Wife, Mrs. Ellen G. White (Battle Creek, MI: Steam, 1880), 159,160; White,
Testimonies, vol. 1, 31-32.
125
Ellen G. White, Testimonies, vol. 1, 31-32.
126
Ellen White via os redimidos como agentes morais completamente livres por toda a eternidade. “A
morte de Cristo na cruz garantiu a destruição daquele que tem o poder da morte, que foi o originador do
pecado. Quando Satanás for destruído, não haverá quem tente para o mal; a expiação nunca precisará
ser repetida; e não haverá perigo de outra rebelião no universo de Deus. A única coisa que pode
efetivamente impedir o pecado neste mundo de trevas impedirá o pecado no céu. O significado da morte
de Cristo será visto por santos e anjos. Os homens caídos não poderiam ter um lar no paraíso de Deus
sem o Cordeiro morto desde a fundação do mundo. Não devemos então exaltar a cruz de Cristo? Os anjos
atribuem honra e glória a Cristo, pois mesmo eles não estão seguros a não ser olhando para os sofrimentos
do Filho de Deus. É pela eficácia da cruz que os anjos do céu são guardados da apostasia. Sem a cruz eles
não estariam mais seguros contra o mal do que os anjos antes da queda de Satanás. A perfeição angelical
falhou no céu. A perfeição humana falhou no Éden, o paraíso da bem-aventurança. Todos os que desejam
segurança na terra ou no céu devem olhar para o Cordeiro de Deus. O plano de salvação, manifestando a
justiça e o amor de Deus, fornece uma proteção eterna contra a deserção em mundos não caídos, bem
como entre aqueles que serão redimidos pelo sangue do Cordeiro. Nossa única esperança é a perfeita
confiança no sangue dAquele que pode salvar perfeitamente todos os que vêm a Deus por Ele. A morte
de Cristo na cruz do Calvário é nossa única esperança neste mundo, e será nosso tema no mundo
vindouro”, Ellen G. White, “What Was Secured by the Death of Christ,” Signs of the Times (30 de dezembro
de 1889), par. 4.
127
Veja Fl 1:6; 2:12-13; 2Pe 1:10-11.
128
“Em cada ordem ou injunção que Deus dá há uma promessa, a mais positiva, subjacente à ordem. Deus
fez provisão para que possamos nos tornar semelhantes a Ele, e Ele fará isso para todos os que não

273
O conceito de Wesley de “aperfeiçoado no amor” descreve uma vida de serviço
amoroso que brota não de motivos egoístas, medo ou culpa, mas do amor a Deus e à
humanidade (1 João 4:17). O conceito de White é muito semelhante: “"Quando o eu é
fundido em Cristo, o amor brota espontaneamente. A plenitude do caráter cristão é
alcançada quando o impulso de ajudar e abençoar os outros brota constantemente de
dentro, quando a luz do sol do céu enche o coração e se revela no rosto."129 Para ela,
“perfeição de caráter” (ou seja, maturidade moral ou ética e uma atitude de não
comprometimento em relação ao pecado) significava o objetivo da santificação.130
Um aspecto do ensino de White é que ela faz uma clara distinção entre salvação e
certeza de salvação. Ela sustentou que é possível ter salvação sem segurança,131 ou falsa
segurança sem salvação,132 mas que a genuína certeza bíblica é essencial para a vida
cristã normal. “É essencial”, escreveu ela, “ter fé em Jesus e acreditar que você é salvo
por meio dele; mas há perigo em tomar a posição que muitos assumem ao dizer: Estou
salvo.”’133 Mas, enquanto ela advertia contra o excesso de confiança, ela insistia na
necessidade da fé que traz segurança.
Você não deve olhar para o futuro, pensando que em algum dia distante você será
santificado; é agora que deveis ser santificados pela verdade. ... Ninguém pode melhorar a
si mesmo, mas devemos ir a Jesus como somos, desejando sinceramente ser purificados de
toda mancha e mancha de pecado, e receber o dom do Espírito Santo. Não devemos duvidar
de sua misericórdia e dizer: Você não sabe se serei salvo ou não”. Pela fé viva, devemos nos
apegar à sua promessa, pois ele disse: “Ainda que seus pecados sejam como escarlate, eles
serão brancos como a neve”.134

Cada um de vocês pode saber por si mesmo que tem um Salvador vivo, que ele é seu
ajudador e seu Deus. Você não precisa ficar onde diz: “Não sei se estou salvo”. Você crê em
Cristo como seu Salvador pessoal? Se você fizer isso, então regozije-se.135

O pecador que perece pode dizer: “Sou um pecador perdido; mas Cristo veio buscar e salvar
o que estava perdido. Ele diz: “Não vim chamar justos, mas pecadores ao arrependimento”
(Marcos 2:17). Eu sou um pecador, e Ele morreu na cruz do Calvário para me salvar. Não
preciso ficar mais um momento sem ser salvo. Ele morreu e ressuscitou para minha
justificação, e Ele me salvará agora. Aceito o perdão que Ele prometeu.”136

interpõem uma vontade perversa e assim frustram Sua graça” Ellen G. White, Thoughts from the Mount
of Blessing (1896; repr., Mountain View, CA: Pacific Press, 1955), 76.
129
White, Christs Object Lessons, 384.
130
Com respeito à perfeição de Wesley e Ellen G. White, veja Woodrow W. Whid- den II, “Adventist
Soteriology: The Wesleyan Connection,” Wesleyan Theological Journal 30 (Spring 1995): 173-186;
Whidden, “The Soteriology of Ellen G. White: The Persistent Path to Perfection, 1836-1902” (PhD diss.,
Drew University, 1989); Whidden, The Judgment and Assurance: The Dynamics of Personal Salvation
(Hagerstown, MD: Review and Herald, 2012); Whidden, Ellen White on Salvation (Hagerstown, MD:
Review and Herald, 1995), 131-142.
131
Veja, como exemplo, Ellen G. White, Desire of Ages (Mountain View, CA: Pacific Press, 1911,1940), 638.
132
Veja, como exemplo, White, Testimonies, vol. 1,133-134,158,163, 242-243.
133
White, Selected Messages, 1:373.
134
Ellen G. White, “The Christian a Guardian of Sacred Trusts,” Signs of the Times (April 4,1892), par. 3.
135
Ellen G. White, “The Need of Missionary Effort,” General Conference Bulletin (April 10,1901) par. 14.
136
Ellen G. White, Selected Messages, 1:392.

274
Confrontando alguns ministros adventistas que estavam “falando temores e
dúvidas” sobre se seriam salvos, ela desafiou: “Irmãos, vocês expressaram muitas
dúvidas; mas você tem seguido o seu Guia? Você deve dispensar Ele antes que possa se
perder; porque o Senhor te cercou de todos os lados”.137 Culminando um poderoso
apelo para confiar em Cristo, ela declarou: “A fé vem pela Palavra de Deus. Então agarre
a sua promessa, e o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora.” João 6:37.
Lance-se a Seus pés com o clamor: ‘Senhor, eu creio; ajuda a minha incredulidade.” Você
nunca pode perecer enquanto faz isso – nunca.”138
O dilema da certeza presente versus garantia final, com o qual todos os
reformadores anteriores lutaram, também foi abordado por Ellen White. Apesar da
possibilidade de retrocesso, ela acreditava na segurança e segurança presentes: “Se
você está bem com Deus hoje, você está pronto se Cristo vier hoje.”139 Sobre sua própria
esperança de perseverança final, ela declarou: tem um domínio firme sobre nós. Nosso
domínio [sobre Ele] é fraco e facilmente quebrado, mas nossa segurança depende do
firme domínio que Jesus tem sobre nós”, e que Ele “sempre vive para interceder por
nós”.140 Confiando não em si mesmos, mas em seu imortal e divino Intercessor, os
cristãos podem e devem ter abundante evidência de segurança presente; e a graça que
dá segurança presente também sustentará até o fim todos os que continuarem em um
relacionamento de confiança e obediência com Jesus.
Isso pode soar como uma tautologia: se os crentes persistirem na fé, eles
perseverarão. Mas a realidade é que para aquele que permanece fiel todos os dias, um
dia na sucessão de dias será o último, e a presente certeza terá perseverado na salvação
final. Agostinho falou de um “dom de perseverança” como se fosse algo mágico, algo
bem “diferente” do que simplesmente “continuar a andar” com Jesus. 141 Mas na visão
Wesleyana-Adventista, a perseverança é um dom da graça a ser abraçado por escolha e
recebido através da fé momento a momento nas provas diárias da vida. A perseverança
final no final da vida é essencialmente a culminação dos minutos e horas de
perseverança diária em fé, arrependimento, perdão, submissão e obediência, a fim de
manter o relacionamento com Cristo ininterrupto. A fé é invisível, mas a fé genuína
produz frutos, e o caráter do fruto fornece uma prova visível da qualidade da fé. Assim,
as ações estão necessariamente envolvidas no julgamento simplesmente porque
fornecem evidência visível da fé invisível.142

137
Ellen G. White, “The Christian’s Refuge,” Review and Herald (April 15,1884), par. 13.
138
White, Desire of Ages, 429.
139
Ellen G. White, “One Day at a Time,” In Heavenly Places (Washington, DC: Review and Herald, 1967),
221.
140
Ellen G. White para James White, July 27, 1878 (Letter 42, 1878), citando Heb. 7:25, citado em Ellen G.
White, The Upward Look (Washington, DC: Review and Herald, 1982), 222.
141
Augustine, On Rebuke and Grace 26 (NPNF1, 5:482); idem, On Perseverance 1 (NPNF1, 5:526).
142
Para tratamentos detalhados de segurança no julgamento final, veja Whidden, The Judgment and
Assurance: The Dynamics of Personal Salvation; John T. Anderson, Investigating the Judgment: Patterns
of Divine Judgment (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2003); Hans K. LaRondelle, Assurance of
Salvation (Nampa, ID: Pacific Press, 1999), 93-101; Whidden, Ellen White on Salvation, 131-142..

275
É por isso que Ellen White insiste em distinguir entre salvação e certeza de salvação.
Salvação significa estar na lista de Deus para a vida eterna – ou em termos bíblicos, ter
seu nome no Livro da Vida. A certeza da salvação significa saber que seu nome está no
Livro da Vida.143
CONCLUSÃO
Considerando o fato de que cinco séculos se passaram desde que Lutero começou
a lecionar em Wittenberg,144 há um notável grau de unidade entre os expositores
protestantes sobre os princípios básicos de segurança. Embora existam pequenas
diferenças de perspectiva sobre os detalhes, há um consenso protestante sobre vários
grandes fundamentos bíblicos.
Os cinco protestantes considerados – Lutero, Calvino, Armínio, Wesley e White –
todos concordam que o mérito humano não desempenha nenhum papel na segurança.
Embora todos concordem que o testemunho de uma consciência pura constitui
evidência de salvação, todos negam que tal evidência envolva qualquer mérito humano.
O perdão e o novo nascimento são um dom da graça. A santificação é um dom da graça.
Os pecadores, que são por definição rebeldes, nunca podem ser a fonte de qualquer
mérito salvífico. Todo mérito para a salvação se origina com Cristo e Seu sacrifício
expiatório na cruz.
Todos os protestantes considerados aqui concordam que as promessas das
Escrituras, certificando o caráter de Deus, formam o fundamento objetivo da segurança.
As Escrituras testificam que “Deus é amor”. Ele deseja que “todos os homens sejam
salvos e cheguem ao conhecimento da verdade”. Ele “não quer que nenhum se perca,
senão que todos cheguem ao arrependimento”.145 Portanto, cada crente pode declarar:
“As promessas da Escritura declaram que Deus ama a todos; portanto Deus me ama;
portanto, sei que se eu aceitar Seu dom da graça perdoadora e regeneradora, Ele
também me dará a graça transformadora e a graça persistente para continuar fiel em
relação a Ele enquanto durar a vida”.
Todos os protestantes acima concordam que, após o testemunho das Escrituras
sobre o caráter de Deus, há mais duas evidências de segurança: o testemunho interior
do Espírito Santo e o fruto visível do Espírito na vida do crente. O testemunho interior
do Espírito (Rm 8:16; 1Co 2:12; Gl 4:6; Ef 1:17-18) é uma evidência subjetiva de salvação;
no entanto, é verificável, porque é sempre acompanhado por uma terceira evidência de
salvação, o fruto do Espírito em uma vida conforme a vontade de Deus revelada nas
Escrituras. O fruto do Espírito em uma vida transformada pode ser uma evidência
objetiva, porque é testado pela objetiva Palavra de Deus e pode ser objetivamente
discernido por outras pessoas. Uma vida em conformidade com a vontade de Deus nas
Escrituras é, da perspectiva interna do indivíduo, uma evidência potencialmente

143
Veja Fl 4:3; Ap 3:5; 13:8; 17:8; 20:12-15.
144
Lutero começou a lecionar na Universidade de Wittenberg sobre os Salmos em 1513. Grosse, Salvation
and Certitude, 68; cf. Roland H. Bainton, Here I Stand: A Life of Martin Luther (Nashville, TN: Abingdon,
1950), 46-53.
145
1Jo 4:8; 1Tm 2:4; 2Pe 3:9.

276
subjetiva, uma vez que a leitura das Escrituras e a avaliação de seus próprios motivos e
comportamento podem ser subjetivas. Mas na medida em que o comportamento de
alguém é verificável por várias testemunhas externas confiáveis, o testemunho de uma
vida fiel também pode fornecer evidência objetiva de segurança.
Porque tanto o testemunho do Espírito Santo quanto a transformação da vida
humana estão enraizados em um relacionamento continuamente crescente com Cristo
e o Espírito Santo (Jo 15:1-8; 17:3), a segurança final é encontrada apenas no contexto
de um relacionamento contínuo com Cristo. Como diz Hebreus 4:2, mesmo o evangelho
não será de nenhum benefício a menos que seja “misturado com fé” nos ouvintes. Em
outras palavras, os crentes entram pela fé em um relacionamento de mudança de vida
com Cristo que leva à obediência baseada na fé (Rm 1:5).
Com relação à perseverança final, Agostinho estava parcialmente certo: a
perseverança é um dom da graça (Fp 1:6). Mas não é uma garantia incondicional. Ao
contrário, as Escrituras advertem: “Aquele que pensa estar em pé, olhe para que não
caia” (1Co 10:12; cf. 9:27; Hb 6:4-9; 10:26, 36). Enquanto Agostinho parece ver a
perseverança como um dom único, milagroso e irreversível, o consenso protestante,
especialmente na linha arminiano-wesleyana-adventista, é que a graça da perseverança
é dada diariamente, em meio às provas diárias de vida. Diariamente os filhos de Deus
recebem graça para resistir à tentação e suportar com paciência os aborrecimentos e
decepções que são uma parte normal da vida humana. Diariamente eles recebem
arrependimento (Rm 2:4) e perdão por todas as maneiras pelas quais seu caráter ainda
“está destituído da glória de Deus” (Rm 3:23-24). Assim, pela graça, por meio da fé, os
crentes podem “desenvolver [sua] própria salvação com temor e tremor”. Em “temor e
tremor”, porque sabem que podem falhar e cair; mas na fé e na esperança, porque eles
também sabem que “é Deus quem opera neles tanto o querer como o efetuar, segundo
a sua boa vontade” (Fp 2:12-13). Assim, permanecendo diariamente em Cristo, eles
finalmente perseveram, e um dia eles O verão face a face, a quem eles conheceram e
confiaram através das Escrituras, fé e oração.

277
CAPÍTULO 18
O VENTO E O "VENTO SANTO"; SEGURANÇA DA
SALVAÇÃO
Jo Ann Davidson

Enquanto o vento é invisível, produz efeitos que são vistos e sentidos. Assim, a obra
do Espírito sobre a alma se revelará em cada ato daquele que sentiu seu poder
salvador.
—Ellen G. White, Desire of Ages, 173
Cerca de um quarto para as nove [8:45h], enquanto ele descrevia a mudança que
Deus opera no coração por meio da fé em Cristo, senti meu coração estranhamente
aquecido. Senti que confiava em Cristo, somente em Cristo para a salvação.
—John Wesley, Journal 2, May 24,1738

As ruas de pedra de Jerusalém levavam os passos de um membro proeminente do


clero judeu para se encontrar com Jesus certa noite. Este seria um momento vantajoso
para ter uma conversa particular, porque Jesus estava sempre cercado por uma
multidão clamorosa de pessoas durante o dia. Apresentado como fariseu na narrativa
do Evangelho de João, Nicodemos é retratado como um seguidor consciencioso da
tradição judaica. Também chamado de “governante dos judeus” (Jo 3:1), Nicodemos
provavelmente era membro do Sinédrio. Sua audiência noturna com Jesus
provavelmente foi para proteger sua reputação profissional. Afinal, Jesus não era da
aristocracia clerical estabelecida, nunca tendo obtido credenciais profissionais de
Jerusalém. E Seu ministério estava apenas começando. Mas Nicodemos tinha ouvido
falar (e talvez visto) Jesus realizando milagres e não podia duvidar de Seu poder
impressionante.
Ele se dirige a Jesus: “Rabi, sabemos que Tu és um mestre vindo de Deus; pois
ninguém pode fazer estes sinais que Tu fazes, a menos que Deus esteja com ele” (João
3:2).1 Usando o estimado título “Rabi”, Nicodemos mostra respeito e talvez procure
colocar-se na melhor luz possível. Com o plural “nós”, Nicodemos talvez se inclua no
grupo dos que ficaram impressionados com o jovem galileu.

1
Salvo indicação em contrário, todas as citações das Escrituras são extraídas da New King James Version®.
Copyright © 1982 por Thomas Nelson. Usado com permissão. Todos os direitos reservados. O itálico nas
citações das Escrituras reflete a ênfase adicionada pelo autor.

278
Jesus ignora as sutilezas introdutórias de Nicodemos. Em vez disso, Ele revela Sua
natureza divina ao dirigir-se ao coração de Seu hóspede.2 “Em verdade, em verdade te
digo que aquele que não nascer de novo,3 não pode ver o reino de Deus” (Jo 3:3).4 O
“em verdade, em verdade” com o qual Jesus começa exige séria atenção.5 O destino
final de Nicodemos dependerá de como ele aceita estas palavras: “Digo-vos que, se
alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus. ” Esta é uma declaração
categórica e intransigente e algumas das palavras mais solenes que Jesus jamais
proferirá. O “novo nascimento” é o fundamento absoluto de qualquer esperança de
salvação e, portanto, de vida eterna. Constitui o ABC fundamental da verdadeira religião.
Com toda a probabilidade Nicodemos não esperava essa virada na conversa. Ele é
um fariseu devoto, bem versado no código levítico, e se sente seguro do favor de Deus.
Certamente todos os seus anos de estudo e zelosa obediência à lei deveriam contar para
alguma coisa. Talvez ele esteja um pouco irritado que tais sentimentos sejam aplicados
a ele, perguntando-se por que Cristo não está elogiando sua posição de elite como líder
religioso na capital Jerusalém. Além disso, em virtude de seu nascimento como israelita,
ele tem assegurado um lugar no reino de Deus. No entanto, para esse proeminente
governante judeu, Jesus insiste: “Você deve nascer de novo”. Se Ele tivesse dito isso a
algum pecador óbvio, Nicodemos teria concordado: “Sim, essa pessoa precisa ser
convertida”. No entanto, Nicodemos era uma das pessoas reverenciadas na religião
judaica. Ele veio para discutir outros assuntos. Em vez disso, Jesus “expôs os princípios
fundamentais da verdade”, falando da necessidade de “regeneração espiritual”.6 Em vez
de mais conhecimento teológico, um novo coração é absolutamente necessário. A
menos que essa mudança dramática ocorra, não será possível entrar no reino de Deus.
Jesus continua reiterando este ponto vital de diferentes maneiras: “se alguém não
nascer de novo” ou “nascido do Espírito” (Jo 3:3, 6). Melhorar o comportamento
externo, guardar a lei com mais seriedade, não é o que é necessário. Algo mais radical é
necessário. Jesus também expressa a “cláusula ‘a menos’” outras vezes: “A menos que
vocês se arrependam, todos vocês também perecerão” (Lc 13:3, 5); “A menos que vocês
se convertam e se tornem como criancinhas, de modo algum entrarão no reino dos
céus” (Mt 18:3); “Se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo algum

2
Ellen White escreve de maneira pungente sobre esse momento: “Em vez de reconhecer essa saudação,
Jesus voltou os olhos para o orador, como se estivesse lendo sua própria alma. Em Sua infinita sabedoria
Ele viu diante Dele um buscador da verdade. Ele conhecia o objetivo desta visita, e com o desejo de
aprofundar a convicção que já repousava na mente de Seus ouvintes, Ele foi direto ao ponto, dizendo
solenemente, mas gentilmente: 'Em verdade, em verdade te digo: A menos que um homem seja nascido
de cima, ele não pode ver o reino de Deus,' João 3:3, margem,” Desire of Ages (Boise, ID: Pacific Press,
2006), 168.
3
O grego, andthen, pode significar “de novo” ou “de cima”.
4
A versão King James é usada para esta citação para pegar a frase “Em verdade, em verdade”, que é
uma tradução da fórmula grega “Amèn, amèn”
5
Três vezes nesta conversa com Nicodemos, Jesus usa o autoritário “em verdade, em verdade” (Jo 3:3, 5,
11), ressaltando a suprema importância desta discussão. Em nenhum outro lugar nos Evangelhos Jesus
fala do novo nascimento de forma tão abrangente
6
Ellen G. White, Desire of Ages (Mountain View: CA, Pacific Press, 1940), 171.

279
entrareis no reino dos céus” (Mt 5:20). Todas essas cláusulas “a menos” realmente
significam a mesma coisa.
O que é “regeneração”, o “novo nascimento”, em que Jesus insiste? Pode ser mais
fácil descrever o que não é. Não é ir à igreja ou mesmo servir a igreja em vários ofícios.
Os cristãos podem se orgulhar de frequentar regularmente a igreja, e frequentar a igreja
é uma coisa boa. Mas não é necessariamente uma prova de regeneração. Outros dizem:
“Estou tentando fazer o que é certo. Estou tentando guardar os Dez Mandamentos.”
Mas de acordo com a definição de Cristo para Nicodemos em João 3, este não é o “novo
nascimento”. Nem o batismo garante a regeneração. Porque, infelizmente, uma pessoa
pode ser batizada na Igreja visível e ainda não renascer. O batismo é essencial, mas não
pode substituir a necessidade do novo nascimento: “Se alguém não nascer de novo, não
pode ver o reino de Deus” (Jo 3:3).
Outros crentes podem insistir que sempre participem da Ceia do Senhor. E isso é
louvável. Jesus afirma esta prática: sempre que os crentes o fazem, eles comemoram
Sua morte até que Ele venha (1Co 11:26). Mas mesmo isso não garante que o novo
nascimento tenha ocorrido. Jesus afirma isso tão claramente que não pode haver
engano: “Aquele que não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus” (Jo 3:3).
Outra pessoa pode pensar que a vida de oração regular indica regeneração. Embora
certamente faça parte da vida de uma pessoa regenerada, a oração não garante que o
novo nascimento aconteceu. A natureza solene da declaração de Cristo a Nicodemos,
que nem mesmo externamente pediu esclarecimentos, não permite nenhum mal-
entendido. Nicodemos não parecia o tipo de pessoa que precisava do novo nascimento.
Ele não era um bêbado, um jogador ou um ladrão. Ele era um membro honrado do
Sinédrio, que era uma alta posição religiosa. Ele estava satisfeito com a “salvação pelas
obras”, mas agora ele ouve que a salvação é um dom de Deus. Não é causado por nada
que uma pessoa faça - assim como uma pessoa não pode fazer nada sobre seu
nascimento natural. Jesus insiste: “A menos que alguém nasça de novo, não pode ver o
reino de Deus.”
O coração humano é mau por natureza. Paulo cita inúmeras passagens dos Salmos
para apoiar este ponto em Romanos 3:10-18:
“Não há justo, não, nem um;
Não há quem entenda;
Não há quem busque a Deus.
Todos eles se desviaram;
Juntos, eles se tornaram inúteis;
Não há ninguém que faça o bem, não, nenhum.”
“Sua garganta é um túmulo aberto;
Com as suas línguas eles praticaram o engano”;
“O veneno das víboras está sob seus lábios”;
“cuja boca está cheia de maldição e amargura”.
“Seus pés são rápidos para derramar sangue;

280
Destruição e miséria estão em seus caminhos;
E o caminho da paz eles não conheceram.”
“Não há temor de Deus diante dos olhos deles.”

Agostinho de Hipona, comentando sobre a natureza do humano em Romanos 5,


denuncia: “Desde o momento, então, quando 'por um homem entrou o pecado no
mundo, e pelo pecado a morte, e assim a morte passou a todos os homens, nos quais
todos pecaram', toda a massa de nossa natureza foi arruinada sem sombra de dúvida.”7
Jacó Armínio expressa incapacidades semelhantes dos humanos caídos: “Em seu estado
decaído e pecaminoso, o homem não é capaz, por si mesmo, de pensar, querer ou fazer
o que é realmente bom”8 Armínio prossegue afirmando que somente através da
renovação pelo Espírito Santo o homem pode fazer o bem: “É necessário que ele seja
regenerado e renovado em seu intelecto, afeições ou vontade, e em todas as suas
faculdades, por Deus em Cristo, por meio do Espírito Santo, para que seja qualificado
para compreender, estimar, considerar, desejar e realizar tudo o que é verdadeiramente
bom”.9 Na mesma linha, Ellen White confirma que o que Nicodemos precisava não era
um aperfeiçoamento de suas habilidades, mas uma transformação completa pelo
Espírito Santo: “A vida do cristão não é uma modificação ou aperfeiçoamento do antigo,
mas uma transformação da natureza. Há uma morte para o eu e para o pecado, e uma
vida completamente nova. Essa mudança só pode ser realizada pela operação eficaz do
Espírito Santo.”10
Então, o que uma pessoa pode fazer? Essa foi a pergunta que Nicodemos fez. De
acordo com Jesus, é absolutamente impossível realizar o novo nascimento por conta
própria. Deve haver uma nova criação, uma nova vida – e isso exige a obra do Criador.
Durante a Criação (Gênesis 1 e 2), os seres humanos não apareceram de repente.
Nenhuma ajuda humana era necessária — ou possível. O Criador trouxe a vida humana
à existência. É o mesmo com a criação de uma nova vida. É tão impossível para as
pessoas criarem a si mesmas do nada quanto se tornarem santas diante de Deus.
Quando Jesus gritou na cruz: “Está consumado” (Jo 19:30), algo extraordinário
aconteceu! A salvação estava assegurada. A tarefa de Seus filhos é aceitar Sua obra
consumada. Não há esperança para ninguém enquanto tentarem alcançar a salvação
pelo que fazem. Bem, eles podem perguntar com Nicodemos: “Como podem ser essas
coisas? Você quer dizer, todas as coisas boas que eu trabalho tanto não ajudam? Não
devemos trabalhar nossa salvação com temor e tremor?” (Fl 2:12). No entanto, a
posição que Jesus assume nunca varia. Ele insiste que Seus filhos devem receber a
salvação primeiro, antes que possam realizá-la.
Ao tentar explicar esse princípio espiritual, Jesus usa a analogia do vento. Talvez ele
e Nicodemos estejam sentindo uma forte brisa naquela noite enquanto Jesus fala: “O

7
Augustine, On Original Sin, 34; NPNF, First Series, 5:248.
8
(Jacob) James Arminius, The Writings of Arminius, 3 vols. (Grand Rapids, MI: Baker, 1956), 1:252.
9
Ibid.
10
White, Desire of Ages, 172.

281
vento sopra onde quer, e você ouve o som dele, mas não sabe de onde vem e para onde
vai. Assim é todo aquele que é nascido do Espírito” (Jo 3:8). Ninguém entende o vento.
Pode estar soprando para o sul por perto, e cem milhas mais ao sul, soprando para o
norte. Ninguém pode explicar completamente as correntes de vento. Ninguém pode
controlar o vento. Atua independentemente do controle humano. Mas só porque uma
pessoa não pode explicar o vento não significa que ela negue que ele exista – alegando
que não existe vento. Seria tolice tentar convencer alguém de que o vento não existe,
porque todos veem seus efeitos.
Algumas das conversões mais conhecidas na história incluem um ponto dramático
no tempo: Paulo e a luz ofuscante em Atos 9, em Agostinho e o chamado para “pegue e
leia” em Confissões 8.2911 e a experiência de John Wesley em Aldersgate onde seu
“coração foi estranhamento aquecido.” Essas famosas conversões podem muito bem
ser as exceções e não a norma para a conversão cristã. No contexto da história de
Nicodemos e do Espírito Santo agindo no coração, Ellen White sugere que,
Uma pessoa pode não ser capaz de dizer a hora ou local exato, ou rastrear todas as
circunstâncias no processo de conversão; mas isso não prova que ele não seja convertido.
Por meio de um agente invisível como o vento, Cristo está constantemente operando no
coração. Pouco a pouco, talvez inconscientemente para o receptor, são feitas impressões
que tendem a atrair a alma para Cristo.12

Há muitas maneiras diferentes pelas quais as impressões são feitas, mesmo que
uma pessoa não perceba. Então, em um momento que o Espírito Santo sabe que é o
melhor para aquele indivíduo, Ele vem com um apelo que leva a pessoa a se render a
Jesus. A conversão torna-se então aparente para a pessoa e para os que a cercam.13 Esse
cortejo pelo Espírito de Deus e os resultados são tão inexplicáveis quanto o vento. O
vento não pode ser visto, mas seus efeitos podem ser. A realidade do novo nascimento
será revelada na vida da pessoa recém-nascida – aparente para a pessoa e aqueles ao
redor como o “Vento Santo”, o Espírito Santo14 sopra Seu poder salvador através da
alma. A descrição de Ellen Whites é relevante:
Quando o Espírito de Deus toma posse do coração, transforma a vida. Os pensamentos
pecaminosos são afastados, as más ações são renunciadas; amor, humildade e paz
substituem a raiva, a inveja e a contenda. A alegria substitui a tristeza, e o semblante reflete
a luz do céu. Ninguém vê a mão que levanta o fardo, ou contempla a luz descendo dos átrios

11
Maria Boulding, trans., Saint Augustine: The Confessions, 2nd ed. (Hyde Park, NY: New City Press,
2012), 206.
12
White, Desire of Ages, 172.
13
Steven Guthrie escreve eloquentemente sobre o poder do Espírito Santo: “O Espírito se move de
maneiras que não esperamos e age com um poder que não podemos descrever facilmente... . Quando
nos lembramos de que o Espírito é o ruach, nos lembramos de ser humildes diante de um Deus soberano,
cujos pensamentos são mais altos que nossos pensamentos e cujos caminhos são mais altos que nossos
caminhos”, Creator Spirit: The Holy Spirit and the Art of Becoming Human (Grand Rapids, MI: Baker
Academic, 2011), 10.
14
A mesma palavra grega pneuma pode significar “vento” ou “espírito”.

282
acima. A bênção vem quando pela fé a alma se entrega a Deus. Então, esse poder que
nenhum olho humano pode ver cria um novo ser à imagem de Deus.15

O apóstolo Paulo também encoraja Tito:


Mas, quando se manifestou a bondade e o amor de Deus, nosso Salvador, para com os
homens, não por obras de justiça praticadas por nós, mas, segundo a sua misericórdia, ele
nos salvou mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo, a quem derramou
sobre nós abundantemente por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador, para que, justificados
pela sua graça, nos tornássemos herdeiros segundo a esperança da vida eterna. (Tito 3:4-7)

A maneira precisa como isso acontece Jesus não explica. Mesmo assim, Ele assegura
que os efeitos do novo nascimento serão experimentados e vistos. Deus faz tudo o que
pode para trazer salvação a todos que a desejam. O profeta Isaías cita as palavras
melancólicas de Deus: “Que mais poderia ter sido feito à minha vinha que eu não tenha
feito nela?” (Is 5:4). Ele enviou Seus profetas – muitos foram rejeitados e alguns mortos.
Deus então enviou Seu Filho amado, e Ele foi assassinado. Agora o Espírito Santo foi
dado para convencer a humanidade de sua necessidade de salvação e para trazer o novo
nascimento porque a única maneira de entrar no Reino de Deus é “nascer” nele.
Ninguém precisa se preocupar com o fato de Deus ter reservado outra coisa para tornar
a salvação possível.
A intenção de Deus é uma intenção salvadora, e o escopo de sua salvação é mundial.
Seu amor por toda a raça humana se expressa na entrega de seu único Filho para morrer na
cruz (Jo 3: 16). Este “dar” é mais específico do que “enviar” (v. 17). Deus “enviou” seu Filho
ao mundo (a Encarnação), mas deu seu Filho na morte (a Paixão) para que o mundo fosse
salvo e não condenado (v. 17). A universalidade é qualificada, porém, pelas frases todo
aquele que crê no versículo 15 e aquele que crê no versículo 16. Nm 21:8-9).16

Jesus também emprega um evento marcante do Antigo Testamento para ajudar


Nicodemos a entender essa verdade vital. Isso é algo com o qual esse homem instruído
poderia se relacionar melhor. Quando o povo de Israel estava morrendo de cobras
mortíferas no deserto, “o Senhor disse a Moisés: ‘Faça uma serpente ardente e coloque-
a em uma haste; e será que todo mordido, olhando para ela, viverá” (Nm 21:8). Com
relação a essas serpentes ardentes, a imagem erguida e o método de cura, John Wesley
comenta: “Este método de cura foi prescrito para que parecesse ser obra do próprio
Deus e não o efeito da natureza ou da arte”. Wesley continua, citando Paulo em
Romanos 8:3: “A serpente significava Cristo, que era 'em semelhança da carne do
pecado', embora sem pecado.”17 Agostinho compartilha uma visão semelhante: “Agora
há esta diferença entre a imagem figurativa e a coisa real: a figura adquiriu vida

15
White, Desire of Ages, 173.
16
J. Ramsey Michaels, New International Biblical Commentary: John (Peabody, MA: Hendrickson
Publishers and Paternoster Press, 1989), 59.
17
John Wesley, Wesleys Notes on the Bible (Grand Rapids: Francis Asbury Press, 1987), 127, comentários
sobre Nm 21:8.

283
temporal; a realidade, da qual essa era a figura, obtém a vida eterna.”18 Ellen White
dirige esta mensagem do poder de Deus através de Cristo para casa:
Muitos israelitas consideraram o sacrifício no serviço do templo como sendo capaz de
libertá-los do pecado. Deus desejava ensinar-lhes que não tinha mais valor do que a serpente
de bronze. Era para conduzir suas mentes ao Salvador. Quer precisassem de cura de suas
feridas mortais ou perdão de seus pecados capitais, eles não podiam fazer nada por si
mesmos, exceto mostrar fé na provisão de Deus.19

Aqueles que foram mordidos pelas serpentes podem ter questionado como poderia
haver alguma ajuda naquele símbolo de bronze. Eles poderiam ter exigido uma
explicação científica. Mas nenhuma explicação foi dada. Eles devem aceitar a Palavra de
Deus para eles através de Moisés ou então perecerão sem olhar.20
O mesmo acontece com o novo nascimento — a humanidade deve olhar e viver.
A luz que brilha da cruz revela o amor de Deus. Seu amor está nos atraindo para Ele. Se não
resistirmos a essa atração, seremos levados aos pés da cruz em arrependimento pelos
pecados que crucificaram o Salvador. Então o Espírito de Deus pela fé produz uma nova vida
na alma. Os pensamentos e desejos são levados à obediência à vontade de Cristo. O coração,
a mente, são criados de novo à imagem dAquele que opera em nós para submeter todas as
coisas a Si mesmo. Então a lei de Deus está escrita na mente e no coração, e podemos dizer
com Cristo: “Tenho prazer em fazer a tua vontade, ó meu Deus” (Sl 40:8).21

A humanidade hoje precisa entender a mesma verdade da serpente erguida que


Jesus usou para ensinar a Nicodemos? Paulo nos diz que somos justificados pela fé
independentemente da observância da lei (Rm 3:21-8). Não pode ser a obediência à lei
de Deus, mas a fé no sangue de Cristo que traz a cada um de nós uma justificação justa.

18
Augustine, “Lectures or Tractates on the Gospel According to St. John,” NPNF, First Series, 7:85;
comentários sobre Jo 3:6-21.
19
William Hendriksen é sensível a este ponto: “Agora, em João 3:14 as palavras 'Como Moisés... assim
deve o Filho do homem indicar claramente que o evento registrado em Números 21 é um tipo de
levantamento do Filho do homem... Os seguintes pontos de comparação são especificamente
mencionados ou claramente implícitos em 3.14,15 (cf. também versículo 16):
uma. Em ambos os casos (Números 21 e João 3) a morte ameaça como punição pelo pecado.
b. Em ambos os casos, é o próprio Deus que, em sua graça soberana, fornece um remédio.
c. Em ambos os casos este remédio consiste em algo (ou alguém) que (quem) deve ser levantado, à vista
do público. [Muitos comentaristas acrescentam algo assim: como a serpente erguida não era uma
serpente real, mas de bronze, também Cristo não é realmente um participante do pecado, mas apenas
“feito à semelhança da carne do pecado”.]
d. Em ambos os casos, aqueles que, com um coração crente, olham para aquilo que (ou: olham para
Aquele que) é levantado, são curados.
Aqui, como sempre, o Antítipo transcende em muito o tipo. Em Números as pessoas estão face a face com
a morte física; em João, a humanidade é vista como exposta à morte eterna por causa do pecado. Em
Números é o tipo que é levantado. Este tipo — a serpente de bronze — não tem poder para curar. Ele
aponta para o Antítipo, Cristo, que tem esse poder. Em Números, a ênfase está na cura física: quando um
homem fixava seus olhos na serpente de bronze, sua saúde era restaurada. Em João é a vida espiritual —
a vida eterna — que é concedida àquele que deposita sua confiança naquele que é elevado.
A elevação do Filho do homem é apresentada como um 'dever.'... Não é um remédio; é o único remédio
possível para o pecado”, Exposition of the Gospel According to John, New Testament Commentary (Grand
Rapids, MI: Baker, 1953), 138.
20
White, Desire of Ages, 173.
21
Ibid., 175.

284
Comentando o versículo 27, Wesley diz: “A lei da fé é aquela constituição divina que
torna a fé, e não as obras, a condição de aceitação”.22 Todo pecador, como Nicodemos,
deve permitir que a obra gentil do Espírito Santo nos leve à disposição de reconhecer
nossa necessidade pecaminosa e ser salvo por nosso Salvador exaltado. Nas palavras de
Ellen White: “Pela fé recebemos a graça de Deus; mas a fé não é nosso Salvador. Não
ganha nada. É a mão pela qual nos apegamos a Cristo e nos apropriamos de Seus
méritos, o remédio para o pecado”. A mensagem da graça preveniente flui através dos
séculos: os humanos não podem nem se arrepender sem Ele.23 A luta de Agostinho é
um exemplo disso: “Eu estava gemendo em espírito e abalado por uma raiva violenta,
porque eu não podia decidir entrar em uma aliança com você, embora em meus ossos
eu soubesse que isso era o que eu deveria fazer, e tudo em mim louvava tal
procedimento até o céus.”24 A vontade de Agostinho reprimiu, impotente, até que,
fortalecido por Deus, ele se permitiu confiar em Deus. “O arrependimento vem de Cristo
tão verdadeiramente quanto o perdão.”25
Embora a queda de Adão tenha causado a todos nós pecadores naturais, se uma
pessoa se perder, não será porque Adão caiu, mas porque o dom da salvação foi
recusado. Se uma pessoa está perdida, não será porque uma pessoa é pecadora, mas
porque o “remédio” foi desprezado: “Como escaparemos nós se negligenciarmos tão
grande salvação?” (Hb 2:3). Para alguém que foi mordido pelas serpentes mortais no
deserto, não adiantaria olhar para a ferida. Da mesma forma, não adianta focar na ferida
do pecado. É somente o Salvador que tem poder para salvar. Olhar para o poste que
sustentava a serpente de bronze não era suficiente. Uma pessoa deve olhar além do
poste para o Salvador Crucificado – que “tira o pecado do mundo” (Jo 1:29). Jesus
providenciou o único remédio para o pecado – e é oferecido ao mundo inteiro. “Ele deve
ser levantado. Não há outra maneira de Deus ou os seres humanos alterarem a drástica
situação de pecado da humanidade, exceto que Jesus seja levantado.” Ele deve morrer.
Não havia outras alternativas nem mesmo para Deus ___ E Sua doação de Seu Filho
demonstra ‘a realidade, enormidade, e poder salvífico do amor de Deus por um mundo
pecaminoso e esta raça humana que vive nesse mundo de pecado.'"26
O sacrifício de Jesus pelos nossos pecados é claramente ensinado em todo o Novo
Testamento. No Antigo Testamento, a verdade da salvação fornecida pelas ações de
Deus para uma humanidade pecadora também é ensinada. Isaías reconheceu a
universalidade da pecaminosidade humana: “Mas todos nós somos como o imundo, e
todas as nossas justiças como trapo da imundícia” (Is 64:6). Davi ilustra a necessidade
da ação de Deus para nos mudar: “Cria em mim um coração puro, ó Deus, e renova em
mim um espírito firme” (Sl 51:10). Ezequiel descreve a obra do Espírito Santo dentro de

22
John Wesley, Notes on the Bible, 498, comentários sobre Romanos 3:27.
23
Ellen G. White, Steps to Christ (Battle Creek, MI: Review and Herald, 1908), 26: “Não podemos nos
arrepender sem o Espírito de Cristo para despertar a consciência, assim como não podemos ser perdoados
sem Cristo”.
24
Augustine, Confessions 8.19, citado em Boulding, Saint Augustine, 200.
25
Ibid. Cf. Acts 5:31.
26
Beauford H. Bryant and Mark S. Krause, The College Press NIV Commentary: John, NT Series, ed. Jack
Cottrell and Tony Ash (Joplin, MO: College Press Publishing Company, 1998), 97.

285
um ser humano muito antes de Paulo escrever Romanos: “Dar-vos-ei um coração novo
e porei dentro de vós um espírito novo; Eu tirarei o coração de pedra de sua carne e lhe
darei um coração de carne. Porei dentro de vós o meu Espírito e farei com que andeis
nos meus estatutos, e guardeis os meus juízos e os observeis” (Ez 36:26-27).
Uma pessoa pode estar perdida, mas não porque ela ser uma pecadora. Essa pessoa
estará perdida porque não aceitar a salvação. Roger Fredrikson está certo:
Aqui está o grande paradoxo, o significado de dois gumes da vinda de Jesus. Ele veio em
amor para salvar, curar e oferecer nascimento espiritual. Ele não veio para condenar ou
julgar. Mas Sua vinda aguça a questão. Agora temos que decidir! Há uma possibilidade
maravilhosa e um grande perigo na vinda de Nicodemos a Jesus. Se ele escolher deixar de
lado todas as suas ideias preconcebidas e aprender e aceitar Jesus como Aquele que desceu
do céu, ele nascerá de novo! Mas se ele escolher se desviar, sair, trabalhar sua própria
salvação por seus próprios esforços obstinados, por mais nobres que sejam, ele estará sob
condenação e perecerá.27

O novo nascimento vem pela aceitação de Cristo, aceitando a Deus em Sua Palavra.
A surpreendente promessa de João 3:1628 pode ter diminuído pela familiaridade, mas
todas as pessoas podem confiar nessa preciosa promessa de Deus mais do que em seus
próprios corações. Se as pessoas ainda confiam umas nas outras, seres humanos que
frequentemente enganam, por que não deveriam acreditar na incrível promessa de
Deus?
A fé simplesmente crer no testemunho de Deus. Não é um salto no escuro. Deus
nunca pediu a ninguém que cressem sem dar a essa pessoa algo em que crer. Assim
como o vento dá evidência de sua presença, a salvação também o faz. A evidência é
revelada repetidamente na vida daqueles que experimentam o novo nascimento.
Nascer de novo, ou “nascido do Espírito”, não é uma intensificação ou resolução mais
determinada de ser bom. Não, algo totalmente novo começa: ter “sua vida radicalmente
transformada pelo poder de Deus. É como começar a vida de novo, com novas

27
Roger L. Fredrikson, The Communicators Commentary: John, ed. Lloyd J. Ogilvie (Waco, TX: Word Books,
1985), 86. Fredrikson então traz a analogia para casa: “Aqui está o mistério do mal, essa escuridão que
impede cada um de nós de aceitar o grande presente, esse orgulho rebelde que não permita que
passemos pela água do arrependimento e recebamos o poder do Espírito. Há um egocentrismo em cada
um de nós que insiste constantemente que posso trabalhar minha própria salvação. É a cruz, a elevação
do Filho do Homem, que finalmente desmascara esse ego e assim se torna o agente de discriminação e
julgamento (1 Cor 1,18)”, ibid.
28
“O verbo ‘amou’ tem a posição de destaque na frase. Jesus queria que todos soubessem que era o amor
de Deus que estava trazendo vida eterna ao mundo. O Filho do Homem que desceu do céu e está no céu
nos trouxe a verdade desta afirmação ([João] 3:13; 1:18).
“O motivo (amor), a ação (deu') de Deus e o dom (Seu Filho) são uma unidade inseparável. O amor não
poderia ser amor sem sua expressão e sua dádiva. Amor como este é um amor elevado e santo que é uma
nobre expressão da natureza e vontade de Deus... Ambas as formas verbais, 'amou' e deu,' estão no
tempo aoristo histórico para enfatizar o ato como um fato definido.” Thoralf Gilbrant and Tor Inge
Gilbrant, The New Testament Study Bible: John, ed. Stanley M. Horton (Chicago, IL: Donnelley and Sons,
1987), 71.

286
percepções e novos relacionamentos.”29 Ellen White fala eloquentemente do poder da
Cruz para trazer o novo nascimento:
Eu me admiro que os cristãos professos não compreendam os recursos divinos, que eles não vejam
a cruz mais claramente como o meio de absolvição e perdão, o meio de colocar o coração orgulhoso
e egoísta do homem em contato direto com o Espírito Santo, que as riquezas de Cristo sejam
derramadas na mente, e o instrumento humano seja adornado com as graças do Espírito, para que
Cristo seja recomendado àqueles que não o conhecem.30

Como se gera fé? A gloriosa segurança é que, embora os indivíduos não possam
gerá-la, a própria fé é um dom de Deus. Assim é o próprio ar, mas uma pessoa tem que
respirá-lo. A comida que todos comem também é um dom de Deus, mas cada pessoa
tem que comê-la. “A fé vem pelo ouvir, e o ouvir pela Palavra de Deus” (Rm 10:17). Isso
não está descrevendo uma pessoa sentada e esperando que a fé venha com algum tipo
de estranha sensação mística. Em vez disso, este texto fala de tomar Deus em Sua
Palavra, que Ele está capacitando tanto a vontade quanto as ações individuais. Um copo
de água refresca uma pessoa com sede, mas não apenas olhando para ele. Pode haver
um pão fresco na mesa e uma pessoa pode reconhecer que está lá. Mas a menos que o
pão seja comido, essa pessoa ainda estará com fome. Assim como o corpo precisa e se
alimenta de água e comida, a alma deve se alimentar de Cristo. Se uma pessoa que está
se afogando vê uma corda jogada para resgate, olhar para a corda não adiantará. Deve
ser apreendido. Olhar para um frasco de remédio não ajudará no processo de cura – o
remédio deve ser tomado. Os israelitas moribundos podem ter acreditado que a
serpente de bronze foi levantada - mas, a menos que olhassem para ela, não poderiam
viver.
Uma pessoa pode dizer: “Eu não tenho força. Se jogasse uma corda, eu não poderia
segurar.” Mas Romanos 5:6 promete: “Porque, estando nós ainda sem forças, Cristo
morreu a seu tempo pelos ímpios”. Jesus veio para dar força aos fracos. O Espírito Santo,
persistente como o vento, traz a convicção, o convite e a capacitação para aceitar.
Outro pode dizer: “Não consigo ver”. Cristo responde: “Eu sou a luz do mundo” (Jo
8:12). Ele veio não apenas para dar luz, mas para “abrir os olhos dos cegos” (Is 42:7).
Outros podem ter medo de cair e sua conversão não se sustentar. Então é bom lembrar
que é Deus quem faz a posse: “O meu socorro vem do Senhor, que fez o céu e a terra.
Ele não permitirá que seu pé seja movido; Aquele que te guarda não dormirá... O Senhor
é teu guardião.... O Senhor te guardará de todo mal; Ele guardará a tua alma” (Sl 121:2-
3, 5, 7).31 É trabalho do pastor guardar as ovelhas. E Jesus prometeu que Ele é o “bom
pastor” (Jo 10:11, 14).

29
Michaels, New International Biblical Commentary: John, 55. Ellen White também se refere à experiência
do novo nascimento: “É impossível para mentes finitas compreender a obra da redenção. Seu mistério
excede o conhecimento humano; mas aquele que passa da morte para a vida percebe que é uma realidade
divina. O início da redenção podemos conhecer aqui através de uma experiência pessoal”
30
Ellen G. White, Signs of the Times, Sept. 24,1902.
31
Deus deve ter sido sincero para ter certeza de que este ponto foi entendido! “Não temas, porque estou
contigo; não desanime, pois eu sou o seu Deus. Eu te fortaleço, sim, eu te ajudo, eu te sustento com a
minha destra da justiça” (Isaías 41:10). “Ora, àquele que é poderoso para vos guardar de tropeços e para

287
E descrições de experiências de novo nascimento encontradas nas Escrituras podem
encorajar a todos: Zaqueu (Lc 19:1-10); o eunuco etíope a quem Filipe deu um estudo
bíblico em uma carruagem (At 8:26-39); Cornélio e sua casa (Atos 10). Jesus obviamente
quer que a experiência do novo nascimento seja aceita, pois Ele a repete muitas vezes:
“Em verdade vos digo que quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem
a vida eterna e não entrará em juízo, mas passou da morte para a vida” (Jo 5:24).
Assim, o encontro de Nicodemos com Jesus no evangelho de João serve como
protótipo para todos os encontros daqueles que ousam buscar Aquele que é elevado, o
único que pode nos salvar do pecado pela regeneração do Vento Santo.
Na entrevista com Nicodemos, Jesus revelou o plano de salvação e Sua missão para o
mundo. Em nenhum de Seus discursos subsequentes Ele explicou tão completamente,
passo a passo, o trabalho necessário a ser feito no coração de todos os que herdariam o
reino dos céus. Logo no início de Seu ministério, Ele revelou a verdade a um membro do
Sinédrio, à mente mais receptiva e a um mestre designado do povo. Mas os líderes de
Israel não acolheram a luz. Nicodemos escondeu a verdade em seu coração, e por três
anos houve poucos frutos aparentes.

Mas Jesus estava familiarizado com o solo em que Ele lançou a semente. As palavras ditas
à noite para um ouvinte na montanha solitária não foram perdidas.

Por um tempo Nicodemos não reconheceu publicamente a Cristo, mas ele observou Sua
vida e ponderou Seus ensinamentos. No conselho do Sinédrio, ele repetidamente frustrou
os esquemas dos sacerdotes para destruí-Lo. Quando finalmente Jesus foi levantado na
cruz, Nicodemos lembrou-se do ensinamento sobre o Monte das Oliveiras: “Assim como
Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do homem seja
levantado; para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”. A luz
daquela entrevista secreta iluminou a cruz no Calvário, e Nicodemos viu em Jesus o
Redentor do mundo.32

Como Nicodemos, podemos nos encontrar caminhando em uma noite espiritual,


buscando conhecer nas trevas Aquele que é a luz do mundo. O Jesus que visitou
Nicodemos na narrativa do evangelho e foi levantado na cruz é hoje o mesmo Salvador
e Senhor que nos convida a aceitar Sua salvação. Com um dom tão grande também vem
o dom do Espírito Santo. Ambos os dons divinos de amor são realmente um presente
concedido a todos os que ousam acreditar. Pois Deus amou o mundo de tal maneira que
Ele “deu”.

vos apresentar com grande alegria diante da sua glória” (Judas 24). Jesus até expressou admiração por
Nicodemos não entender: “Você é o mestre de Israel e não sabe essas coisas?” (João 3:10).
32
White, Desire of Ages, 176-177.

288
CAPÍTULO 19
SEGURANÇA DA SALVAÇÃO: A DINÂMICA DA
EXPERIÊNCIA CRISTÃ
Woodrow W. Whidden

Estas coisas vos escrevi a vós que credes no nome do Filho de Deus, para que
saibais que tendes a vida eterna, e para que continueis a crer no nome do
Filho de Deus.
—1 João 5:13
As reações adventistas do sétimo dia à questão da segurança pessoal da salvação
dos crentes definitivamente se desdobram no cenário da tradição sinérgica
Wesleyana/Arminiana. A essência disso inclui o que o erudito wesleyano Randy Maddox
chama de dinâmica da “graça responsável”.1 Esse conceito explicativo emerge de um
envolvimento marcante com a graça santificante e aperfeiçoadora. Assim, aquele que
está vivendo a vida privilegiada de vitória sobre a tentação e o pecado, pela graça de
Cristo, não apenas demonstrará “responsabilidade” moral, mas seu caráter também
apresentará o objetivo espiritual de viver “responsivamente” ao chamado, convencer,
converter, justificar e aperfeiçoar as graças de Cristo. Qualquer que seja a graça que
Deus tenha a oferecer, o crente manifestará padrões de resposta a ela.
Agora, para muitos “arminianos evangélicos” (sejam eles wesleyanos, batistas do
livre-arbítrio ou adventistas do sétimo dia), tal visão do discipulado cristão é bastante
desafiadora. Mas os adventistas do sétimo dia se sentiram chamados (de seu estudo
bíblico) a buscar a questão com alguns fatores escatológicos muito desafiadores, até
sóbrios. A principal delas é a doutrina do Juízo Investigativo Pré-Advento, que é
cronologicamente seguido por um período apocalíptico caracterizado por “tempos de
angústia” e um “fechamento da porta da graça” irreversível, quando todo caso humano
será finalmente resolvido, “de uma vez por todas” para a salvação ou condenação
eterna. Assim, o estabelecimento final do destino eterno de cada pessoa será então
decididamente revelado na segunda vinda de Jesus. E, portanto, a questão prática e
urgente é esta: pode haver alguma segurança genuína de salvação quando as apostas
escatológicas parecem tão imponentes, até mesmo assustadoras?
A resposta dada pelos adventistas do sétimo dia arminianos, crentes na Bíblia,
instruídos formativamente pelos escritos de Ellen G. White, é que é realmente possível
perseverar no cenário de eventos finais mencionado acima. E isso pode ser
experimentado pela fé em Cristo, que pode gerar um senso equilibrado de segurança

1
Esta expressão é tirada da pesquisa de Randy L. Maddox sobre a teologia de Wesley intitulada
Responsible Grace: John Wesley’s Practical Theology (Nashville, TN: Kingswood Books, 1994).

289
salvadora, preparatório para saudar Jesus em paz em Sua segunda vinda. Mas antes de
apresentar o caso de tal experiência de salvação genuinamente assegurada para o
crente escatologicamente condicionado, um pouco de perspectiva da tradição cristã
mais ampla sobre as questões muito práticas da segurança cristã será útil.
SECURITAS, DESPERATIO, E CERTITUDO 2
Ao longo dos últimos dois mil anos de reflexão cristã, emergiu um padrão claro de
ensino sobre as tensões que normalmente ocorrem na busca cristã coletiva de
segurança pessoal. Tais tensões normalmente surgem entre os desafios extremos
chamados de securitas e desperatio [ambas do latim]. Ambos os extremos têm sido
vistos como inimigos da genuína certeza da salvação.
Securitas descrevem aqueles que pensam que estão seguramente salvos, mas que
na verdade estão autoenganados. Esses são os cristãos que tendem a atitudes de
presumir a graça de Cristo e caíram nos autoenganos associados à graça barata,
entregando-se a várias desculpas para estilos de vida pecaminosos. E a longa tradição
de admoestação pastoral advertiu esses crentes de que estão jogando rápido e solto
com graça enquanto caminham perigosamente perto da beira da condenação. Os
arminianos consideraram essa mistura mortal um falso elixir e alertaram que a
preocupação calvinista/reformada com a perseverança de fato se entregou a essa
mistura atraente por muito tempo.
Mas muitos dos partidários agostinianos/reformados nesta longa história de
admoestação tendem a ver os perigos do desespero como o maior contribuinte para a
falta de segurança cristã. Desperatio refere-se à condição dos cristãos de se rastejar ao
chão atingindo o desespero total quando se aproximam do ponto em que sua salvação
pessoal parece praticamente impossível. Isso geralmente ocorre por causa de falhas
percebidas em viver uma vida de vitória sobre a tentação e o pecado. E, portanto, não
é surpresa que os defensores agostinianos/reformados tenham levantado a acusação
de que o ensino arminiano (que a salvação pode realmente ser perdida) é o maior
contribuinte para os males do desespero! Em outras palavras, eles alegaram que, a
menos que se aceite sua versão de salvação (como fruto de uma graça irresistível que
não pode ser perdida), não há antídoto real para o desespero cristão. Assim, eles alegam
que sua versão de segurança é a única alternativa viável que pode levar à certitudo
genuína.
Então, quem tem a melhor parte do argumento quando se trata da obtenção do
suposto meio-termo de ouro da certeza, uma experiência equilibrada que efetivamente
evita tanto a graça barata quanto o desespero mortal? Contra os calvinistas reformados,
parece claro que a solução arminiana/wesleyana contém o melhor caminho teológico e
prático para o meio áureo do artigo genuíno da segurança cristã – a certitudo do dom

2
A discussão que se segue em relação a esses termos legais é significativamente informada pelo estudo
de Keith D. Stanglin sobre as visões de Armínio sobre a certeza da salvação, Arminius on the Assurance of
Salvation: The Context, Roots, and Shape of the Leiden Debate, 1603-1609 (Leiden and Boston: Brill,
2007).

290
da graça nos dado gratuitamente. Esta última alternativa também pode ser identificada
com a longa tradição cristã dos padrões livremente escolhidos de “graça responsável”!
Assim, o que se segue tenta expor os detalhes desse caminho dinâmico para a certeza
da salvação, uma garantia que pode até superar os terrores rigorosos de um julgamento
investigativo pré-advento e os cenários assustadores da última grande crise apocalíptica
da história terrena – estilo adventista!
OS RECURSOS GRACIOSOS PARA O CERTITUDO GENUÍNO
Categoria A Priori
Os ricos recursos do poder redentor de Deus se manifestaram em duas importantes
categorias de graça. A primeira tem a ver com o que tem sido chamado de a priori das
provisões de Deus para a salvação. Tais fatores incluem não apenas Seu amor
irreprimível pelos pecadores, mas as provisões graciosas de tal amor que são inerentes
à obra expiatória de Cristo. Na vida encarnada, morte, ressurreição, ascensão e
intercessões sacerdotais de Cristo, tudo o que precisava ser feito para salvar toda a raça
humana foi feito.
Além disso, esse a priori da graça divina inclui tudo o que Deus tem feito e ainda
está fazendo para comunicar efetivamente as provisões salvadoras da obra expiatória
de Cristo a todos os que responderem com fé às Suas graciosas ofertas de redenção. E
esses fatores de comunicação incluem o chamado, despertar ou poder convincente do
Espírito (graça preveniente), converter, regenerar (arrependimento e graça do novo
nascimento), justificar (graça perdoadora), transformar (graça santificadora e
aperfeiçoadora), capacitar (dom espiritual), e graça glorificante (o dom da imortalidade
na segunda vinda). E quando qualquer crente começa a ponderar reflexivamente as
maravilhas desses privilégios a priori, alguém se pergunta como alguém poderia se
perder!
Uma reflexão mais aprofundada sobre as graças mais relevantes para a segurança
genuína de certitudo indica que todos esses fatores têm contribuições inerentemente
essenciais a serem feitas ao artigo de segurança genuína. No entanto, o que é
agradavelmente surpreendente é que há uma unanimidade significativa entre as
versões reformada e arminiana desses fatores asseguradores a priori da graça.
Mas a unanimidade não é completa e onde as diferenças reais emergem, elas se
relacionam com (1) a própria natureza do amor de Deus e (2) o papel que a santificação
desempenha na vida segura do cristão. Um outro fator que sustenta toda essa sequência
salvadora é a convicção evangélica compartilhada de que todos são totalmente
depravados por sua experiência com o pecado e nada além da graça de Deus pode
redimir e garantir a certeza de que a salvação é real e possível. Mas, novamente, deve-
se enfatizar que os fatores controversos se concentram em como o amor de Deus é
entendido e como os crentes otimistas devem ver a capacidade da graça de transformar
para realmente libertar os crentes do poder do pecado antes da glorificação.

291
Com relação ao amor de Deus, as principais perspectivas contrastantes giram em
torno de se o amor divino é persuasivo e ainda resistível (a posição arminiana) ou se é
limitado e administrado irresistivelmente a um grupo seleto chamado de “eleitos” ou
“predestinados” (a posição agostiniana/reformada). Com relação à eficácia da graça
santificante ou transformadora, a posição reformada sempre foi cautelosa com a
maioria das ênfases de perfeição. Em algum contraste marcante, os arminianos
normalmente têm sido mais otimistas sobre o que a graça de Deus pode fazer (este lado
da glorificação) para tornar a obediência amorosa uma característica cardinal dos
certamente redimidos.
Mais tarde será dito mais sobre esses componentes-chave e controversos da graça
salvadora ao discutir os fatores-chave que contribuem para uma genuína certitudo
cristã. E tais diferenças farão uma contribuição significativa para o caso de que o
caminho arminiano de salvação é inerentemente mais eficaz do que a versão reformada
quando se trata de qualquer experiência eficaz de uma garantia equilibrada de salvação.
Mas voltando a esses fatores, há um outro conjunto importante de componentes
agraciados que influenciam qualquer experiência legítima de segurança cristã, a saber,
os fatores a posteriori.
Categoria A Posteriori
Essa categoria de graça inclui fatores como o testemunho direto do Espírito (Rm
8:16) e que os crentes são filhos adotivos da graça de Deus. Esta é uma graça que surge
durante e após a conversão quando os crentes sentem que Deus está comunicando
diretamente aos “espíritos” individuais (mentes) que tais crentes são filhos de Deus. Esta
é uma graça que se assemelha muito à experiência do crente com a iluminação da
Palavra de Deus pelo Espírito, para que ele possa não apenas entender o grande plano
de salvação, mas receber a convicção estudada de que esse plano prevê a possível
realidade que todo crente pode ser beneficiário do grande plano de redenção. Sem uma
convicção tão profundamente personalizada de que as verdades da Bíblia são
destinadas a todo e qualquer pecador, o plano de salvação será apenas uma maravilha
doutrinária que se pode apenas contemplar, mas nunca experimentar verdadeiramente.
Agora, esse aspecto da experiência salvadora foi tecnicamente chamado pelos
defensores reformados e arminianos de syllogismus mysticus [silogismo místico]. Esta
expressão latina que soa um tanto desajeitada significa simplesmente que qualquer
crente individual pode realmente, de uma maneira profundamente mística, perceber
que o Espírito de Deus lhe falou diretamente que ele ou ela é pessoalmente um filho de
Deus. A linguagem do silogismo refere-se ao fato de que cada pessoa pode concluir
logicamente de sua experiência que ela foi e está sendo comunicada pessoal e
redentivamente através das profundas convicções e confortos do Espírito Santo.
Agora, muito intimamente relacionada a isso, está uma segunda experiência a
posteriori chamada syllogismus practicus [silogismo prático]. Mais uma vez, essa
linguagem técnica faz referência às manifestações mais práticas do “fruto do Espírito”
na vida do crente. Este fator é provavelmente o mais familiar para os arminianos

292
adventistas do sétimo dia. Dito de forma simples, se alguém experimentou um
enraizamento pessoal da fé em Cristo, a Bíblia assegura a esse indivíduo que essas
manifestações do Espírito Santo não ficarão muito para trás na vida da fé salvadora. Dito
de outra forma, se algum crente realmente não manifesta o fruto da fé, é uma boa
evidência de que a raiz da fé está podre em seu núcleo e não é o artigo genuíno.
Além das qualidades específicas listadas em Gálatas, muitas vezes entende-se que
tal fruto inclui toda uma série de fenômenos espirituais. Estes normalmente incluem
consistência ética, atitudes de gratidão a Deus por Sua misericórdia, paciência com as
fraquezas dos outros, uma atitude de penitência e humildade cristã como a comida e
bebida diária normal do discípulo convertido de Cristo, um amor pelo estudo da
Escritura e o lugar da oração, comparecimento ao culto corporativo, zelo pelo serviço
cristão e desejo de contemplar e conversar sobre assuntos que têm a ver com Cristo e a
eternidade (para citar apenas alguns dos frutos práticos mais importantes da vida no
Espírito e graça de Cristo).
Implicações dos Fatores A Priori e A Posteriori
Agora, o que é realmente interessante é que tanto os crentes e escritores
arminianos quanto os reformados concordaram que esses fatores, tanto os fatores a
priori quanto os a posteriori, são absolutamente necessários para que qualquer um
experimente a conversão cristã genuína e receba o dom da certeza da salvação (a
cobiçada certitudo).
Tanto os partidários reformados quanto os arminianos concordam que todas as
graças de Cristo devem ser consideradas em qualquer experiência genuína de Cristo.
Sem que as provisões a priori da salvação sejam efetivamente comunicadas ao crente,
não haverá verdadeira união salvífica com Cristo pela fé e nenhuma chance real de
experimentar a bênção da segurança genuína.
Além disso, há um consenso geral de que sem as implicações experienciais a
posteriori do funcionamento da graça de Deus na vida de alguém, não haverá uma
percepção pessoal profunda de que qualquer crente possa saber que ele ou ela
realmente se tornou um filho convertido do Rei! Esses fatores a posteriori incluem tanto
as experiências “místicas” (syllogismus mysticus) quanto as “práticas” (syllogismus
practicus) da graça. Se esses fatores não são abundantemente aparentes, nenhum
crente pode ter qualquer evidência viável de que ele ou ela é um crente (no sentido
arminiano), ou entre os “eleitos” predestinados (no sentido mais reformado ou
calvinista). Então, o que se pode concluir sobre esses fatores na experiência cristã?
A questão-chave em jogo nesta reflexão é simplesmente mostrar que todos os
crentes dependem não apenas dos fatores a priori, mas também de toda a panóplia
[NT.: na Idade Média, armadura completa de cavaleiro europeu] de fatores a posteriori
na experiência da segurança da salvação. Assim, é seguro concluir que realmente não
há vantagens discerníveis que sejam privilégios únicos do crente reformado/calvinista.
As únicas grandes diferenças entre a experiência de segurança reformada e arminiana,
de fato, orbitam em torno do a priori de como qualquer crente entende o amor de Deus

293
(é persistentemente persuasivo ou é irresistível?). Portanto, ambos os campos estão no
mesmo barco probatório quando se trata da maneira pela qual as possibilidades da
graça transformadora podem contribuir para a certeza da salvação ou para a falta dela.
Agora, aqui está a conclusão interessante e informativa sobre quaisquer supostas
vantagens de segurança reivindicadas pelos calvinistas: Se a graça de Deus é irresistível,
como alguém pode saber que ele ou ela inevitavelmente será encontrado entre os
eleitos, especialmente quando é evidente que nenhuma pessoa foi especificamente
profetizada (na Bíblia ou em qualquer outro documento inspirado) para ser
irresistivelmente colocada entre os eleitos! E por que isso é assim? Simplesmente
porque tal profecia não existe!
Com esses fatores simples em mãos, há apenas uma conclusão óbvia – os calvinistas
reformados não têm nenhuma vantagem real quando se trata de sua capacidade de
detectar se estão entre os eleitos escolhidos de Deus ou não. Assim, eles também são
praticamente obrigados a buscar os poderosos fatores inerentes aos fatores a priori das
provisões graciosas de Deus (e Sua capacidade de comunicá-las). Além disso, eles
também, juntamente com seus companheiros peregrinos arminianos, devem buscar nos
contornos de sua experiência pessoal de graça qualquer evidência das bênçãos a
posteriori de que são evidente e seguramente salvos.
Mais uma vez, é preciso perguntar: os calvinistas reformados realmente possuem
quaisquer vantagens inerentes quando se trata de sua reivindicação dos confortos
asseguradores do irresistível ensino da eleição e seus proclamados privilégios de
perseverança irremissível (sua salvação não pode ser perdida - portanto, “uma vez salvo
sempre salvo”)? Arminianos não estão convencidos das afirmações reformadas.
Outros Fatores Complicadores da Experiência Cristã
Agora que tanto os partidários reformados quanto os arminianos foram entregues
à tarefa de buscar os contornos de suas respectivas experiências pessoais de salvação,
há algumas outras questões práticas que todos os cristãos precisam ter em mente com
relação à busca de segurança. E tais assuntos geralmente estão associados à experiência
comum do que os primeiros cristãos chamavam de lucta. Este fenômeno inclui a luta
que muitas vezes acontece na alma entre as forças do bem e do mal. Essas batalhas
podem se tornar muito intensas e, no calor de tais tribulações, pode-se concluir
facilmente que tais fraquezas expostas significam que não se está realmente salvo! Isso
é especialmente preocupante para aqueles que naturalmente lutam contra a depressão,
especialmente quando são chamados a suportar períodos em que o “testemunho do
Espírito” não está falando com tanta ênfase ou clareza.
Outro fator relevante que deve ser mencionado é o ensino de João Calvino sobre a
“fé temporária”, que pode facilmente levar ao desespero.3 Como Keith Stanglin aponta,
“a razão pela qual a categoria de fé temporária mina a certeza é a grande

3
Veja Stanglins discutindo esta parte na pág. 183 de Arminius on the Assurance of Salvation.

294
correspondência entre fé verdadeira e fé temporária”.4 Um calvinista pode realmente
acreditar que isso pode ser verdade? De fato, isso é prontamente admitido por eles,
especialmente quando as pessoas que afirmam ser salvas não estão parecendo ou
agindo como Cristo. Mais uma vez, a experiência comum de calvinistas e arminianos
torna-se bastante aparente, levando à conclusão óbvia de que ambos os campos devem
apresentar fatores de filtragem pelos quais possam discernir entre a fé verdadeira e a
falsa (seja ela “temporária” ou patentemente “falsa”.) na experiência da salvação cristã.
Então, o que pode ser praticamente concluído nesta conjuntura? Parece que as
questões-chave entre calvinistas e arminianos em relação à certeza da salvação se
resumem à questão de quem tem a melhor teologia do amor de Deus. Isso é
especialmente relevante quando se trata dos caminhos amorosos de Deus na eleição e
predestinação e Seu poder de perdoar e transformar. Praticamente falando, os
calvinistas e arminianos evangélicos e crentes na Bíblia são muito semelhantes em seus
pontos de vista sobre a graça perdoadora e justificadora para os verdadeiros crentes.
Mas, como já mencionado, seus respectivos pontos de vista sobre eleição e santificação
manifestam variações significativas. O que deve ser concluído em relação a essas
variações nos ensinamentos sobre segurança? Em primeiro lugar, serão examinadas as
questões de eleição e perseverança.
ELEIÇÃO, “UMA VEZ SALVO SEMPRE SALVO” E SEGURANÇA
Algumas Observações Preliminares sobre Eleição Irresistível
Embora a questão da perseverança (ou seja, uma vez salvo, sempre salvo versus o
ensino de que os crentes podem perder sua salvação) tem sido a questão mais
controversa, primeiro algumas observações preliminares sobre a questão da “eleição
irresistível” e como ela informa a questão da seguraça pessoal de salvação deve ser
abordada. Embora a maioria dos cristãos reformados/calvinistas contemporâneos
rejeite a ideia de eleição irresistível, a questão permanece pertinente a um número
significativo de cristãos reformados que ainda enfatizam que a eleição é irresistível.
Enquanto eles afirmam que tal graça irresistível é um grande benefício para a segurança,
os fatos são que as apostas para qualquer realização final da segurança da salvação
devem ser grandemente reduzidas. E por que isso parece ser o caso?
A resposta é muito simples: se a grande maioria dos pecadores está
irresistivelmente predestinada à condenação, isso reduz imediata e significativamente
o “conjunto” de possíveis candidatos à eleição para a salvação, que normalmente é
considerado apenas um pequeno remanescente.5 Quando este conceito é contrastado
com a visão arminiana, os resultados são bastante instrutivos.

4
Ibid., 184.
5
É muito claro que Calvino afirmou que o conjunto de candidatos à eleição divina para a salvação incluía
apenas “aquele pequeno número que ele [Deus] reservou para si mesmo”, ou “apenas algumas pessoas”.
Essas citações de Calvino são citadas em François Wendel, Calvin: The Origins and Development of His
Religious Thought (New York: Harper & Row, Publishers, 1963), 279-280.

295
Uma vez que a visão arminiana afirma que os benefícios da expiação de Cristo
sempre foram destinados a potencialmente salvar todos os pecadores, torna-se então
bastante claro qual ensinamento é inerentemente mais otimista sobre a possibilidade
de um número maior de pecadores serem seguramente salvos. De fato, é seguro dizer
que a doutrina calvinista clássica, que ensina uma grande restrição no número de
pessoas possíveis que serão irresistivelmente eleitas, é simplesmente mais
inerentemente negativa sobre a possibilidade de salvação para muitos.6
Para ser tão franco quanto pode ser declarado: se o conjunto de candidatos à
salvação já é bastante pequeno, então as chances de alguém estar entre os eleitos, com
suas alegadas garantias de salvação, também são proporcionalmente mínimas – para
dizer o mínimo! Portanto, embora os arminianos também admitam um pequeno grupo
de almas que finalmente receberão a salvação, eles pelo menos ensinam que todo
pecador tem uma chance de terminar no “’poço’ salvador” dos eleitos redimidos. Isso
se deve simplesmente ao fato de que os arminianos entendem que a Bíblia ensina que
a escolha da salvação depende, em última análise, das decisões de cada pessoa
individual, não de alguma decisão secreta tomada unilateralmente por Deus. Assim, a
pergunta deve ser feita: há ou não há um contraste óbvio entre as posições arminiana e
calvinista, especialmente quando a última ensina que a decisão pela salvação e
condenação é total e irresistivelmente determinada pela sabedoria inescrutável de
Deus? Se a resposta for afirmativa, então parece óbvio que o crente arminiano será
muito menos propenso a se preocupar com chances estatísticas reduzidas ou mesmo
rejeição arbitrária (os calvinistas chamam isso de “reprovação”), uma vez que ele ou ela
está convencido de que Deus deseja amorosa e misericordiosamente, até mesmo anseia
que todas as pessoas sejam salvas.
Portanto, os crentes arminianos devem simplesmente ser mais otimistas sobre suas
chances de receber não apenas a salvação, mas também a segurança de que uma
salvação tão grande (oferecida em uma escala tão universal) será tão atraentemente
desejável que os salvos serão relutantes em manusear mal descuidadamente um
presente tão precioso! Logicamente, então, os crentes arminianos deveriam ser
logicamente os cristãos mais seguros do mundo!
Enquanto uma maioria significativa de reformados/calvinistas modernos desistiu da
doutrina clássica da eleição irresistível e quer dizer, no bom estilo arminiano, que todos
os pecadores podem ser salvos, eles continuam a oferecer a importante qualificação de
que aqueles que respondem à oferta universal de Deus, de repente se encontrarão em
Suas garras irresistíveis e salvadoras, uma vez que digam sim à graça. Em outras
palavras, uma vez que Deus amarra amorosamente qualquer pecador responsivo, essa
pessoa está no barco do Evangelho para ficar (quer ela queira ficar ou não).

6
É que Calvino afirmou que o muito de claros candidatos à eleição divina para um conjunto incluia apenas
“aque número que ele [Deus] reservado para pessoas si mesmo”, ou “apenas”. Essas citações de Calvino
são citadas em François Wendel, Calvin: The Origins and Development of His Religious Thought (New York:
Harper & Row, Publishers, 1963), 279-280.

296
A questão então se apresenta imediatamente: Por que Deus respeitaria a decisão
livremente escolhida de qualquer crente de ser inicialmente salvo, mas imediatamente
negaria a essa pessoa a opção de escolher voluntariamente deixar Seu abraço
“amoroso”? Com esta pergunta bastante perspicaz, parece lógico fazer mais uma
investigação. O que é, então, que está realmente no cerne do conceito “uma vez salvo,
sempre salvo”?
A Racionalidade Básica da Doutrina “Uma Vez Salvo, Sempre Salvo”
Correndo o risco de alguma repetição, todos os participantes nos debates sobre a
segurança cristã precisam ser muito claros quanto à lógica básica que sustenta o
pensamento da posição “uma vez salvo, sempre salvo”. O que seus partidários afirmam
com ousadia e confiança é que Deus simplesmente não permitirá que aqueles que
responderam ao Seu chamado à salvação escapem de Suas mãos. Assim, o Senhor
providencialmente torna impossível que qualquer um de Seus filhos inicialmente
receptivos, sendo definidos como aqueles que O aceitaram como seu Salvador, se
afastem de seu relacionamento salvífico com Ele. Essa retenção forçada dos salvos foi
representada por duas versões básicas que receberam ampla aclamação popular.
A primeira versão ensina algo no sentido de que Deus cercará ou cercará com tanta
força os crentes responsivos com influências convincentes e salvadoras que eles acharão
impossível retroceder. Assim, eles simplesmente não vão, uma vez que efetivamente
não podem renegar seu compromisso de salvação com o Senhor. Além disso, se algum
suposto crente começar a se desviar de seu relacionamento salvífico com Deus, a
Santíssima Trindade irá protegê-lo irresistivelmente de qualquer tentação de apostasia,
ou castigá-lo com uma cadeia de circunstâncias providenciais para desencorajar
qualquer deslize final de seu status assegurado entre os resgatados.
Mas e aqueles supostos crentes que dão a impressão de perder sua salvação ou
recuar para longe do abraço irrevogável do Senhor? Essa pergunta aponta para a
explicação mais comum, que é efetivamente a segunda versão popular da perseverança
irresistível. O que esta versão afirma é que tais crentes nunca foram realmente ou
verdadeiramente salvos em primeiro lugar. Um bom exemplo dessa afirmação
conceitual foi articulado pelo influente teólogo reformado contemporâneo Millard J.
Erickson.
Erickson começa afirmando claramente “uma vez salvo, sempre salvo”: “A
implicação prática de nosso entendimento da doutrina da perseverança é que os crentes
podem descansar seguros na certeza de que sua salvação é permanente; nada pode
separá-los do amor de Deus. Assim, podem regozijar-se na perspectiva da vida eterna.
Não há necessidade de ansiedade de que algo ou alguém os impeça de alcançar a bem-
aventurança final que lhes foi prometida e que esperam.”
Mas não surpreendentemente, Erickson então sente a necessidade de enfrentar a
problemática questão das atitudes comumente manifestadas de presunção pecaminosa
que tantas vezes acompanham a ideia de que tal salvação é tão segura que não pode
ser perdida: “Por outro lado, por mais , nossa compreensão da doutrina da perseverança

297
não permite espaço para indolência ou frouxidão. É questionável se alguém que
raciocina: ‘Agora que sou cristão, posso viver como quiser’, realmente foi convertido e
regenerado”.7 Em outras palavras, se alguém manifesta evidência persistente de
apostasia, essa pessoa simplesmente nunca foi verdadeiramente convertida em
primeiro lugar. E com essas conclusões interessantes, Erickson sumariamente tornou o
argumento quase impossível de se lidar em qualquer nível realmente coerente e prático.
O que deve ser feito de tal lógica?
Uma Resposta Arminiana
Primeiro, deve-se admitir, mesmo da perspectiva arminiana (que diz que a salvação
pode ser perdida), que pode ser verdade que existem crentes cuja tendência à apostasia
sugere que eles nunca foram genuinamente convertidos em primeiro lugar. A parábola
do semeador de Jesus sugere claramente que existem “crentes” que são tipos de
terreno “rochoso” ou “espinhoso” de cristãos professos cuja fé carece de raízes
duradouras e profundas. Além disso, essas almas vacilantes podem finalmente ceder
aos cuidados das más influências que normalmente afligem sua peregrinação de
salvação (Lc 8:11-15).
Mas a linha de argumentação montada pelos calvinistas tenta negar a possibilidade
de apostasia. Tal negação simplesmente ignora a questão de saber se um determinado
crente pode ser genuinamente convertido e, então, vagar descuidadamente por
negligência descuidada ou ser levado por fortes tentações e renunciar abertamente ao
poder salvador de Deus em sua vida. Afinal, Jesus disse claramente que o grande
Adversário opera de modo a arrancar a “palavra de seus corações, para que não creiam
e sejam salvos” (v. 12).
Além disso, muitos professores reformados convenientemente ignoram o fato de
que nosso Senhor também fez o ponto altamente sugestivo de que uma pessoa pode
“crer e ser salva” (At 16:31). E, finalmente, o contexto diz explicitamente que a semente
que caiu “sobre as rochas” “recebeu a palavra com alegria” e “por um tempo” “creu” –
implicando fortemente que sua crença efetivamente os salvou, mesmo que apenas
temporariamente (Mt 13:3-8, 20-21).
Agora, se o ensinamento de Jesus sobre “crer” e ser “salvo” tem algum mérito, a
questão então se torna: tal experiência de crença, que em última análise falha ou
definha, prova que não é crença alguma? Ou a variedade “rochosa” de crentes de Jesus
foi simplesmente mencionada para apresentar uma advertência sensata e cautelosa a
todos os cristãos para ficarem atentos para que não caiam descuidadamente em tais
circunstâncias “pedregosas”? Para os professores calvinistas (como Erickson), a resposta
é que eles nunca foram salvos em primeiro lugar!
Para os intérpretes arminianos, no entanto, parece óbvio que tais crentes em
dificuldades poderiam ter sido verdadeiramente salvos, mas apenas provaram não
serem suficientemente vigilantes em sua caminhada com Jesus. Assim, tal falta de

7
Millard J. Erickson, Christian Theology, 2nd ed. (Grand Rapids, MI: Baker Books, 1998), 1007.

298
vigilância não é inevitavelmente causada por alguma vontade secreta do Deus eleito,
mas é simplesmente devido à falta de atenção por parte dos crentes descuidados que
têm a possibilidade distinta de encontrar cura para seus caminhos de apostasia.
Então, o que dizer dos crentes que estão no estágio da experiência pessoal onde
sua fé entra nas águas tempestuosas da luta intensa (ou seja, o lucta mencionado
anteriormente – literalmente lutando ou lutando contra o mundo, a carne e o diabo) e
ainda não alcançaram a confiança mais plena ou mais rica e estabelecida dos
perseverantes filhos de Deus? Deve-se dizer a essas pessoas que elas nunca foram salvas
em primeiro lugar? De uma perspectiva arminiana, esta abordagem é incompreensível
e tais crentes devem receber o benefício da dúvida e então serem fortemente
encorajados a olhar novamente para o Senhor com fé para a cura de sua propensão a
retroceder e, finalmente, cair.
Assim, o debate volta à questão de quem tem a melhor resposta, os arminianos ou
os calvinistas? Dito de outra forma, parece patentemente óbvio que tanto os calvinistas
quanto os arminianos precisam ser capazes de discernir efetivamente as marcas ou
evidências de sua eleição para a salvação se quiserem ser abençoados com o dom
gracioso da segurança genuína.
O declaradamente calvinista Erickson imediatamente faz este ponto: a fé genuína
se manifesta no fruto do Espírito. “A certeza da salvação, a convicção subjetiva de que
alguém é cristão, resulta do Espírito Santo dando evidência de que ele está trabalhando
na vida do indivíduo. A obra do Espírito resulta em convicção com base bíblica de que
Deus capacitará o cristão a persistir nesse relacionamento – que nada pode separar o
verdadeiro crente do amor de Deus.”8
Portanto, à luz dessas considerações, os comentários de Jerry Moon parecem ser
abundantemente justificados quando afirma que a “doutrina de uma vez salvo, sempre
salvo” é simplesmente uma garantia teórica de segurança eterna, não uma garantia real,
pois em nesse sistema teológico (reformado/calvinista), não se pode saber
infalivelmente que alguém foi 'uma vez salvo''9 E mais uma vez, considere os privilégios
e desafios comuns de todos (tanto calvinistas quanto arminianos) que seriam unidos a
Cristo por uma fé salvadora que justifica, santifica e assegura. Além disso, um aspecto
importante de tais privilégios é que o Espírito de Deus não deixará nenhum crente
desprovido do poder iluminador do “testemunho” direto do Espírito e de seu trabalho
mais indireto que acende o “testemunho de nosso próprio espírito”.

8
Erickson, Christian Theology, 1007-1008.
9
Esses comentários judiciosos de Moon são apenas um ponto-chave que ele faz em sua maravilhosa
palestra sobre os verdadeiros ensinamentos de Ellen White sobre a questão da certeza da salvação. Parte
da palestra de Moon foi adaptada e incluída em meu livro The Judgment and Assurance: The Dynamics of
Personal Salvation. Veja “Part IV: Special Adventist Challenges,” in the chapter titled “Ellen G. White on
the Assurance of Salvation: Are Her Writings a Help or a Stumbling Block?” (Hagerstown, MD: Review and
Herald Publishing Association, 2012), 153-172.

299
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE A PERSEVERANÇA
Provavelmente, os princípios mais importantes para experimentar a certeza da
salvação estão relacionados às questões de que a segurança do crente em Deus está
ligada (1) à sua união de fé com Cristo e (2) à extrema importância de manter e não
abandonar esse relacionamento. A Bíblia e os testemunhos pessoais de fé dos crentes
em Cristo não ressoam com esses importantes princípios?
Parece que os irmãos e irmãs calvinistas, em seu anseio por um relacionamento
seguro com Cristo, enfatizaram demais a importância do momento da redenção. E essa
ênfase desequilibrada inevitavelmente levou à negligência da dinâmica relacional de
longo prazo da salvação. A dinâmica relacional de longo tempo, não tanto o momento
inicial da realização da redenção, é o que realmente gera o cerne crítico da questão da
segurança da salvação dos cristãos. Certamente o momento inicial de conversão e
justificação e seus profundos compromissos são absolutamente fundamentais! Isso, no
entanto, não nega imediatamente as escolhas pessoais das responsabilidades contínuas
da fé na caminhada salvífica do crente com o Senhor.
O momento inicial da fé salvadora é o início da peregrinação do cristão, não uma
experiência de ser irresistivelmente fisgado por Cristo. Pelo contrário, é o início de uma
vida inteira de dar e receber responsivo e responsável, que cresce e se aprofunda na
mutualidade de um relacionamento dinâmico e amoroso. Portanto, essa visão (versão)
mais relacional da salvação parece mais próxima do retrato bíblico que retrata um Deus
que se doa amorosamente no interesse da reconciliação de seus filhos. Isso contrasta
claramente com a visão questionável de Deus como uma espécie de divindade
“manipuladora” implacável que tem a intenção de chutar as portas do coração das
pessoas e ligá-las a si mesmo. Assim, parece que Carl Bangs, inspirado em Armínio,
estava correto – “a graça não é uma força; é uma Pessoa”!10
Agora, há alguma verdade no fato de que a busca de Deus pela humanidade tem
alguns aspectos soberanos. Certamente, Deus deve sempre tomar a iniciativa soberana
na salvação de Seu povo. E, nesse sentido, Ele vem batendo às portas do coração de Seu
povo - quer eles queiram ou não. Mas a verdade é que Ele simplesmente não derruba
suas portas! Em vez de uma força irresistível, Ele oferece apelos cativantes e sugere
motivos que procuram provocar uma resposta positiva e gerada pelo amor de Seu
povo.11
Além disso, muitos arminianos atestarão prontamente que a busca persistente de
Deus por eles pode, às vezes, parecer absolutamente convincente (embora nunca force

10
Bangs, citado em Roger E. Olson in Arminian Theology: Myths and Realities (Downers Grove, IL: IVP
Academic, 2006), 164.
11
Ellen G. White, Desire of Ages (Mountain View, CA: Pacific Press Publishing Association, 1989), 22, 487,
759; idem, “The Compelling Message,” Review and Herald (September 24,1895), 609; “Serve the Lord
with Gladness,” Review and Herald (January 14,1890), 18.

300
a vontade de ninguém). O teólogo metodista contemporâneo Geoffrey Wainwright
recordou sabiamente um velho truísmo: um metodista de livre-arbítrio.”12
De fato, muitos podem testemunhar a persistência com que Deus os buscou e os
nutriu; e pode, às vezes, parecer as solicitações de uma “mãe ursa” vigilante. Além disso,
as intercessões persistentes e fervorosas de muitos calvinistas evocam a necessidade da
cooperação humana com as providências de Deus na busca da salvação dos perdidos.
Mas nenhuma dessas posições exige uma doutrina de eleição e perseverança
irresistíveis e deterministas, ou alguma doutrina insensata de livre-arbítrio natural e
humanista.13
Com a devida ênfase na importância central da salvação ser entendida ou concebida
como um processo completo de interação cooperativa entre o Salvador e o crente
individual – desde a crença inicial até a glorificação, aqui estão algumas advertências a
respeito do “uma vez salvo, sempre salvo” versão da segurança cristã.
Uma Crítica Cautelosa da Perseverança Irresistível
Primeiro, a esperança dos crentes está em Cristo, não em uma decisão definitiva
tomada em resposta a uma chamada de altar durante algum avivamento da igreja local,
série evangelística, acampamento de verão ou reunião campal. O mais importante é que
o crente permaneça constantemente atento, mantendo seu foco em Jesus e Suas
abundantes graças e nutrindo a disciplina espiritual de sensibilidade responsiva à
direção do Espírito através do ministério da Palavra.
Em segundo lugar, o foco da versão reformada da perseverança está na própria fé.
Mas, por mais importante que seja a fé, seu foco principal não é estar em si mesma. A
fé é um dom de Deus que não tem nenhuma virtude real em si mesma, exceto que sua
grande eficácia é encontrada naquele a quem ela se apega.
Além disso, a fé salvadora não deve ser definida principalmente como um exercício
de assentimento mental a uma garantia teórica abstrata de segurança irrevogável. Em
vez disso, a fé bíblica é melhor definida como uma confiança sincera em Cristo que O
abraça como a única pessoa capaz de manter os crentes efetivamente convencidos de
que sua salvação está firmemente assegurada. Herbert Douglass expressou
sucintamente desta forma: o “segredo” da segurança cristã é que “não devemos confiar
em nossa fé, mas na fidelidade de Deus”.14
Portanto, quaisquer bênçãos presentes da certeza da salvação têm muito mais a ver
com o foco atual da fé dos crentes em Cristo do que com o que a fé fez em algumas
supostas alegações de salvação “de uma vez por todas” durante uma chamada de altar
particularmente comovente. Qualquer exercício inicial de fé que reivindique a salvação
por instigação do Espírito durante qualquer chamada ao altar é de vital importância.

12
Geoffrey Wainwright, citado em Woodrow W. Whidden, The Judgment and Assurance: The Dynamics
of Personal Salvation (Hagerstown, MD: Review and Herald Publishing Association, 2010), 125.
13
Ibid.
14
Herbert E. Douglass, Should We Ever Say, “I Am Saved”?:What It Means to Be Assured of Salvation
(Nampa, ID: Pacific Press Publishing Association, 2003), 26.

301
Mas é apenas um começo consciente. Portanto, a certeza perseverante é muito mais o
resultado de um foco contínuo em Cristo do que na própria fé e seu exercício passado.
Terceiro, como foi reconhecido por Millard Erickson, a versão “uma vez salvo,
sempre salvo” da garantia tem sido persistentemente vexada com uma história
conturbada de presunção e atitudes antinomianas por parte de muitos calvinistas. Foi
essa tendência preocupante que provocou John Wesley e a grande maioria dos cristãos
arminianos posteriores a se oporem forte e persistentemente à versão calvinista da
eleição, perseverança e segurança cristãs.
Além disso, em um nível muito elementar de preocupação pastoral, muitos podem
atestar pessoalmente a sabedoria da aversão Wesleyana/Arminiana de longa data às
versões de garantia inspiradas no Calvinismo. Tais atitudes preocupantes de graça
barata ainda são muito evidentes entre os crentes de orientação reformada.
A ideia de que os crentes podem continuar transgredindo conscientemente a lei de
Deus e ainda serem considerados salvos está atualmente muito viva e bem no nível
popular entre muitos crentes professos que procuram se desculpar do dever de
confrontar suas propensões persistentes para satisfazer o hábito de sua pecados
“queridos”. Além disso, a questão inclui não apenas a indulgência em defeitos
conhecidos, mas uma recusa muito comum em abraçar fortes convicções do chamado
do Espírito para incorporar novos deveres morais e práticos em sua caminhada cristã
pessoal. O fruto dos ensinamentos da graça irresistível simplesmente não é bom.
Em face dessas atitudes persistentemente comuns de “graça barata”, desculpas
antinomianas para o pecado15 e o fato autoevidente de que os calvinistas não têm
vantagens reais e embutidas (teologicamente ou praticamente) quando se trata da
segurança da salvação. No final das contas, a versão Wesleyana/Arminiana (e
Adventista) da segurança pessoal da salvação é a rota bíblica, teológica e prática
preferida para os crentes seguirem em sua caminhada com o Senhor.
A ÊNFASE NA SANTIFICAÇÃO DESTRÓI A SEGURANÇA?
Esta questão levanta mais uma outra importante: Qual deve ser o recurso para o
cristão em dificuldades que é levado a duvidar da certeza de sua salvação? Deveria ser
uma preocupação com quantas vitórias ela ou ele teve na superação de seus defeitos
de caráter? Provavelmente não. Mas isso elimina o progresso santificado como um fator
para ajudar os cristãos em dificuldades na tentativa de recuperar o equilíbrio espiritual
assegurado? Certamente não! Mas antes de abordar brevemente essas dinâmicas, é
preciso afirmar enfaticamente que as bênçãos da graça justificadora e perdoadora são
os principais recursos padrão para todos os crentes, sejam eles calvinistas/reformados
ou arminianos.

15
Queremos deixar claro que nem todos os cristãos calvinistas/reformados manifestam essas atitudes;
mas é muito evidente em seus corredores de influência, incluindo as experiências de numerosos
adventistas do sétimo dia que foram implícita ou explicitamente afetados pela pregação popular e locais
de publicação do ensino calvinista/reformado. Nós apenas sentimos que o local arminiano oferece, em
equilíbrio, uma maneira melhor.

302
O conhecimento de que Jesus está constantemente de pé como Advogado da
humanidade junto ao Pai, a cada momento procurando atrair as pessoas para Si e
lembrando-as de que Ele está constantemente considerando crentes penitentes e
receptivos como perfeitos por causa de Cristo, é um tônico maravilhoso para qualquer
pecador que luta. Mas tais considerações nunca devem ser isoladas da bênção gêmea
da transformação do caráter que é fruto da graça transformadora de Cristo (uma graça
que Ele também media para a humanidade como o Sumo Sacerdote Advogado no
santuário celestial). Então, qual é a relação segura entre os méritos justificadores e
santificadores de Cristo?
Embora não haja méritos justificadores na obediência frutífera e no crescimento do
caráter do verdadeiro crente, a verdade muito prática é que uma das razões pelas quais
Jesus concede as bênçãos gêmeas da graça justificadora e santificadora é para que cada
crente receba mais clareza espiritual e percepção quando se trata da preciosidade e do
custo dos méritos da graça justificadora. O pecado e os defeitos de caráter sempre têm
um efeito ofuscante sobre qualquer crente. Esta é a razão pela qual atitudes de
presunção e graça barata são tão mortais para qualquer garantia genuína de salvação.
Mas quando o crente está crescendo no amor de Deus através da graça da
transformação do caráter, e à medida que sua capacidade de perceber o horror do
pecado e os privilégios infinitamente caros e preciosos do perdão e da graça
justificadora aumentam, mais seguro o crente se tornará. O amor de Deus, portanto, é
expresso não apenas no perdão misericordioso, mas também na graciosa transformação
do caráter. Quanto mais forte o caráter, mais perfeita será a percepção do crente de
Deus garantindo o amor por ele ou ela.
Essas reflexões sobre o perdão e a graça transformadora levam à
consideração final desta reflexão: a maneira positiva, embora reservada, com que
Jacó Armínio abraçou as questões da santificação e da experiência da perfeição
cristã. Se a perfeição de caráter realmente capacita os crentes a compreender
mais claramente os privilégios do perdão misericordioso e amoroso de Deus, por
que então seus pensamentos se tornariam negativos a qualquer momento que
alguma pessoa sincera de “santidade” (adventista, wesleyana ou batista do livre-
arbítrio) os lembrasse das bênçãos? de perfeição e mudança de caráter? A
verdade é que os crentes devem estar abertos aos seguintes conselhos
sabiamente equilibrados de Armínio.
“Mas, embora eu nunca tenha afirmado que um crente possa guardar
perfeitamente os preceitos de Cristo nesta vida, nunca neguei, mas sempre deixei
isso como uma questão que ainda precisa ser decidida”. Assim, embora Armínio
não estivesse preocupado com a perfeição, ele passou a oferecer sábios conselhos
sobre disputas sobre o assunto: sérias admoestações para que todos se esforcem

303
para prosseguir e avançar em direção à marca da perfeição, do que quando gasto
em tais disputas.”16
CONCLUSÃO
Certamente, a segurança pessoal da salvação deve ser o privilégio de todo
crente responsivo e responsável em Cristo. Mas o que está se tornando mais
aparente é que os reformados/calvinistas não possuem nenhuma vantagem
teológica ou prática substantiva sobre os crentes arminianos/adventistas. De fato,
se o que foi discutido neste capítulo tem algum toque de verdade, os recursos
teológicos e espirituais arminianos são eminentemente mais propensos a serem
praticamente eficazes na geração do ponto genuíno da verdadeira segurança
cristã da salvação.
Portanto, com uma soteriologia equilibrada (os bem-aventurados a priori) e
uma criteriosa e perspicaz invocação dos privilégios da experiência cristã inerentes
ao poder iluminador das várias testemunhas do Espírito Santo aos seus “espíritos”,
todos os crentes sinceros devem ser capazes de marchar para o reino de Deus com
a “bem-aventurada segurança” de Cristo, fornecendo firmeza espiritual a cada
passo ao longo do caminho.
Tais apropriações da fé, iluminadas e complementadas pelo poder
transformador do “Espírito” de Deus, seguramente conduzirão qualquer crente
sincero através dos tempos difíceis, sejam eles o medo do juízo investigativo, o fim
da provação, os “tempos” pessoais e apocalípticos de tribulaçaões”, ou mesmo o
mais recente sermão desafiador sobre o aperfeiçoamento da graça.
Verdadeiramente, os recursos são mais do que suficientes para levar cada crente
até os portões eternos da glória. Amém e Amém!

16
Arminius, citado em Carl Bangs, Arminius: A Study in the Dutch Reformation (Nashville, TN: Abingdon
Press, 1971), 347.

304
CAPÍTULO 20
SEGURANÇA NO JULGAMENTO
Richard M. Davidson

A Bíblia está repleta de referências ao julgamento divino. No Antigo Testamento


pode-se encontrar mais de trezentos exemplos de procedimentos legais divinos
(processos de aliança), seguidos por julgamentos executivos.1 Uma teologia bíblica
completa do julgamento de Deus inclui sete fases diferentes de julgamento divino
universal nas Escrituras, centradas na cruz de Cristo.2 Os adventistas do sétimo dia
acreditam que estamos vivendo agora na quarta fase deste julgamento sétupla, que é
comumente chamado de “Julgamento Pré-Advento”.3 Este julgamento é visto como um
cumprimento da tipologia do Dia da Expiação (Yom Kippur) de Levítico 16.4 Como na
teologia judaica, Kippur é interpretado pelos adventistas como um tempo para a
conclusão de uma fase investigativa divina (julgamento legal) de julgamento que trata
de seres humanos.5 Daniel 7:9-10 registra a visão do profeta desse julgamento
escatológico celestial: “Eu vigiei até que os tronos fossem postos no lugar, e o Ancião de
Dias se assentasse. . . . O tribunal estava assentado e os livros foram abertos.” 6 As
mensagens dos três anjos de Apocalipse 14 apresentam este julgamento como parte
integrante do evangelho—evangelion [Ευαγγέλιοv], “boas novas”: “Então eu vi outro
anjo voando em no meio do céu, tendo o evangelho eterno [Ευαγγέλιοv (= boas novas')]

1
Ver Richard M. Davidson, “The Divine Covenant Lawsuit Motif in Canonical Perspective”, Journal of the
Adventist Theological Society [JATS] 21 (2010): 45-84.
2
Jiří Moskala, “Toward a Biblical Theology of Gods Judgment: A Celebration of the Cross in Seven Phases
of Divine Universal Judgment (An Overview of a Theocentric- Christocentric Approach),” JATS 15 (2004):
138-165. These seven phases include: Uma Celebração da Cruz em Sete Fases do Juízo Universal Divino
(Uma Visão Geral de uma Abordagem Teocêntrica-Cristocêntrica)”, JATS 15 (2004): 138-165. Essas sete
fases incluem: (1) Juízos pré-Cruz do Antigo Testamento (Gn 3:9-19); (2) o julgamento da Cruz (João 12:31-
32); (3) julgamentos pessoais sempre que o evangelho é pregado (João 5:22-24); (4) julgamento
investigativo (julgamento) pré-advento (Dan. 7-8); (5) julgamento na segunda vinda de Cristo (Ap 19:17-
21); (6) julgamento de revisão milenar (Ap 20:4-6); e (7) o julgamento do “Grande Trono Branco” após o
milênio (Ap 20:7-15).
3
A base bíblica para esse entendimento é convenientemente resumida por Marvin Moore, The Case for
the Investigative Judgment: Its Biblical Foundation (Nampa, ID: Pacific Press, 2010).
4
Veja o resumo dos dados bíblicos em Richard M. Davidson, “The Good News of Yom Kippur in Seventh-
day Adventist Theology,” Shabbat Shalom 54, no. 2 (2007): 4-8.
5
Para o entendimento judaico, veja, por exemplo, b. Ros Tem. 16a: “Pois foi ensinado: ‘Todos são
julgados’ no Ano Novo e sua condenação é selada no Dia da Expiação.” cf. Philip Birnbaum, High Holyday
Prayer Book: Yom Kippur (Nova York: Hebrew Publishing Co., 1960), 508, citado em Seventh-day Adventist
Bible Students’ Source Book, ed. Don F. Neufeld e Julia Neuffer (Washington, DC: Review and Herald
Publishing Association, 1962), 9:62: “Em Rosh Hashaná seu destino está inscrito, e em Yom Kippur está
selado”.
6
Salvo indicação em contrário, todas as citações das Escrituras são extraídas da New King James Version®.
Copyright © 1982 por Thomas Nelson. Usado com permissão. Todos os direitos reservados. Os itálicos
nas citações das Escrituras refletem a ênfase acrescentada pelo autor.

305
para pregar aos que habitam na terra. . . dizendo em alta voz: Temei a Deus e dai-Lhe
glória, porque é chegada a hora do Seu juízo” (Ap 14:6-7).
A mensagem do julgamento divino nas Escrituras é realmente uma boa notícia
tranquilizadora? A resposta a esta questão existencial não pode ser dada simplesmente
como um estudo bíblico acadêmico. Assim, com o encorajamento dos editores deste
volume, neste estudo combino dados bíblicos com experiência pessoal.7 Nem sempre
considerei o julgamento como uma boa notícia. Enquanto crescia como um cristão
adventista do sétimo dia de quarta geração, costumava tremer quando o assunto do
julgamento divino era mencionado. Ouvi vários sermões evangelísticos sobre o assunto,
e ouvi os evangelistas lerem os solenes pronunciamentos bíblicos: “Porque Deus há de
trazer a juízo toda obra, até mesmo tudo o que está encoberto, quer seja bom, quer seja
mau” (Ec 12:14, KJV); “Portanto, os ímpios não subsistirão no juízo” (Sl 1:5); “Porque
todos devemos comparecer ante o tribunal de Cristo, para que cada um receba segundo
o que tiver feito por meio do corpo, ou bem ou mal” (2Co 5:10). A perspectiva de meu
nome aparecer na corte celestial, com todos os meus pecados trazidos diante de Deus
e do universo, me fez pensar, eu nunca vou conseguir! Eu certamente espero que meu
nome não apareça hoje.
Ao longo dos anos de adolescência e juventude, o assunto do julgamento teve um
efeito perturbador em mim. Mesmo sendo um jovem pastor, evitei pregar sobre o
julgamento. Após vários anos de ministério pastoral, conduzi uma série de reuniões de
oração sobre os Salmos, seguindo o esboço da obra clássica, o Psalter [Saltério] de C. S.
Lewis8 – exceto que pulei seu capítulo que trata do julgamento. Então minha consciência
me feriu, e decidi ver o que os Salmos realmente ensinavam sobre o julgamento.
Fiquei surpreso ao ver que o salmista muitas vezes acolheu e até se regozijou com o
julgamento vindouro (por exemplo, Sl 82:8; 96:11-13). Mas eu mal podia acreditar em
meus olhos quando li que Davi ansiava que seu próprio caso fosse julgado. Várias vezes
Davi orou: “Julga-me, ó Senhor!” (Sl 7:8; 26:1; 35:24; 43:1).9 Ele parecia estar dizendo,

7
Publiquei pela primeira vez minha experiência pessoal com relação ao julgamento em um artigo,
“Assurance in the Judgment,” Adventist Review, January 7,1988, pp. 18-20. Aqui eu a reconto de uma
forma expandida e desenvolvo ainda mais a teologia da segurança cristã em um formato mais acadêmico.
Veja também meu artigo, “Good News of Yom Kippur,” JATS 2/2 (Autumn 1991): 4-27, do qual alguns dos
conceitos deste capítulo são adaptados, algumas vezes usando a mesma redação ou similar para manter
a frescor e precisão de primeira expressão, mas aqui mais desenvolvida e atualizada, à medida que meu
pensamento e pesquisa sobre o assunto amadureceram e se expandiram. Neste capítulo, esses conceitos
são agora colocados em uma nova estrutura de sete razões de segurança no julgamento.
8
C. S. Lewis, Reflections on the Psalms (New York: Harcourt, Brace, 1958).
9
O hebraico desses quatro salmos tem o mesmo verbo imperativo mais o pronome de objeto comum
singular da primeira pessoa shaphteni “Julga-me!” Os três primeiros desses salmos são explicitamente
identificados como davídicos, de acordo com seu cabeçalho. O quarto tem o cabeçalho “A Contemplação
dos filhos de Corá”. Isso pode se referir à melodia e não à letra, à luz do Salmo 88:1, onde o cabeçalho
identifica o salmo como “um salmo dos filhos de Corá”, mas depois acrescenta que também é “uma
contemplação de Hemã, o ezraíta”. ; parece que neste caso os filhos de Corá escreveram a melodia e
Hemã a letra. Ellen White atribui as palavras do Salmo 42 (e, portanto, também o Salmo 43, que está
integralmente – estrutural e tematicamente – ligado ao Salmo 42) a Davi. Ver Ellen White, Education
(Boise, ID: Pacific Press, 1952), 164 (cf. idem, Gospel Workers [Hagerstown, MD: Review and Herald],
1915), 257; Testimonies to the Church (Boise, ID: Pacific Press, 1948), 4:534-535.

306
na verdade: “Apresse-se, Senhor! Envie a sentença. Pode vir! Deixe meu nome aparecer.
Mal posso esperar!"
Como Davi pôde fazer tal oração? Ele não apenas pensou em cometer adultério,
assassinato e mentira, mas realmente realizou essas ações. Ele não entendia quão sério
era seu pecado ou quão certo era o julgamento? Sua oração de profundo
arrependimento após o violento estupro10 de Bate-Seba e o assassinato de seu marido
indica que ele entendeu: “Pois eu reconheço minhas transgressões, e meu pecado está
sempre diante de mim. Contra ti, somente contra ti, pequei, e fiz este mal aos teus olhos,
para que sejas achado justo quando falas, e irrepreensível quando julgas” (Sl 51:3-4).
Davi compreendeu a seriedade de seu pecado e a solenidade do julgamento. Mas
ele também entendeu a mensagem do evangelho. Ele entendeu que mesmo sendo um
grande pecador, seus pecados poderiam ser expiados pelo sangue do Substituto. Ele
orou: “Expurgar [heb. khata' em piel, ‘purifica do pecado’] me com hissopo [a planta
usada para aplicar o sangue do sacrifício da Páscoa nas ombreiras das portas da casa; Lv
14:4-6; Nm 19:18; Êx 12:22], e ficarei limpo” (Sl 51:7). Com efeito, ele orou: “Purifica-
me com o sangue do Cordeiro de Deus, meu Substituto, e terei a certeza de ser aceito
por Ti no julgamento”.
Meu estudo pessoal ao longo dos anos trouxe à luz pelo menos sete razões bíblicas
para uma alegre certeza no julgamento. O restante deste capítulo desenvolve cada uma
dessas razões.
CRISTO É NOSSO SUBSTITUTO
Como acabamos de mencionar com o testemunho de Davi, a Bíblia ensina que o
antitípico Cordeiro de Deus foi aceito como nosso Substituto. Quando recebemos a
Cristo, somos cobertos com o manto da Sua justiça (Is 61:10; Zc 3:4; cf. Gn 3:21).11 O
Senhor diz a Satanás, o grande Acusador dos irmãos (Ap 12:10), “O Senhor te repreenda,
Satanás!” (Zc 3:2). Somos perdoados e exonerados, declarados “inocentes”. Não
precisamos mais ter ansiedade sobre nossa aceitação com Deus. “Podemos desfrutar do
favor de Deus. Não devemos nos preocupar com o que Cristo e Deus pensam de nós,
mas com o que Deus pensa de Cristo, nosso Substituto”.12 O que Deus pensa de Cristo,
nosso Substituto? Ele é aceito. Assim, quando estamos em Cristo, podemos saber que
somos “aceitos no Amado” (Ef 1:6).
A certeza no julgamento é uma boa notícia — quase boa demais para ser verdade.
E eu não ousei acreditar nem mesmo como seminarista. Tive o privilégio de fazer o curso
chamado Justificação pela Fé, ministrado por um dos principais expositores cristãos da
justificação pela fé. Estudei muito para o curso e, pela única vez em minha carreira
acadêmica, recebi um A+ no exame final. Imagine — um A+ em Justificação pela Fé! Eu

10
Veja Richard M. Davidson, “Did King David Rape Bathsheba? A Case Study in Narrative Theology,” JATS
17, no. 2 (Autumn 2006): 81-95.
11
Veja também Ellen G. White, Christ’s Object Lessons (Hagerstown, MD: Review and Herald, 1941),
170, 206,311.
12
Ellen G. White, Selected Messages (Washington, DC: Review and Herald, 1958), 2:32-33.

307
tinha chegado." No entanto, eu nunca tinha experimentado pessoalmente a justificação
pela fé.
Eu havia sido ensinado por professores sinceros e bem-intencionados, mas mal
orientados, que nunca deveríamos reivindicar a certeza da salvação. Uma declaração
em particular nos foi dada para memorizar: “Aqueles que aceitam o Salvador, por mais
sincera que seja sua conversão, nunca devem ser ensinados a dizer ou sentir que são
salvos”.13 É trágico que o contexto desta passagem não tenha sido reconhecido. Nesta
declaração, o autor está alertando contra a crença errônea de “uma vez salvo, sempre
salvo”. Não ensina que alguém nunca poderia ter a certeza presente da salvação. No
mesmo parágrafo encontra-se a certeza de que podemos “entregar-nos a Cristo e saber
que Ele nos aceita”.14
Por vários anos depois de me formar no Seminário, muitos de meus sermões eram
focados em Cristo, mas faltava a segurança em Cristo. Certo verão, depois que
terminamos de armar as barracas para a próxima reunião campal, um pastor amigo meu,
reconhecendo minha situação espiritual, me perguntou diretamente: “Você tem certeza
da salvação?” Eu respondi: “Espero que sim!” Então ele começou a compartilhar as
poderosas promessas das Escrituras. Ele me pediu para ler João 6:47: “Em verdade vos
digo que quem crê em mim tem a vida eterna”. "Você crer em Jesus?" ele perguntou.
Eu respondi: “Claro! Sou um pastor. Ele passou a levar a pergunta para casa com outro:
“Então você tem a vida eterna?” Só pude responder: “Espero que sim!” Então ele me
disse para ler outra passagem, 1Jo 5:13: “Estas coisas vos escrevi a vós que credes no
nome do Filho de Deus, para que saibais que tendes a vida eterna”. Mais uma vez ele
perguntou: “Você crer no nome do Filho de Deus?” Minha resposta “Claro!” foi seguido
por sua pergunta, "então você sabe que você tem a vida eterna?" E minha resposta:
“Espero que sim!” Depois de muitas rodadas de leitura das promessas, seguidas de
perguntas do meu amigo pastor e minhas respostas de “espero que sim!” Finalmente
ousei dizer: “Sim! Tenho a vida eterna, não porque a sinto, mas porque Deus a
prometeu”. E minha vida nunca mais foi a mesma. Mais tarde, descobri a mesma
afirmação magnífica da certeza do Evangelho nas palavras de Ellen White: “Se você se
entrega a Ele e O aceita como seu Salvador, então, por mais pecaminosa que sua vida
possa ter sido, por amor a Ele você é considerado justo. O caráter de Cristo está no lugar
de seu caráter, e você é aceito diante de Deus como se não tivesse pecado.”15 Esta se
tornou minha passagem favorita em todo o corpus de Ellen White.
As gloriosas boas novas de que Cristo é meu Substituto me trouxeram a mesma paz
e alegria descritas por aqueles que aceitaram a mensagem do evangelho após a
assembleia da Associação Geral Adventista do Sétimo Dia em 1888. Ellen White
expressou minha própria experiência em sua descrição dos eventos na reunião campal
de Ottawa, Kansas, em 1889: “A luz brilhou dos oráculos de Deus em relação à lei e ao
evangelho, em relação ao fato de que Cristo é nossa justiça, que parecia às almas que

13
White, Christs Object Lessons, 155.
14
Ibid.
15
Ellen G. White, Steps to Christ (Nampa, ID: Pacific Press, 1956), 62.

308
estavam famintas pela verdade, como luz preciosa demais para ser recebida”.16 Eu me
identifiquei com o jovem pastor naquela reunião campal que “viu que era seu privilégio
ser justificado pela fé; ele teve paz com Deus, e com lágrimas confessou o alívio e a
bênção que havia recebido em sua alma.”17
CRISTO É NOSSO REPRESENTANTE JURÍDICO/ADVOGADO
No julgamento, Cristo é também nosso Representante Jurídico, nosso Advogado. “E
se alguém pecar, temos um Advogado [παράκλητος (paráklētos)] com o Pai, Jesus Cristo,
o justo” (1Jo 2:1). Nosso Advogado celestial nunca perdeu um caso que foi confiado a
Ele (Jo 18:9). Um tribunal perde o medo por aquele que está sendo julgado se o
advogado puder garantir que ele nunca perdeu e nunca perderá um caso que está em
suas mãos. Isso é o que Jesus promete, baseado em Seu sacrifício em nosso favor.
Na assembleia celestial, Cristo de forma eloquente e persuasiva defende nosso caso
com base em Seu sangue: “Jesus, o mediador de uma nova aliança, e... sangue
purificador, que pleiteia com mais insistência do que Abel” (Hb 12:24, NJB; cf. Mq 7:9).
No julgamento “Jesus pleiteia em favor deles [Seus seguidores] Suas mãos feridas, Seu
corpo ferido; e Ele declara a todos os que O seguem: 'Minha graça te basta' 2 Coríntios
12:9.”18 A palavra “pleitear” costumava me fazer tropeçar, quando eu visualizava o Filho
implorando ao Pai que mudasse de ideia e me ame e me perdoe por causa do sangue
de Cristo. Mas percebi que, no contexto do juízo investigativo, a palavra “pleitear” é um
termo legal para o que um advogado faz: ele “pleiteia o caso” de seu cliente. Então Jesus
apresenta a evidência em favor daqueles que Ele está representando. O Pai não precisa
ser implorado para nos amar e perdoar - Ele também está do nosso lado. “Porque Deus
[o Pai] amou o mundo de tal maneira que [o Pai] deu o seu Filho unigênito” (Jo 3:16).
Eu costumava ter alguns livros doutrinários antigos em meu porão, com
representações de várias imagens do pecador arrependido em pé no tribunal celestial
quando seu nome era julgado. Invariavelmente, o rosto do verdadeiro filho de Deus
parecia cheio de terror, o suor escorria de sua testa e, o pior de tudo, o filho de Deus
estava sozinho no tribunal. Esses retratos do juízo são precisos? Eles enfatizam
corretamente que há um juízo investigativo real agora acontecendo no céu, onde os
casos dos vivos um dia serão examinados. Em uma maneira de falar, "todos devemos
comparecer ante o tribunal de Cristo" (2Co 5:10). Mas os ilustradores que retratam o
pecador arrependido em pé em terror sozinho no meio do tribunal celestial perderam o
ponto bíblico crucial: “Ele [nosso Advogado] vive sempre para interceder por eles” (Hb
7:25). Para aqueles em Cristo, o tribunal celestial é um lugar amigável. Nosso Advogado
celestial está ao lado deles com Seu braço ao redor deles, por assim dizer; Ele “não
desculpa seus pecados, mas mostra sua penitência e fé, e, clamando por eles o perdão,
levanta as mãos feridas diante do Pai e dos santos anjos, dizendo: Eu os conheço pelo
nome. Eu os gravei nas palmas das Minhas mãos.”19 Sou grato que, em um incêndio

16
White, Selected Messages, 1:356.
17
Ibid.
18
White, Great Controversy (Mountain View, CA: Pacific Press, 1950), 489; veja também 482.
19
White, Great Controversy, 484.

309
recente em nossa casa, aqueles livros antigos com suas ilustrações distorcidas do
julgamento foram consumidos, para que não induzam meus filhos ou netos ao erro
como fizeram a mim.
Cristo é meu Advogado que nunca perdeu um caso que foi confiado a Ele. Isso é
garantia de boas novas.
CRISTO É A PRINCIPAL TESTEMUNHA EM NOSSO NOME
Para a igreja de Laodiceia (o nome significa “povo do juízo”), representando as
pessoas que estão vivendo durante o tempo do juízo pré-advento, Cristo se revela como
a “testemunha fiel e verdadeira” (Ap 3:14). ). Ele não apenas adverte o povo de Laodiceia
sobre sua verdadeira condição espiritual; mas para aqueles que se arrependem de seus
pecados e abrem a porta de seus corações para Ele entrar e jantar com eles, Ele também
testifica em favor deles na corte celestial.20 Como sua Estrela Testemunha, bem como
Advogado, Ele traz evidências ao júri celestial em apoio ao Seu povo que silencia as falsas
acusações do adversário. Cristo é minha Principal Testemunha na assembleia celestial.
No entanto, Ele não é apenas nosso substituto, nosso representante legal/advogado,
nossa mais alta testemunha. . . .
CRISTO É O NOSSO JUIZ
Ainda na terra, Jesus anunciou: “Porque o Pai a ninguém julga, mas confiou ao Filho
todo o julgamento” (Jo 5:22).21 Nosso Irmão Mais Velho, nosso Melhor Amigo, é o Juiz.
Este Juiz nunca cometeu um erro, e Ele está do nosso lado. Ele não é um magistrado
severo querendo condenar tudo o que pode, mas um Deus amoroso e gracioso que
busca salvar tudo o que pode. Com terno pedido, Ele nos exorta a aceitar as provisões
do tribunal para que Ele possa nos exonerar:
“Por isso vos julgarei, ó casa de Israel, cada um segundo os seus caminhos”, diz o Senhor
Deus. “Arrependei-vos e convertei-vos de todas as vossas transgressões, para que a
iniqüidade não seja a vossa ruína. Afaste de você todas as transgressões que você cometeu,
e obtenha um novo coração e um novo espírito! Por que você deveria morrer, ó casa de
Israel? Pois não tenho prazer na morte do que morre”, diz o Senhor Deus. “Portanto, vire-se
e viva.” (Ez 18:30-32)

20
Para evidência do cenário legal desta divina “Testemunha” (paptuc; [martys]) e das mensagens às sete
igrejas (Ap. 2-3) e até mesmo o livro do Apocalipse como um todo, veja William Shea, “The Covenantal
Form of the Letters to the Seven Churches,” AUSS 21 (1983): 71-84; and Alan S. Bandy, The Prophetic
Lawsuit in the Book of Revelation, New Testament Monographs 29 (Sheffield, England: Sheffield Phoenix
Press, 2010).
21
Cf. John 5:27, 30; Ellen G. White, Seventh-day Adventist Bible Commentary, vol. 7A (Hagerstown, MD:
Review and Herald, 1985), 7:989; idem, Desire of Ages (Mountain View, CA: Pacific Press, 1940), 210;
idem, Testimonies for the Church (Boise, ID: Pacific Press, 1948), 9:185. stemunhos para a Igreja (Boise,
ID: Pacific Press, 1948), 9:185. É verdade que, de acordo com Daniel 7, o Ancião de Dias preside o
julgamento investigativo (White, Great Controversy, 479), mas parece que quando o julgamento
investigativo termina, Cristo assume o papel de Juiz Supremo para pronunciar a sentença e executar a
sentença. Veja a análise das citações pertinentes de Ellen White em Robert W. Olson, comp., “The
Investigative Judgment in the Writings of Ellen G. White”, panfleto do Ellen G. White Estate, 25 de
fevereiro de 1980.

310
A função múltipla de um único indivíduo no julgamento pode parecer estranha ao
nosso moderno sistema jurídico ocidental, mas está inteiramente de acordo com o
conceito bíblico de administração de justiça.22 Nos portões da cidade, o(s) mesmo(s)
ancião(s) poderia(m) convocar o processo judicial, argumentar como advogado, dar
testemunho e proferir o veredicto. No santuário israelita, o sacerdote não apenas fazia
tudo isso (Dt 17:8-13), mas também suportava a penalidade dos pecados (Lv 10:17).
Com Cristo como nosso Substituto e Fiador, nosso Advogado e Mediador, nossa
Testemunha, Amigo e Juiz, que notícia mais segura podemos pedir? Aquele que pagou
o preço por nossos pecados é nosso Advogado que nunca perdeu um caso entregue a
Ele, nossa Testemunha Fiel e Verdadeira testificando em nosso favor, e também o Juiz.
Como podemos perder nossa segurança em tal cena de tribunal? Só podemos perder a
certeza se nos recusarmos a aceitar as provisões de salvação que Cristo nos oferece
gratuitamente diariamente como um presente.
O que descrevemos até agora é a base de nossa aceitação no julgamento –
justificação pela fé.23 A base de nossa salvação no julgamento é totalmente o que Cristo
fez por nós ao derramar Seu sangue no Calvário, depois aplicar Seu sangue para o perdão
de nossos pecados e nos cobrir com Seu manto de justiça ao nos entregarmos
diariamente a Ele e tomá-Lo como nosso Salvador. Este é o fundamento último e único
de nossa certeza, tanto agora quanto no julgamento. No entanto, há mais três razões
para uma alegre certeza no julgamento.
CRISTO É O NOSSO PURIFICADOR
No Dia da Expiação no antigo Israel, mantendo o ministério intercessor contínuo
(tamid), o sacerdote realizava um serviço adicional, conforme resumido em Levítico
16:30: “Porque naquele dia o sacerdote fará expiação por vós, para purificar vós, para
que sejais limpos de todos os vossos pecados diante do Senhor”. Ao longo do ano o povo
recebia perdão e purificação de seus pecados pela fé no ministério de Cristo que havia
de vir, mas no final do ano havia uma obra especial de purificação do santuário (Lv 16:15-
20), que envolvia um trabalho especial de purificação para o povo (Lv 23:27-32). No
antítipo, de acordo com a profecia de Daniel 8:14, no final da profecia de 2.300 dias,
“então o santuário será purificado”.24 Os adventistas do sétimo dia interpretam esta
profecia como apontando principalmente para a purificação do santuário celestial (Hb
9:23-28), mas à medida que o santuário celestial está sendo purificado, há uma obra

22
Veja Hans J. Boecker, Law and the Administration of Justice in the Old Testament and Ancient Near East
(Minneapolis, MN: Augsburg Press, 1980), 34-35.
23
Para um estudo bíblico abrangente do significado da justificação pela fé, veja Richard M. Davidson,
“How Shall a Person Stand before God? What Is the Meaning of Justification?” in God’s Character and the
Last Generation, ed. Jin Moslcala and John C. Peckham (Nampa, ID: Pacific Press, 2018), 58-102.
24
Para evidência de que a palavra (nitsdaq) em Daniel 8:14 tem (entre outros significados) a conotação
semântica de “purificar, limpar” em um cenário de julgamento, veja especialmente Eric M. Livingston, “A
Study of j ?“72 (tsdq) em Daniel 8:14, Sua Relação com o Campo Semântico 'Limpeza', e Sua Importância
para o Conceito de Julgamento Investigativo do Adventismo do Sétimo Dia” (Diss. de Doutorado,
University of New England, Austrália, 2007) ; cf. Richard M. Davidson, “The Meaning of Nitsdaq in Daniel
8:14,”/ATS 7, no. 1 (1996): 107-119.

311
especial correspondente de purificação a ser realizada no templo da alma de cada
adorador individual.
Em sua descrição do julgamento pré-advento do fim dos tempos, Malaquias retrata
a obra de purificação do Messias, o Mensageiro da Aliança: “Pois Ele é como o fogo do
refinador e como o sabão da lavadeira. Ele se assentará como refinador e purificador de
prata; Ele purificará os filhos de Levi, e os purificará como ouro e prata, para que
ofereçam ao Senhor uma oferta de justiça” (Ml 3:2-3).25
Também no contexto do julgamento escatológico, Ezequiel registra a promessa de
Deus de purificar o Seu povo:
Então aspergirei água pura sobre vocês, e vocês ficarão limpos; Eu os purificarei de toda a
sua imundície e de todos os seus ídolos. Eu lhe darei um coração novo e porei dentro de você
um novo espírito; Eu tirarei o coração de pedra de sua carne e lhe darei um coração de carne.
Porei dentro de vós o meu Espírito e farei com que andeis nos meus estatutos, e guardeis os
meus juízos e os observeis. (Ez 36:25-27)

O que é crucial notar em cada uma dessas passagens é quem assume a


responsabilidade de fazer a purificação. Observe o que os textos dizem: “o sacerdote
fará expiação por vós, para vos purificar” (Lv 16:30); “Ele [o Mensageiro da Aliança]
purificará os filhos de Levi” (Ml 3:3); “Eu [o Senhor] vos purificarei... farei... que andeis
nos meus estatutos” (Ez 36:25, 27).26 O próprio Deus assume a responsabilidade final
pela purificação e pela obediência de Seu povo.
Antigamente eu pensava que durante o tempo do juízo investigativo pré-advento
eu precisava me purificar – me esforçar mais, me erguer por minhas próprias botas, usar
minha força de vontade para subjugar todos os meus pecados, a fim de ser bom o
suficiente para Jesus para me aceitar. Mas descobri por experiência que não havia vitória
nesse tipo de exercício. Mesmo que eu conseguisse de alguma forma evitar pecar
externamente, eu ainda queria pecar. Meus pensamentos e motivos ainda estavam
contaminados. E então veio a alegre mensagem de justificação pela fé. Percebi que não
faço uma obra de purificação para que Deus me aceite; em vez disso, recebo purificação
porque Ele já me aceitou. E é Deus quem promete fornecer tanto a motivação quanto o
poder para eu ser purificado e viver uma vida de santidade.

25
Veja a aplicação de White desta passagem ao juízo investigativo do fim dos tempos, em Great
Controversy, 425.
26
Para uma discussão completa da interpretação desta passagem, veja James Matua, “The Spirit of the
Lord and Obedience to the Law: An Exegetical, Intertextual, and Theological Study of Ezekiel 36:27” (PhD
diss., Andrews University, a ser publicado). Matua mostra como o original hebraico deste versículo diz “Eu
[Deus] farei... e você [o povo de Deus] fará”, implicando que Deus fornece a motivação e o poder para
obedecer, e as pessoas cooperam livremente em “resolver ” no que Deus “trabalha”. A passagem
equivalente no Novo Testamento é Filipenses 2:12-13: “Desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor,
porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade”.

312
O Dia da Expiação traz um chamado à santidade, mas a vida de santidade está
enraizada na justificação pela fé no sangue expiatório de Cristo.27 Ellen White resume
vigorosamente essa relação entre justificação pela fé e vida santa de uma forma que
ressoa com minha própria experiência pessoal:
Há almas conscienciosas que confiam em parte em Deus e em parte em si mesmas. Elas
não olham para Deus, para serem guardados por Seu poder, mas dependem da vigilância
contra a tentação e do cumprimento de certos deveres para serem aceitos por Ele. Não há
vitórias neste tipo de fé. Tais pessoas trabalham sem propósito; suas almas estão em
contínua escravidão, e não encontram descanso até que seus fardos sejam colocados aos
pés de Jesus.

Há necessidade de vigilância constante e devoção fervorosa e amorosa; mas estes virão


naturalmente quando a alma for mantida pelo poder de Deus por meio da fé. Não podemos
fazer nada, absolutamente nada, para nos recomendar ao favor divino. Não devemos
confiar em nós mesmos nem em nossas boas obras; mas quando, como seres errôneos e
pecadores, vamos a Cristo, podemos encontrar descanso em Seu amor. Deus aceitará todo
aquele que vier a Ele confiando inteiramente nos méritos de um Salvador crucificado. O
amor brota no coração. Pode não haver êxtase de sentimento, mas há uma confiança
permanente e pacífica. Todo fardo é leve; pois o jugo que Cristo impõe é suave. O dever se
torna um deleite e o sacrifício um prazer. O caminho que antes parecia envolto em trevas
torna-se brilhante com os raios do Sol da Justiça. Isso é andar na luz como Cristo está na
luz.28

A purificação do templo de nossa alma é somente em virtude do sangue de Cristo,


e Cristo, por Seu Espírito, assume a responsabilidade por essa purificação, à medida que
permitimos que Ele faça Sua obra purificadora em nossas vidas. Ao mesmo tempo, é
verdade que quando nosso nome surge no tribunal celestial, há um exame dos registros
celestiais (Dn 7:10; 12:1). Segundo a compreensão adventista dos dados bíblicos, a
purificação do santuário envolve um juízo investigativo, na verdade, um juízo segundo
as obras.
Nos anos que se seguiram à discussão da justificação pela fé na Conferência Geral
de 1888, alguns defensores da segurança cristã dentro do adventismo (por exemplo,
Albion Ballenger) sentiram que a crença na certeza da salvação não poderia ser
reconciliada com o ensino adventista a respeito do juízo investigativo dos santos pré-
advento, e, portanto, eles escolheram manter a crença na certeza da salvação e
abandonar a crença no julgamento investigativo pré-advento.29 Essa visão de que a
certeza do Evangelho é incompatível com um juízo investigativo foi novamente
defendida por alguns adventistas nas últimas décadas. No entanto, a evidência bíblica
discutida no Daniel and Revelation Committee [Comitê de Daniel e Apocalipse]
(DARCOM) e outras pesquisas acadêmicas mostraram que uma escolha entre a

27
Veja Levítico 16:30, onde afirma que “neste dia [Yom Kippur] se fará expiação por vós, para vos purificar;
de todos os vossos pecados sereis limpos perante o Senhor” (RSV). Note que o foco até mesmo da
“purificação” dos povos está na expiação feita pelo sangue do Substituto.
28
White, Selected Messages, 1:353-354.
29
Ver a análise e crítica da visão de Ballenger em Roy Adams, The Sanctuary Doctrine: Three Approaches
in the Seventh-day Adventist Church, vol. 1, Série de Dissertação de Doutorado do Seminário da
Universidade Andrews (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1981), 91-164.

313
segurança cristã e o julgamento investigativo é desnecessária. Ambas as doutrinas são
biblicamente sólidas.30Além disso, a pesquisa mostrou que o exame das obras ou
“obras” do povo professo de Deus31 como parte do julgamento escatológico é
claramente encontrado nas Escrituras, como os adventistas têm consistentemente
afirmado,32 e como muitos teólogos cristãos de várias denominações reconhecem.33
A igreja cristã desde logo após o período apostólico tem lutado para reunir o que
parecia ser dois ensinos díspares das Escrituras: a certeza da salvação pela graça e o
julgamento de acordo com as obras. Meu estudo sobre esse assunto me convenceu de
que a mensagem bíblica do antitípico Dia da Expiação permite uma compreensão e
proclamação mais harmoniosa e clara dessas duas realidades do que nunca. O Dia da
Expiação contém a chave para manter em equilíbrio o relacionamento entre graça e
obras, e entre segurança e julgamento.
Esse equilíbrio pode ser visto na colocação literária da passagem primária do Dia da
Expiação, Levítico 16, dentro da estrutura de Levítico e de todo o Pentateuco. Estudos
literários recentes mostraram como todo o Pentateuco está organizado em uma
estrutura quiástica, com Levítico como o livro central do Pentateuco:34

C. Levítico
B. Êxodo B’ Números
A. Gênesis A’ Deuteronômio

30
Ver especialmente Ivan Blazen, “Justification and Judgment”, em Seventy Weeks, Leviticus, and the
Nature of Prophecy, vol. 3, ed. Frank Holbrook; Daniel and Revelation Committee Series (Washington, DC:
Biblical Research Institute, 1986), 339-388; cf. Moore, The Case for the Investigative Judgment, passim.
31
Blazen, “Justification and Judgment,” in Seventy Weeks, 353-368, examina as principais passagens que
apoiam esta posição (Romanos 2:16; 8:5-13; 14:10,12; 1 Coríntios 3:13 ; 4:5; 6:9; 2 Coríntios 5:9-10;
Gálatas 5:21; 6:7-8; Efésios 5:5-6; Colossenses 3:5-6; 1 Tessalonicenses 4 :6; Heb. 2:1-3; 10:26-31). Em
meu próprio estudo, encontrei pelo menos cem passagens bíblicas que afirmam explicitamente ou
implicitamente o julgamento de acordo com as obras. Veja Richard M. Davidson, “Final Justification
According to Works: Is N. T. Wright Right?” (paper presented at the national convention of the
Evangelical Theological Society, Atlanta, Georgia, November 19, 2010), 3-10.
32
Blazen, “Justification and Judgment”, em Seventy Weeks, 353-368, revisa várias tentativas de resolver
a tensão entre justificação e julgamento, e mostra o mandato bíblico de reter a tensão e entendê-la em
termos da ” perspectiva do “já” e do “ainda não”.
33
Veja por exemplo N. T. Wright, Justification: God’s Plan and Paul’s Vision (Downers Grove, IL: IVP
Academic, 2009), 184-185; outros eruditos são citados em Davidson, “Final Justification According to
Works,” 1-31. See Richard M. Davidson, “Final Justification According to Works: Is N. T. Wright Right?”
34
Veja Yehuda Radday, “Chiasm in Tora”, Linguistica Biblica 19 (1972): 21-23; idem, “Chiasmus in Hebrew
Biblical Narrative,” in Chiasmus in Antiquity, ed. John Welch (Hildesheim: Gerstenberg Verlag, 1981), 84-
86.

314
Dentro deste livro do Pentateuco central de Levítico, outros estudiosos mostraram
que o capítulo central de Levítico é o capítulo 16.35 Assim, Levítico 16, focando em Yom
Kippur, é o próprio centro da Torá.36
Aqui está a estrutura quiástica de Levítico, conforme analisada por William Shea,
reformatada no estilo habitual de exibição quiástica e incluindo apenas os itens
principais (negrito) da estrutura:
ESTRUTURA QUIÁSTICA DE LEVÍTICO37
“Justificação” (sangue) “Santificação” (santidade)
D. cap.16: Dia da Expiação
C. caps.11-15: C’ caps.17-20:
Leis Pessoais de Impurezas Leis Pessoais Morais
B. caps. 8-10: História Sacerdotal B’. caps.21-22: Legislação Sacerdotal
A. caps. 1-7: Legislação do Culto A'. caps. 23-25: Legislação do Culto
Observe no diagrama de Sheas que o livro de Levítico é dividido em duas metades,
cada uma com uma ênfase diferente: “a primeira metade do livro cobre o sistema
sacrificial; a segunda descreve a maneira como as pessoas devem viver.”38 Na primeira
metade o tema subjacente é “sangue”, enquanto o motivo principal da segunda metade
é “santidade” Ou, como Shea resume nos títulos de cada metade: “ justificação” e
“santificação”. E bem no meio do livro está o capítulo 16, a mensagem do Dia da
Expiação.
A forma literária destaca a teologia. O cenário literário-estrutural de Levítico
ressalta a mensagem equilibrada do Evangelho: somos salvos somente pela graça – pelo
sangue do sacrifício de Cristo. No entanto, somos julgados de acordo com nossas obras
de santidade, que são o fruto natural da graça expiatória. A eficácia do sangue para o
crente torna-se manifesta por seu fruto sagrado.39
Ivan Blazen resume sucintamente a relação entre justificação pela fé e julgamento
segundo as obras:
O juízo investigativo, corretamente entendido, está em harmonia com a justificação pela fé
e o juízo segundo as obras. Ele engloba em si os ingredientes desses dois ensinos
fundamentais. ... Claramente, o juízo investigativo não lida meramente com os pecados da

35
William Shea, “Literary Form and Theological Function in Leviticus,” in The Seventy Weeks, Leviticus,
and the Nature of Prophecy, ed. Frank Holbrook, Daniel and Revelation Committee Series, vol. 3
(Washington, DC: Biblical Research Institute, 1986), 131-168; and Wilfried Warning, Literary Artistry in
Leviticus, Bibint 35 (Leiden: Brill, 1999), 86-87, 178.
36
Rolf Rendtorff, “Leviticus 16 als Mitte der Tora,” Bibint 11 (2003): 252-258.
37
Shea, “Literary Form and Theological Function,” 149.
38
Ibid., 150.
39
Cf. White, Christs Object Lessons, 312 (discutindo o juízo investigativo): “Justiça é fazer o que é certo, e
é por suas obras que todos serão julgados. Nossos personagens são revelados pelo que fazemos. As obras
mostram se a fé é genuína”.

315
humanidade, mas com o perdão de Cristo. Consequentemente, quando todo o pacote é
reunido, e a justificação pela fé e o juízo futuro segundo as obras são vistos como o conteúdo
do juízo investigativo, pode-se afirmar que há duas questões que este juízo responde.
Primeiro, o pecador buscou e recebeu o perdão de Cristo para seus pecados? Segundo, esse
perdão produziu bons frutos em sua vida?... Somente quando a resposta a tais perguntas
for um sim fundamental, a revelação final do perdão e da misericórdia de Deus pode ser
estendida aos crentes.40

O conceito de frutos de justiça no julgamento final é especialmente evidente na


passagem do Novo Testamento de Filipenses 1:6, 9-11:
E estou certo de que aquele que começou uma boa obra em você vai completá-la no
dia de Jesus Cristo... para que vocês aprovem o que é excelente e sejam puros e
irrepreensíveis para o dia de Cristo, cheios dos frutos de justiça que vêm por meio de Jesus
Cristo, para glória e louvor de Deus. (RSV)

Este conceito de frutos de justiça no juízo final não destrói a certeza cristã no juízo.
Como Blazen coloca: “Se a justificação garante segurança, o julgamento a protege. Ela o
protege da ilusão de que a segurança é possível sem um relacionamento fundamental
com Cristo e um seguimento comprometido de Cristo. ”41 No julgamento final, as obras
de fé na vida do cristão fornecem a evidência de que sua fé é genuína. Mas o
fundamento final da aceitação de alguém no julgamento não são as obras capacitadas
pelo Espírito no crente, mas a justiça imputada de Cristo. “Embora o caráter de Cristo
possa ser imitado e aproximado, o caráter infinito de Sua bondade nunca pode ser
igualado.” Portanto, como Blazen aponta, “duas coisas devem permanecer verdadeiras
para o julgamento [final]:
(1) o fruto santificado da justificação deve estar presente, mas (2) a própria
justificação deve continuar sua função de perdão”. 42
No Dia da Expiação, a certeza e o julgamento se encontram e assumem um
significado último. Isso é garantia de boas notícias, de fato.
CRISTO É O NOSSO VINDICADOR
Davi orou: “Julga-me, ó Senhor meu Deus, segundo a tua justiça” (Sl 35:24, NASB);
pode ser melhor traduzido como capturado por muitas versões modernas: “Vindica-
me!” (NKJV, ESV, NIV, RSV). O resultado do julgamento escatológico é certo. É "a favor
dos santos do Altíssimo" (Dn 7:22). O julgamento traz condenação sobre o poder do
chifre pequeno, e Satanás, que está por trás desse poder, e ao mesmo tempo traz
vindicação para o povo de Deus que foi falsamente acusado por Satanás. João, o
Revelador, entrega a mesma mensagem básica que Daniel a respeito da vindicação do
povo de Deus: “pois já foi expulso o acusador de nossos irmãos, o qual os acusava dia e
noite diante do nosso Deus” (Ap 12:10).

40
Blazen, “Justification and Judgment,” in Seventy Weeks, 379-381.
41
Ibid., 367.
42
Ibid.

316
Fiquei encantado ao saber, examinando os mais de trezentos exemplos de ações
judiciais da aliança (julgamentos investigativos) nas Escrituras, que a preponderância de
procedimentos legais tem o propósito de vindicar o povo de Deus.43 Na verdade, o
conceito de julgamento nas Escrituras é geralmente positivo, e o uso primário da
terminologia de julgamento refere-se à obra de justificação, salvação, libertação e
vindicação de Seu povo de Deus.44
Essa garantia de vindicação no julgamento se tornará cada vez mais preciosa para
nós nos últimos dias, à medida que a perseguição começar, à medida que o povo de
Deus for falsamente acusado e os veredictos de culpa forem proferidos contra eles pelos
mais altos tribunais terrestres.45 Em tais circunstâncias sombrias, o povo de Deus confia
confiantemente que no julgamento investigativo a verdade virá à tona e a justiça será
feita. Como Jó, que em um cenário de julgamento investigativo cósmico46 enfrentou
falsos acusadores, o povo de Deus do fim dos tempos pode proclamar com confiança:
“Pois eu sei que meu Vindicador [margem] vive, e por fim ele se levantará sobre a
terra; e depois que minha pele for assim destruída, então da minha carne verei a Deus,
a quem verei do meu lado!” (Jó 19:25-27, RSV).47
Ellen White capta poderosamente a imagem de nossa vindicação final no juízo
investigativo pré-advento:
João em santa visão contempla as almas fiéis que sobem da grande tribulação,
cercando o trono de Deus, vestidos de vestes brancas e coroados com glória imortal. O que
embora eles tenham sido contados como a escória da terra? No juízo investigativo, suas
vidas e caráter são revistos diante de Deus, e aquele tribunal solene reverte a decisão de
seus inimigos. Sua fidelidade a Deus e à Sua Palavra é revelada, e as altas honras do Céu são
concedidas a eles como vencedores na luta contra o pecado e Satanás. 48

O juízo investigativo revela ao universo não caído a posição dos santos diante de
Deus. A salvação do povo de Deus não está em perigo. Enquanto aqueles que
negligenciaram e rejeitaram as provisões feitas para sua salvação têm bons motivos para
ansiedade, para aqueles que pertencem a Cristo o juízo investigativo é motivo de
exuberante canto. Por milhares de anos (desde a morte de Abel) o sangue dos mártires
tem clamado: “Até quando, ó Senhor, santo e verdadeiro, até que você julgue e vingue
nosso sangue daqueles que habitam na terra?” (Ap 6:9-10). Finalmente Yom Kippur

43
Davidson, “Divine Covenant Lawsuit Motif,” 83.
44
Jiri Moskala, “The Gospel According to Gods Judgment: Judgment as Salvation,’’JATS 22 (2011): 28-49
45
Veja 12:17; 13:11-17; e White, Great Controversy, 582-592.
46
Para análises do livro de Jó como um DD (costela) ou ação de aliança, veja especialmente B. Gemser
“The Rib-or Controversy-Pattern in Hebew Mentality” in Wisdom in Israel and in the Ancient Near East,
ed. Martin Noth e D. Winton Thomas, VTSup 3 (Leiden: Brill, 1955), 120-37; Heinz Richter, Studien zu Hiob
(Berlim: Evangelische Verlagsanstalt, 1959); Sylvia Scholnick, “Lawsuit Drama in the Book of Job” (diss. de
doutorado, Brandeis University, 1976); e Claus Westermann, A Estrutura do Livro de Jó (Filadélfia, PA:
Fortaleza, 1981).
47
Veja a análise desta passagem por Gordon E. Christo, “The Escatological Judgment in Job 19:21-29: An
Exegetical Study” (diss. de doutorado, Andrews University, 1992). De acordo com esta análise literária do
livro de Jó, esta passagem situa-se no ápice quiástico do livro.
48
Ellen G. White, Our High Calling (Washington, DC: Review and Herald, 1961), 361.

317
chegou! O julgamento final começou - o processo pelo qual Deus revela aos habitantes
não caídos do universo a evidência em favor de Seu povo, a realidade de seu
arrependimento e fé, conforme demonstrado pelos frutos fiéis de suas ações e Seu
perdão de seus pecados. As acusações de Satanás contra Seu povo são mostradas como
falsas, e a verdade completa pode finalmente sair justificando o povo de Deus.
Verdadeiramente, a mensagem dos primeiros anjos – “Chegou a hora do Seu
julgamento” – é parte das “boas novas eternas” (Ap 14:6-7).
A vindicação dos santos no julgamento é garantia de boas novas. Mas a melhor
notícia de segurança está guardada para o final. E, em última análise, não é sobre nós,
mas sobre o próprio Deus.
A VINDICAÇÃO DE DEUS
A boa notícia de Yom Kippur tem implicações muito além de nossa experiência
pessoal. O plano de redenção não se concentra apenas (ou mesmo principalmente) em
nossa salvação pessoal. A Bíblia apresenta uma visão teocêntrica da história da salvação.
Por exemplo, Ezequiel, no contexto mais amplo do tipo terreno do julgamento
investigativo antitípico49 ressalta o “quadro maior” – a dimensão cósmica. Em Ezequiel
36:22-23 (e novamente em 39:27-28), Deus revela a Judá o resultado final de seu
julgamento: “por meio de você eu justifico minha santidade diante de seus olhos [os
olhos das nações que observam]” (ESV). É por causa deles, para justificar Seu caráter
diante das inteligências que o observam, que Deus age.
O juízo investigativo não é conduzido para revelar a Deus quem é Dele e quem não
é. Aquele que é onisciente sabe quem são Seus (Is 46:9-10; Jo 10:4, 14, 27; 2Tm 2:19;
Hb 4:13). É para assegurar o universo em observação que serve como júri no julgamento
investigativo cósmico (1Co 4:9, NVI). Deus, que ao longo da história bíblica
consistentemente apresentou as evidências em tribunal aberto por meio de “mini-
julgamentos investigativos” (ou seja, ações judiciais da aliança) antes de executar o
julgamento sobre quaisquer indivíduos ou nações,50 não se afasta desse procedimento
no julgamento final. Desde o surgimento do mal no universo, o conflito cósmico diz
respeito ao caráter de Deus, com Satanás acusando Deus de ser injusto e/ou
impiedoso.51 No final do Grande Conflito, no julgamento celestial final, todo o universo
terão a oportunidade de testemunhar “uma grande e final reafirmação de tudo o que
Ele [Cristo] realizou por meio do plano da salvação”;52 e poderão atestar a justiça e a

49
Veja Richard M. Davidson, “In Confirmation of the Sanctuary Message”, JATS 2/1 (Primavera de 1991):
97-100; idem, “A Estrutura Literária Quiástica do Livro de Ezequiel”, em Para entender as Escrituras:
Ensaios em Honra de William H. Shea, ed. David Merling (Berrien Springs, MI: The Institute of
Archaeology/Siegfried H. Horn Archaeological Museum, 1997), 71-93.
50
Veja Davidson, “Divine Covenant Lawsuit Motif”, passim, para discussão deste procedimento
consistente de Deus ao longo da história.
51
Veja a evidência bíblica para esta conclusão em Richard M. Davidson, “Back to the Beginning: Genesis
1-3 and the Theological Center of Scripture”, em Christ, Salvation, and the Eschaton, ed. Daniel Heinz, Jiri
Moslcala e Peter M. van Bemmelen (Berrien Springs, MI: Publicações do Antigo Testamento, 2009), 5-29.
52
William Shea, “Theological Importance of the Preadvent Judgment,” in Seventy Weeks, 327.

318
veracidade das relações de Deus com a humanidade. As acusações de Satanás contra
Deus serão provadas falsas.
O aspecto incompreensível sobre este julgamento cósmico é que temos uma parte
na vindicação de Deus. Observe como em Ezequiel 36:23 (ESV) Deus diz que “por meio
de ti eu justifico minha santidade diante de seus olhos”, e então nos versículos seguintes
Ele descreve a obra de purificação que Ele realizará para Seu povo.
No tipo do Antigo Testamento, os pecados de Judá e o cativeiro resultante fizeram
com que as nações vizinhas acusassem Deus de não cumprir Suas promessas ao Seu
povo. Ao ajuntá-los do cativeiro e purificá-los, Ele justificou Seu caráter santo das falsas
acusações (Ez 36:17-32). Assim, no antítipo, contra a falsa afirmação de Satanás de que
Deus não pode cumprir Suas promessas da nova aliança, Deus reúne Seu povo fiel a Si
mesmo na consumação da história e através do poder de Seu Espírito demonstra a
eficácia final do evangelho. A promessa da nova aliança – “Porei dentro de vós o meu
Espírito, e farei com que andeis nos meus estatutos e observeis as minhas ordenanças”
(Ez 36:27) – encontrará o cumprimento final entre o povo remanescente de Deus. Eles
se tornarão totalmente estabelecidos na verdade como é em Jesus. Selados como os
144.000 espirituais, eles terão o nome (caráter) do Cordeiro e do Pai escrito em suas
testas (Ap 7:4; 14:1). Então o juízo investigativo pode se encerrar para os vivos (Ap
22:11).53 Nenhuma glória será acumulada para o povo – “Não é por amor de vocês que
agirei, diz o Senhor Deus; que isso seja conhecido de vocês” (Ez 36:32, ESV). Somente a
Deus seja a glória!
Deus não apenas justifica Seu caráter revelando a fidelidade dos santos. Ezequiel
38:16, 22-23 (RSV) usa a mesma linguagem para descrever o julgamento final sobre os
ímpios e, em particular, seu líder:
[Nos últimos dias eu te trarei [Gogue, símbolo de Satanás liderando suas hordas perversas]
contra minha terra, para que as nações me conheçam, quando através de você,

Ó Gogue, eu justifico minha santidade diante de seus olhos... Com pestilência e


derramamento de sangue entrarei em julgamento com ele [Gogue]; e farei chover sobre ele
e suas hordas e os muitos povos que estão com ele, chuvas torrenciais e saraiva, fogo e
enxofre. Assim, mostrarei minha grandeza e minha santidade e me darei a conhecer aos
olhos de muitas nações. Então eles saberão que eu sou o Senhor.54

O julgamento final revela não apenas a eficácia final do evangelho, mas também o
pleno amadurecimento da iniquidade (Ap 14:18). Em Apocalipse 16, as sete últimas

53
Veja Doug Bennett, “The Good News About the Judgment of the Living,” Adventist Review 16‘(June
1983): 14-15, for evidence that probation does not close upon the living until after the latter rain and the
sealing; cf. White, Selected Messages, 1:66; idem, Early Writings (Hagerstown, MD: Review and Herald,
1945), 85-86. para evidência de que o tempo de graça não se encerra sobre os vivos até depois da chuva
serôdia e do selamento; cf. Branco, Mensagens Escolhidas, 1:66; idem, Early Writings (Hagerstown, MD:
Review and Herald, 1945), 85-86.
54
Para discussão das passagens de Gogue e Magogue em Ezeldel e Apocalipse, veja Jiri Moskala, “The
Historical-Echatological/Apocalyptic Fulfillment of the Gog and Magog Prophecy in Ezekiel 38-39,” in
Christ, Salvation, and the Eschaton, 287. -313; e idem, “Toward the Fulfillment of the Gog and Magog
Prophecy of Ezeldel 38-39,” JATS 18, no. 2 (Autumn 2007): 243-273.

319
pragas servem ao propósito de revelar que os julgamentos finais de Deus não encontram
resposta de arrependimento no coração dos ímpios - eles apenas amaldiçoam a Deus
ainda mais (Ap 16:9, 11). Deus se revela justo e sim, misericordioso, ao pôr fim ao
Grande Conflito. Antes que o Conflito Cósmico termine, mesmo os rebeldes, embora
ainda impenitentes, admitirão que Deus é justo (Is 45:20-23; Rm 14:11; Fp 2:10-11). A
boca do próprio Satanás, o líder do conflito, será finalmente silenciada, pois suas
acusações contra Deus se mostram falsas.
No grande clímax do Grande Conflito, haverá um tempo de grande regozijo — e as
boas novas serão sobre a vindicação de Deus no julgamento. Os remidos cantarão o
cântico de Moisés e do Cordeiro: “Grandes e maravilhosas são as tuas obras, Senhor
Deus Todo-Poderoso! Justos e verdadeiros são os Teus caminhos, ó Rei dos santos!” (Ap
15:3). O anjo da água dirá: “Justo és tu, ó Santo, que és e que eras, pois trouxeste estes
juízos” (Ap 16:5, ESV). Outro do altar clamará: “Ainda assim, Senhor Deus Todo-
Poderoso, verdadeiros e justos são os teus juízos!” (Ap 16:7). Depois disso “a voz alta de
uma grande multidão no céu, clamando: ‘Aleluia! A salvação, a glória e o poder
pertencem ao nosso Deus, porque seus juízos são verdadeiros e justos...” (Ap 19:1-2,
ESV).
A mensagem do antitípico Yom Kippur – de todo o julgamento final, incluindo o
julgamento investigativo pré-advento, a revisão milenar e a execução pós-milenar da
sentença – aumenta para um grande clímax de segurança. O universo inteiro terá
certeza de que Deus é justo e verdadeiro em todos os Seus caminhos, incluindo a
salvação de Seu povo. Assim, o povo salvo de Deus tem certeza para sempre. Por meio
de todo o processo de julgamento do fim dos tempos, Deus vindica plenamente Seu
caráter de amor e, assim, o universo se tornará eternamente seguro. A certeza no
julgamento dará lugar à segurança para a eternidade!

320
EPÍLOGO
E vocês, mortos em seus delitos e na incircuncisão de sua carne, ele vivificou juntamente
com ele.1 — Colossenses 2:13

Mas Deus demonstra Seu próprio amor por nós, quando ainda éramos pecadores, Cristo
morreu por nós. —Romanos 5:8

Cristo foi tratado como merecemos, para que pudéssemos ser tratados como Ele merece.
Ele foi condenado por nossos pecados, nos quais Ele não teve parte, para que pudéssemos
ser justificados por Sua justiça, na qual não tivemos parte. Ele sofreu a morte que era nossa,
para que pudéssemos receber a vida que era Sua. “Pelas suas pisaduras fomos sarados” 2

Este volume foi uma tentativa de abordar a mais tenaz de todas as questões
humanas: “O que devo fazer para ser salvo?” O conflito que começou no céu, e é
conhecido como o grande conflito entre Cristo e Satanás, transbordou para a terra logo
após sua criação e resultou na queda do primeiro casal. Foi nessa época que Deus
decretou o plano de salvação que foi estabelecido antes da fundação do mundo (Ap
13:8). No centro do plano de salvação de Deus está Jesus Cristo – um ser divino pré-
existente e co-eterno, em quem “habita corporalmente toda a plenitude da divindade”
(Cl 2:9). Ele escolheu se tornar um humano, viver uma vida humana, morrer uma morte
sacrificial na cruz, ser ressuscitado e se tornar o mediador da aliança eterna no santuário
celestial. A cruz de Cristo está no centro do plano de salvação de Deus como o evento
singular mais importante na história do universo. Sem ela, o plano de salvação não seria
possível. Como Paulo disse: “Decidi nada saber entre vós, a não ser Jesus Cristo e este
crucificado” (1 Coríntios 2:2). Ellen White expressou assim: “O sacrifício de Cristo como
expiação pelo pecado é a grande verdade em torno da qual todas as outras verdades se
agrupam. Para ser corretamente compreendida e apreciada, toda verdade na Palavra
de Deus, de Gênesis a Apocalipse, deve ser estudada à luz que brota da cruz do Calvário.
Apresento diante de vocês o grande, grandioso monumento de misericórdia e
regeneração, salvação e redenção — o Filho de Deus erguido na cruz”.3 Assim, Jesus e
Sua realização na cruz formam o tema central deste volume.
Mas Deus fez mais do que morrer pela humanidade. Confrontado com a obliteração
total da capacidade humana de chegar a Ele, por meio da ação da graça preveniente, Ele
permitiu que os humanos caídos mais uma vez “tivessem os privilégios e as
oportunidades” dos seres humanos livres.4 Os seres humanos foram, assim,
sobrenaturalmente habilitados a responder à oferta da graça de Deus, dada a eles desde
o início. O que devemos fazer, então, para ter a vida eterna? O apóstolo João responde:
“Crê no nome do Filho de Deus, para que saibas que tens a vida eterna” (1Jo 5:13). Esse
“comportamento” depende da capacitação contínua de Deus que nos capacita a manter
uma constante “conexão com Cristo pela fé e a contínua rendição de [nossa] vontade à

1
Salvo indicação em contrário, todas as citações das Escrituras são extraídas da New King James Version®.
Copyright © 1982 por Thomas Nelson. Usado com permissão. Todos os direitos reservados.
2
Ellen G. White, Desire of Ages (Mountain View, CA: Pacific Press, 1898), 25.
3
Ellen G. White, Gospel Workers (Washington, DC: Review and Herald, 1948), 315.
4
Ellen G. White, “Christ the Propitiation for Our Sins,” Atlantic Union Gleaner, vol. 2, no. 33 (August
19,1903): 1.

321
[Sua]”.5 Enquanto isso acontecer em nossas vidas, Cristo “operará em nós o querer e o
efetuar segundo a sua boa vontade” (Fp 2:13).6 Ellen White afirma que:
Jesus concede todos os poderes, toda a graça, toda a penitência, toda a inclinação, todo o
perdão dos pecados, apresentando Sua justiça para o homem compreender pela fé viva –
que também é dom de Deus. Se você reunisse tudo o que é bom, santo, nobre e amável no
homem e então apresentasse o assunto aos anjos de Deus como uma parte na salvação da
alma humana ou no mérito, a proposição seria rejeitada como traição. 7

Assim, juntamente com os reformadores, podemos exclamar Soli Deo Gloria! Glória
somente a Deus! Todo o plano de salvação, do primeiro ao último, pertence a Deus.
Nunca houve e nunca haverá a possibilidade de contribuição humana para a salvação
além de simplesmente responder à graça de Deus, dada a nós “enquanto ainda éramos
pecadores” (Rm 5:8). É esta graça que nos capacita a aceitar o dom gratuito da salvação
e nos capacita a levar uma vida agradável a Deus. É, portanto, através da vida de
humildade e sofrimento de Cristo, bem como Sua morte sacrificial na cruz, que a
verdadeira natureza de Deus foi revelada à humanidade. A este bom e belo Deus, que
tornou tudo isso possível, este volume é dedicado.

5
Ellen G. White, Steps to Christ (Mountain View, CA: Pacific Press), 62.
6
Ibid., 62-63.
7
Ellen G. White, Faith and Works (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2003), 24.

322
CONTRIBUINTES

CONTRIBUINTES EDITORIAIS
Martin F. Hanna, PhD, professor associado de teologia sistemática, Seventh-day
Adventist Theological Seminary, Andrews University, Michigan Darius W. Jankiewicz,
PhD, professor de teologia histórica, Seventh-day Adventist Theological Seminary,
Andrews University, Michigan
John W. Reeve, PhD, professor associado de história da igreja, Seventh-day
Adventist Theological Seminary, Andrews University, Michigan
OUTROS AUTORES CONTRIBUINTES
Roy Adams, PhD, editor associado aposentado da Adventist Review, Maryland
Ivan T. Blazen, PhD, professor emérito de estudos teológicos da religião, Escola de
Religião, Universidade de Loma Linda, Califórnia
Jo Ann Davidson, PhD, professora de teologia sistemática, Seminário Teológico
Adventista do Sétimo Dia, Universidade Andrews, Michigan
Richard M. Davidson, PhD, J. N. Andrews Professor de Interpretação do Antigo
Testamento, Seminário Teológico Adventista do Sétimo Dia, Universidade Andrews,
Michigan
Denis Fortin, PhD, professor de teologia histórica, Seminário Teológico Adventista
do Sétimo Dia, Universidade Andrews, Michigan
Roy E. Gane, PhD, professor de Bíblia Hebraica e línguas antigas do Oriente
Próximo, Seminário Teológico Adventista do Sétimo Dia, Universidade Andrews,
Michigan
Norman R. Gulley, PhD, professor pesquisador, escola de religião, Southern
Adventist University, Tennessee
Abner Hernandez-Fernandez, PhD, membro do corpo docente em teologia,
Universidad de Montemorelos, México
George R. Knight, PhD, professor emérito de história da igreja, Seminário
Teológico Adventista do Sétimo Dia, Andrews University, Michigan
Hans K. LaRondelle, ThD, professor emérito de teologia (falecido), Andrews
University, Michigan
John K. McVay, PhD, presidente, Walla Walla University, Washington
Nicholas P. Miller, JD, PhD, professor de história da igreja, Seminário Teológico
Adventista do Sétimo Dia, Universidade Andrews, Michigan

323
Jerry A. Moon, PhD, professor emérito de história da igreja, Seminário Teológico
Adventista do Sétimo Dia, Universidade Andrews, Michigan
Jiri Moskala, ThD, PhD, reitor e professor de exegese e teologia do Antigo
Testamento, Seminário Teológico Adventista do Sétimo Dia, Universidade Andrews,
Michigan
Jon Paulien, PhD, reitor e professor de estudos teológicos da religião, School of
Religion, Loma Linda University, Califórnia
Woodrow W. Whidden, PhD, professor emérito de religião, Faculdade de Artes e
Ciências, Universidade Andrews, Michigan

324

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