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Não ficção


A
OS ESPINHOS DE ROSAS
QUE AINDA NÃO TINHAM
DESABROCHADO
notícia da morte de Steve Jobs que correu mundo na
manhã de 6 de Outubro pode servir como exemplo
de um estado permanente de actualização de informa-
ção ao minuto. As notícias relacionadas com a Apple e Steve
Jobs saturaram de tal forma a Internet nesse dia que tudo o
Ilustradora da Capa:

09
Joana Dias
02

Fantasia e Realidade:
06
Os Pais da Ficção Científica
David Soares
07

Metais Pesados.
Fernando Ribeiro

que podia ter sido dito sobre o empresário esgotara-se ao fim


de uma manhã. As nossas mentes por vezes ressentem-se
do excesso de informação, mas ao mesmo tempo não con- Enciclopédia da História 20
seguem passar sem essa corrente imensa de sounds e bytes que Universal: (O) Artefacto voador Os Ratos Guerreiros.
de Tristan de Sapincourt. João Lameiras
nos consome e desgasta diariamente. Em certos aspectos Afonso Cruz
podemos não ter cumprido as grandes ideias desenvolvidas na 24
ficção científica, em especial a exploração espacial que ficou
por concretizar, mas as primeiras noções de realidade virtual
ampliaram-se e definiram o nosso tempo. Stanislaw Lem, na
sua colectânea de ensaios filosóficos Summa Technologiae (1964), 42 Os livros das minhas
pretendia analisar o futuro, “os espinhos de rosas que ainda vidas. Filipe Homem 30
não tinham desabrochado”. É da mente de Lem que surge Fonseca Entrevista.
Phantomat, uma máquina de realidade virtual que nos permite Luís Filipe Silva
ter múltiplas vidas e navegar pelo ciberespaço por toda a eter- 51
nidade. Ainda não é possível desligarmo-nos do mundo mate- Artefactos da
rial e viver de ilusões virtuais, mas não deixamos de ser cons- Era Espacial.
tantemente alimentados por coisas novas que absorvemos Pedro Piedade
todos os dias. Todavia, temos acesso a milhares de livros que Marques
podem ser descarregados em aparelhos, mas teremos alguma Entrevista.
vez tempo para os ler a todos? Podemos estudar todas as ciên- Justin Cronin 69
cias do mundo através de um computador com ligação à In- Entrevista.
ternet, mas a nossa própria ignorância faz-nos desconhecer o Robin Hobb
quão vasta é a rede de informação. Sentimos que controlamos
os eventos mas uma comunicação mal redigida causa reper-
cussões tremendas. Já não há forma de virar costas a tudo isto
Ficção
se queremos deixar uma marca neste mundo e já ninguém 12
se pode dar ao luxo de ceder à tecnofobia. Mas apesar disso, 26
e mesmo reconhecendo que a parte racional em mim deseja
todo o conforto proporcionado pelo mundo virtual, muitas
vezes dou por mim tentada a seguir as pisadas de Henry Da-
vid Thoreau e desaparecer nos bosques para, nas palavras do
poeta, “aniquilar tudo o que não era vida”. BANG! O Chapéu do Especialista.
Kelly Link Todas as Mortes.
36 Luís Corte Real
54

Safaa Dib é coordenadora editorial da editora Saída de Emergência. Junta-


A Aposta. O Jogo da Ratazana
Pedro Vicente e do Dragão.
mente com Rogério Ribeiro, organiza a convenção anual do Fórum Fantástico. Pedroso Cordwainer Smith

PARA MAIS INFORMAÇÕES SOBRE A COLECÇÃO BANG! OU A EDITORA SAÍDA DE EMERGÊNCIA VISITE-NOS EM: SAIDADEEMERGENCIA.COM
Revista Bang! 11 / Outubro de 2011 ISBN: 978-989-637-389-4 Propriedade: Edições Saída de Emergência. Todos os direitos (e mais alguns) reservados. Director e escravo das galés: Luis Corte Real
Editora (procurada pela Interpol): Safaa Dib Direcção de arte e catering: Saída de Emergência Colaboradores explorados nesta edição: Ana Mendes Lopes, Cristina Alves, Inês Botelho, João Barreiros,
João Miguel Lameiras, Pedro Piedade Marques Autores e outros convidados sem voto na matéria: Afonso Cruz, Catarina C., Cordwainer Smith, David Soares, Fernando Ribeiro, Filipe Homem Fonseca,
João Oliveira, Justin Cronin, Kelly Link, Luís Corte Real, Luís Filipe Silva, Pedro Vicente Pedroso, Robin Hobb, Telma Teixeira Redacção e solário: Rua Adelino Mendes, nº152, Quinta do Choupal 2765-082
S. Pedro do Estoril, Portugal Impressão (gralhas incluídas): Printer Portuguesa Tiragem de revirar os olhinhos: 8500 Copyright: Textos propriedade da editora e/ou dos respectivos autores, etc e tal.
Nota: os preços das lojas Fnac anunciados nesta revista consideram-se correctos salvo erro, gralha tipográfica ou intervenção alienígena.
BANG! /// 1
ilustradoradacapa colecção
Joana Dias
J
oana Dias nasceu em Lisboa a 22 de
Março de 1989 e desde tenra idade que
se sentiu ligada às artes. Mais conhec-
ida pelo seu alter-ego, pseudónimo “Shinob-
inaku”, que possui há cerca de 6 anos desde
bang!
SÓ LITERATURA FANTÁSTICA
que descobriu a arte digital. Artisticamente [Resumo das novidades Por Luís Corte Real editor]
auto-didacta, a sua arte é uma simbiose de
literatura, cinema e música, tudo o que a ro-
deia e que a inspira, sendo depois filtrado m Novembro, a Saída de Emergência faz oito anos. Não parece muito tempo mas, de 2003 até

E
para o seu mundo fantástico, belo mas mon- agora, praticamente nada está igual no mercado editorial. Quando começámos não existiam
struoso, frágil mas poderoso. enormes grupos editoriais, mas sim muitas editoras de tamanho médio com catálogos diferen-
Profissionalmente, por conta própria, elabo- ciados. À frente das editoras estavam os editores (com os seus gostos e manias) e não meros
ra projectos de design para capas de livros e gestores à caça de números. Se entre os editores havia uma espécie de acordo de cavalheiros
álbuns de música, incluindo artistas interna- onde ninguém roubava ninguém, agora os gestores passam uns por cima dos outros na ânsia
cionais. Apesar de jovem, já conseguiu criar de cumprir objectivos que outros gestores lhes impuseram. O marketing era uma brincadeira
admiradores em várias partes do mundo, 1 2 mal compreendida, agora é uma ferramenta fundamental. Se quando começou, a Saída de
tendo sido publicada em revistas desde os Emergência tinha as melhores capas do mercado (o que foi muito útil para conquistar livreiros
Estados Unidos à Indonésia e participando e leitores), agora é rara a editora que não tem excelentes designers. Entretanto, apareceu o fe-
em livros de arte contemporânea tão recon- 1 nómeno mega bestseller (aquele livro que vende tanto que, sozinho, aguenta uma editora anos
hecidos como as séries de ”Art Now” pela a fio), as tiragens médias caíram (afinal, os leitores foram todos comprar o bestseller) e o preço
Ilex Press, sendo a artista de capa de “Vam- dos livros praticamente que não subiu. A Saída de Emergência teve a sorte de nascer numa
pire Art Now”; e o “The Digital Art Tech- altura propícia a quem tinha projectos novos - se em vez de 2003 tivéssemos nascido em 2011
niques Manual for Illustrators and Artists”, a nunca conseguríamos crescer como crescemos. Passaram-se oito anos e não sei dizer-vos se o
sair em Janeiro de 2012. mercado está melhor ou pior. Mas que está irreconhecível, isso está.
Como projecto futuro tenciona publicar a
sua própria novela gráfica, esta incorporará
uma colectânea das suas melhores obras em A salvação para quem acabou ÚLTIMOS LANÇAMENTOS DA COLECÇÃO BANG!
conjunto com textos inspirados pelas mes- “As Crónicas de Gelo e Fogo”
mas. Para mais informações e portefólio vis- 150. A Dança dos Dragões

ite o site oficial: www.shinobinaku.com.E a de George R. R. Martin e não George R. R. Martin


151. O Ladrão da Eternidade
página oficial do Facebook: www.facebook. sabe o que ler... Clive Barker
com/Shinobinaku.Art.by.Joana.Dias. BANG! 152. O Fim Chega numa Manhã
Sangue do Assassino de Nevoeiro
1. Atargatis 3 4 Robin Hobb Renato Carreira
Inspirado na mitologia da Síria sobre a deusa sereia 153. O Messias de Duna
Atargatis. Vencedor do 1º lugar no concurso on-line Quando se chega ao fim de Frank Herbert
“Fantasy Tales” entre 300 participantes. 154. O Manual do Iniciado
A Dança dos Dragões, nono P. C. Cast & Kim Doner
2. Evelyn Evelyn volume de As Crónicas de 155. Os Anos de Ouro da Pulp Fiction
Uma perspectiva diferente sobre o conceito de beleza Gelo e Fogo de George R. R. Portuguesa
e a sua harmonização com o bizarro. Martin, há uma pergunta que Vários autores
156. Sangue do Assassino – Vol. 3
todos os leitores partilham: o
3. Sunset Robin Hobb
que ler agora? Não é fácil sair 157. Cruz de Ossos
Uma das obras presentes na maior colectânea das mãos hábeis de Martin Patricia Briggs
de arte contemporânea sobre vampiros
para nos entregarmos a ou- 158. Os Pilares do Mundo
“Vampire Art Now”. Anne Bishop
tro escritor. Poucos autores
159. Assassin’s Creed – Cruzada Secreta
4. Heisei do género têm o seu talento
Oliver Bowden
Um exemplo da clara influência pelos estilemas da arte para construir mundos, per- 160. Carícias na Noite
asiática, mais especificamente a nipónica. sonagens, intrigas e diálogos Laurell K. Hamilton
tão conseguidos. Voltamos
5. Les Fleurs Du Mal
então à pergunta, o que ler
Uma fusão entre a elegância e o macabro na tentativa de
implementar a filosofia de que os opostos se complementam. agora? Talvez a solução seja
Nas palavras da própria autora, para


5 6 perguntar ao próprio George
6. Your Love Is Venomous Poison R. R. Martin, e ele responde Fitz, “as magias do Talento e da Manha
Mais uma vez a presença da dualidade “bela e o monstro”, sempre da mesma maneira: se têm perigos e benefícios. Tem que trilhar
desta vez as duas incorporadas nesta personagem gostam de boa fantasia épica, leiam o seu caminho com muito cuidado entre
mais vampiresca. Robin Hobb. Agora que sabe- ambas as magias se quer sobreviver”.

2 /// BANG! BANG! /// 3


No 4º volume, Mercy Thompson


Conseguirá o Imperador de Acácia


pode não sobreviver a uma superar os perigos que o rodeiam
mos que o “novo Tolkien” Provavelmente a antologia mais confrontação com Marsilia, Dos clássicos da fc aos novos e proteger os seus herdeiros da
da fantasia recomenda viva- complexa editada pela SdE até a rainha dos vampiros, mas corrupção em que assenta o Império?
mente Robin Hobb, vamos lá à data, é uma obra que recria toda a força e determinação bestsellers da fantasia,
da nossa heroína não sem esquecer os autores Publicado pela


saber o que tem esta autora uma pulp fiction portuguesa que
de tão especial. Segundo a são de subestimar. primeira vez em
poderia ter existido. portugueses e os videojogos Portugal, todos
crítica e a legião de fãs que se 
tem vindo a formar por todo os amantes da FC
o mundo, o seu ponto forte é Assassin’s Creed - ir-se-ão render
a criação de mundos originais à continuação do
Cruzada Secreta relato por Frank
e credíveis, personagens com
as quais nos identificamos Oliver Bowden Herbert da vida
e preocupamos e intrigas de Muad’Dib,
surpreendentes e imprevi- Eis que surge a oportunidade profeta, santo,
síveis. Depois de A Saga do de conhecer o significado guerreiro, místico
Assassino, um quinteto que do Credo dos Assassinos. e Imperador.
conta a juventude de Fitz, e a Baseado no primeiro jogo da
sua transformação de jovem Saga Assassin’s Creed, o livro
inocente em assassino temido Cruzada Secreta revela-nos a PREÇO
história de Altaïr – Um dos coerente e a intriga faz-nos FNAC:
nos quatro cantos do reino, contorcer no sofá de tão ma- 18,55€


Edição ilustrada mais extraordinários assassinos
veio O Regresso do Assassino, e de luxo para quiavélica. Um povo é pra-
segundo quinteto que conta da Irmandade durante a tercei-
os fãs de Zoey ra cruzada da Terra Santa. Os ticamente domesticado por
a transformação de Fitz de Redbird onde não uma droga chamada “bru-
assassino lendário em... Pois eventos da vida de Altaïr são
faltam as histórias contados pela primeira vez: ma”; um rei que é uma vítima
é, Robin Hobb tem muitas de antigas Sumo- de um sistema herdado há
surpresas e não as podemos uma viagem que vai mudar
Sacerdotisas e do várias dinastias; o amor pelos
contar aqui. Mas se confiam a História. O seu objectivo
passado da Casa seus quatro filhos pequenos
no gosto de George R. R. da Noite.
- uma batalha interminável
contra a conspiração dos Tem- que o admiram e desconhe-
Martin dêem uma oportu- cem os alicerces sujos em que
nidade ao talento único de plários. A sua determinação é
guiada pelo lema – Nada assenta o Império. Os povos
Robin Hobb. O próximo popular tão activa quanto as do Norte sentem-se no direi-
volume é Sangue do Assassino, é verdadeiro. Tudo é permitido.
melhores. Dos detectives que to de reclamar o trono. Uma
terceiro na nova saga. resolviam os casos com um organização domina os mares
misto de dedução e punhos Acácia e as trocas comerciais, e tem
aos heróis espaciais que um tal poder que faz o Rei
viviam aventuras para lá do David Anthony questionar-se se poderá ou
Heróis que derrotaram Durham O fim chega numa tempo aos nossos leitores para
horizonte galáctico; dos bár- não negar-lhes as exigências.
cientistas loucos, monstros baros com sindroma de bom Para quem gosta de romance Para quem gosta de romance Tudo isto e muito mais, faz manhã de nevoeiro olharem para todos os nossos
Sensação do momento está lançamentos deste ano, ver o
e alienígenas... mas não gigante aos desgraçados que paranormal mas está farto paranormal mas acha que os de Durham um legítimo con- Renato Carreira
que lhes escapou e colocarem
se cruzavam com horrores a ser a ingressão de David corrente dos maiores nomes
resistiram a Salazar em tudo semelhantes aos de de vampiros vampiros ainda têm muito Anthony Durham na fantasia. da fantasia. A não perder. na lista ao Pai Natal. Mas a
O novo livro de Renato
H. P. Lovecraft, a pulp fiction Depois de conquistar pré- pausa não será muito longa
para dar mios e prestígio escrevendo
Carreira, O Fim Chega Numa
pois em Janeiro de 2012 o
portuguesa foi um farol de Manhã de Nevoeiro, é um thriller
Os Anos de Ouro da irreverência e pura imagina- Cruz de Ossos romances históricos, o autor O Messias de Duna fogo e sangue dos Targaryen
fantástico cuja pedra de toque
Pulp Fiction Portuguesa ção durante algumas décadas Patricia Briggs Manual do Iniciado decidiu soltar as amarras à Frank Herbert assenta na irónica e divertida
regressam com Os Reinos do
Vários autores sofridas da nossa História. P. C. Cast e Kim Doner imaginação e surpreender Caos, o 10º volume das Cróni-
subversão do mito d’el-rei D.
Mas se os heróis enfrentaram Mercy Thompson está rapi- P. C. Cast regressa numa par- os leitores. E, na verdade, Publicado pela primeira vez cas de Gelo e Fogo. Stephen
Sebastião.
Séculos de uma inquisição e (quase sempre) derrotaram damente a tornar-se uma das ceria com a artista Kim Do- foi uma excelente surpresa. em Portugal, O Messias de Hunt delicia-nos com mais um
Baltazar Mendes, herói aciden-
invulgarmente repressiva centenas de vilões durante heroínas da fantasia urbana ner e presenteia os seus fãs Talvez pela experiência ad- Duna vem na sequência do sensacional livro no seu uni-
tal e investigador policial, após
e uma ditadura de várias esse período, nada puderam mais populares da colecção com o Manual do Iniciado. Para quirida, a fantasia de Durham grande clássico, Duna de verso Steampunk com O Reino
ter sido acusado de loucura
décadas no século passa- fazer contra a censura do Bang! As leitoras já se ren- quem está familiarizado com é madura e adulta. A dureza Frank Herbert. Doze anos Mais Além das Ondas. Se leram
em circunstâncias um pouco
do deixaram um vazio na Estado Novo. Tão eficaz foi deram às aventuras desta as aventuras de Zoey Redbird de um mundo onde o bem depois dos eventos narrados A Corte do Ar, não irão querer
bizarras, vê-se enredado numa
criatividade e capacidade de esse lápiz azul que ainda hoje mecânica metamorfa com na Casa da Noite, sabe como e o mal são zonas cinzentas, nesse livro, Paul Atreides perder este lançamento. Drizzt
trama sobrenatural que poderá
sonhar dos portugueses. Isso poucos se recordam da pulp um grande dom para se me- este Manual tem guiado os fizeram a crítica compará-lo é Imperador do Universo, Do’Urden, o elfo negro mais
levar à destruição do mundo
reflectiu-se num século XX fiction portuguesa e do papel ter nos mais incríveis sarilhos iniciados e tem servido de regularmente a autores como mas vê-se a braços com uma famoso da fantasia regressa
como o conhecemos.
cinzento, bafiento e atrasado que esta teve em iluminar as com lobisomens, vampiros e inspiração. Agora, numa edi- George R.R. Martin. Mas as Jihad sangrenta que destrói com o 2º volume da trilogia
em relação a tudo o que se vidas de um povo com tão seres feéricos. Mas mais do ção ilustrada e de luxo, chega qualidades não se ficam por mundos em seu nome. Um das Planícies Geladas, Rios de
fazia lá fora. Mas Luís Filipe poucas razões para sorrir. que um enredo sólido e bem às livrarias este Manual onde aqui. Durham mostra ter livro mais pausado e de in- Prata. Mas a maior surpresa
Silva, num trabalho notável Uma obra fundamental para construído, é a incrível força ficamos a conhecer mais as suas próprias ideias bem tensa reflexão filosófica, a O que vem aí? reservada para o início do ano
de investigação e pesquisa, conhecer alguns dos mais interior de Mercy, a par da acerca da história dos vam- delineadas e coisas como a braços com densas intrigas é certamente o início da pu-
vem demonstrar que as coisas extraordinários heróis da sua vulnerabilidade, que con- pyros e Sumo-Sacerdotisas do inclusão das drogas ou a es- políticas, as últimas cem Na recta final do ano, o ca- blicação da saga Dragonlance
não foram bem assim. Du- literatura portuguesa - que, quistou os leitores ansiosos passado. A história de Zoey cravatura infantil, fazem do páginas arrebatam o leitor e lendário editorial da Saída de Tracy Hickman e Margaret
rante algumas décadas do séc. garanto-vos, nada deviam aos pelo novo volume que saiu será retomada com Despertada seu mundo um lugar credível tornam esta obra mais um de Emergência entra numa Weis. BANG!
XX Portugal teve uma ficção melhores da pulp americana. este mês, Cruz de Ossos. no ano 2012. e apaixonante. A geografia é clássico da FC inesquecível. merecida pausa, dando mais

4 /// BANG! BANG! /// 5


E
m From Paralysis série de artigos sobre a descober- diário popular, com características assim como a designação «scien-

metais
to Fatigue, Edward ta do astrónomo John Herschel (fi- actuais, e as novidades sobre os se- tific novel», inventada pelo editor
Shorter enuncia lho de William Herschel), isolado na lenitas transformaram-no no título rival Bennett, antecipa em qua-
a existência de África do Sul. Lendo o seriado, inti- mais vendido. À edição episódica renta e um anos a de «scientific
“reservatórios de tulado Great Astronomical Discoveries advieram as panfletárias, com litogra- fiction», criada por William H.
sintomas”: aglo- Lately Made by Sir John Herschel, L.L.D. fias dos homens-morcegos voando L. Barnes na introdução que

pesados
merados ideais, F.R.S. &c. at the Cape of Good Hope, entre vulcões, lagos e cascatas luna- escreveu para a colectânea de
preenchidos pe- o público ficou a saber que a Lua res. Os restantes periódicos norte- homenagem póstuma a Caxton
las tendências predominantes dos pe- tinha florestas, lagos e era habitada, americanos (e europeus) não perde- (W. H. Rhodes), e em noventa e
ríodos que permeiam. São, em simul- entre outras espécies (como castores ram tempo em republicar o material um anos o uso dado por Hugo
tâneo, influenciáveis e influentes. Faz bípedes), por inteligentes híbridos de na integralidade, mas James Gordon Gernsback no primeiro núme-
sentido falar em “sintoma”, porque humano com morcego, capazes de Bennett, proprietário e editor do diá- ro de Amazing Stories. Conclui-
a palavra também significa “pressá- construir igrejas. Graças a um novís- rio nova-iorquino Herald, concorren- se que Locke, com o estilo iné-
gio”; logo, as mutações que afectarão simo procedimento óptico (descrito te do The Sun, não acreditou na des- dito, e Bennett, com a designa-
a sociedade poderão ser calculadas ao detalhe), que permitia a magnifi- coberta e iniciou uma campanha para ção que lhe deu, foram os pais
pelo estudo do “reservatório de sin- cação das imagens telescopiadas sem que Richard Adams Locke (editor do remotos da ficção científica.
tomas”. que perdessem definição, Herschel The Sun) assumisse a autoria das es- Locke atreveu-se a imaginar

O Metal é uma
Nas primeiras décadas do século desvendava que o homem não esta- pantosas “notícias”. Com efeito, fora sobre a Lua e num precursor
XIX, os Estados Unidos foram de- va sozinho no sistema solar. The Sun, Locke a escrevê-las; e em 1840, numa jornal popular mostrou-nos
sinquietados pelo Segundo Grande criado em 1833 por Benjamin Day, crónica publicada no semanário New como imaginar o século XX.

música fantástica
Despertar: revivalismo religioso, de já revolucionara cabalmente o modo World, assumiu que quisera satirizar Sem Locke talvez não houvesse
natureza arminiana, que quis repor o de fazer jornalismo, ao lançar-se no a crendice com que a ciência, em Verne e Wells e sem os seriados
rigor protestante, perdido em favor mercado em pequeno formato e com particular a astronomia, era pratica- e folhetins do The Sun talvez

(Os deuses antigos


do agnosticismo estimado pelos Pais custo de um penny: foi o primeiro da nas academias, mas, infelizmente, não houvesse fanzines, nem

fantasia e
weblogs. A Lua deu-lhe ainda
oportunidade de usá-la como

não se explicam)
alegoria de uma sociedade sem
escravos, num momento em

Os Pais da Ficção
que Nova Iorque era a cida-
de mais sulista dos estados do por Fernando Ribeiro

realidade
Norte. A especulação fantástica

Científica
podia, afinal de contas, falar de

P
problemas reais.
O período supracitado,
por David Soares cheio de convulsões, prova que
só o fantástico pode salvar a
oderia começar avança destemidamente no nosso país.
por dizer que a Por outro lado, é curioso saber
cultura de tornar-se o epife- primeira coisa que quem curou o preconceito fo-
nómeno subserviente de um que o Metal e o mos nós próprios pelo simples facto
mercado cada vez mais volúvel universo da lite- de o termos anulado ao não lhe dar
Fundadores. Foi um período em que e falsamente personalizado. É ratura fantástica nenhuma importância. Os jovens que
ninguém compreendera o ponto de olhando para a Lua, domínio
a ciência manteve a orientação de que vista. O seu único trabalho ficou co- têm em comum se iniciam agora no fantástico, os que
deveria glorificar o desígnio de Deus. argênteo da Imaginação, que é o preconcei- lá permanecem há já vários anos, dei-
nhecido como Grande Embuste da Lua. se pode observar sem cegueira
Entre os astrónomos americanos e Foi o “reservatório de sintomas” to. Estaria, todavia, a desperdiçar xaram simplesmente de tentar ensinar
europeus, a maioria era composta por a luz do Sol, radiância dourada uma oportunidade de revelar ce- as cores aos cegos. Não devemos jus-
da época, recheado com a crença da Obra.
teólogos crentes num pluralismo cós- na Lua habitada e a exuberância da nários bem mais felizes que unem tificação a ninguém e em boa hora o
mico teísta (como William Herschel, Fantasiando, planeia-se o estes estilo de vida de uma forma espírito desesperado/missionário dos
emergente imprensa popular, que
descobridor de Úrano e da radiação futuro. BANG! reveladora e inequívoca. Correria anos Oitenta e Noventa se transfor-
serviu de placenta ao desenvolvimen-
infra-vermelha), sob o qual o univer- to de um inédito género literário que também o risco de cair no vício da mou numa saudável convivência com
so era populado por raças tementes a iria aperfeiçoar-se no início do século lamentação, ao qual todos nós ce- aquilo que gostamos e do qual os ou-
Deus. Reverendos astrónomos, como seguinte. No dia 3 de Setembro de demos durante estes anos todos a tros não gostam. Vive-se e trabalha-se
Thomas Dick, acreditavam que a Lua 1835, Bennett escreveu no Herald um tentar explicar a nossa atracção e muito bem para um nicho e tal como
era habitada por uma civilização isen- artigo intitulado A New Species of Li- devoção a um ou ao outro, ou aos um amigo meu, pouco dado à fantasia
ta de pecado (Dick até calculou que terature: nessas linhas, cunhou o estilo dois, como é o meu caso pessoal e, mas bastante dado às tecnologias (que
ela perfazia o número de 4,2 mil mi- de Locke como sendo «scientific novel». felizmente, o de muitos. Não que- tantas vezes a ficção pensou antes da
lhões de indivíduos) e Von Littrow e O seriado foi pioneiro na descrição ro iniciar esta colaboração com a sua compleição, criando arquétipos
Friedrich Gauss arrogaram ser pos- meticulosa de uma tecnologia óptica Bang! construindo, à nossa volta, que se tornariam em objectos da nos-
sível comunicar com os selenitas. A A Lua por inteligentes híbridos especulativa que credibiliza a história esse muro que encobriria a o fei- sa mais pura dependência), me disse
crença no povoamento da Lua foi de humano com morcego, David Soares é autor dos romances “Batalha”, xe de luz, para ser mais sci-fi, que há já muita da nossa gente em posi-
capazes de construir igrejas. do ponto de vista científico: o texto
aceite por todos como provável: fez “O Evangelho do Enforcado”, “Lisboa Triunfan- a simples publicação desta revista ções de liderança e o sucesso das sé-
suspende-nos a descrença porque ci-
parte do “reservatório de sintomas” te” e “A Conspiração dos Antepassados”. A abre ao público português, sempre ries de TV e do cinema inspirado em
ência e ficção se entrosam com har-
desse tempo. revista literária Os Meus Livros considerou-o necessitado de revelação sob pena autores outrora sombrios, desconhe-
monia – e esse cruzamento aparece
Em Agosto de 1835, o jornal «o mais importante autor português de de se afogar no abundante vómito cidos do grande povo (George R. R.
pela primeira vez pela mão de Locke,
nova-iorquino The Sun publicou uma literatura fantástica». cultural e musical que prolifera e Martin como exemplo mais recente),

6 /// BANG! BANG! /// 7


enciclopédia
legitimam o crescimento sem cedên-
cias do fantástico.
Os Iron Maiden serão, muito pro-
vavelmente, a melhor banda de Heavy

da história
Metal do mundo. No Metal há sem-
pre disputas pelo título, mas os Mai-
den são eles próprios uma espécie de
origem visual, estética, poética e ter-
ritorial do estilo. Muitas das escalas,
melodias, penteados, roupas e líricas

universal
das bandas que os seguiram radicam
com profundidade na banda Inglesa
que fez a curva de todas as gerações,
apresentando-se, hoje em dia, peran-
te um público de todas as idades, in-
fluenciando fornadas futuras de ban-
das, escritores e leitores.
Com uma ligação sólida e natu-
ral à literatura (consubstanciada pela

(O) Artefacto voador de Tristan de Sapincourt


obra magna The ryhme of the ancient
mariner/A rima do antigo Marinheiro, es-
crita por S. T. Coleridge e que marca o
início do Romantismo Inglês, imorta-
lizada no disco de 1984 Powerslave) os
por Afonso Cruz
Maiden tiveram o condão de pôr mi-

S
lhares a saber de cor extensas partes
deste poema, conseguindo, pelo talen-
to do seu Metal, o que a maior parte egundo o livro “Via-
dos programas absurdos de educação, Todo o ambiente da capa gem à Lua e Mais
procura recriar o filme de Ridley Scott,
pensada por tecnocratas durante férias Blade Runner Além”, de Tristan de
caribenhas pagas pelos contribuintes, Sapincourt, o artefacto
não conseguiram. voador – que o próprio
Tardis da série original do Dr.Who; a bandas que eles formaram no passado,
A ligação com o fantástico atinge o autor alegadamente
Fundação Asimov. Para rematar, um ou que dão hoje os primeiros passos,
pleno visual no disco Somewhere in time construiu – baseava-se
dos temas deste disco tem por títu- irão aproveitar a sua cultura fantásti-
(1986), outra obra-prima reverenciada num aparelho criado
lo Strange in a Stranger Land, segundo ca para cunhar outros clássicos. Em
por milhares em todo o mundo, e que por Burattini e que veio a servir, anos
os Maiden sem relação ao clássico de retorno, o Heavy Metal na sua versão
é um verdadeiro festim de referências mais tarde, de inspiração a uma das in-
Robert Heinlein (1961), publicado mais clássica, com ramificações no
explícitas ao gosto e influências fan- venções de Cyrano de Bergerac. Funcio-
em Portugal em três volumes na mí- folk, no épico também já constitui a
tásticas de todos os artistas visuais e nava a explosões, cada uma impulsionan-
tica Colecção Argonauta, dos Livros banda sonora de muitas séries ou fil-
músicos envolvidos na feitura deste do o aparelho (com formato de gafanho-
do Brasil. Como diria Cervantes: “no mes do domínio do fantástico.
disco. to) cada vez mais para o alto, em direcção
creo en las brujas, pêro que las hay, las É esta relação de grande qualidade
Comecemos pela capa: ao espaço, às estrelas mais distantes. O
hay...” envolvendo autores tão díspares como
Mais uma vez, Derek Riggs, cria- principal ingrediente do combustível era
Outra coisa em comum ao mun- Tolkien ou Orwell e bandas como Me-
dor da mascote imortal dos Maiden, sal petrae. Quando se gastavam as reser-
do do Fantástico e do Metal é a sua tallica (Lovecraft) ou Ulver (William
o infame Eddie, foi comissionado vas, Tristan de Sapincourt apanhava o
intricada infinitude. Os metaleiros são Blake) que vos convido a descobrir.
para fazer a capa deste disco. Derek orvalho da fuselagem e extraía mais sais
encheu-a de pormenores que fazem
leitores ávidos de ficção fantástica e as BANG!
dessa água. Todos os dias, antes de o Sol
as delícias de qualquer leitor do fan- nascer, estendia lençóis sobre o metal da
tástico e é uma verdadeira aventura nave para que estes se encharcassem de
descobri-las e reconhecê-las: orvalho. Depois espremia os panos, tal
Todo o ambiente da capa procura como indica o Mutus Liber, e extraía os
recriar o filme de Ridley Scott, Blade nitratos que serviam de explosivos para a
Runner (1982). O cinema da cidade sua nave metálica.
da capa chama-se Philip K. Dick Ci- Tristan de Sapincourt viajou, segun-
nema numa referência ao autor cujo do afirmou o próprio, até à Lua no ano
livro (Do Androids dream of electric she- de 1613, tendo descoberto, numa das
ep?, 1968) inspirou o filme de Ridley. Fernando Ribeiro é vocalista e letrista da banda Moonspell, com a qual já lançou vários crateras, a máquina voadora de Arquitas,
As referências espalham-se por toda discos, e em 2009 participou no projecto Amália. Tem três livros de poesia publicados que tinha forma de pomba. A madeira
a gravura e as ligações estabelecem- Galileu quer
e, no universo lovecraftiano, traduziu para português a biografia em banda desenhada mantinha-se intacta. Tristan admirou despovoar
se, invocando a ponte entre o ima- intitulada “Lovecraft”, assinou as introduções das antologias “Os Melhores contos de aquele pássaro do pitagórico de Terento e o universo
ginário de Blade Runner e as influên- H. P. Lovecraft” e participou nas antologias “As Sombras Sobre Lisboa” e “Contos de caminhou uns metros sem ver ninguém. e fazer dele
cias da banda comuns às do cineasta: um deserto
Terror do Homem-Peixe”. Em 2011, publicou ficção na colecção Mitos Urbanos da editora Ao cabo de algumas milhas, no meio de de fórmulas
Ray Bradbury (Bradbury Towers); o Gailivro. um bosque, avistou os mortos, tal qual matemáticas

8 /// BANG! BANG! /// 9


C H A I S E LON G U E
http://girlinchaiselongue.blogspot.com/
acreditavam os Antigos. Estavam lá os ano todo, sempre em hebraico, cada um
platónicos, os neoplatónicos, os pitagó- com o seu sumo filosófico, com o seu ca- ACÁCIA - VENTOS DO NORTE
ricos, os neopitagóricos e muitos outros. roço de verdade. DAV I D A N T H O N Y D U R H A M
Tristan de Sapincourt conversou com Num dos planetas mais longínquos     
eles sobre as parvoíces de Luciano de Sa- vive Pico della Mirandola com toda a sua O mundo de Acácia é
mósata. O divino Platão riu-se muito de soberba. No planeta Saturno, os filósofos apresentado através
alguns capítulos que foram lidos por Crí- são carregados por anjos, que os levam de uma escrita sober-
tias, salientando algumas passagens com ao colo. Segundo Tristan de Sapincourt, ba que enaltece a com-
a sua voz rouca. este planeta possui grandes cidades, mui- plexidade dos povos e
Nas crateras depositavam-se, segun- tas das quais não se vêem a olho nu. culturas criados nestas
do Tristan de Sapincourt , vários artefac- Tristan descreveu ainda o funciona- páginas em que a His-
tos que antes haviam servido para voar mento das enormes lentes montadas em tória se desenrola pe-
no espaço. Um dos mais impressionantes cada um dos sete planetas, que haviam rante os nossos olhos.
era a águia de madeira de Regiomontanus, sido construídas pelos Antigos para Com problemas actuais
a mesma que impressionou o imperador emissão de influências astrológicas. numa espécie de Impé-
Maximiliano I, na cidade de Koenig- Muito criticado por Galileu, tal como rio Antigo, personagens brilhantes e cenários diversos,
sberg. Havia também o carro de fogo de pode ser lido na obra Sidereus Nuncius, esta obra promete-nos acção e intriga num Mundo que
Elias, uma espécie de balão, bem como o Tristan reagiu com desprezo. A obra bem poderia ser o nosso passado. / Patrícia Santos
famoso tapete de Salomão. maior de Galileu acusa Tristan de Sapin-
Da Lua para os outros planetas es- court de ser um fantasista pior do que
tendiam-se cordas metálicas e, sobre elas, Luciano de Samósata – autor de um dos
andavam funâmbulos, para trás e para a primeiros livros de Ficção Científica – ou
G A ME OF T H RON E S P T
frente. Eram aprendizes de Aristóteles, um louco. Tristan, por seu lado, afirmou
http://serie-gameofthrones.blogspot.com/
os peripatéticos do Liceu, que eram obri- que a obra de Galileu não é senão um
gados não só a caminhar, como a con- deserto: «Galileu olha através de um te-
templar o universo enquanto o faziam. lescópio e descreve o que vê. Como se o
AS MENTIRAS DE LOCKE LAMORA
S C OT T LY N C H
Debaixo dos seus pés estava o infinito mundo pudesse ser visto através de um    
como aliás acontece a quase toda a gente telescópio. Qual será o motivo para um Passado na cidade
que tem a coragem de olhar para o abis- homem destes achar que o universo vis- imaginária de Camorr,
mo onde caminha. Concentrados na- to através de lentes de vidro é mais ver- que evoca Veneza de
quele fio de navalha que é a vida sobre o dadeiro do que o universo visto através outros tempos, é um
Nada, sobre o absurdo, pensavam sobre da minha cabeça? Galileu quer despo- livro bem escrito, com
a morte e outras questões filosóficas. voar o universo e fazer dele um deserto diálogos bem-humora-
Numa cratera da face oculta, Tristan de fórmulas matemáticas. Se as pessoas dos, personagens inte-
de Sapincourt descobriu a caixa onde acreditarem nele, em breve viverão num ressantes e um enredo
voava Nimrod. Ainda tinha lanças espe-
tadas. Nessas lanças, o rei da Babilónia
universo vazio, serão uns funâmbulos a
caminhar sobre o absurdo. O meu mun-
dinâmico, que por vezes
sai um pouco prejudica- QUER PARTICIPAR
pendurava carne podre e os abutres que
ali medravam faziam voar a caixa até pla-
do não são apenas umas pedras a girar à
volta do Sol. Se Galileu, um dia, quiser
do pelo tom descritivo
das secções que fazem
a ponte com o passado e ajudam a ambientar o leitor.
NA REVISTA BANG!?
netas distantes. pousar o telescópio, posso mostrar-lhe o
É também na Lua, segundo Tristan, verdadeiro universo que se esconde por Recomendado a quem procura uma leitura diferente
que estava a arca do Princípio, feita de trás dessas pedras.» BANG! dentro do género fantástico. / Célia M. A revista Bang! aceita submissões que
acácia e tendo no seu interior amostras se enquadrem no género fantástico
dos primeiros elementos, no seu estado
mais puro. São quatro pedrinhas absolu- nas categorias de ficção e não-ficção
tamente esféricas, que contêm Ar, Água, (ensaios, críticas literárias, entrevistas).
Fogo e Terra. Quando se juntam for- MOR R I G H A N
mam um pequeno Caos, mais pequeno h t t p : / / b ra n m o r r i g h a n . b l og s p o t .co m/ Os textos deverão ser inéditos,
do que a cabeça de um alfinete, mas que em formato rtf, com limite não
pode conter todo o universo, incluindo ESCRITOS DOS ANCESTRAIS - VOL.1
as estrelas mais distantes e os Diálogos RO D R I G O M c S I LVA superior a 6000 palavras, e podem
   
de Platão. A arca tem ainda um compar- ser enviados para o e-mail
timento especial para um produto cha- É autor dos livros Enciclopédia da Estória Universal Escritos dos Ances-
mado Quadraturin, que é uma espécie de (Quetzal, 2009), A Carne de Deus (Bertrand, 2008) e
trais é uma obra bang@saidadeemergencia.com
que vem refrescar as
verniz de fácil aplicação, responsável pela Os Livros Que Devoraram o Meu Pai (Caminho, 2010
prateleiras do fantástico
expansão do universo. - Prémio Literário Maria Rosa Colaço). Recentemente
português trazendo-nos Artistas também poderão submeter
As paragens seguintes de Tristan publicou A Boneca de Kokoschka (2010) e O Pintor as aventuras de vários
de Sapincourt incluíram os outros seis Debaixo do Lava-Loiças (2011). Além de escrever, povos povos mitológicos portfolios à apreciação da editora.
planetas onde viu inúmeras maravilhas. também é ilustrador, cineasta e músico (compõe e toca (celtas, nórdicos, gre-
Pôde também trepar à Árvore da Vida, na banda de blues/roots The Soaked Lamb). Vive no gos entre outros) num
da tradição judaica, que ainda vegeta num
montículo de Vénus. Tem dez ramos que
campo e tem dois filhos. mundo divido em dois CONTAMOS COM A VOSSA
http://afonso-cruz.blogspot.com gumes, mas cujos prota-
representam as dez sephirot e dá frutos o http://soakedlamb.com gonistas os desejam juntar. Está muito bem elaborado, PARTICIPAÇÃO!
original e a escrita é simples. Sem dúvida muito bom
para amantes de mitologia e não só. / Sofia Teixeira
10 /// BANG! BANG! /// 11
«Quando estás morta,
o
tradução de ana mendes lopes
título original: the specialist's hat

chapéu
a relva que cobre
a tua campa
É mais verde.

do
O vento é mais cortante.
Os teus olhos enterram-se,

especialista
a carne apodrece.
Começas a habituar-te
à lentidão;
esperas os atrasos.»

kelly link
conto vencedor do World Fantasy Award 1999

Q
uando estás Morta – disse Samantha, - não é
preciso lavar os dentes…
- Quando estás Morta – disse Claire, - vives
numa caixa, está sempre escuro, mas nunca tens
medo.
Claire e Samantha eram gémeas idênticas. As suas
idades combinadas somavam vinte anos, quatro me-
ses e seis dias. Claire era melhor a fazer de Morta que
Samantha.
A babysitter bocejou, cobrindo a mão com uma
longa mão branca.
- Eu disse que estava na hora de lavar os dentes e ir
para a cama – respondeu.
Estava sentada de pernas cruzadas sobre a coberta
florida da cama no meio das duas meninas. Tinha
estado a ensinar-lhes um jogo de cartas chamado
Pounce, que envolvia três baralhos de cartas, um para
cada jogadora. O baralho de Samantha não tinha o
Valete de Espadas nem o Duque de Copas e Claire
continuava a fazer batota. Mesmo assim, a babysit-
ter ganhava todos os jogos. Ainda tinha salpicos de
creme de barbear seco e papel higiénico nos braços.
Assim de repente, era difícil dizer que idade tinha –
primeiro pensaram que ela já devia ser crescida, mas
agora parecia ser pouco mais velha que elas. Saman-
tha já se tinha esquecido do nome da babysitter.
O rosto de Claire tinha uma expressão obstinada.
12 /// BANG! BANG! /// 13
- Quando estás Morta – disse – podes podia uma delas vestir-se toda de verde e O senhor Coeslak conseguia distinguir a velho, a fuligem e a humidade, como as miné, no escuro, e ela aceitou o desafio.
ficar acordada a noite toda. a outra toda de cor-de-rosa? as gémeas, mesmo que o pai não o conse- pedras do rio. O ar frio e húmido fustigou-lhe o rosto e
- Quando estás Morta – ri- Claire e Samantha gostavam mais de guisse fazer; os olhos de Claire eram cin- O quarto delas fora outrora um berçá- quase parecia ouvir vozes a falar baixinho,
postou a babysitter com rispidez brincar dentro de casa. A Oito Chami- zentos, como o pêlo dos gatos, dizia, mas rio. Dormiam juntas numa cama de dos- a murmurar. Não conseguia entender
– tudo é muito frio e húmido e nés era tão grande como um castelo, mas os de Samantha eram cinzentos como o sel que se assemelhava a um navio com muito bem o que elas diziam.
tens de estar muito, mas mesmo muito mais empoeirada e escura do que oceano, quando chovia. quatro mastros. Cheirava a bolas de naf- O pai ignorara Claire e Samantha quase
muito, quieta senão o Especialis- como Samantha imaginava que um cas- No segundo dia que passaram nas talina e Claire dava pontapés à irmã en- inteiramente desde que elas chegaram a
ta vem buscar-te. telo seria. Havia mais sofás, mas pastori- Oito Chaminés, Samantha e Claire foram quanto dormia. Charles Cheatham Rash Oito Chaminés. Ele nunca falava da mãe
- Esta casa está assombrada – disse nhas de porcelana com os dedos lascados, passear para a floresta. E viram qualquer dormira ali quando era pequeno, assim delas. Uma certa noite ouviram-no gritar
Claire. menos armaduras. E não havia fosso. coisa. Samantha pensou tratar-se de uma como a sua filha. Ela desapareceu ao mes- na biblioteca e quando desceram as esca-
- Eu sei que está – respondeu a babysit- A casa estava aberta ao público e, du- mulher, mas Claire disse que era uma co- mo tempo que o pai. Talvez tivesse algo das, havia uma grande mancha pegajosa
ter. – Eu costumava viver aqui. rante o dia, as pessoas e famílias que pas- bra. A escadaria que dava acesso ao sótão que ver com as dívidas do jogo. Podiam no tampo da secretária, onde um copo de
savam pela Alameda Blue Ridge paravam foi fechada à chave. Espreitaram pelo bu- ter-se mudado para Nova Orleães. O se- uísque tinha sido derrubado.
para visitar os jardins e o primeiro andar; raco da fechadura, mas estava demasiado nhor Coeslak disse que ela tinha catorze - Estava a olhar para mim - disse ele -
Alguma coisa o terceiro andar pertencia a Claire e Sa- escuro para verem o que quer que fosse. anos. Claire perguntou como se chamava através da janela. Tinha olhos alaranjados.
mantha. Por vezes brincavam aos explo- a rapariga. Samantha queria saber o que Samantha e Claire conseguiram impe-
está a subir as escadas, radores, outras vezes seguiam o caseiro Assim, ele tinha uma mulher e di- aconteceu com a mãe dela. O senhor Co- dir-se de mencionar que a biblioteca fica-
Alguma coisa enquanto ele fazia as visitas guiadas aos
turistas. Ao fim de algumas semanas já ti-
ziam que era realmente bonita. Ha-
via outro homem que queria ir com
eslak fechou os olhos, quase piscando-os.
A senhora Rash morrera um ano antes
va no segundo andar.
À noite, o hálito do pai estava adocica-
está atrás da porta, nham memorizado o discurso dele e iam ela; inicialmente ela não quis, porque de o marido e a filha desaparecerem, de do pela bebida; ele passava cada vez mais
fazendo os gestos com a boca enquanto tinha medo do marido, mas depois uma doença misteriosamente debilitante. tempo na floresta e menos tempo na
Alguma coisa ele falava. Ajudavam-no a vender postais foi. O marido descobriu e dizem que Não se conseguia recordar do nome da biblioteca. Ao jantar, que consistia nor-
e cópias dos poemas de Rash às famílias matou uma cobra, arranjou um pouco pobre menina, disse. malmente de cachorros quentes e feijão
está a chorar, de turistas que entravam na pequena loja do sangue dela e colocou-o num copo A casa Oito Chaminés tinha exacta- cozido em lata, comidos em pratos de
de lembranças. de uísque que ofereceu à mulher. Ti- mente cem janelas, todas ainda com os papel na sala de jantar do primeiro andar,
a chorar no escuro; Quando as mães lhes sorriam e lhes di- nha aprendido isto com um ilhéu que vidros ondulantes originais soprados pe- por baixo do lustre austríaco (que tinha
Alguma coisa ziam como eram queridas, as gémeas de-
volviam o olhar, mas não diziam nada. A
andara com ele num barco. Cerca de
seis meses depois, as cobras criaram-se
los artesãos. Samantha pensava que, com
tantas janelas, Oito Chaminés devia estar
exatamente 632 cristais com chumbo na
forma de lágrimas), o pai recitava poesia
está a suspirar no outro luz débil da casa fazia as mães parecerem no interior da mulher e começaram a sempre inundada de luz, mas ao invés de Charles Cheatham Rash, que nem Sa-
pálidas, frágeis e cansadas. Quando saíam sair por entre a carne e a pele dela. disso, as árvores amontoavam-se muito mantha nem Claire apreciavam.
lado do quarto. das Oito Chaminés, as mães e as famílias Dizem que se conseguia ver as cobras perto da casa, por isso as salas do primei- O pai andava a ler os diários de bordo
já não pareciam tão reais como antes de a serpentear para cima e para baixo ro, segundo e até do terceiro andar eram que Rash mantivera e disse que desco-
Claire e Samantha estavam a passar pagarem o bilhete de entrada, e como era nas suas pernas. Dizem que ela ficou verdes e sombrias, como se Samantha e briu provas de como o poema mais fa-
o verão com o pai, numa casa cha- óbvio que Claire e Samantha nunca mais com o corpo todo oco e assim conti- Claire vivessem nas profundezas do oce- moso de Rash, “O Chapéu do Especia-
mada Oito Chaminés. A mãe delas já os voltariam a ver, talvez eles não fossem nuou até morrer. Pois o meu papá diz ano. Era esta luz que fazia com que os tu- lista”, não era um poema e nem sequer
morreu. Estava morta há exactamente mesmo reais. Era melhor ficarem dentro que a viu. ristas parecessem fantasmas. De manhã fora escrito por Rash. Era uma coisa
282 dias. de casa, queriam dizer às famílias, e se ti- - História Oral e depois novamente à tarde, instalava-se que um dos homens do baleeiro cos-
O pai das meninas estava a escrever verem de sair, então que vão directamente das Oito Chaminés um nevoeiro em redor da casa. Por vezes tumava dizer, para conjurar as baleias.
a história das Oito Chaminés e a do po- para os carros. era cinzento como os olhos de Claire e Rash limitou-se a copiá-lo, a arranjar-lhe
eta Charles Cheatham Rash, que viveu O caseiro dizia que a floresta não era A casa Oito Chaminés tinha mais de outras vezes era cinzento como os olhos um final e a dizer que era da sua autoria.
naquela casa por alturas da viragem do segura. duzentos anos. Recebera o nome devido de Samantha. O homem era de Mulatuppu, que era
século; Charles fugiu para o mar quan- O pai ficava na biblioteca do segundo às oito chaminés que tinha, cada uma de- um lugar que nem Samantha nem Claire
do tinha treze anos e regressou quando andar durante toda a manhã, a escrever, las suficientemente grande para que Sa- nunca tinham ouvido falar. O pai disse
tinha trinta e oito. Casou, teve um filho,
escreveu três volumes de poesia obscu-
e à tarde dava grandes passeios. Levava
com ele um pequeno gravador portátil
mantha e Claire coubessem ambas numa
única lareira. As chaminés eram feitas de
Conheci uma mulher na floresta, que o homem era tido como uma espé-
cie de feiticeiro, mas afogou-se pouco
ra e de má qualidade, escreveu até um
romance ainda mais fraco e tenebroso,
e uma garrafa de bolso com Gentleman
Jack, mas nunca levava Samantha e Claire.
tijolo vermelho e em cada andar da casa
existiam oito lareiras, o que perfazia um Os seus lábios eram tempo antes de Rash regressar à casa
Oito Chaminés. O pai contou que os
Aquele Que Me Observa Através da Janela, O caseiro das Oito Chaminés era o se- total de vinte e quatro. Samantha imagina- restantes marinheiros queriam deitar a
antes de voltar a desaparecer em 1907,
desta vez para sempre. O pai de Saman-
nhor Coeslak. A sua perna esquerda era
notoriamente mais curta que a direita.
va as chaminés a estender-se como robus-
tos troncos vermelhos de árvores, bem
duas serpentes vermelhas. arca do feiticeiro borda fora, mas Rash
convenceu-os a deixarem-no ficar com
tha e Claire dizia que alguma da poesia
até se conseguia ler e que pelo menos o
romance não era muito grande.
Usava um daqueles sapatos com tacão.
Cabelos curtos e negros cresciam-lhe nos
ouvidos e no nariz embora no cimo da
até ao cimo através do telhado de lousa
da casa. Ao lado de cada lareira havia um
suporte de troncos, pesado e negro, e um
Ela sorriu-me, ela até que pudesse desembarcar, junta-
mente com a arca, na costa da Carolina
do Norte.
Quando Samantha lhe perguntou por
que motivo estava a escrever sobre Rash,
cabeça não tivesse um único cabelo, mas
deu autorização a Samantha e Claire para
conjunto de instrumentos de ferro for-
jado para atiçar o fogo, com a forma de
os seus olhos eram lascivos
o pai respondeu que ainda ninguém o explorarem a casa toda. Foi o senhor cobra. Claire e Samantha faziam de conta O chapéu do especialista
tinha feito e disse-lhe que fosse brincar
com Samantha para a rua. Quando a me-
Coeslak quem disse às gémeas que na
floresta existiam cobras venenosas e que
que lutavam com os atiçadores-cobra em
frente à lareira do seu quarto, no terceiro
E queimavam como fogo. faz um barulho
nina esclareceu que era a Samantha, o pai
franziu o sobrolho e perguntou como de-
a casa era assombrada. Disse que eram
todos, cobras e fantasmas, um bando de
andar. O vento elevava-se na parte de trás
da chaminé. Quando as gémeas enfiavam Há algumas noites uma brisa suspirava
como uma cutia;
via ele saber quem era quem quando an- mal-humorados e que Samantha e Claire as cabeças na lareira, conseguiam sentir o na chaminé do berçário. O pai já as tinha O chapéu do especialista
davam as duas vestidas de calças de ganga deviam manter-se nos trilhos marcados e ar húmido a elevar-se até lá cima, como se ido aconchegar e desligar a luz. Claire de-
e camisas de flanela e por que razão não longe do sótão. fosse um rio. O cano da chaminé cheirava safiou Samantha a enfiar a cabeça na cha- faz um barulho
14 /// BANG! BANG! /// 15
como um javali; precisava de conversar um pouco com
outros adultos.
o que lhes apetece. Até podem voar, sal-
tando da cama do berçário e agitando os
um metrónomo. O atacador do sapa-
to de Claire estava desatado e tinha um
era qualquer coisa como feno seco, Cha-
nel Nº 5 e algo mais. Não se recordava
O chapéu do especialista O senhor Coeslak não ficava na casa braços. Se praticassem bastante, um dia penso rápido no tornozelo. De dentro da se a mãe tinha os olhos cinzentos como
depois de escurecer, mas concordou em haviam de conseguir. chaminé, tudo parecia muito agradável e os dela, ou cinzentos como os de Claire.
faz um barulho encontrar alguém para ficar com Sa- O jogo da Morta tinha três regras. pacífico, como um sonho e por instantes Já não sonhava com a mãe, mas sonhava
mantha e Claire. Depois, o pai não con- Primeira: os números são significativos. quase desejou não ter de estar Morta. Mas com o Príncipe Encantado, um baio que
como um porco-bravo; seguia encontrar o senhor Coeslak, mas As gémeas mantinham uma lista de nú- a verdade era que assim era mais seguro. montou em certa ocasião, numa exibição
a babysitter apareceu em casa às sete meros importantes num caderno de en- Levantou a mão esquerda tão alto de cavalos no acampamento. No seu so-
O chapéu do especialista em ponto. A babysitter, cujo nome ne- dereços verde que pertencera à sua mãe. quanto possível ao longo da parede ru- nho, o Príncipe Encantado não cheirava
faz um barulho nhuma das gémeas conseguiu apanhar,
usava um vestido de algodão azul com
As visitas guiadas do senhor Coeslak eram
uma boa fonte de quantidades e registos
gosa, até que sentiu um entalhe. Pensou
em aranhas, dedos cortados e lâminas
nada como os cavalos. Cheirava a Chanel
Nº 5. Quando estava Morta, podia ter to-
como um tapir; mangas esvoaçantes. Samantha e Claire significativos: estavam por isso, a escrever ferrugentas, mas depois enfiou a mão no dos os cavalos que queria e todos cheira-
acharam que ela era bonita de um modo uma história trágica dos números. orifício. Manteve os olhos baixos, focados vam a Chanel Nº 5.
O chapéu do especialista um pouco antiquado. Segunda: as gémeas não jogavam o no cantinho do quarto e no pé agitado de - De que fechadura é esta chave? – Per-
Estavam na biblioteca com o pai, à jogo da Morta em frente aos adultos. Ti- Claire. guntou Samantha.
faz um barulho como um procura de Mulatuppu no atlas de capas nham estado a avaliar a babysitter e de- No interior do buraco estava uma cha- A babysitter estendeu a mão.
de couro vermelho, quando ela chegou. cidiram que ela não contava. Puseram-na ve minúscula e fria, com os dentes vira- - Da porta do sótão. Na verdade, não
coelho; Não bateu na porta da frente, limitou-se ao corrente das regras. dos para fora. Samantha tirou-a e baixou- precisamos dela, mas é mais fácil ir pelas
O chapéu do especialista a entrar e a subir as escadas, como se
soubesse onde os ia encontrar.
A terceira era a regra mais importante.
Quando se está Morta, não é preciso ter
se para regressar ao quarto.
- Ela não estava a mentir – disse Claire.
escadas do que pela chaminé. Pelo menos
da primeira vez.
faz um barulho O pai deu-lhes um beijo de boa noite, medo de nada. Samantha e Claire não sa- - Claro que não estava a mentir – res- - Não nos vais obrigar a ir para a cama?
uma beijoca rápida, disse-lhes para se biam muito bem quem era o Especialista, pondeu a babysitter. – Quando estás – Perguntou Claire.
como um esquilo; portarem bem e que no fim-de-semana mas não tinham medo dele. Morta, não podes dizer mentiras. A babysitter ignorou-a.
ia levá-las à cidade para verem o filme da Para se tornarem Mortas, sustinham - A não ser que queiras fazê-lo – disse - O meu pai costumava fechar-me no
O chapéu do especialista Disney. As gémeas foram para a janela a respiração enquanto contavam até 35, Claire. sótão quando eu era pequena, mas eu não
para o observarem a entrar na floresta. que era a idade que a mãe tinha quando me importava. Havia lá uma bicicleta e eu
faz um barulho Já estava a ficar escuro e os pirilampos morreu, isto sem contar com alguns dias. andava nela, contornando as chaminés,
como um alector; já voavam, minúsculas fagulhas amare-
las vivas que pairavam no ar. Ela ergueu
- Tu nunca viveste aqui – disse Claire. –
O senhor Coeslak vive aqui.
Desolador e terrível até a minha mãe me deixar sair outra vez.
Vocês sabem andar de bicicleta?
O chapéu do especialista o sobrolho.
- Muito bem – disse. – Que tipo de jo-
- À noite não – respondeu a babysitter.
– Quando era pequena, este era o meu bate o mar contra o cais. - Claro – respondeu Claire.
- Se andarem suficientemente depressa,
geme como gos gostam de jogar? quarto. o Chapéu do Especialista não vos conse-

uma baleia na água;


- A sério? – Perguntou Samantha.
- Prova-o – desafiou Claire.
Sinistra e gotejante gue apanhar.
- O que é o Especialista? – Perguntou
Correrias em redor
O chapéu do especialista
das chaminés,
A babysitter olhou para Samantha e
para Claire, como se estivesse a tirar- é a neblina que está à porta. Samantha.
As bicicletas não eram más, mas os ca-
geme como o vento lhes as medidas: que idade tinham, quão valos conseguiam andar mais depressa.

no cabelo da minha mulher;


Uma vez, duas vezes, espertas, corajosas e altas eram. Depois
acenou com a cabeça. O vento soprava
O relógio da parede bate a uma, - O Especialista usa um chapéu – res-
pondeu a babysitter. – O chapéu faz ba-
outra vez. pelo tubo da chaminé e sob a luz difusa rulhos.
O chapéu do especialista
Os raios estalam na
do berçário conseguiam ver os fiapos lei-
tosos do nevoeiro que saía da lareira.
as duas, as três, as quatro. E não disse mais nada.

faz um barulho
como uma cobra;
bicicleta como o relógio;
- Coloquem-se de pé dentro da chami-
né – instruiu-as. – Estiquem a cabeça o A manhã não chega, não, nunca, Quando estás morta,
mais que forem capazes e vão encontrar
Contam os dias que faltam a relva que cobre a tua
Pendurei o chapéu
na vida de um homem.
um pequeno orifício do lado esquerdo,
com uma chave lá dentro.
nunca mais. campa
do especialista Samantha olhou para Claire, que disse: Samantha e Claire iam acampar todos
Primeiro jogaram à Pesca, a seguir aos - Vai lá. os verãos durante três semanas desde É mais verde.
na minha parede. Oitos Loucos, depois transformaram a Claire era quinze minutos e alguns se- que completaram sete anos. Este ano, o
babysitter numa múmia colocando creme gundos não contabilizados mais velha pai não lhes perguntou se queriam ir e, O vento é mais cortante.
O motivo pelo qual Claire e Saman- que Samantha, por isso podia dizer-lhe o depois de discutirem o assunto, decidi-
tha tinham uma babysitter era porque o
de barbear do pai nos braços e pernas e
envolvendo-a depois em papel higiénico. que fazer. Samantha recordou-se das vo- ram que era melhor assim. Não queriam Os teus olhos enterram-se,
pai conhecera uma mulher na floresta. zes que murmuravam, mas depois lem- ser obrigadas a explicar a todos os ami-
Ia encontrar-se com ela naquela noite,
Era a melhor babysitter que alguma vez
brou-se que estava Morta. Aproximou-se gos que agora eram parcialmente órfãs. a carne apodrece. Começas
tiveram.
para fazerem um jantar piquenique e
admirarem as estrelas. Era naquela altu-
Às nove e meia tentou deitá-las. Nem da lareira e baixou-se para entrar lá para
dentro.
Estavam habituadas a serem motivo de
inveja, por serem gémeas idênticas. Não
A habituar-te à lentidão;
Claire nem Samantha queriam ir para a
ra do ano que as chuvas de meteoritos cama, por isso começaram a jogar o jogo Quando Samantha se levantou no in- queriam agora ser alvo da pena dos ou- esperas os atrasos.
se podiam observar a cair através do da Morta. O jogo da Morta era um jogo terior da chaminé, só conseguia ver um tros.
céu, nas noites claras. O pai disse-lhes de faz de conta que jogavam há já 274 cantinho do quarto. Conseguia ver as Ainda nem se tinha passado um ano O sótão era de alguma forma maior e
que passeava com a mulher todas as tar- dias consecutivos, mas nunca em fren- franjas do tapete azul puído, uma perna mas Samantha apercebera-se que estava a mais solitário do que Samantha e Claire
des. Era uma parente afastada de Rash te do pai ou de qualquer outro adulto. da cama e, ao lado dela, o pé de Claire, esquecer-se de como era a mãe. Não tan- julgavam. A chave da babysitter abriu
e além disso, disse o pai, ele também Quando estão Mortas, podem fazer tudo a balançar para a frente e para trás como to do seu rosto, mas do seu cheiro, que a porta fechada ao fundo do corredor,

16 /// BANG! BANG! /// 17


revelando um lanço estreito de escadas. sem ter um cavalo, mas também não tinha a tinha mordido. se o deitássemos de lado, parecia uma silenciosamente. Foram atrás dela. Sem
Fez-lhes sinal para que avançassem e su- mãe e não conseguia deixar de pensar se Claire desmontou, a rir. Samantha fi- cobra enroscada com a cauda na boca. falar, sem respirar, puxou-as para a se-
bissem. a culpa seria sua. O chapéu voltou a relin- cou a observar à medida que o chapéu do Era mais ou menos esta a diferença entre gurança da chaminé. Estava demasiado
O sótão não era tão escuro como ima- char, ou talvez fosse o vento na chaminé. Especialista rebolava pelo chão. Ganhou estar Morta e estar morta. Talvez quan- escuro para verem, mas perceberam per-
ginavam. Os carvalhos que bloqueavam a - O que lhe aconteceu? – perguntou velocidade, guinando através do chão do do Samantha se cansasse de uma pudesse feitamente a babysitter quando esta lhes
luz e tornavam os três primeiros andares Claire. sótão até que desapareceu, descendo as tentar a outra. disse sem som, Subam. Subiu primeiro
tão sombrios, verdes e misteriosos duran- - Depois de ele ter feito o chapéu, o escadas. No relvado, por baixo dos carvalhos, para as gémeas verem onde estavam os
te o dia, não chegavam até ali acima. O Especialista veio e levou-o com ele. Eu - Vai apanhá-lo – disse Claire. – Desta ouviu alguém a chamar o seu nome. Sa- apoios para os dedos e os tijolos que esta-
luar extravagante, empoeirado e pálido, escondi-me na chaminé do berçário en- vez podes ser tu o Especialista. mantha desceu da cama e foi até à janela vam salientes para que apoiassem os pés.
entrava em raios através das janelas salien- quanto o Especialista andava à procura - Não – disse a babysitter, sugando a do berçário. Olhou através do vidro on- A seguir foi a vez de Claire. Samantha ob-
tes do telhado. Iluminava toda a extensão dele, mas a mim não me encontrou. palma da mão. – Está na hora de ir para dulado. Era o senhor Coeslak. servou o pé da irmã a subir como fumo,
do sótão, que tinha comprimento sufi- - E não tiveste medo? a cama. - Samantha, Claire! – Chamou na direc- com o atacador ainda desatado.
ciente para conter um campo de softbol, Ouviu-se um estrépito, um tremor, um Quando desceram as escadas, não havia ção dela. – Estão bem? O vosso pai está - Claire? Samantha? Caramba, estão a
ladeado por baús onde Samantha ima- ruído seco. Claire encontrou a bicicleta da sinais do chapéu do Especialista. Lavaram aí? assustar-me. Onde estão? – O Especialis-
ginou que as pessoas se podiam sentar, babysitter e estava a trazê-la em direcção a os dentes, subiram para a cama em forma Samantha quase conseguia ver o luar a ta estava mesmo do lado de fora da porta
esconder ou observar. O tecto era incli- elas, pelo guiador. A babysitter encolheu de barco e puxaram os cobertores até ao brilhar através dele. entreaberta. – Samantha? Acho que fui
nado, empalado pelas oito colunas gros- os ombros. pescoço. A babysitter sentou-se no meio - Estão sempre a fechar-me na casa das mordido por qualquer coisa. Acho que fui
sas das chaminés. De alguma forma, as - Regra número três – disse. dos pés de ambas. ferramentas. Malditas coisas fantasmagó- mordido por uma maldita cobra.
chaminés pareciam demasiado vivas para Claire arrancou o chapéu do prego. - Quando estás Morta – perguntou Sa- ricas – disse. – Estão aí, Samantha, Claire? Samantha ainda hesitou, mas apenas
estarem contidas naquele espaço vazio e - Eu sou o Especialista! – Exclamou, mantha, - continuas a ficar cansada e a ter Meninas? por um segundo. Depois subiu, subiu,
negligenciado; embatiam quase com fúria colocando o chapéu na cabeça. de dormir? Continuas a sonhar? A babysitter aproximou-se e colocou-se subiu, pela chaminé do berçário. BANG!
pelo telhado e chão do sótão. Sob o luar, O chapéu caiu-lhe por cima dos olhos, - Quando estás Morta – disse a babysit- ao lado de Samantha. Depois levou um
pareciam respirar. com a aba mole e sem forma cosida com ter, - tudo é bastante mais fácil. Não pre- dedo aos lábios. Os olhos de Claire bri-
- São tão bonitas – disse ela. pequenos botões assimétricos que apa- cisas de fazer nada que não queiras fazer. lhavam na direcção delas, a partir da cama
- Qual destas chaminés é a do berçário? nhavam e reflectiam o luar como dentes. Não precisas de ter um nome, não preci- escura. Samantha não disse nada, mas
– Perguntou Claire. Samantha olhou novamente e viu que sas de te recordar de nada. Nem sequer acenou ao senhor Coeslak. A babysitter
A babysitter apontou para o aglomera- eram realmente dentes. Sem os contar, precisas de respirar. também acenou. Talvez ele as tivesse vis- O conto The Specialist’s Hat de Kelly Link
do mais próximo à sua direita. soube de imediato que eram exactamente E mostrou-lhes exactamente o que que- to a acenar, porque pouco tempo depois, está protegido por uma licença da Creative
- É aquela – respondeu. – Passa pelo cinquenta e dois dentes e que pertence- ria dizer. deixou de as chamar e foi-se embora. Commons Attribution-NonCommercial-
salão de baile no primeiro andar, pela bi- ram às cutias, aléctores, porcos-bravos e - Tenham cuidado – avisou a babysit- ShareAlike 2.5 Portugal License.
blioteca e pelo berçário. à mulher de Charles Cheatham Rash. As Quando tinha tempo para pensar sobre ter. – Ele vai regressar. Aquilo vai voltar http://creativecommons.org/licenses/
Pendurado num prego na chaminé do chaminés gemiam e a voz de Claire troava o assunto (e agora tinha todo o tempo do em breve. by-nc-sa/2.5/pt/
berçário estava um longo objecto preto. Ti- surdamente por baixo do chapéu. mundo para pensar), Samantha percebia Pegou na mão de Samantha e levou-a
nha um aspeto amolgado e pesado, como - Fujam ou vou apanhar-vos! Vou de- com uma pequena pontada que estava de volta para a cama, onde Claire estava à
se estivesse cheio de coisas. A babysitter vorar-vos! indefinidamente presa entre os dez e os espera. Sentaram-se e esperaram. O tem-
tirou-o e revirou-o por entre os dedos. O Samantha e a babysitter fugiram, rindo onze anos de idade; presa juntamente po passou, mas elas não ficaram cansadas,
objecto preto tinha buracos e assobiava la- enquanto Claire montou a bicicleta enfer- com Claire e com a babysitter. Pensou nem envelheceram.
mentosamente enquanto ela o virava. rujada e barulhenta e pedalou loucamente sobre isto. O número dez era agradável e
- O chapéu do Especialista – anunciou. na direcção delas. Enquanto pedalava, to- redondo, como uma bola de praia, mas ao
- Isso não se parece com um chapéu –
disse Claire. – Não se parece com nada de
cou a campainha da bicicleta e o chapéu
do Especialista saltitava para cima e para
fim e ao cabo, não tinha sido um ano fácil.
Questionava-se como seria ter onze anos. Quem está aí?
nada. – Decidiu-se a passar uma vista de baixo na sua cabeça. Bufava como um Um pouco mais difícil, talvez. Em vez
olhos às caixas e baús que estavam empi-
lhados contra a parede do fundo.
gato. A campainha era estridente e aguda
e a bicicleta queixava-se e gritava. Curva-
disso, escolheu estar Morta. Desejava ter
tomado a decisão acertada. Questionava-
Apenas o ar.
- É um chapéu especial – disse a baby- va primeiro para a direita e depois para a se se a mãe teria decidido estar Morta, em A porta do primeiro andar abriu-se e
sitter. – Não deve parecer-se com nada. esquerda. Os joelhos ossudos de Claire vez de morta, se pudesse ter escolhido. Samantha, Claire e a babysitter ouviram
Mas é capaz de soar como qualquer coisa espetavam-se ora a um lado, ora a outro No ano anterior, quando a mãe mor- alguém a rastejar, a rastejar pelas escadas.
que possas imaginar. Foi o meu pai quem como contrapesos improvisados. reu, tinham aprendido as fracções na es- - Silêncio – disse a babysitter. – É o Es-
o fez. Claire serpenteava por entre as chami- cola. As fracções traziam à lembrança de pecialista.
- O nosso pai escreve livros – disse Sa- nés, perseguindo Samantha e a babysit- Samantha manadas de cavalos selvagens, Samantha e Claire ficaram caladas. O
mantha. ter. Samantha era lenta, porque se virava pigarços, pintos e palominos. Havia tan- berçário estava escuro e o vento crepitava
- O meu pai também escrevia. – A ba- para olhar para trás. À medida que Claire tos tipos de cavalos e todos eram, bem, como o fogo na lareira.
bysitter pendurou o chapéu no prego. E se aproximava, mantinha uma mão no irascíveis e difíceis de domar. Quando se - Claire, Samantha, Samantha, Claire?
ele enroscou-se sombriamente contra a guiador e a outra estendida em direcção a pensava que se tinha um cavalo domado, – A voz do Especialista era arrastada e
chaminé. Samantha olhou fixamente para Samantha. No preciso instante em que se ele empinava a cabeça e atirava-nos ao húmida. Parecia a voz do pai, mas isso era
ele. E o chapéu relinchou para ela. – Ele preparava para agarrar a irmã, a babysitter chão. O número favorito de Claire era o porque o chapéu conseguia imitar qual- Kelly Link (1969-), natural de Miami, Florida, é
era um mau poeta, mas ainda era pior fei- virou-se para trás e tirou o chapéu da ca- 4, que dizia ser um rapaz alto e magrice- quer som ou voz. – Ainda estão acorda- uma das contistas mais reputadas no género da
ticeiro. beça de Claire. la. Samantha não gostava assim tanto de das? fantasia, tendo vários dos seus contos vencido
No verão passado, Samantha desejou - Merda! – Exclamou a babysitter, dei- rapazes. Mas gostava de números. Como - Rápido – disse a babysitter. – Está na os prémios Hugo, Nébula e World Fantasy
mais que tudo que pudesse ter um cava- xando cair o chapéu. por exemplo, do número 8, que podia ser altura de subirmos ao sótão e esconder- Award. Juntamente com o marido Gavin Gant,
lo. Achou que desistiria de tudo por um Havia uma gota de sangue a formar-se mais do que uma coisa ao mesmo tempo. mo-nos. é editora da Small Beer Press. Dá aulas de
cavalo – nem mesmo ser gémea era tão na parte carnuda da sua mão, sangue ne- Visto de certa forma, o 8 parecia uma mu- Claire e Samantha deslizaram debai- escrita criativa e edita revistas e antologias de
bom como ter um cavalo. Continuava gro ao luar, onde o chapéu do Especialista lher curvada de cabelos ondulados. Mas xo dos cobertores e vestiram-se rápida e fantasia.

18 /// BANG! BANG! /// 19


Mice Templar
em aguarela

Os Ratos
Guerreiros T E X T O D E J O Ã O L A M E I R A S

Dos patos da Disney às Tartarugas Ninja de Eastman e Laird, passando por um clássico como
La Bête est Morte, de Calvo, que quase 50 anos antes do Maus, de Art Spiegelman, descreve os
acontecimentos da II Guerra Mundial, usando animais antropomorfizados em vez de huma-
nos, até Usagi Yojimbo, o coelho samurai de Stan Sakai e os romances e as BDs protagonizadas
por Gerónimo Stilton, não faltam exemplos de histórias de Banda Desenhada protagonizadas
por animais antropomorfizados, que, em alguns casos, podiam sem grandes alterações ter per-
sonagens humanas como heróis. É o caso de The Mice Templar, de Bryan J. L. Glass e Michael
Avon Oeming e de Mouse Guard, de David Petersen, duas séries recentes de fantasia medieval,
que têm a particularidade de serem protagonizadas por pequenos ratos hábeis com a espada.

A pesar de as duas séries terem


chegado às livrarias americanas
quase ao mesmo tempo (Mou-
se Guard em 2006 e The Mice Templar em
2007), isso não passou de uma coincidên-
ao projecto em 2003, já com Glass como
co-argumentista, enquanto que Petersen
começou a trabalhar a ideia durante o
liceu, influenciado pelo filme Robin Hood
da Disney e pelo universo do jogo Dun-
fábulas de Esopo, em que os animais são
mesmo animais”.
De qualquer modo, nenhum dos au-
tores acusa o outro de lhe ter roubado a
ideia. Ideia essa que, como vimos, não é
cia, pois Michael Avon Oeming publi- geons and Dragons, para voltar a pegar nela propriamente original e que Bill Willin-
cou a primeira história dos ratos templá- já nos seus tempos na universidade, desta gham (o criador da série Fables, onde,
rios no seu blog em 1997, para só voltar vez numa perspectiva “mais próxima das curiosamente, há uma Mouse Police...)

20 /// BANG! BANG! /// 21


Para quem a experiência de
leitura não chega, há o RPG,
onde se pode viver as aventuras tos como desenhador principal,
na primeira pessoa de modo a conseguir manter um
ritmo de publicação regular, algo
contexto de fantasia medieval, com ratos que não tinha sido conseguido na
guerreiros, cidades escondidas e templos primeira série, devido aos muitos
subterrâneos, há uma grande preocupa- afazeres de Oeming. Conhecido
ção naturalista na forma como os ratos e nos EUA graças à sua colaboração
os seus inimigos são representados e se com Brian Azzarello (100 Bullets)
movimentam, com Petersen a desenhar a em Filthy Rich, uma novela gráfica
partir de fotografias de animais, ou utili- que inaugurou a colecção Vertigo
zando animais mortos como referência, Crime, Santos não é estranho ao
como na cena do primeiro livro em que universo da fantasia, tendo criado
os ratos são atacados por caranguejos à uma série muito popular em Espa-
beira-mar, desenhada a partir dos caran- nha, Los Reyes Elfos (cujo primeiro
guejos que Petersen comprou no merca- volume foi publicado em Portu-
do. gal pela Polvo) que se move nas
Depois das duas primeiras mini-sé- mesmas águas. Curiosamente, por
ries, Fall 1152 e Winter 1152, a terceira sé- estar ocupado a desenhar The Mice
Mais uma vez, a
rie, The Black Axe, actualmente em publi- banda desenhada Templar, Santos viu-se obrigado a
cação, é uma prequela que conta a história mostra porque é convidar outros desenhadores es-
uma das formas panhóis, como Vicente Cinfuen-
de Celanawe e de como ele descobriu o de arte mais vivas,
machado negro, uma arma mítica cujo dinâmicas e actuais. tes, para desenhar Los Reyes Elfos…
poder os leitores descobriram na segun- Todos nos queixamos Passada num universo de fan-
do nível rasteiro a que tasia, onde há deuses, demónios
da série. Pelo meio, ainda houve espaço desceu a televisão,
para Legends of the Guard, uma antologia Se Mouse Guard deu a conhe- o cinema e até os e até um gato zombie, The Mice
em que diversos autores, entre os quais o cer David Petersen aos leitores, já tops de literatura. Templar tem uma carga de fantás-
Michael Avon Oeming não preci- Mas a BD continua a tico que não existe em The Mouse
português João Lemos (como já vimos surpreender, a atrair
na última Bang!) prestam a sua homena- sou da série The Mice Templar para cada vez melhores Guard, do mesmo modo que os
no prefácio ao 1º volume de The Mice cializadas têm prateleiras e divisórias com gem aos ratos de Petersen, escrevendo e isso. Desenhador da popular série profissionais, a diálogos e a narração têm um peso
Powers, escrita por Brian Micha- conquistar públicos muito maior na série de Oeming e
Templar, remonta a Reepicheep, o ratinho formatos fixos, onde a minha revista não desenhando uma história passada naquele maduros e exigentes.
espadachim das Crónicas de Nárnia, de C. cabia, acabaram por a colocar no balcão, universo. O ponto de partida de Legends of el Bendis, Oeming não é estra- Só a mais profunda Glass do que na de Petersen, em
S. Lewis. E a comprovar ao lado da caixa registado- the Guard, é o mesmo dos Canterbury Tales, nho ao género da fantasia, pois ignorância permite que os diálogos são bastante mais
foi o argumentista dos primeiros que alguém diga o sucintos e não existe um narra-
a boa relação de Oeming e ra, ou em mostruários, e ou de World’s End, um arco de histórias contrário.
Glass, com Petersen, está isso funcionou muito bem do Sandman de Neil Gaiman, com uma números da nova versão de Red dor. Do mesmo modo, enquanto
o projecto de uma cross-over em termos comerciais. série de personagens reunidas numa esta- Sonja, a guerreira criada por Ro- a condição de ratos é inerente ao
entre Mouse Guard e The (…) “O primeiro número lagem, que contam histórias para passar bert E. Howard na série Conan. comportamento das personagens
Mice Templar, em que par- foi lançado a uma quarta- o tempo, encarregando-se Petersen das E o mundo em que se movem os da Mouse Guard, já a história de The
ticiparia também a Mou- feira, dois dias antes da 1ª páginas de ligação entre as várias histórias ratos templários de Oeming está Mice Templar podia perfeitamente
se Police, de Willingham, New York Comic Con desta antologia, premiada na última San bem mais próximo do universo de ser contada com recurso a huma-
numa história curta desti- (um dos maiores Festivais Diego Comic Convention, com o Eisner Howard, ou de Tolkien, do que do nos, ou a outros animais, em vez
nada a ser publicada em al- de BD americanos, a par (o mais prestigiado prémio da indústria de Petersen. dos ratos estilizados de grandes
guma iniciativa de apoio à com San Diego) e tive dos comics, uma espécie de Óscar da Se Mouse Guard é uma obra orelhas, criados por Oeming.
indústria dos comics e aos vários lojistas que foram BD) para a melhor antologia, elevando coral, com o protagonismo a ser Entre a sangrenta fantasia
direitos dos seus criadores. ter comigo ao meu stand para três o número de Eisners ganhos dividido por meia dúzia de ratos clássica protagonizada por ratos,
Mas vejamos um pou- durante a convenção, pela série. guerreiros, The Mice Templar tem de Oeming, Glass e Santos, ou a
co melhor estas duas his- para buscar mais comics, Mas o sucesso da Mouse Guard não um herói bem definido, o jovem fábula para todas as idades criada
tórias, tão semelhantes na pois em dois dias tinham se ficou só pela Banda Desenhada, pois Karic, cujo percurso iniciático por Petersen, cabe ao leitor esco-
sua premissa inicial, mas bem diferentes esgotado duzentos e cinquenta exempla- a série deu origem a um premiado jogo acompanhamos ao longo da série, lher qual a que prefere, sabendo
na forma como a desenvolvem, começan- res da minha revista. Foi aí de Role Play, criado por desde que um exército de rataza- que em ambas vai encontrar ratos
do pela Mouse Guard, de David Petersen. que percebi que The Mouse Petersen e pelo designer nas ataca a sua aldeia, matando guerreiros e uma leitura agradável.
Projecto independente, escrito, de- Guard ia ser um sucesso!” de jogos Luke Crane, que ou fazendo prisioneiros os seus BANG!
senhado e editado pelo próprio David A série relata as aven- desenvolve o universo da familiares. O título do primeiro
Petersen e distribuído pela Editora Ar- turas da Mouse Guard, série. Série essa que poderá volume, The Prophecy, deixa logo
chaia, The Mouse Guard foi inicialmente uma ordem militar criada chegar também ao cinema, perceber que Karic, apesar da sua
publicado no formato de mini-séries, an- para proteger os ratos du- pois não faltam estúdios e aparente fraqueza, é o escolhido
tes de cada história ser recolhida em livro. rante as viagens entre as di- realizadores interessados pelo Deus Wotan para restaurar a
Optando por um pouco convencional versas cidades escondidas, nisso. antiga glória da Ordem dos Ratos
formato quadrado, a série não teve difi- quando têm que atravessar Templários, que dissenções inter- João Lameiras é Mestre em História da Arte pela Universidade
culdade em sobressair no meio das cente- zonas onde ficam muito nas tinham levado à decadência. de Coimbra. Tem desenvolvido uma vasta actividade no campo
nas de comics publicados mensalmente, mais expostos ao predado- Sangue, tripas, pedaços de Prevista para quatro volumes, da Banda Desenhada, como conselheiro editorial, tradutor,
res naturais, como corujas, ratinhos espalhados pelas a série viu no segundo volume argumentista e crítico para diversas editoras e publicações e é
pois o seu formato diferente trouxe-lhe vinhetas. Pois é, neste
uma maior visibilidade. Como explica cobras, ou doninhas. mundo o rato Mickey ia
Michael Avon Oeming ceder sócio-gerente da Livraria Dr. Kartoon. Escreve com frequência no
Petersen: “como a maioria das lojas espe- Ou seja, apesar do dar-se mal o lugar ao espanhol Victor San- seu blogue http://porumpunhadodeimagens.blogspot.com

22 /// BANG! BANG! /// 23


Os livros Freelancer. Argumentista, humorista,
dramaturgo, realizador, e outra coisa
que agora não se lembra mas que
tem a ver com música. Gosta muito
de torresmos e de viajar no tempo,

das minhas
especialmente às 3.as-feiras. Quando
não é 3.a-feira, viaja até à 3.a-feira
anterior, ou à seguinte, e depois já
lhe sabe melhor. Truques que foi
aprendendo com o tempo.

vidas
texto de
Filipe Homem fonseca

“Livros Doctor Bloodmoney, or How We Got aquilo que se sabe mas não se tem fizeram-me acreditar, por mais de uma leses e não só. As suas quatro Odisseias: brosamente próximo do mundo actual.
Along After The Bomb (1965), de ainda como comprovar – só nas vez, que tudo é possível. Ou quase tudo, 2001: Odyssey, 2010: Odissey Two (1982), E, malgrado o travão que os dias de hoje
que li amanhã” Philip K. Dick, publicado na Co- estrelas nos encontraremos e, até pelo menos; afinal, não é de desprezíveis 2061: Odyssey Three (1987) e 3001: The Fi- parecem determinados em ser, do mun-
lecção Argonauta com o título lá, somos prisioneiros. Li-os du- manuais de auto-ajuda que estou a falar. nal Odyssey (1997), contêm manifestações do futuro.

E stão ainda todos nas minhas


estantes, mas pertencem às
estrelas. Uma pena. Mas lá
chegaremos, às estrelas e ao que
quero dizer com isto.
“Depois da Bomba”, foi a pri-
meira vez que vi o amanhã culpar
os de hoje pelo que lhes deixa de
herança, na forma de uma crian-
rante a adolescência e não consigo
imaginar melhor altura para tê-lo
feito.
E falando de tempo e da sua não-
Voltando à lista inicial de autores: Um Es-
tranho numa Terra Estranha, de Robert A.
Heinlein. Li-o tinha eu catorze ou quin-
ze anos, talvez menos. Foi escrito em 61
divinas e uma fé no avanço da Humani-
dade que chega a ser comovente. Clarke
é bem capaz de ser, destes autores que
aqui refiro, o mais optimista e, só por
Encerro com uma referência a outro
autor, que também não está na lista de
cinco que me propus falar (nem sei por-
que é que me dei a esse trabalho, reduzir
ça ainda por nascer, voz interior linearidade, é imperativo referir e estava tão de acordo com o espírito da isso, já mereceria o nosso obrigado e a cinco este Panteão; devia estar parvo).
Desde relatos de um futuro que física e metafórica. Dick, tem ali- The Timeliner Trilogy de Richard época que antecipava em alguns anos o um reconhecimento profundo do seu Falo de Poul Anderson e, em especial, ao
nunca veio nem nunca virá, pas- ás, uma mão-cheia de títulos que C. Meredith (73-79), obra com- zénite hippie do make love, not war. Isto enorme talento. Que seja visionário até seu Brain Wave de 1954, publicado tam-
sando por previsões certeiras, até considero dos mais relevantes de posta por At The Narrow Passage, salvo umas poucas considerações menos ao fim e que The Songs Of Distant Earth bém na Argonauta com o título A Hora
às realidades alternativas. Os mais toda a literatura, não só da sci-fi. No Brother, No Friend e Vestiges of libertárias, fruto talvez da vivência mili- de 1989 (publicado em Portugal pela da Inteligência.
marcantes li-os quando era petiz Os Três Estigmas de Palmer Eldritch Time; e Up The Line (1969), de tar de Heinlein, mas que só acrescentam Europa-América) seja também uma re- Imaginou Anderson que o nosso plane-
e reli a cada década. Porque os li- (do mesmo ano), Ubik (1969), “A Robert Silverberg. Este último motivos de fascínio pelo personagem alidade, connosco a ter possibilidade de ta estava dentro de um campo de forças
vros, mais a mais os que falam do Scanner Darkly” (1979) e Now li-o na casa dos 20 anos, a tri- Jubal Harshaw, que muitos julgam um redescobrir esquecidas colónias huma- que afectava os processos electromag-
futuro (mesmo o de ontem), es- Wait For Last Year, de 1966, (este logia li mais recentemente. São alter-ego do próprio autor ou, como di- nas noutras galáxias, em vez de andar a néticos e electroquímicos do nosso cé-
tão sempre a mudar, a cada déca- último não sei se está traduzido reportórios definitivos acerca ria Grant Morrison, um fiction suit. discutir deprimentes Orçamentos de Es- rebro. Um dia, a Terra saía desse campo
da, a cada ano. Alguns deixam de para português), são peças semi- da problemática temporal e dos Só tenho pena de não ter lido esta saga tado e falências internacionais, tão longe e a inteligência de todos triplicava. Ora,
ser ficção. Outros afastam-se cada nais acerca de identidade, ensaios seus paradoxos. Influenciaram de Valentine Michael Smith nos anos 60. da utopia que, afinal, merecemos. isto é que dava um grande jeito. Olhar
vez mais do tecido da nossa reali- delirantes acerca dos vários níveis sobremaneira obras posteriores, Mas foi-me impossível, não só porque Isaac Asimov. O que seria dos robots para o alto pede muito das vísceras, mas
dade. Há alguns, e não são pou- de realidade, distorção do espaço dentro e fora da literatura, como ainda não era nascido, mas – principal sem Asimov? Mais: o que seria de nós, conquistá-lo requer cabecinha. E se há
cos, que permanecem esperanço- e/ou da sua percepção (em K. é o caso de outra trilogia, a do Re- razão – porque tenho a máquina do tem- no futuro – que desejo – em que os coisa que qualquer um destes autores me
sas utopias ou avisos de desastre. Dick, são, muitas vezes, a mesma gresso ao Futuro (85-90) ou a série po na oficina desde os meus oito anos; já robots são omnipresentes, sem as Três ensinou, estes e muitos outros que não
A nível de clarividência, de tiro coisa), e de viagens no tempo. Lost (2004-2010). se sabe como são os mecânicos. O quan- Leis da Robótica que Asimov elaborou? referi, como Roger Zelazny, Philip José
mais ou menos na mouche acer- Já que falo de identidade, torna- Enfatizando o carácter stream of to este livro me influenciou, só o reparei A imensidão de contos, novelas e ro- Farmer, Larry Niven e Frank Herbert
ca do que é essa coisa do ama- se impossível, a meu ver, não consciousness deste texto, regresso a este ano, quando voltei a lê-lo de uma mances que dedicou a essa problemática (como é que eu fui capaz de não referir
nhã, destaco cinco autores. Mas referir dois distintos canhenhos Philip K. Dick e destaco também ponta à outra. entre as décadas de 50 e 90 são verdadei- Frank Herbert e o seu The Godmakers de
atenção que não creio ser essa de Alfred Bester, que não cons- o Eye in The Sky, de 1957, (Univer- Felizmente voltei a encontrar Jubal Har- ros tratados acerca dos seres artificiais 1972?), é que não é de mãos nos bolsos
pontaria a mais relevante quando ta da lista de cinco autores que sos Paralelos em português, pelas shaw em outras obras de Heinlein, como que se tornarão nossos semelhantes. São e a assobiar para o lado que se ganha um
se pretende classificar uma obra. me propus falar, mas cujas obras edições 70) que coloco, a nível O Gato Que Atravessa As Paredes (1985), espelhos da condição humana e servem lugar entre as estrelas.
Acontece a coincidência de terem têm mesmo de ser referidas nes- temático – sonhos que transfor- que reli recentemente também na edição de guia à robótica actual e futura. Se Ri- Que fiquem os livros na estante mas não
sido, de alguma maneira, os auto- te ponto, pelo menos estas duas: mam fisicamente a realidade – e da Argonauta (em dois volumes), desta chard C. Meredith e Robert Silverberg fiquemos fadados nós à prateleira. Lá
res dos livros que mais me mar- “The Demolished Man” (1953), de ambição, ao lado de outra feita sublinhando com pasmo e admira- são definitivos no que respeita a traves- em cima é tudo muito mais estimulan-
caram. Ou talvez não seja apenas estreia de Bester no formato mais grande obra, The Lathe Of Heaven ção cada demonstração dada por Hein- sias temporais, Asimov é-o neste domí- te. É a nossa Casa. E vai estar cheia de
uma coincidência – mas isso será longo, e que lhe valeu um Prémio (1971), de Ursula K. Le Guin. E lein de que, por altura da escrita deste nio. livros. BANG!
matéria para um eventual texto Hugo; e The Stars My Destination é impossível falar de Ursula sem quase-policial futurista, estava no pico Por último, nesta lista de cinco que afinal
futuro. Os autores são: Philip K. (1956), também publicado com o referir o mui premiado The Left da sua facúndia. Abro o livro ao calhas são mais, o pai do cyberpunk, William
Dick, Robert A. Heinlein, Arthur título Tiger, Tiger (a partir do po- Hand Of Darkness (1969), sobe- e deparo-me com esta pérola Abrem-se as Gibson. E chamo-o assim com a mesma
C. Clarke, Isaac Asimov e William ema de William Blake). Com re- jamente elogiado pelo escritor e portas a uma senhora porque ela espera que lhas leveza mas também com a mesma reve-
Gibson. Outros se intrometerão, miniscências de O Conde de Monte critico literário Harold Bloom, abram. rência com que chamei – eu e muitos – a
sem dúvida, nesta listagem, por- Cristo (1844) de Alexandre Du- que diz alguns disparates mas Arthur C. Clarke sabia que iam existir Vasco Granja de pai da Pantera Cor-de-
que o futuro, mesmo quando re- mas, estes dois tomos de Bester neste caso acertou. Ambos os satélites artificiais antes mesmo de eles Rosa. Neuromancer, de 1984, quando alia-
cordado, é mesmo assim. (em particular o último) afirmam títulos, o de Dick e o de Ursula, andarem a cair dos céus em cima de gau- do a Idoru (1996), é um retrato assom-

24 /// BANG! BANG! /// 25


E u não sou um charlatão. Tudo começou
quando o rapaz da mochila morreu atrope-
lado. Ia mesmo à minha frente. Um peque-
no vulto na multidão que ensardinhou pela passa-
deira. Pneus chiaram, alguém gritou, várias pessoas
provavelmente, todos recuaram e só o rapaz conti-
nuou. Levava auscultadores. O carro passou como

TODAS AS
um borrão, o estrondo foi surpreendentemente
forte para um corpo tão pequeno, pareceu-me ver
uma mochila a rodopiar. E uns auscultadores.

F oi então que a luz ficou verde para os peões.


Acordei do meu devaneio com os vultos a
empurrarem-me e a fazerem-se à passadeira.
À minha frente ia um rapazito com mochila azul.
Os auscultadores enormes que levava na cabeça
davam-lhe um ar insólito. Ouviram-se gritos, um
chiar de pneus, parei com o coração na boca. Mas o rapaz da mochila continuou. Nem viu o carro que o atirou ao ar. E o
estrondo, meu deus, o estrondo. A mochila aberta cuspiu papéis com desenhos coloridos. Fiquei a olhar para o seu corpo
torcido sobre as listas da passadeira. Depois rodearam-no gritos, pessoas exaltadas, chamou-se uma ambulância e alguém
quis linchar o condutor paralisado com as mãos no volante. Também eu fiquei paralisado na berma ensanguentada do pas-
seio. Tinha acabado de viver um terrível déja-vu.

T rabalhava há muitos anos num prédio triste da capital. Num quinto andar rodeado de papéis e armários que
chiavam com os nossos passos. Alguns dias depois, ao subir no elevador atulhado que se arrastava penosamente,
aconteceu outra vez. Um homem de idade indefinida, mais velho que novo, tombou contra a tinta descascada do
elevador. Levou as mãos em garra ao peito, depois ao colarinho apertado por uma gravata, e novamente ao peito, com
urgência. Não vi o seu rosto, mas estava vermelho, a boca aberta e os dentes cerrados num esgar silencioso. As forças
falharam-lhe e deslizou para o chão com as pernas a chutarem as canelas dos que o rodeavam. Novamente gritos.

MORTES
porta do elevador abriu-se. Nem reparei que era o meu piso com as luzes flácidas e o número cinco enferrujado na pa-
rede. Dois colegas contornaram-me e saíram. Depois estranharam eu não me mexer, voltaram-se e perguntaram,
divertidos, se eu ainda estava a dormir. Não havia gritos. Estava tudo bem. Olhei de soslaio ao redor, o elevador
continuava cheio de vultos, todos em pé, ninguém morto no chão. Saí apressado sem olhar para trás. Mentiria se dissesse
que trabalhei normalmente nesse dia. Uma ansiedade pegajosa seguiu-me como uma sombra durante todas as horas do dia.
No final do dia, quando esperava pelo elevador para
descer, cruzei-me com os mesmos colegas. A minha
lassidão contrastava com o seu entusiasmo. Per-
guntaram-me se eu já sabia o que tinha acontecido.
Eu não sabia. Um administrativo do décimo andar
morrera de manhãzinha, no elevador. Ataque car-
díaco, disse um. Se calhar até subiu connosco e sa-
ímos mesmo a tempo, disse outro. Riram-se. Senti
uma vertigem e o sangue a fugir-me da cabeça. O
elevador não havia maneira de chegar. Murmurei
uma despedida e desci pelas escadas. Os dois co-
UM CONTO DE LUiS CORTE REAL legas gracejaram elogios à minha condição física e
continuaram em cavaqueira sob o foco amarelecido.

N o dia seguinte descobri quem era o admi-


nistrativo que morrera. Não sabia o seu
nome mas era o homem que, no dia an-
terior, subira mesmo atrás de mim e penso que até
segurara a porta do elevador quando eu correra para
o apanhar.
À noite tomei um duche demorado e sentei-me em
frente da televisão desligada com um copo de leite
nas mãos. O que me estava a acontecer? Tivera dois
déja-vus? Não, os déja-vus não funcionavam assim.
Lera algures que um déja-vu era uma espécie de
amnésia com fracção de segundos, em que o nosso
cérebro era enganado a pensar que revivia algo.
Mas não era isso que me estava a acontecer. Eu
soubera que o rapaz da mochila ia ser atropelado
“Em terra de cegos quem tem olho segundos antes de acontecer. E o administrativo
é apedrejado até à morte.” morrera minutos depois de eu abandonar o eleva-
dor. Estaria a enlouquecer?
Joan D. Vinge, Catspaw

26 /// BANG! BANG! /// 27


D urante alguns dias não me
aconteceu mais nada do género.
Consegui levar uma vida nor-
mal entre a casa e o trabalho, no edifício
triste da capital, onde durante preciosos
peti a rotina, encostei a cabeça ao soalho,
silêncio, fui espreitar à janela, ninguém,
desci as escadas e tentei escutar à sua
porta. Nada. Bati várias vezes. Chamei
por ela, alto, pois era uma velha surda,
própria alma. Um dia acordei e senti-me
recuperado. Nauseado com o meu pró-
prio cheiro, o fantasma que vi no espelho
era eu. Pele cinza, barba de vários dias,
cabelo oleoso colado à testa. Tive dúvi-
não me devia parar. Há tanta morte no
mundo das crianças, mesmo quando as
paredes estão decoradas com autoco-
lantes amarelecidos de ursinhos e vagas
figuras de filmes da Disney. O bebé que
deitado na caruma sob árvores retorci-
das, bebi de regatos selvagens, comi o
que apanhei do chão. As visões desapa-
receram mas apenas porque ninguém
vivia perto de mim. E viver como um
J á não preciso de passar perto de
alguém para entrever a sua morte.
Já não preciso sequer de tocar num
objecto que esse alguém tenha tocado.
Basta-me ver uma foto desfocada numa
minutos uma nesga de sol encontrava ca- amável, mas muito surda. O vizinho da das se tudo o que acontecera nos últimos caíra de um segundo andar estava no selvagem de roupas rasgadas e corpo revista, uma imagem fugaz na televisão,
minho, entre paredes e varandas do outro frente entreabriu a porta. Era o adminis- dias (semanas?), não passara de um de- primeiro quarto, o médico assegurava aos esquálido satisfazer-me-ia se um dia uma voz distante na rádio. O dom foi-se
lado do beco, para iluminar um canto da trador do prédio, tinha as chaves de to- lírio meu. Reparem, a D. Mimi morrera pais aliviados que o pequeno era forte e não encontrasse, no chão entre as ervas, aprimorando de tal forma que consigo
minha secretária. Mas numa sexta-feira dos os pisos. Quando o convenci a abrir mesmo, mas talvez o choque do faleci- ia sobreviver, mas eu soube que morreria uma beata. Nunca fumei, parece-me um entrever não só a morte de quem escre-
chuvosa, quando chegava a casa, voltou a porta da D. Mimi, encontrámo-la morta mento daquela velhinha, que sempre me dentro de dois meses, depois de uma acto repulsivo. Mas aquela beata, aquele veu algo que eu leia, como a morte de
a acontecer. Entrei no prédio e passava no chão da cozinha, uma poça de sangue tratara como a um sobrinho favorito, me inesperada recaída. A rapariga, quase ain- vestígio de humanidade, fez-me parar. quem lê algo que eu escreva. Sabe o que
em frente à porta da D. Mimi quando fresco já chegava à dispensa e o gato lam- tivesse feito imaginar coisas. Talvez ela da uma menina, cujo cancro no sangue a Ajoelhei-me. Peguei nela respeitosamente isso quer dizer, caro leitor? Sim, já entrevi
a vi dar um grito na cozinha e desequi- bia uma pata vermelha com um misto de tivesse morrido e só depois eu tivesse fazia definhar, estava no quarto seguinte. como a uma relíquia. E vi a morte de a morte de cada pessoa que leu estas
librar-se para trás. A cabeça de caracóis curiosidade e aversão. revivido a sua morte. E o administrativo O seu irmão mais novo, com alguma quem a tivera na boca muitas semanas linhas. Mas é da sua morte em particular
brancos bateu na esquina do lava-loiça de
mármore. Ela tombou como um saco de
compras largado sem cuidado. Os óculos
de massa saltaram-lhe e deslizaram pelo
oleado. Os seus olhos azuis clarinhos,
A gora não havia dúvidas sobre o
que me estava a acontecer. Mas
porquê a mim? Haveria mais
alguém com uma maldição igual? Deixei
de comer, e de dormir, e de ter vontade
do escritório morrera mesmo? Estaria
eu no elevador quando ele morrera e,
com o choque, esquecera que assistira à
sua morte para, posteriormente, pensar
que a previra? A esperança de não ter ne-
compatibilidade, ia dar-lhe medula, mas
de nada valeria. Os gémeos atropelados à
porta de casa. O que estava pior ia sobre-
viver, mas o outro entraria em coma para
morrer em poucos dias. Uma enfermeira
atrás. Uma prostituta quarentona cujo
amante alcoólico a estrangularia dentro
de três anos. Talvez o leitor pense que
essa nova visão me tenha empurrado em
direcção a uma forma ainda mais profun-
de que lhe quero falar. Para lhe provar
que tudo o que digo é verdade. Este tex-
to já foi publicado em diferentes locais
na internet e em dois jornais de temática
esotérica. Mas eu sei que você o está a
como só os velhos têm, ficaram virados de trabalhar. Meti férias depois de anos nhuma maldição mas estar apenas louco gorda olhou-me desconfiada e pergun- da de loucura, um passo definitivo e sem ler numa revista Bang! que arranjou na
para o tecto. Para minha casa, eu vivo por sem as gozar e fechei-me em casa. Du- animou-me. Ia tirar tudo a prato limpos. tou o que fazia eu ali. Não tinha tanta retorno na alienação para com o mundo. Fnac. Neste momento vai na página 29.
cima. Vivia. Mas isso agora não interessa. rante dias só me levantei da cama para Tomei um duche rápido, fiz a barba, bebi compreensão quanto o segurança. Ela ia Não. Pelo contrário. Apercebi-me de que Se, como eu, quer continuar a ter o dom
A última coisa que vi foi o seu gato a ir à casa de banho. Depois voltava e um copo de leite quase azedo e saí com morrer dentro de quarenta anos, na sua não valia a pena fugir. Encontrei a minha do oblívio, aviso-o de que deve parar de
cheirar-lhe a cara. afundava-me num torpor em que minu- algumas bolachas moles na mão. própria cama, ele apenas dentro de dois, paz. Voltei para casa. ler aqui.

F iquei paralisado nas escadas com


a mão tremente no corrimão. Os
tímpanos doíam-me com a força
do coração a bater no peito. Dei alguns
tos e dias se misturavam numa névoa que
me adormeceu o corpo, os sentidos, a
D irigi-me ao hospital. Fui a pé
pois incomodava-me estar
apertado num elétrico cheio de
gente. Cheguei cansado, parei no grande
de ataque cardíaco fulminante. O mundo
é injusto. Caí para o lado com falta de ar.
Quis fugir dali para fora mas a cabeça
pesava-me toneladas e só conseguia olhar
C om os anos aprendi a controlar o
meu dom. Deixei de lhe chamar
maldição. Refiz a minha vida em
torno dele. É difícil fazer dinheiro com a
N ão parou? Muito bem, espero
que não se arrependa, apesar
de saber que isso irá acontecer.
Vou tentar ser o mais directo possível:
passos até à porta da D. Mimi e bati bai-
xinho. Não queria tocar à campainha. Se
Talvez o leitor pense portão verde e olhei para o edifício som-
brio. Era ali que as pessoas vinham mor-
para o chão, deitar-me no chão, chorar.
Agarraram-me, abriram-me a camisa,
hora da morte das pessoas. Quem quer
pagar para saber isso? Mas guardando
entrevejo claramente o momento da sua
morte, caro leitor. Mais uma entre as
ela estivesse morta no chão, não queria que essa nova visão me rer. Também se vinham curar, mas eram deitaram-me numa maca. A médica que para mim a informação desse cerrar final milhares que já desfilaram pelos meus
que a campainha soasse. Bati novamente. as que morriam que me interessavam. me observou ia morrer dentro de seis dos olhos, mesmo assim sobrava mui- olhos. Lamento imenso, mas a sua morte
E ela abriu a porta. Ficou feliz por me tenha empurrado em Sentei-me à sombra de uma árvore perto anos num aparatoso acidente de carro. to no que eu entrevia nas visões e que está muito mais próxima do que você
ver, convidou-me a entrar, ofereceu-me da entrada das urgências. Depois de um O enfermeiro espanhol que me deu um podia vender a quem me procurava, no gostaria. Dentro de poucas semanas, uma
biscoitos, perguntou-me pelo trabalho. direcção a uma forma bom bocado sem movimento, levan- copo de água ia ser assassinado dez anos pequeno apartamento que aluguei numa dorzinha que tinha desaparecido vai re-
Eu entrei, e comi, e respondi a todas
as suas perguntas, tentando sempre
ainda mais profunda tei-me e entrei no edifício. Odiava aquele
local, o cheiro a hospital, as batinhas
depois em Caracas. Afinal devia ser vene-
zuelano. Dedos apalparam-me o braço e
zona fina da cidade. Ao assistir à morte
de quem se sentava à minha frente, nor-
gressar e necessitar de ser observada por
um especialista. Depois começará o cal-
descobrir se estava a olhar para alguém de loucura, um passo verdes e azuis a passarem de um lado enfiaram-me uma agulha. Dedos de uma malmente via o local da morte, eventuais vário. O óbito será exactamente dentro
prestes a morrer. Passado um tempo para o outro, os murmúrios tímidos que mulher que se suicidaria por amor dentro fotos nas paredes ou mesinhas de cabe- de treze meses. Olhe para a sua agenda e
razoável iniciei as despedidas. Pedi-lhe definitivo e sem retorno saem das bocas, o respeito, quase temor, de dezassete anos. ceira, os rostos de quem estava à volta, planeie bem o tempo que lhe resta. Treze
que tivesse cuidado e, antes de ela fechar
a porta, lembrei-me do gato. O Eusébio?
Esse malvado desapareceu há dois dias,
disse-me, nunca desaparecera tanto tem-
na alienação para com
o mundo. Não. Pelo
com que os doentes divinizavam os mé-
dicos, espécie de derradeiros feiticeiros
dos nossos dias. Subi umas escadas onde
os enfermeiros se acotovelavam para
Q uando reuni força para me
pôr de pé, fui-me embora sem
despedidas ou agradecimentos.
Como um ladrão que foge do seu crime.
alianças nos dedos, por vezes ouvia até
palavras, frases, despedidas, confidências.
Com o tempo, aprende-se a destilar mui-
ta informação desses fugazes segundos
meses a contar de hoje e nem mais um
dia. Lamento. É o conselho de um ami-
go. E eu não sou um charlatão. BANG!

po, mas haveria de voltar quando tivesse contrário. Apercebi-me fumar às escondidas e deambulei por um Não levantei os olhos do chão mas mes- de visões. Sim, minha senhora, vale a pena
fome ou precisasse de curar as feridas da corredor cinzento. Por sorte era o dos mo assim as mortes acompanharam-me lutar pelo seu marido pois ainda vão ser muito fe-
rua. de que não valia doentes terminais. Em cada porta que até à rua. E no caminho para casa entrevi lizes juntos... Oiça, amigo, demita-se do emprego
Em casa não consegui descansar. Pas- parei, estivesse aberta ou fechada, entrevi os últimos estertores de todos os peões que odeia e arrisque nesse novo projecto pois vejo
sado um bocado deitei-me no chão e a pena fugir. Encontrei uma morte. A velhinha cujo cancro na e automobilistas com que me cruzei. Ao muito dinheiro no seu futuro... Não desespere,
encostei a cabeça ao soalho tentando
ouvir a D. Mimi em baixo. Silêncio. Já
a minha paz. Voltei bexiga já se espalhara por todo o corpo
e morreria naquela mesma madrugada.
subir as escadas para o meu apartamento
conheci as mortes dos vizinhos que es-
menina, o seu marido não vai voltar, mas vai
conhecer um homem maravilhoso e ter com ele
estaria morta? Ouvia-a recolher roupa da para casa. O antigo ciclista que mijava sangue e ia tavam no prédio. Até as das crianças que uma menina e um rapaz. Pois é, misturei-me
janela e falar com uma vizinha. Estava definhar mais alguns dias até morrer nos só morreriam dentro de muitas décadas. com os charlatões e vendedores da banha
viva. Silêncio novamente, tão longo que braços dos filhos chorosos. O homos- O que fazer quando as mortes dos ou- da cobra. Mas com uma diferença cru-
fui até à porta dela escutar. Não se ouvia sexual que, depois de décadas com sida tros nos visitam dia e noite? Mesmo com cial: tudo o que eu dizia era verdadeiro.
nada. Bati. Bati mais alto. E ela abriu e tantos amantes enterrados, sucumbia janelas cerradas, luzes apagadas e o cor- E essa diferença fez de mim um homem
novamente. Desculpei-me dizendo que finalmente à maleita e morreria comple- po enterrado sob cobertores, as visões profundamente rico e realizado. Só há
me acabara o leite. Teria algum que me tamente só. Uma porta sem vidros, guar- perseguiam-me. Queria matar-me. Mas se uma morte que não entrevejo. A minha.
emprestasse? Não foi fácil para mim dada por um negro fardado, separava-me o fizesse, não deveria ter já sentido essa E esse é o meu maior dom, o oblívio,
adormecer à noite. da ala pediátrica. Mas o segurança nem morte iminente? poder acordar todos os dias acreditando

N o dia seguinte acordei a pensar


na D. Mimi. Ouvira um grito
ou sonhara? Saltei da cama e re-
me interpelou. Julgo que o meu ar des-
consolado o terá convencido de que eu
tinha de passar por aquela porta e ele F ugi para os montes, nem me lem-
bro como ou de que modo, para
viver como um animal. Dormi
que viverei até ao dia seguinte. Luís Corte Real é editor da Saída
de Emergência. Adora livros em geral
e literatura fantástica em particular.

28 /// BANG! BANG! /// 29


Entrevista a
ouve um tempo em que
Um dos raros

H
Luís Filipe Silva, exemplares da
Ás de Espadas
organizador da
antologia
heróis mascarados corriam
Os Anos de Ouro as ruas de Lisboa à cata
da Pulp Fiction de criminosos; em que
Portuguesa navegadores quinhentistas descobriam
cidades submersas e tecnologias
avançadas; em que espiões nazis
conduziam experiências secretas no
Alentejo; em que detectives privados
esmurrados pela vida se sacrificavam SDE – Este é um Portugal que não finais da década de 50 – publicavam-se cia fundamental nas décadas seguintes.
conheço. O que nos podes dizer so- mais de trinta títulos mensais, sobre A ficção estrangeira – nomeadamente,
em prol de uma curvilínea dama; em bre estas histórias e sobre esta época?
LFS – São essencialmente histórias
temáticas tão distintas como histórias
de guerra (muito se batia nos alemães,
americana e espanhola – também ia
sendo traduzida, mas está fora do âmbi-
naquele tempo), de aviação, aventuras to desta pesquisa.
que bárbaros sanguinários combatiam de pulp fiction – ficção popular, sobre
detectives e fantasia e fantástico na em alto-mar, bastante fantasia heróica
tradição do Leiber, do Hammett e do e sobrenatural, sem contar com as inú- SDE – Então, que autores eram es-
feitiçaria na companhia de amazonas Howard – ambientadas em territórios
portugueses ou de língua portuguesa –
meras novelas destinadas ao público
feminino.
ses? O que escreviam? E vamos po-
der encontrá-los na antologia?
o continente, as ilhas, o Brasil, as ex- LFS – Os autores provinham das mais
Poucos o sabem, mas a literatura seminuas; em que era preciso salvar colónias –, escritas por autores portu-
gueses, que entre as décadas de 30 a 60
SDE – Apenas com autores nacio-
nais?
variadas origens. Alguns exerciam ex-
clusivamente esta profissão, mas eram
de pulp fiction , que marcou LFS – Sim, refiro-me apenas ao que era raros, pois o pagamento era baixo e
toda a cultura popular dos EUA os colonos das estações espaciais de gozaram de uma enorme popularidade
e das quais hoje pouco se conhece. feito pelos portugueses – ou melhor, atrasado, e o ritmo de edição não era
No seu conjunto, pode dizer-se que dizendo, lusófonos, pois os autores bra- obviamente igual ao do mercado ameri-
na primeira metade do século
XX, também esteve presente em nome português; em que seres das apresentam um Portugal alternativo,
um Portugal de fantasia, habitado por
sileiros passariam a ter uma importân- cano. Era normal que acumulassem esta
actividade com um emprego principal,
todas estas estranhas personagens e ou um negócio. A grande maioria traba-
Portugal, e em força.
profundezas da Terra e do Tempo onde aconteciam constantemente fenó- “[histórias que] lhava no jornalismo, pelo que a transi-
num trabalho notável de menos espantosos. ção não era difícil. Por vezes, ia buscar-
apresentam um se talento dentro de casa, à própria
pesquisa, Luís Filipe Silva despertavam do torpor milenário ao SDE – Não fazia ideia que tínhamos editora – e Assunção era um especia-
organiza a primeira antologia esta tradição. Como é que surgiu? Portugal alternativo, lista no assunto, pois não só promovia
com a melhor pulp fiction largo de Cascais; em que Portugal sofria LFS – Basicamente por importação,
como grande parte dos nossos movi- um Portugal de
concursos internos como convencera a
própria esposa a contribuir para quase
portuguesa do século XX. mentos literários. António Assunção, o todas as suas revistas. Ana Sofia Casaca
Incontáveis horas em bibliotecas, constantes ataques de inimigos externos principal editor português do género,
ficou fascinado pelo pulp americano
fantasia, habitado por foi sem dúvida uma das apostas fortes
do género, com uma produção na or-
alfarrabistas e colecções
ou ameaças cósmicas que prometiam quando viveu nos Estados Unidos e
quis trazê-lo para Portugal. Nos anos
todas estas estranhas dem das centenas de contos, e não é
por acaso que a antologia contém, per-
particulares deste e do outro
30 despediu-se do jornal para quem personagens e to do início, um dos seus contos mais
lado do Atlântico, resultaram
destruí-lo em poucas páginas, antes de trabalhava, convenceu Edgar Silveira famosos, a “Expedição dos Mortos”,
numa obra que recupera um a investir no projecto e juntos mon-
taram toda uma indústria nacional de
onde aconteciam que é também uma ficção lovecraftiana
(a relação entre Casaca e Lovecraft é
género injustamente esquecido voltar tudo à normalidade aquando do produção e publicação de pulps que
chegou a ser conhecida no estrangeiro. constantemente explicada no livro), e também pratica-
mente termina (se não contarmos com
mas que marcou várias gerações aquele texto “escandaloso” do Roger
de portugueses. último parágrafo. Nos tempos áureos – sensivelmente
entre o acabar da Segunda Guerra e os fenómenos Bester) com ela. Aliás, confesso que fi-

30 /// BANG!
espantosos. BANG! /// 31
quei verdadeiramente incomodado com talvez o seu conto de despedida. Fomos filhos do autor, um texto inédito que com uma componente “pulpica” tencia aos pais e avós e por isso gráficas… foi um período curto
o segundo conto, “Noites Brancas”, o também capazes de incluir Tiago Rosa, possivelmente seria demasiado arrisca- bastante vincada, por assim di- interessava-lhes pouco. Depois, mas intenso que travou toda
que, para quem já leu tanto terror, foi
com o “Inconsciente”, não obstante o do para a época. Por sua vez, Galvão zer, em detrimento, por exemplo, foi uma questão de deixar o tem- uma indústria. Ventura Matias
uma surpresa pessoal. facto de quase toda a sua obra ter sido era uma presença indispensável, pela de novelas românticas ou escân- po e o esquecimento actuarem. chama-lhe o Ano Negro e, para
SDE – Quando é que foram publi- destruída por um motivo ou outro... importância que a pulp brasileira acabou dalos de ocasião – e relevância os efeitos da antologia, adoptou-
cados? Quem mais? As nossas ilhas estão bem por ter no nosso país na viragem dos para os nossos tempos – contos SDE - Mas qual o motivo des- se essa designação.
LFS – O primeiro nos anos 40, o se- representadas: “A Ilha” do madeirense anos 70. Tenho pena de não ter podido que ainda hoje consigam ser te corte abrupto?
gundo pouco após o Ano Negro. João Henriques fala sobre assombração incluir uma das histórias do seu Dr. lidos com interesse, com temá- LFS - Bem, os principais moti- SDE - Mas a literatura era
demoníaca e “Segundo Sol” do açoria- Arkham Ashton, mas nunca aparece- ticas ou abordagens modernas, vos e consequências são explica- assim tão intervencionista?
SDE – Esse Ano Negro é intrigante, no Ruy de Fialho é um divertido con- ram em Portugal. avançadas naquela era. Este dos em maior detalhe na anto- LFS – Raramente o foi. A pulp
mas já voltamos a ele. Fala-nos de fronto entre um grupo nazi e um agen- último factor foi deveras impor- logia, mas basicamente tratou-se fiction era o que sempre foi, en-
outros autores que podemos encon- te português no meio do Alentejo. A SDE – Parece-me que temos uma tante. Não queríamos um livro de uma reacção do público, e tretenimento, diversão. Claro que
trar no livro. “Noite do Sexo Fraco” é outra fantasia selecção bastante diversificada. Essa enfadonho, académico, com por conseguinte do governo, à havia insinuações e duplos sen-
LFS – Bem, temos o Artur de Carvalho, heróica, mas essa acabou sendo incluída foi uma preocupação da escolha? histórias datadas ou ingénuas crescente intervenção política tidos e comentários escondidos
com o primeiro conto do bárbaro Vale- mais pelos comentários do Vasquez que limitassem o interesse para desta literatura. Do público, não sobre acontecimentos e perso-
os leitores actuais. Queríamos por discordar necessariamente nalidades correntes – mas essas
transmitir a emoção do pulp. das mensagens mas por que a também as havia nos outros gé-
Daí que a antologia resultante intervenção surgiu de forma neros e meios de comunicação.
seja substancialmente diferente indecorosa - reacção que por O que a pulp se atreveu a fazer,
“Do [Orlando] Moreira, das outras (poucas) que existem sua vez também foi explorada num dado momento, foi levan-
sobre o tema e que, francamen- e incentivada pelos orgãos de tar-se e apontar o dedo de forma
não só contamos a te, com a notória excepção da comunicação. Do governo, por inequívoca. Reagiu o público,
“Voz do Povo”, são ilegíveis que era incómoda. Publicou- a medo, por incompreensão,
história do Sentinela pelo abismo de sensibilidade se então uma lei que vetava ao reagiram os poderes instituídos,
literária entre os dias de hoje e esquecimento: fortalecia-se o apanhados de surpresa. Acredito
e o seu impacto na aquele passado. controlo dos conteúdos, exigia- que só então perceberam algo
se uma licença especial de prazo que qualquer escritor, ou outro
sociedade portuguesa, SDE – Como é que dizia o limitado, faziam-se rusgas às criador, sabe desde que apresen-
outro académico, o Matias?
como conseguimos «Os clássicos ficam para sem-
pre...»
Exemplares das duas revistas
fulcrais da década de 50. Assunção obter, junto dos LFS - «Se os clássicos são eter-
nos, a ficção popular identifica
e Silveira no seu melhor.
uma curiosidade: mike mignola,
no ensaio “H.p. Lovecraft and
filhos do autor, um uma geração». É bem verdade.
E normalmente, desaparece
other pulp influences” reconhece
a influência que o sentinela , texto inédito que com ela.
(publicado na weird tales de
setembro de 1953 como the blue possivelmente seria SDE – Foi isso que aconteceu
à pulp fiction? É a razão pela qual
sentinel) , teve na criação da seu
personagem secundário:
Lobster Johnson.
demasiado arriscado Em cima: em Históri-
pouco se conhece sobre o tema?
LFS – Houve um corte abrup-
as de Além Mar os
to, no final dos anos 60, após
para a época. contos tinham de
situar-se numa
o qual voltou a ser literatura
colónia portuguesa. exclusivamente vocacionada
No meio: Um erro para crianças e jovens, essen-
rian que publicou em português, depois Morgado sobre os cortes da censura do LFS – Sim, sem dúvida. Encontramos tipográfico anuncia cialmente baseada em obras
do sucesso nos EUA – um bárbaro que pela originalidade da história. diversificação a todos os níveis, quer uma história do estrangeiras. Perdeu-se toda
bastante inspirado no Conan, e que nas épocas de publicação (desde os Gato Pardo como uma tradição de autores e per-
chegou a ser lido pelo Howard. Temos SDE – Não falámos de todos, pois primeiros tempos do género, nos anos
sendo do Sentinela sonagens lusitanos, que já abor-
Em baixo: a opor- davam temáticas mais adultas.
o Guilherme Trindade, com o famoso não? No índice, ainda encontro um 30, até ao final dos anos 70, quando tunista Histórias de
conto em que mata o detective “Valen- Orlando Moreira e um Marcelo para todos os efeitos já tinha desapa- Também havia uma questão
Espantar republi-
te”, o qual gozava de tanto apreço pelos Galvão. recido) quer nos temas – do western à cava contos antigos
de moda, pois os estrangeiros
leitores que praticamente o obrigaram LFS – Ah, dois grandes nomes dos ficção científica – e até mesmo a nível sem autorização abordavam temas diferentes,
a ressuscitá-lo. Destaque para a Sónia dois lados do Atlântico, criadores das de autores, pois, não obstante a época dos autores. eram mais sofisticados e inte-
Louro, com o “Pirata por um Dia”, o personagens mais famosas da pulp fiction e o género ser dominado pelos ho- ressantes, e a pulp fiction, para as
conto inaugural da série sobre o pirata lusitana: Moreira com o seu famosís- mens, temos uma representação ímpar jovens gerações de 60/70, per-
Duarte (e uma pena enorme que não simo justiceiro Sentinela, e o brasileiro e invejável por parte das autoras. Quis
tenhamos conseguido obter os direi- Galvão com o pistoleiro Maxwell Gun tornar-se a antologia numa mostruário
tos das suas lendas de Jambudvipa). – este, talvez o melhor western escrito do género e do que este foi capaz de
Continuando nas sagas marítimas, não em português. Do Moreira, não só alcançar. Mas outros critérios andaram
podemos esquecer A. M. P. Rodriguez, contamos a história do Sentinela e o a paripasso com a diversidade, em O tempo vai
cuja real identidade se desconhece, de seu impacto na sociedade portuguesa, particular a qualidade e a relevância. amarelecendo as
quem escolhemos “Pena de Papagaio”, como conseguimos obter, junto dos Qualidade de escrita e enredo – contos páginas e apagando
o conteúdo da
pulp fiction..
32 /// BANG! BANG! /// 33
“O que me valeu
foram as colecções nos outros, pois poucos se cruzavam
nos contos do passado, formavam
SDE – Que tipo de enigmas?
LFS – O que aconteceu ao Edgar
Uma cápsula do tempo
vertiginosa, esta é a melhor
particulares e o alianças, lutavam entre si, enganavam-se,
tudo para tentar perceber quem os en-
Silveira? Quem tramou o Assunção e
publicou o conto que despoletaria o
antologia de literatura
fantástica publicada este
facto de os vários fiara ali e o que estava a acontecer-lhes.
Coitado do Pequeno Bravo Tenente,
Ano Negro? Tinha de ser alguém muito
chegado... Algum sócio descontente?
ano.”
David Soares, autor de
coleccionadores irem que ia ter dificuldades em se impor por
causa da estatura (o anão da “Guerra
A própria mulher, por ciúmes da Ro-
driguez? Porque era amante do Bester? Batalha
mantendo contacto dos Tronos” comia-o vivo) e o profes-
sor Alves que não se cuidasse com a sua
Terá o Assunção desconfiado de algum
caso entre ela e o Silveira e mandado-o “É como voltar a mergulhar
entre si. Por outro postura de sabichão, que o Valente dava-
lhe uma boa coça. E no dia da libertação
matar, sendo esta a vingança dela? E
quem era a Rodriguez, afinal? Além das
na biblioteca do meu pai...
cheia destas e de outras
lado, como os prometida, encontrariam Lisboa e Porto
e Coimbra totalmente diferentes... muito
ligações com alemães e aliados durante a
Segunda Guerra, contadas pela própria
histórias maravilhosas.”
Afonso Cruz, autor de
exemplares são diferentes do que conheciam. Consegui-
riam voltar a integrar-se? Temos espaço
Casaca, e insinuações que o seu negócio
do vinho do Porto era na verdade uma
Enciclopédia da Estória
Universal
bastante cobiçados, para heróis nos dias actuais? Eis uma
história que ainda gostava de escrever.
fachada para contrabando e espionagem.
Ah, temos matéria para muitas páginas...
“Uma selecção magistral da
há quem estabeleça Ou que alguém escrevesse.
SDE – Mas infelizmente aqui esgotá- melhor pulp portuguesa do
início do século XX.”
ta a primeira obra a público: o
poder da ficção – a que é bem
A última máquina
de escrever de
num cliffhanger inesperado mas o
meu amigo não tinha o número
um controlo firme SDE – Talvez para o segundo volu-
me da antologia, se os leitores assim
mos o espaço desta entrevista. Algu-
ma mensagem final para os leitores? José Manuel Lopes,
concebida e desnuda a nossa
posição na vida de uma forma
Artur de Carvalho
(colecção particu-
seguinte, pelo que comecei à
procura em alfarrabistas. Não o
sobre os alfarrabistas, permitirem. Ficaram muitos contos
para trás, não foi?
LFS – Sim. Quisemos ser fiéis à época.
O pulp não classifica apenas o tipo de
especialista em H. P.
lovecraft
que nos esclarece ou envergonha
–, é superior a qualquer notícia, a
lar de Daniel D.
Tavares).
encontrei (a não ser mais tarde,
na impressionante colecção do
pelo que se torna 1 LFS – Os suficientes para mais alguns
volumes, sim. Há muitas personagens
histórias mas também, ou principalmen-
te, o material em que eram impressas – “É com um prazer indizível
qualquer denúncia, e espalha-se
com mais força e rapidez.
Daniel Tavares) mas descobri
outras revistas da época – as
num golpe de sorte que só afloramos de passagem, outras
que nem foram mencionadas. Lembro-
papel de baixa qualidade, que amarelece
rapidamente e que se estraga com o
que releio as aventuras dos
heróis da minha mocidade
SDE – Falemos agora do pro-
Histórias de Além Mar, Ás de Espa-
das, Senda do Crime... “Isto é pulp
conseguir encontrar me de duas ou três sequências do Es-
pectro da Noite bastante divertidas, e
manuseio; uma impressão descuidada,
cheia de erros e composição. Tudo no [...] Uma antologia que entra
directamente no panteão da
cesso de criação. A antologia
tem estado a ser prometida
fiction!”, foi o que pensei, “E
escrita por portugueses!”. Quan-
seja o que for neste sem dúvida que Ana Casaca precisava
de um livro só para ela. Mais uma vez,
pulp parece efémero, para consumo ime-
diato. Talvez por esse motivo, quando se literatura popular.”
há vários anos, mas só agora
consegue vir a público. Sei
to mais procurava, mais autores
e revistas ia encontrando. Até ao
circuito.” não é material que esteja facilmente
acessível – nem sequer online, não existe
encontram pérolas, a vontade de preser-
vá-las e colocá-las a par da grande litera-
António de Macedo,
realizador e escritor
que o trabalho de pesquisa ponto em que pensei que alguém praticamente nada – pelo que esta seria tura é enorme. Ao tentar transmitir esta
foi moroso e difícil, o que nos devia recuperar este fenómeno trolo firme sobre os alfarrabistas, talvez a única forma de o conhecer. experiência de leitura, optou-se – como
obrigou a sucessivos adiamen- das garras da História... pelo que se torna num golpe de aliás Morgado já o tinha feito – por fac-
tos. Podes falar-nos um pouco sorte conseguir encontrar seja o SDE – Esta, ou enveredar por uma similar as revistas ou colectâneas em que
sobre isso? SDE – Muitas horas passadas que for neste circuito. Sim, este pesquisa de vários anos... os contos apareceram, juntamente com
LFS – Claro. Tudo começou nas bibliotecas, então?... conjunto de circunstâncias infeli- LFS – Não vos recomendo... Na verda- ilustrações de época, anúncios, notas
com a descoberta, em 2007, de LFS – E não bastaram. Um zes conseguiu afastar a pulp fiction de, acabei por ter sorte, pois encontrei do editor, ao invés de simplesmente
um exemplar da Falcão Lusi- dos grandes problemas do Ano lusitana da nossa atenção. Espe- três obras antigas, dos anos 70/80, que transcrevê-las para uma composição
tano, a revista mais vendida de Negro foi o Estado ter decidido ro que a “Anos de Ouro...” sirva já tinham feito muito do trabalho princi- moderna... mantendo assim as histórias
Assunção e penso que a única que o género tinha uma natureza ao menos para despertá-la. pal. Ventura Matias e Vasquez Morgado pulp no ambiente pulp, onde pertencem,
que se manteve durante toda a sensível e portanto remeteu todo permitiram-me ter o enquadramento e conseguindo no processo um livro
sua carreira. Era o número de o espólio das bibliotecas públi- SDE – É caricato pensar em genérico de que precisava, bem como com um visual espantoso. BANG!
estreia do Gato Pardo do Orlando cas para a Torre do Tombo, para todas aquelas revistas juvenis uma selecção preliminar dos contos
Moreira – o herói que este acei- ser liberto passados cinquenta aprisionadas em arquivos ba- (a “Voz do Povo” do Morgado é uma
tou criar para Assunção depois anos. Se procurarem pela Falcão fientos, ao lado dos documen- antologia fabulosa), e a autobiografia da
do desaparecimento misterioso Lusitano, pelo Sentinela e por tos realmente importantes. Ana Casaca é simplesmente deliciosa e
de Silveira, o editor da revista todas as outras revistas, não Não te faz lembrar aquelas repleta de pormenores, ainda que seja
“Sentinela” –, facto que era vão encontrar nada no catálogo séries passadas nas prisões tão fantasiosa que nunca sabemos exac-
anunciado em letras garrafais da Biblioteca Nacional. Só no americanas, com alguém in- tamente quando está a dizer a verdade.
na capa: “Um novo vingador final desta década, se a lei não génuo e inocente a ser enfiado O trabalho restante foi preencher as la-
corre as ruas de Lisboa”, “Pelo for revertida entretanto, é que numa cela de um criminoso cunas. Não queria limitar-me a escolher
criador do Sentinela”, e coisas todas essas revistas vão começar duro? histórias, queria descobrir mais sobre os
As três principais autores e as suas vidas. Essa foi a princi-
os anos de ouro
assim. Não fazia a mínima ideia a ser libertadas. O que me valeu LFS – Faz-me pensar de imedia- Luís Filipe Silva escreveu quatro romances (O Futuro
de quem fosse o Sentinela, mas figuras da pulp
foram as colecções particulares e to numa história, em que todos pal razão da demora: querer dar alguma à Janela recebeu o Prémio Caminho de Ficção Cientí- da pulp fiction portugesa
lusitana: Silveira, carne a um nome, a um pseudónimo. A organização de
comecei a ler e encontrei uma Assunção e
o facto de os vários colecciona- os heróis da pulp fiction lusitana fica 1991) e publicou dezenas de contos em edições
escrita cativante, adulta, bem dores irem mantendo contacto teriam sido despachados para história da pulp lusitana está repleta de lusófonas e estrangeiras (Espanha, Dinamarca,
luís filipe silva e luís corte real
Casaca. páginas: 416
estruturada e moderna, como entre si. Por outro lado, como os uma dimensão paralela e esta- tantas peripécias (e alguns enigmas por Sérvia, E.U.A.). Também organizou as antologias
resolver) que quase merecia um livro pvp: 18.85€
se tivesse sido escrita nos dias exemplares são bastante cobiça- vam a lutar para sair. E como “Por Universos Nunca Dantes Navegados” com Jorge editora: saída de emergÊncia
de hoje. A história terminava dos, há quem estabeleça um con- não confiavam de imediato uns sobre ela. Candeias e “Vaporpunk” com Gerson Lodi-Ribeiro. lançamento: 21 de outubro de 2011

34 /// BANG! BANG! /// 35


Ao um conto de D e d i ca d o a

p
Pedro Lawr ence Block
V icent e

A
Pedroso

s t a Lutava, com to-


das as minhas forças, contra o abanar da
carruagem. Contrariava o fechar das pál-
pebras lembrando-me de episódios pas-
sados em que acordara repentinamente,
Desta vez, enquanto
as estações se anunciavam, deixei-me ir
num sono profundo e sem sonhos pois
nunca tivera a oportunidade de aprender
a tê-los.
Acordei com um toque no ombro.
Era o condutor. Talvez fosse um revisor
Quando cheguei estava no seu colo.
Como não
é seu? Perguntou o revisor
(tinha-lhe visto um daqueles alicates de
picar bilhetes meio enfiado no bolso).

Mais uma vez não respondi. Estava


cansado, doíam-me os músculos de ter
estado o dia todo a separar lixo e só que-
ria ir para casa. Agachei-me e peguei no
anos e
se não conhecesse aque-
la casa de olhos fechados é porque ela
não era verdadeiramente minha. Liguei
o fogão e aqueci uns restos do fim-de-
semana. Aproveitei e coloquei as minhas
mãos perto da chama. O calor era bom
mas retirei-as pouco tempo depois. A
temperatura localizada lembrava-me o
frio que sentia no resto do corpo.
Comi os restos reaquecidos sem
grande vontade, quase por obrigação, e
n e -
nhum vidro e evitei
olhar para o tijolo que provocara o de-
sastre. Quando terminei de limpar a fe-
rida e fazer um atamancado penso já era
manhã. E a luz do sol, apesar de fraca,
deu-me forças para enfrentar o pesade-
lo da noite. Varri os cacos e, finalmente,
peguei no tijolo. À sua volta, preso com
um elástico, estava um papel, amarrotado
do choque e do aperto, e sujo do pó. Li o
papel devagar, com a dificuldade de uma
juventude com poucos estudos. Depois
de ler pensei um bocadinho no assunto
ne pois estava doente e tinha de avisar o
maio-
res que todas as mi-
nhas posses somadas. Estava sem vonta-
de para ir trabalhar por isso vesti o robe e
desci ao café. Ignorei os olhares e pergun-
tei à Dona Amélia se podia usar o telefo-

patrão. Telefonei e ouvi mais do que falei:


Que assim não podia ser. Que eu fazia fal-
ta. Que se eu não queria trabalhar havia quem
quisesse. Que só eu é que me lembrava de estar
doente naquela altura do ano. Que ai de mim
que faltasse no dia seguinte. Que afinal de contas
que doença era aquela tão repentina.
Apesar de ele não ver, fui acenando a
atraindo para mim a atenção dos outros mas os meus olhos ensonados e a minha envelope. Quase nem o senti com os e descobri que já esperava algo parecido. tudo que sim e no final disse apenas que
deitei-me assim que terminei. O relógio
passageiros que escondiam os risos ao atenção adormecida não me permitiram meus dedos calejados do trabalho ma- Tinha de pagar o que devia senão deita- deveria ser do tempo mas que amanhã
indicava quase meia-noite e, apesar da
verem o fio de baba que me escorria pelo distinguir. nual de uma vida. Sou funcionário numa vam fogo à casa e davam-me de comer estava lá nem que piorasse. O patrão
sesta no metro, adormeci mais rápido
queixo. Apesar de tudo, nem as recorda- Então, disse ele, chegámos ao fim da via- estação de reciclagem onde a quarta clas- aos cães. Eram estas as palavras que me desligou-me o telefone na cara e a Dona
que uma volta completa do ponteiro dos
ções dessas vergonhas me valeram e aca- gem. Adormeceu ou quê? se me permite apenas separar lixo. Estou tinham partido a janela e, até ver, me Amélia disse que não era nada, que a en-
segundos.
bei por adormecer duas paragens depois Não respondi porque não havia nada na passadeira do metal mas, mesmo com iriam destruir o futuro. A culpa era mi- saboadela que eu levara mais o meu as-
Acordei com um barulho estranho.
de ter apanhado o metro. Foi uma via- para responder e para além disso eu era luvas, as toneladas que já movi endure- nha. Quem me mandara meter no jogo? pecto já eram paga suficiente. Subi nova-
Era impossível ter sido o despertador e
gem de cabeçadas no ar e consequentes homem de poucas palavras. Olhei pela ceram-me as mãos e esmagaram-me os Naquele maldito jogo de cartas de vão mente e tomei um duche rápido de água
para além disso ainda era noite cerrada.
tentativas de disfarçar um sono de noi- janela e as paredes sujas e sem azulejos músculos. Nem olhei para o envelope, de escada que só me trouxera azar e pre- fria que não queria gastar gás, já bastava a
Levantei-me e senti um estranho e anor-
tes mal dormidas e rotinas proletárias. ou pinturas indicavam que estávamos no dobrei-o e pu-lo no bolso de trás das cal- ocupações. Devia mais de 1000 contos, conta da água.
mal frio. Quando dei o primeiro passo,
Normalmente, o solavanco das paragens fim da viagem, numa estação sem nome ças. Olhei para o homem e, sem sorrir, ainda na moeda antiga, ao Sr. Júlio. Um O plano seria poupar o que pudesse
vidros enterraram-se na carne nua do
despertava-me o suficiente para ir vendo e sem rosto. perguntei como voltava para trás, de volta malfeitor de esquina que organizava as e entregar essa pequena quantidade ao
meu pé fazendo-me gritar. Esqueci o frio
os nomes das estações que surgiam para Levantei-me muito rapidamente mas à estação que perdera. cartadas aos fim-de-semana num barra- Sr. Júlio. Talvez ele me aceitasse o pa-
e agarrei o pé. Com lágrimas nos olhos
lá das janelas da carruagem. Eram nomes antes de perguntar como poderia voltar Cheguei a casa uma hora e vinte minu- cão clandestino. A dívida já ia para lá de gamento a prestações e não tivesse que
sentei-me na cama e acendi a luz da mesa-
estranhos os que se davam às estações de atrás, o funcionário do metro alertou: tos mais tarde que num dia normal. Era uma mão cheia de meses e, como eu dei- largar fogo à casa e deitar-me aos cães.
de-cabeceira. Disse merda baixinho. O
metro e, mesmo desperto, não compre- Ó homem não é preciso assustar-se! Veja lá Inverno e o atraso fez com que achasse xara de aparecer, a paciência do Sr. Júlio Ponderei fugir mas o único destino seria
sangue escorria pelo meu pé e tinha uma
endia o seu sentido pelo que, na minha que ainda perde as suas coisas! a casa mais fria do que nos outros dias. parecia estar a esgotar-se. a rua por isso aguentei o frio do chuvei-
cor vermelha muito escura, quase preta.
ignorância e falta de curiosidade, os dava E apontou para algo no chão, aos meus Despi-me o mais rápido que pude e vesti Amargurado, deitei o tijolo fora. Dali a ro e sequei-me com a força que os meus
O vidro da janela estava partido e os ca-
como adquiridos. Para mim eram apenas pés. Cá de cima parecia um envelope nor- o pijama. Por cima vesti um robe gasto uma hora apitava a sirene e teria de entrar músculos ainda tinham para me aquecer.
cos, onde me cortara, espalhados pelo
conjuntos de letras, alguns difíceis de ler, mal igual a tantos outros que já vira mas pelo uso e dois pares de meias. Fiz tudo ao trabalho. Um cansativo e estúpido tra- O meu armário não tinha muitas op-
chão. Levantei-me e coxeei até à casa de
que ficavam para trás a cada viagem até aquele nunca o tinha visto e para o provar isto às escuras. Primeiro para poupar, se- balho, mal pago e que mal dava para viver ções, por isso decidi-me pela roupa que
banho. Tive o cuidado de não pisar mais
finalmente associar um ao meu destino. disse em voz alta que não era meu. gundo porque vivia ali há mais de trinta quanto mais para pagar dívidas de jogo deixara na noite anterior em cima da

36 /// BANG! BANG! /// 37


cadeira. Vesti a camisa e a camisola em Pergunto apenas se vou receber o mesmo levá-la ao nariz, o que era ridículo pois eu de 10€. Falava de 100€ e essa quantia já Então, então, nem sequer te dignaste a apa-
modo automático, sem pensar no que no final do mês pois essa é a minha úni- não saberia distinguir, pelo cheiro, uma faz mossa. Pensei sair de casa para tentar recer depois do meu lembrete? Disse-me ele
fazia, mas quando peguei nas calças senti ca preocupação. Dá uma daquelas gar- nota falsa de uma verdadeira. Mas a ver- resolver aquele mistério mas passava das enquanto um homem, cujo rosto me
um volume no bolso de detrás. Só quan- galhadas cheias de desdém e diz que sim, dade é que queria, com todos os sentidos 21h. Para o que queria já não dava. Comi pareceu familiar, se veio colocar atrás de
do retirei o envelope amachucado é que enquanto ele me deixar trabalhar ali con- possíveis, perceber aquela nota. Qual a qualquer coisa rápida e fui dormir, tentan- mim com os braços cruzados. Expliquei-
me lembrei do que acontecera no dia tinuarei a receber. Como fico calado, sem razão para ter aparecido como que por do por um lado esquecer os misteriosos lhe que era para ter ido falar com ele mas
anterior, naquela malfadada viagem de resposta, entrega-me uma caneta e dita o magia num envelope aos meus pés numa envelopes, por outro, o constante barulho não tinha dado.
metro que parecia ter iniciado toda esta que tenho de escrever. Com uma letra inse- carruagem do metro. Exactamente da que o vento fazia ao passar pela janela ata- Não deu? Perguntou-me ele. E que mais
situação em que me encontrava. Virei e gura escrevo, devagar, a seguinte frase: mesma forma como a anterior estranha balhoadamente remendada. não vai dar? Continuou mas como eu não
revirei o envelope. O papel parecia caro. mensagem. Ainda para mais, seria possí- No dia seguinte despachei-me a correr, respondi, o Sr. Júlio acenou para o ho-
Por momentos pensei que talvez tivesse Declaro que estive doente e não vim trabalhar vel que estivessem relacionadas? Os 10€ como se pudesse dessa forma acelerar o mem atrás de mim que me agarrou o pes-
dinheiro lá dentro mas era fino demais no dia 27 de Dezembro do presente ano. prometidos e estes 10€ recebidos? Não tempo, e fui para o trabalho. No metro, coço com força.
para isso. Fiquei ainda mais esperançado me lembrava de ter escrito nada até que, atento a todos os pormenores, não repa- Se pensas que estou a brincar estás muito en-
enquanto o abria pois em vez de dinheiro Tens de assinar, disse-me ele chaman- como se tivesse levado um murro, me rei em ninguém com envelopes ou que ganado. Já tratei de trastes muito mais espertos e
talvez fosse um cheque. Mas não. Tinha do-me de burro. Assino. Sem despedidas lembrei da frase que o meu patrão me me observasse discretamente. Também valentes que tu. Ou me pagas o que deves até ao
apenas um papel branco com uma única manda-me ir trabalhar pois é para isso mandara escrever. Concluí que teria de outra coisa não esperava. Ainda não tinha final do mês ou juro que te parto as pernas!
frase. Li-a de uma só vez: que ainda me paga. Eu fui trabalhar. ser alguém do trabalho. Olhei em volta feito o que a frase pedia. A ameaça parecia sincera. Quase não
Quando escrever uma frase receberá 10€. O dia passou lentamente. Os meus co- mais por desespero que por inteligência. Enquanto separava o lixo, coloquei de- conseguia respirar com o brutamontes a
Aquilo não fazia sentido algum. Li com legas estranharam a minha postura mais Aquilo era claramente um jogo. Uma par- finitivamente de lado a hipótese de aquilo apertar-me o pescoço e foi necessário ele
mais cuidado não me tivesse escapado algo. derrotada que o normal. Não lhes dei tida que me quiseram pregar por me ve- se tratar de uma partida. Ninguém falou afrouxar as mãos para eu responder que
Quando escrever uma frase receberá 10€. atenção. Pensava apenas no que acontece- rem abatido e triste. Provavelmente no dia comigo sobre a questão e muito menos pagaria tudo no prazo acordado. A bru-
Não. Não fazia sentido nenhum. E ria dali a uns tempos, quando não tivesse seguinte os meus colegas pediriam o café me pediram os 10€ de volta. O mistério talidade da situação tirara-me a coragem
agora tinha a certeza que o estúpido do
revisor se teria enganado. O envelope já
Não me lembro o dinheiro todo para pagar ao Sr. Júlio.
Não sabia se ele seria capaz de me mandar
à borla e lá teria eu de desembolsar a nota.
Sorri pela primeira vez em semanas. Eram
continuava mas eu estava empenhado em
descobrir que tramóia era aquela. Saí mais
de lhe pedir um adiamento ou pagamento
por prestações.
lá devia estar no chão e ele simplesmen- matar mas a ameaça do tijolo fora agressi- uns gajos porreiros os meus colegas e, ao cedo para almoçar com a desculpa de que Eu pago! eu pago! Foi a última coisa
te viu mal. Olhei para a frase uma última de muita coisa va e dei por mim a pensar que não queria fim ao cabo, os meus únicos amigos e fa- ia ao médico buscar a baixa do dia ante- que disse antes dos dois se afastarem.
vez. A letra, à mão, era elegante e larga morrer. Decidi que iria hoje falar com ele. miliares. E foi isso que me levou a adiar a rior. Mentira. Precisava de passar numa Nervoso e amedrontado, subi as esca-
como se quem a tivesse escrito possuísse de quando era Prometer-lhe a quase totalidade do meu conversa com o Sr. Júlio, não queria que papelaria. Entrei numa que conhecia e das até ao meu apartamento. As chaves,
todo o tempo do mundo e uma confiança ordenado desse mês. O que ganhava era os meus problemas me estragassem o res- onde, em tempos mais folgados, compra- apesar de serem apenas duas, multiplica-
igualmente extensa. Conformado, ama-
chuquei o papel e deitei-o no caixote de
pequeno. Os meus pouco mais de um décimo do que devia
mas talvez isso fosse o suficiente para ele
to do dia.
Passei pelo supermercado e comprei
va um jornal desportivo de vez em quan-
do. Bom dia, disse eu. Precisava de uma caneta
vam-se e esquivavam-se-me por entre os
dedos. Abri finalmente a porta, entrei e
lixo da cozinha, junto ao tijolo. me dar mais tempo para pagar o resto. alguns enlatados. Fome era das necessi- e um caderno. Para escrever, acrescentei como fechei-a atrás de mim. Não acendi as lu-
O dia estava mais frio do que pare- pais morreram Quando a sirene tocou, alegrei-me um dades que não podia ignorar. Viver uns se as minhas intenções não fossem claras. zes, desta vez não por poupança mas por
cia. O pé, ferido pelos cortes, doía-me pouco. Tinha um plano para resolver a meses de sardinhas e salsichas seria um A senhora fez-me uma série de perguntas medo. Fui à janela e afastei a cortina. A
e obrigou-me a ficar em casa a pensar quando era situação. Voltei sozinho para o metro e, mal menor que teria de suportar. Quando que fui respondendo com o senso inco- rua estava vazia.
nas amarguras da vida. A pensar como desta vez, não me sentei. Fui em pé toda cheguei a casa já tinha anoitecido. Liguei mum que tinha sobre aquelas coisas. Merda. Merda. Merda. Merda. Merda.
foi que envelhecera tão rápido e chegara
aquela idade sem nada de que me orgu-
pequeno e fiquei a viagem, junto a uma janela e entretido
com a mancha que se formava pela ve-
a luz da escada e, quando abri a porta de
casa, a luz iluminou um rectângulo no
Sei lá, pode ser liso, é só para escrever.
Sim, de argolas está bem.
Disse-o várias vezes. Ora alto. Ora
baixo. Ora para dentro. Ora para fora.
lhasse. Sem família. Sem passado. Sem locidade da carruagem. Perto da minha chão da entrada. Poisei o saco e, com o Pode ser azul. Lamentei-me durante algum tempo pois
futuro. Deitei-me com o sol e dormi uma sozinho e tive paragem, sinto alguém a tocar-me ao de nervosismo do reconhecimento, agarrei Isso é que já não sei. A senhora que escolha aí era a única coisa que, naquele momento,
noite sem tijolos. leve no ombro. Olho e uma senhora de um envelope que parecia estar à minha a mais barata. me restava fazer, até que me apercebi que
O despertador acordou-me e tirou-me de ir para uma meia-idade que viajava com uma criança espera. A boa disposição passou a leve in- Bic? Sim, pode ser. ainda agarrava o saco que trouxera da pa-
da cama. Bebi um copo de leite até meio pela mão, pede-me desculpa e aponta dignação. Uma coisa era uma brincadeira Paguei com a nota de 10€. Não consi- pelaria. Sem pensar duas vezes, sentei-me
e esfarelei um pão duro com o resto do
líquido. Sopas para um cavalo cansado.
escola para para o chão.
Desculpe mas deixou cair um envelope, diz-
inocente mas trazerem aquelas brincadei-
ras para minha casa é que já se aproxima-
derei um gasto desnecessário, se tudo cor-
resse bem até poderia ser um investimen-
na mesa da cozinha e abri o caderno à
minha frente. Abri-o ao calhas, sem me
Vesti-me e saí para apanhar o metro, desta me ela. Sigo-lhe o dedo com os olhos e va do abuso. Apesar da indignação abri o to. Aproveitei e, depois do troco, pergun- dar ao trabalho de começar pelo início.
vez sem revisores inoportunos. rapazes sem pais. reparo num envelope aos meus pés. Uma envelope com cuidado não fosse ele con- tei o que era um parágrafo. Acrescentei Pequei na caneta e comecei a escrever. Ou
Chegado ao trabalho, quando ia para os réplica quase perfeita do que me acon- ter notas. Mas apenas tinha uma folha de que sabia que era de escrita e dos livros melhor, comecei a tentar escrever. Ainda
balneários para vestir o uniforme a recep- Batiam-me na tecera com o revisor. Ainda abri a boca papel onde consegui ler: mas que não sabia precisar. A empregada não escrevera a primeira palavra e tive de
cionista informou-me, com uma careta para dizer que não seria meu mas a cor e Quando escrever um parágrafo receberá 100€. pareceu baralhada. Disse qualquer coisa acender a luz porque caíra a noite.
de pena, que o patrão estava à minha es-
pera. Cabisbaixo, despreparado para mais
escola e eu não aspecto do envelope impediram-me. Era
igual ao outro. Agradeci e baixei-me para
Demorei mais tempo a ler esta frase
pois tive dificuldades na quarta palavra.
que não percebi e terminou a dizer que
era um conjunto de frases e que se muda- Nasci à 55 anos. Não me lembro de mui-
um sermão, entrei no seu escritório pe- o apanhar enquanto as minhas costas re- Depois de reler várias vezes apercebi-me va de parágrafo quando se queria falar de ta coisa de quando era pequeno. Os meus pais
queno de tanto tabaco. gostava de andar clamavam. que nem sequer sabia muito bem o que outra coisa. Não fiquei muito convencido morreram quando era pequeno e fiquei sozinho e
Sem cumprimentos, pergunta-me se já Decidira falar com o Sr. Júlio antes de raio era um parágrafo. Estava confuso. mas aquilo teria de servir. tive de ir para uma escola para rapazes sem pais.
estou melhor. Aceno que sim e ele entrega- lá mas tive de ir para casa mas a abertura do envelope, à Aquilo já não parecia uma partida dos O resto da tarde arrastou-se ainda mais Batiam-me na escola e eu não gostava de andar
me um papel. Diz-me que não deram con- saída da estação do metropolitano, bara- meus colegas. A letra era igual à anterior. que a manhã. Quando a sirene do fim de lá mas tive de andar porque não tinha outro sitio
ta do recado no dia anterior e que sobrou
trabalho para hoje. Que a culpa é minha e
andar porque não lhou-me os planos. Dentro do envelope
estava uma nota de 10€. Parecia nova,
E o papel mantinha o aspecto de ser caro.
Tirei a nota da carteira e observei-a uma
dia se desligou não me despedi de nin-
guém e fui para casa. Ia tentar escrever o
para ir.

que ele não vai ser responsabilizado por acabada de sair de uma máquina que faça vez mais. Era real. Só não a usara para pa- tal parágrafo e ver o que acontecia. Quando terminei, ardiam-me os olhos,
isso. Informa-me também, ou melhor or- tinha outro sitio notas. Rodei-a entre as mãos, esfreguei-a gar as compras porque estava convencido Com tudo isto já nem me lembrava do doía-me a cabeça e suava-me a mão que
dena, que tenho de lhe passar uma decla- com a ponta dos dedos e senti-lhe a ru- que os meus colegas a pediriam no dia Sr. Júlio por isso surpreendi-me quando segurava a caneta. Teriam passado, à von-
ração. Aceno novamente. Para mim é igual. para ir. gosidade quase imperceptível. Cheguei a seguinte. Mas esta nova frase não falava o encontrei à porta da rua da minha casa. tade, umas duas horas e utilizara várias pá-

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ginas. Todas calcadas e rascunhadas a tinta
azul. Cada vez que achava que acabara, relia Comecei a chorar arriscada demais pois ainda me cruzava
com o Sr. Júlio e o outro brutamontes.
Sim, é cada uma das partes. Os livros estão
divididos nisso.
relava-se estuque que dançava pela divi-
são fazendo companhia ao pó luminoso.
quando estico o braço para o papel, o ar implode
em labaredas e calor que tudo consomem.
e riscava tudo com raiva. Várias vezes furei Quando a noite se abateu sobre mim, E o tamanho? Insisti eu. Alguém bateu à porta. A minha mão, que
o papel com a ponta da caneta furiosa. e as lágrimas, com quer em luminosidade quer em tempe- Tamanho de quê? assumira o controlo do meu corpo, não
***
Contudo, a versão final deixara-me sa- ratura, tomei uma decisão. Era fim-de- Então, dos capítulos, pois claro! Respondi me deixou atender. Continuei naquele Não acho justo, disse Calíope com uma voz
tisfeito. Fazia-me sentido o que estava es-
crito e acima de tudo era verdade. Assim
laivos azulados, semana e eu de certeza que não iria ficar
ali à espera de uma visita do Sr. Júlio. Os
enervado pela desatenção do rapaz.
Sei lá, depende, umas quantas páginas.
ritmo ininterrupto de rabiscos descone-
xos. Haveria de encontrar um capítulo
melódica mas trespassada por exagerado ultraje
enquanto se afastava da margem do lago onde
que pousei a caneta e fechei o caderno
senti um cansaço enorme que só era su- deslizaram 100€ não serviam sequer para sinal e ar-
riscava-me a que me partissem uma perna
Sem mais nada para dizer, subi as esca-
das. Cada degrau a antecipar cada página
cá dentro e esparramá-lo naquela parede.
Haveria de deixar um testemunho para os
o seu irmão ainda sorria para as chamas que
consumiam o quarto do distante motel. O jovem
plantado por uma tristeza desesperada ou ainda algo pior. Fui ao armário e limpei que eu sabia não ser capaz de escrever. próximos hóspedes. gesticulou sobre a água que lhe devolveu um rosto
que parecia ter atingido quantidades má- pela superfície o pó a uma mala velha que comprara em O quarto era pequeno. A cama ocu- Eu sei escrever! Este capítulo que aqui lêem encaracoladamente malicioso.
ximas cá dentro. Não me lembro de me tempos. O pó fez-me comichão no nariz pava quase todo o espaço e, para minha vale 1000€! Ora irmãzinha, se é justiça que pre-
ter despido ou adormecido. A memória
seguinte foi de um despertar agreste pelo
plástica do verso e quando a abri um espirro bloqueou-me
os sentidos numa explosão à altura do
frustração, não tinha uma secretária onde
pudesse escrever. Puxei a mesa-de-ca-
O bater na porta intensificou-se e uma
voz abafada chegou-me aos ouvidos:
tendes queixa-te ao Pai. Ele há-de gostar
de saber que andas a fazer apostas so-
alarme do costumeiro despertador.
Sexta-feira. Infelizmente era o último da contra-capa rosto. Quando reabri os olhos um enve-
lope repousava, indiferente, no fundo da
beceira de modo a que sentado na cama
pudesse usá-la para escrever. Recuperei o
Rebenta com essa merda!
Um estrondo anunciou a chegada de
bre mortais. Perante o silêncio, ele continuou.
Agora tens de admitir que aquilo que ele
dia da semana. Face ao que acontecera mala. A sua delicadeza leitosa contrastava caderno da mala e, indiferente à madruga- farpas e pequenos pedaços de madei- escreveu não vale nada. A tua inspiração
no dia anterior estaria melhor a trabalhar, do caderno. Não com o fundo sujo e gasto. Os meus de- da, peguei na caneta. Nada aconteceu na ra que se reuniram ao estuque e ao pó só lhe trouxe a loucura e temo que a tua
sem pensar, longe de casa e de tudo. Nem dos calejados tremeram na sua direcção e primeira hora. Fiquei ali, quieto e mudo, numa vertigem de detritos fotónicos. beleza tenha o mesmo efeito em mim.
me preocupei em tomar banho. Desde
que acordara, há alguns minutos, que a
tinha mais folhas, sem me sentar abri-o. Continha uma folha
apenas. Quase nem precisaria de ler para
a lutar com a folha branca. Finalmente,
a caneta começou a mover-se mas quan-
Nem olhei. Continuei a escrita diabólica e
sem sentido. Após um momento, durante
Eu sei. As minhas cartas apenas lhe
acicataram a necessidade de escrever e a
história dos envelopes me impulsionava
a vontade, a curiosidade e, apesar de não não tinha mais saber o que tinha escrito:
Quando escrever um capítulo receberá 1000€.
do comparada com o avançar da noite
era como se estivesse parada. Arrancava,
o qual escarafunchei um ponto final de
tinta derramada, alguém me agarra pelo
inspiração de nada lhe serviu. Mas con-
tinuo a dizer que não foi justo. Ele não
o admitir, também a ganância. Antes de Mais, o facto de o envelope estar numa a custo, cada palavra do fundo da minha colarinho. As letras fogem-me do campo teve tempo para terminar o que começou.
sair de casa dei uma volta por cada uma caneta, não tinha mala que eu ou, dada a quantidade de pó, mente. As poucas que existiam estavam de visão e caio de costas no chão. O rosto Respondeu Calíope ignorando o gracejo.
das divisões mas não encontrei nada que outra pessoa qualquer não abria há mais lá encerradas e desconheciam quando ou do Sr. Júlio surge-me de cima como uma Nisso concordamos, respondeu-lhe o jovem
se assemelhasse a um dos misteriosos en-
velopes. Quebrou-me a ausência da des-
mais palavras. de 10 anos, não me causou qualquer es-
tranheza. Aquela frase hipnotizava-me
como deviam apresentar-se à minha mão
que, insegura, escrevinhava. O ar abafado
visão celestial.
Mas tu enlouqueceste?! Que raio estás a fazer,
com um sorriso no rosto. O tempo dele che-
gou ao fim e a minha paciência também.
coberta mas era algo que esperava.
Fui para o trabalho em piloto automáti- Tinha apenas um para lá de qualquer suspeita. Ainda mais
resoluto, coloquei alguma roupa na mala
do quarto, empestado de sexo esquecido
e perfume barato, ocluía-me os poros da
pergunta-me ele com a raiva anestesiada
pela incredulidade.
Reclamo a minha vitória e exijo o paga-
mento.
co. Todos os meus sentidos estavam alerta e em último lugar pus o meu material de pele que, sufocados, choravam um suor Um capítulo, respondi eu enquanto sor- Tem calma meu querido irmão. Tal an-
para o chão que pisava e as minhas mãos, nó na garganta e escrita. A caneta e o caderno cujas suces- pegajoso e desconfortável. Por cada pala- ria para a parede que me surgia gatafu- siedade parece-me demasiado antecipada.
na viagem de metro, viajavam também sivas tentativas de parágrafo lhe haviam vra que escrevia, rasgava uma folha. Por nhada e desfocada por trás do Sr. Júlio. Terás tu tido mão no fatídico desfecho do
para os bolsos da minha roupa num cor-
rupio expectante. A viagem decorreu sem
um desespero que reduzido as folhas para metade. Desci
as escadas às escuras e passei no café da
cada folha que rasgava, envelhecia um ano.
Por cada ano que envelhecia perdia mais
O quê?
Um capítulo para te pagar o que devo.
pobre mortal? Perguntou a Ninfa.
Por quem me tomas? Algum trapaceiro
sobressaltos. Frustrado, dirigi-me ao bal-
neário para vestir a farda. Assim que abro me afunilava a Dona Amélia. Admirada, ela perguntou-
me onde eu ia de mala feita e preocupa-
um minuto. Por cada minuto perdido a lua
distanciava-se de mim na direcção do hori-
Levanta-o!, ordenou, e umas mãos enor-
mes elevaram-me do chão.
sem alma? Apenas os guio a Hades, não os
mato! Vamos, não te faças de difícil! Se não
o cacifo, um envelope desliza num voo ra- ção nos ombros. Tentei disfarçar mas zonte roubando-me o pouco magnetismo Vou-te perguntar uma única vez. Onde está o querias perder não tinhas apostado de início.
sante para o chão. Sinto o coração a agitar- perseverança. acabei por confessar que precisava de fé- que me permitia conservar a caneta nos meu dinheiro? Querias fugir sem pagar?, berrou A jovem deixou cair o pergaminho que trazia
se no peito e olho em volta. Apenas estava rias e que ia passar uns dias fora. Na om- dedos num vaivém marulhado de escrita. tão perto de mim que senti o impacto de na relva verdejante e aproximou-se lentamente de
o Artur a vestir-se, a alguns cacifos de dis- breira da porta, com o reclame luminoso Depois de muitas horas rasgadas e fo- cada palavra na minha face. Sorri e apon- Hermes. A cada passo resvalava-lhe a toga des-
tância, enquanto assobiava uma melodia a aprofundar-me os abismos por baixo lhas perdidas, num momento de raiva, tei para um envelope que estava no chão, vendando um corpo divinal. Ele abraçou-a e deu-
alegre que antecipava o fim-de-semana. dos olhos, disse-lhe que qualquer coisa rebentei a caneta ao meio e a tinta de um junto à porta. O Sr. Júlio afastou-se, pe- lhe um beijo que, contudo, não foi correspondido.
Agachei-me como se fosse arrumar os me podia ligar para a Esmeralda. Ela as- azul negro explodiu-me nas mãos, rosto gou no envelope e abriu-o com rispidez. Então? Também não pagas as tuas dí-
sapatos no fundo do cacifo e apanhei o te nem sequer serviam como sinal para o sentiu com a cabeça mas manteve o olhar e roupas. Comecei a chorar e as lágrimas, Retirou do seu interior um pedaço de pa- vidas? Perguntou ele maldosamente. Se qui-
envelope. A suavidade do papel desper- que estava a dever ao cabrão do Sr. Júlio. apoquentado. com laivos azulados, deslizaram pela su- pel que leu devagar. seres podes fechar os olhos. Prometo
tou em mim uma agradável lembrança. Por isso, o bichinho que me remoía cá A Esmeralda era uma pensão onde perfície plástica do verso da contra-capa Mas estás a gozar com a minha cara? ser rápido. Num misto de resignação e des-
Sentei-me no banco e observei o objecto. dentro era a possibilidade de outro en- noutros tempos eu pernoitara com do caderno. Não tinha mais folhas, não O medo assistiu-me pela primeira vez e prezo, Calíope entreabre os lábios e entrega-se
Era igual aos anteriores. De uma tonalida- velope. A ideia assustava-me tanto como Esmeraldas desta vida. Era o tipo de local tinha mais caneta, não tinha mais palavras. apenas respondi. à paixão fogosa e célere do seu meio-irmão.
de cremosa e indefinida, de um corte ele- me atraía. Não fazia ideia do que viria a onde algum dinheiro nos permitia aliviar Tinha apenas um nó na garganta e um Mas eu escrevi tanto... BANG!
gante e, desta vez, mais volumoso. Abri-o seguir a um parágrafo e escrever aquele a tesão aliviados também de perguntas e desespero que me afunilava a perseveran- Foda-se. O gajo passou-se. Parte-lhe as pernas
com o vagar com que se cuida de alguém fora como escrever uma porra dum livro más línguas. ça. Olhei em volta e reparei que o reflexo e mete fogo nesta espelunca. Isto vai ensinar os
que gostamos. O envelope continha dez inteiro, mas quando cheguei a casa, depois Fiz o percurso a pé, com a mala a pe- dourado de sol ainda imberbe pulava de outros a pagarem tudo a tempo e horas.
notas de 10€. Novas. Brilhantes. Perfeitas. de espreitar de uma esquina se não tinha sar-me no braço e a frase a pesar-me na partícula de pó em partícula de pó en- As mãos largaram-me e caí, mais uma vez,
Contei-as várias vezes. Voltei a guardá-las ninguém a fazer-me uma espera, passei cabeça. Já passava da meia-noite quando chendo o quarto de luz fresca. Inspirado, no chão, amparado apenas pelos restos da por-
no envelope que coloquei no bolso de trás o apartamento a pente fino à procura da um recepcionista jovem e ensonado me peguei na caneta despedaçada e dirigi-me ta e os pedaços de estuque. No mesmo instante
das minhas calças que por sua vez pendu- próxima mensagem. Não encontrei nada deu a chave de um quarto individual no para a parede mais distante que, de fren- uma dor lancinante obriga-me a gritar já que Pedro Vicente Pedroso nasceu há 30 anos em
rei num cabide do cacifo. Fui para o tape- o que me aumentou a ansiedade. Dei por segundo andar. Antes de subir perguntei- te para a janela, era tingida de um bran- uma barra de ferro me fracturara o osso da per- Lisboa onde vive actualmente com a mulher,
te rolante com um sorriso que, a custo, lá mim a falar alto, a perguntar onde pode- lhe, com desinteresse fingido, o que era co iridescente transformando-a na maior na. O segundo impacto quase me rouba a cons- a filha e o cão. É farmacêutico e encontrou nos
surgiu por entre as rugas. ria estar o maldito envelope. Entrei e saí um capítulo. folha que eu já tinha visto. Iluminado, re- ciência mas ainda cheiro a gasolina que deitam livros e na escrita um complemento para a
A viagem para casa foi ocupada por de casa várias vezes. Mas o chão do hall Um capítulo? Perguntou ele, então isso é comecei a escrever. Riscos ao acaso numa sobre mim. Com um derradeiro esforço arrasto- rotina diária dedicada aos medicamentos. Este
contas mentais. 100€ eram vinte contos estava sempre vazio. Ponderei ir andar aquilo dos livros. tentativa infantil de palavras. Enquanto me na direcção do papel amachucado que o Sr. conto será a sua primeira publicação pela Saída
na moeda antiga que apesar de ser bastan- de metro, sem destino, mas achei a ideia Dos livros? empurrava a caneta contra a parede esfa- Júlio deitara ao chão. A dor é excruciante e de Emergência.

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JUSTIN CRONIN
a pas s ag em Publicado pela Editorial Presença, o romance
pós-apocalíptico que conquistou a crítica mais exigente

ENTREVISTA EXCLUSIVA À REVISTA BANG!

SAÍDA DE EMERGÊNCIA: Foi considerado o even- SDE: Uma dos pontos fortes do romance é o modo
to literário do ano e os direitos de adaptação para filme como torna os virais cientificamente plausíveis. Como é
foram vendidos ainda antes de o manuscrito estar ter- que evoluiu o background científico do romance? Foi tão
minado. O que cativou tanto os leitores na sua obra A fácil de lidar quanto as questões filosóficas e literárias?
Passagem? JC: Uma das minhas intenções originais era a de recriar
JUSTIN CRONIN: Penso que tudo se reduz ao facto o mito do vampiro sem magia. Não sou particularmente
de os leitores gostarem de uma boa história – persona- fã de magia na ficção. Parece algo demasiado fácil. Se
gens pelas quais se interessam, um enredo que as faz permitirmos a magia num texto, qualquer coisa pode
continuar a virar páginas, uma escrita que torna as cenas acontecer, julgo eu, e penso que um bom romance é
vívidas. Mas também penso que o livro aborda certas aquele que surge dentro de limites bem definidos. Tam-
ansiedades contemporâneas, de mudanças climáticas bém considero que a magia foi em larga medida ultra-
a terrorismo e ameaça de uma pandemia global. É um passada pela ciência no nosso tempo. Qual é a diferença
mundo assustador, e os leitores gostam de exorcizar os entre o meu iPhone e uma varinha mágica? Não muita.
seus medos através da leitura.
SDE: Um dos momentos mais comoventes da primeira
SDE: Quão difícil foi combinar o horror, a ficção cientí- parte de A Passagem é a relação afectuosa semelhante
fica, o terror apocalíptico e o thriller, reforçados por refe- a pai e filha entre Amy e Wolgast, que ecoa temas como
rências literárias importantes e mitos gregos e bíblicos? a perda, luto e amor entre pais e filhos presente na peça de
Foi algo que surgiu naturalmente ou foi difícil prestar Shakespeare, Rei Lear. Na essência, A Passagem é uma his-
uma homenagem a cada um destes géneros e combinar tória sobre a humanidade e a fragilidade dos laços humanos?
todas as suas influências literárias? JC: É sobre a sua fragilidade, mas também a sua força.
JC: E não esquecer as influências ocidentais! Posto dessa Qualquer romance sobre o apocalipse deve também dar
forma, parece que foi algo muito difícil mas na verdade a lugar ao que pode ser salvo, e ao que vale a pena ser sal-
escrita decorreu de modo muito natural. vo, da humanidade.

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SDE: O seu romance também reflec-
te nas temáticas da morte e imortali-
JC: As coisas parecem estar a evoluir
nesse sentido, embora eu acrescentas- uma crítica de
João Barreiros
dade. A imortalidade dificilmente po- se que as forças que nos controlam,
deria ser considerada uma coisa boa pelo menos no mundo desenvolvido,
num mundo em ruínas como descrito são bem mais subtis e complexas.
na sua obra. Pode haver finais felizes Como sabe o Facebook que estou
para imortais? interessado num serviço ou produto
JC: Finais felizes humanos, não. em particular? Rendemo-nos todos os
Muita da riqueza e cor da vida vem dias, cada vez mais, à gigante máqui-
do facto de ser finita, e nós sabemos na de marketing da cultura de consu-
isso. A morte faz com que as coisas mismo. Provoca-me arrepios.
tenham mais importância.
SDE: Sendo editora de uma revista
SDE: Os leitores já estão fartos de
vampiros graças a séries como a da
Stephanie Meyer e todas as obras de-
de literatura especulativa e traba-
lhando numa editora que publica
esse tipo de literatura, tenho consci-
V erdade seja dita, todos nós gosta-
mos de um agradável apocalipse
à hora do chá. Saber que não vamos
amigos, acontece da pior maneira.
Por isso é natural que os fins-do-
mundo sonhados pela literatura de
São quase indestrutíveis. Imortais.
Pérfidos quanto baste. E todos aque-
les que mordem, passam a pertencer
rivativas que se seguiram ao sucesso ência da fricção entre o género espe- acabar sozinhos, mas sim na agra- horror nada tenham de paradisíacos. à alcateia. Para sempre e mais um
dessa autora. No entanto, algumas culativo e a a literatura considerada dável companhia de biliões e bili- Stephen King, no seu monumental dia. São doze ao todo, como já vos
obras maduras e muito interessantes mainstream. Parece ainda haver ões de outros seres humanos. Que THE STAND (1978) matou quase disse. No final deste primeiro volume
surgiram em anos recentes, como Dei- bastante preconceito contra a ficção tudo o que detestamos vai ter um toda a população do mundo com foi preciso uma bomba nuclear para
xa-me Entrar de John Ajvide Lindqvist científica, o horror ou o a história final condigno, na melhor das vezes uma gripe viral e depois deixou os dar cabo de apenas um deles, e isso
ou A Estirpe de Guillermo Del Toro alternativa. No entanto, A Passagem catastrófico. O nosso patrão há-de sobreviventes à mercê dos demónios. com extremo prejuízo.
e Chuck Hogan. E agora A Passagem. conseguiu a difícil propeza de com- agonizar juntamente com os nossos Robert McCammon num outro apo- Justin Cronin apareceu de pára-que-
Estes livos descrevem vampiros mui- binar sucesso popular com uma boa colegas. A sogra, o vizinho, e o fiscal calipse ainda superior em qualidade
to mais assustadores e perturbantes. história de horror e com vampiros. das finanças não vão ficar para trás a ao do King, SWANN SONG (1987)
Quanto mais os receamos, mais senti- Lev Grossman também conheceu rirem-se, a gozar o pratinho da nossa deu cabo do mundo num apocalipse
mos fascínio por eles? o sucesso com o seu romance The íntima agonia. Já pensaram como nuclear e deixou os poucos sobrevi-
1
JC: Os livros da Meyer não me in- Magicians, fantasia à Bret Easton será o mundo depois de nós? Sem ventes irradiados a errar num conti-
teressam porque não foram escritos Ellis. Está consciente da fricção jogo da bola ao domingo, com as nente de cinzas em busca do último
para mim – foram escritos para jovens entre estes dois mundos literários? ruas repletas de trogloditas, sem rádio silo controlado por... (pois então, por
mulheres. O que é perfeitamente jus- JC: É difícil não nos apercebermos aos altos berros, sem escarros nos demónios)...
to. Também tenho uma filha adoles- dessa fricção, e sim, tenho consciên- passeios ou pastilhas elásticas cola-
cente. Mas as histórias de vampiros cia dela. Mas não é uma discussão na das ao banco onde nos vamos sentar?
Ah, o silêncio...a paz...a calma de um
mundo sem nós....o ruído do vento a
passar de mansinho entre as órbitas
“Uma das minhas intenções originais era vazias dos crânios abandonados no
interior das carcaças ferrugentas dos
carros.
a de recriar o mito do vampiro sem magia.” Todo este planeta pós-catástrofe se-
ria um local ideal para se viver, não
PREÇO
FNAC:
18,90€

acham? Apenas nós e aqueles que das no meio da literatura fantástica.


nos são caros, como únicos sobrevi- Até ali, o prado dele era o mainstre-
nunca irão desaparecer. Cada geração qual goste de me envolver; parece-me SDE: Podemos esperar uma visita ventes num mundo vetado ao aban- am. E nota-se, porque toca demasia-
tem as suas histórias de vampiros, e um pouco disparatado. Há ficção sua a Portugal algum dia? dono. Como novos Adãos, de mãos do na tecla dos estados de alma dos
eu tenho as minhas. Mas também li que é escrita meramente para entrete- JC: Adoraria! Por favor, alguém me dadas com as nossas esculturais seus personagens. Mas apesar de
muitos livros de ficção apocalíptica nimento, e ficção que é considerada convide. companheiras, perante um pôr-do-sol PREÇO
FNAC: umas quantas longueurs na narrativa,
quando era criança. Nasci em 1962 arte, mas a maioria da ficção cai num cheio de promessas. 19,90€ A PASSAGEM é, ou vai passar a ser,
pelo que cresci durante a Guerra Fria. meio-termo entre ambos. Eu gosto Obrigado pela entrevista que conce- Desenganem-se. Infelizmente as Agora chegou a vez de PASSAGEM mais um ícon na cronologia dos fins-
Essa foi a grande influência na minha de uma obra bem escrita, mas tam- deu à revista BANG! coisas não vão correr pelo melhor. de Justin Cronin que promete ser ain- do-mundo onde todos nós gostamos
escrita. Simplesmente usei vampiros bém gosto de um bom enredo. Acabou-se a aspirina. A coca-cola da mais maciço, pois trata-se apenas de molhar o pãozinho. As cenas de
como um meio para atingir um fim. bem fresquinha. A electricidade e os do primeiro volume de uma prome- horror, quando Cronin a elas se de-
SDE: Pode nomear escritores de fic- Apesar Justin Cronin, nascido em Nova almoços pré-cozinhados. Quando vos dica, são arrepiantemente deliciosas.
Inglaterra, nos Estados Unidos, concluiu tida trilogia. Uma vez mais um vírus
SDE: Os cientistas e militares são ção especulativa que tenham influen- der um treco não vai haver ninguém fica à solta, uma vez mais os militares Desafio-vos a não estremecer na cena
os responsáveis pelos eventos apo- ciado a sua obra A Passagem? a sua formação em Harvard e no Iowa’s que vos ajude com uma massagem da biblioteca municipal abandonada.
Writer Workshop. Anteriormente (malvadas criaturas) são os respon-
calípticos presentes em A Passagem. JC: O livro mais influente terá sido cardíaca. Mesmo que sobrevivam à sáveis, mas desta vez o vírus provoca Até aqui não sabia que os vampiros
Ambos estão a tentar criar o súper- Earth Abides de George Stewart, escreveu “Mary and O’Neil”, que venceu desgraça, a vossa esperança de vida gostavam de ler, ou pelo menos con-
a imortalidade aliada à fotofobia, à
soldado, um conceito também pre- publicado na década de 40. Quando o PEN/Hemingway Award e o Stephen conta-se em poucos anos. Uma cárie viver com as páginas bolorentas dos
perda de consciência individual, à
sente em outros livros, filmes e séries era criança, era, sem dúvida, o meu Craine Prize, entre outros títulos. “A mata. Uma gripe mata. Uma apendi- livros.
dependência do ferro que só existe no
televisivas. Tal reflecte uma preocu- livro favorito. Passagem” é o primeiro livro de uma cite mata. Em resumo: This is the end, Um romance para ler devagarinho,
sangue dos outros. Uma experiência
pação pela nossa realidade? Estamos grandiosa trilogia que entrou directa- my friend... dá para o torto numa base militar na noite tempestuosa, quando o
condenados a correr para salvar as SDE: O que podem os leitores espe- mente para os lugares cimeiros das Sem contar com os monstros que nos secreta, como costuma acontecer um vento sopra e as ramagens tambori-
nossas vidas, como as suas persona- rar do que resta da vida de Amy nos tabelas de vendas do “New York Times” esperam ao virar da esquina, porque número invariável de vezes. Doze psi- lam nas portadas das nossas janelas.
gens, num mundo que controla cada volumes seguintes de A Passagem? e foi considerado um dos dez melhores esses, como toda a gente sabe, são copatas infectados dispõem-se com Divirtam-se.
vez mais os movimentos dos seus JC: A sua vida é longa. Muito mais romances do ano da sua publicação bem mais resistentes do que nós. Shit alegria a infectar o resto do mundo. BANG!
cidadãos? está para vir. (2010) pela revista “Time”. happens. E quando acontece, meus

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O
O que pensava que ele era – à nossa volta, é tudo tão bom e força de expressão – respondeu
um palerma, um preguiçoso, uma calmo. Conseguimos sentir tudo a Woodley. – Depois destes anos
nulidade fardada? Será que não girar e a virar. É agradável, preciso todos, já ninguém sabe se temos
sabia que por cada meia hora e compacto. É mais ou menos alma ou não.
de explosão luminosa, ficava no como ficar em casa. - Mas em certa ocasião eu vi
mínimo dois meses no hospital a Woodley soltou um grunhido. uma. Vi como era o Dogwood
recuperar? Não era muito dado a rasgos de quando ele se despedaçou. Havia
Naquela altura, o dispositivo fantasia. qualquer coisa engraçada. Parecia

Jogo da
já estava quente. Sentiu o quadri- Sem se deixar deter, Underhill molhada e talvez pegajosa como
culado do espaço em seu redor, continuou. se estivesse a sangrar e a sair do
sentiu-se no meio de uma imensa - Deve ter sido bastante bom corpo dele – sabes o que fize-
grelha, uma grelha cúbica, cheia ser um Ancião. Questiono-me ram ao Dogwood? Levaram-no
de nada. Lá fora, no vazio, podia por que será que queimaram o para longe, para aquela parte do
sentir o terror doloroso e oco do mundo deles com a guerra. Eles hospital onde eu e tu nunca fo-

Ratazana
próprio espaço; sentia também a não tinham acesso à viagem entre mos – mesmo lá para cima, para
terrível ansiedade que a sua mente planos. Não tinham de sair de aquela parte onde estão os outros,
encontrava de cada vez que se casa para ganhar a vida no meio para onde os outros têm de ir se
cruzava com o mais pequeno das estrelas. Não tinham de se continuarem vivos depois das
vestígio de poeira inerte. desviar das Ratazanas ou jogar o Ratazanas do Exterior Longínquo
Enquanto descontraía, a solidez Jogo. Não podiam ter inventado os terem apanhado.

e do
reconfortante do Sol, a rotação a explosão luminosa porque não Woodley sentou-se e acendeu
regular dos planetas familiares e tinham necessidade de a ter, pois um cachimbo antigo. Estava a
da Lua soaram dentro de si. O não, Woodley? queimar uma coisa a que cha-
nosso sistema solar era tão encan- Woodley soltou um grunhido. mavam tabaco. Era um hábito

Dragão
tador e simples como um relógio - Hmm-hmm. bastante desagradável, mas fazia-o
de cuco antigo, repleto de tique- Woodley tinha vinte e seis anos parecer muito arrojado e aventu-
taques familiares e sons tranquili- e faltava-lhe um ano para se poder reiro.
zadores. As pequenas e estranhas reformar. Já tinha escolhido uma - Escuta uma coisa, jovem.
luas de Marte balouçavam-se em quinta e tudo. Tinha passado dez Não precisas de te preocupar
redor do seu planeta como pe- anos de trabalho árduo com as com essas coisas. As explosões
quenos ratos frenéticos, no en- explosões luminosas, trabalhando luminosas estão a melhorar con-
tanto, a sua regularidade era uma ao lado dos melhores. Manteve a tinuamente. Os Parceiros estão
confirmação de que tudo estava sua sanidade mental não pensan- a melhorar. Já os vi a explodir
bem. Muito por cima do plano da do muito acerca do trabalho que com duas Ratazanas que esta-
um conto de eclíptica, sentia meia tonelada de fazia, correspondendo às exigên- vam a quarenta e seis milhões de
poeira a deslizar mais ou menos cias da função sempre que era milhas de distância uma da outra

CORDWAINER SMITH no exterior da zona de viagens


humanas.
Ali não havia nada contra o que
necessário e não pensando mais
nos seus deveres até que a próxi-
ma emergência surgisse.
em apenas um milésimo de se-
gundo e meio. Enquanto as pes-
soas tinham de tentar trabalhar
Tradução de Ana Mendes Lopes lutar, nada que desafiasse a men- Woodley nunca fez questão de sozinhas com os dispositivos
te, que rasgasse a alma viva e a se tornar popular por entre os amplificadores, havia sempre a
Título Original: The Game of Rat and Dragon
separasse do corpo com as raízes Parceiros. Nenhum dos Parceiros possibilidade de, com um míni-
a pingar um eflúvio que era tão gostava muito dele. Alguns até mo de quatrocentos milésimos
palpável como o sangue. guardavam ressentimentos contra de segundo para que a mente
A MESA Nunca nada se movia no Sis- ele. Suspeitava-se que em certas humana compusesse uma explo-
tema Solar. Ele podia usar o dis- ocasiões tivera pensamentos feios

A
são luminosa, não conseguirem
explosão luminosa era uma positivo de explosão eternamente a respeito dos Parceiros, mas uma atingir as Ratazanas com velo-
maneira diabólica de se ganhar e nunca ser mais do que uma vez que nunca nenhum dos Par- cidade suficiente para proteger
a vida. Ao fechar a porta atrás espécie de astrónomo telepata, ceiros pensava na forma articu- as naves que se encontram em
de si, Underhill estava furioso. Não fazia um homem que conseguia sentir lada de uma queixa, os restantes viagem entre planos. Os Parcei-
grande sentido usar um uniforme e pare- a protecção calorosa e agradável agentes de explosão e os Chefes ros vieram alterar isto. Assim
cer um soldado se as pessoas não davam do Sol a queimar e latejar contra a da Instrumentalidade deixavam- que se encontram preparados,
valor ao que fazia. sua mente viva. no em paz. são mais rápidos que as Rataza-
Sentou-se na cadeira, recostou a cabe- Underhill continuava pleno de nas. E sempre serão. Sei que não

W
ça e puxou o capacete por cima da testa. oodley entrou. admiração pelo seu trabalho. E é fácil – deixar que um Parceiro
Enquanto esperava que o dispositivo - É o mesmo velho continuou a tagarelar alegremente: partilhe a nossa mente…
amplificador aquecesse, lembrou-se da mundo cadenciado – - O que nos acontece quando - Para eles também não é fácil
rapariga que encontrara no corredor disse Underhill. – Não há nada a fazemos uma viagem entre pla- – disse Underhill.
exterior. Ela olhou para o dispositivo e relatar. Não admira que não te- nos? Achas que é mais ou menos - Não te preocupes com eles.
depois para ele, com desdém. nham desenvolvido o dispositivo como morrer? Alguma vez viste Eles não são humanos. Deixa
- Miau – foi tudo o que a rapariga amplificador até terem começado alguém a quem tenham arrancado que se cuidem sozinhos. Já vi
disse. Porém, Underhill sentiu-se atingi- a viajar entre planos. Aqui em a alma? mais agentes de explosão a en-
do em cheio. baixo, com o Sol quente a andar - Arrancar a alma é apenas uma louquecer por andarem sempre

54 /// BANG! BANG! /// 55


de roda dos Parceiros do que se assemelhavam a borbulhas na bilidade desenvolvida a um nível iam encontrar. Era triste levar de e a procura de Parceiros treinados dura e perigosa que era a explosão
aqueles que alguma vez vi se- sua mente telepática e os planetas extraordinário quando usavam os volta para a Terra trezentos cor- também subiu. luminosa.
rem apanhados pelas Ratazanas. estavam demasiado afastados para dispositivos amplificadores, que pos prontos para serem enterra- Underhill e Woodley eram Underhill divertira-se em certa
Quantos conheces realmente que serem pressentidos ou lidos. eram amplificadores telepáticos dos e mais duzentos ou trezentos parte de uma terceira geração de ocasião quando encontrou um dos
se tenham deixado apanhar pelas Algures naquele espaço exte- adaptados para a mente dos mamí- enlouquecidos, sem salvação pos- agentes de explosão luminosa, no Parceiros mais indolentes a sair
Ratazanas? rior, aguardava-os uma morte feros. Por sua vez, os dispositivos sível, apenas para serem acorda- entanto, para eles, a sua profissão todo contente por ter estado com
horrenda, morte e terror de um eram electronicamente orientados dos, alimentados, limpos e coloca- parecia ter existido desde sempre. a mente da menina chamada West.

U nderhill olhou para os tipo que o Homem nunca encon- para conduzirem pequenas bom- dos a dormir, depois novamente Interiorizar na mente o espaço Normalmente os Parceiros
dedos, que brilhavam em trara até que saiu para o próprio bas de luz. Era a luz o elemento acordados e alimentados até que através dos dispositivos amplifi- não se preocupavam muito com
tons de verde e roxo sob espaço interestelar. Aparente- fulcral. as suas vidas se esgotassem. cadores, adicionar os Parceiros à a mente humana com que eram
a luz vívida que o dispositivo am- mente a luz do Sol mantinha os A luz despedaçava os Dragões, mente e prepará-la para a tensão emparelhados para o trabalho. De
plificador ligado emitia e come-
çou a contar as naves. O polegar
Dragões afastados. permitia que as naves voltassem
à sua forma tridimensional, em
O s telepatas tentaram
entrar na mente dos
de uma luta da qual tudo depen-
dia – era demasiado para que as
qualquer maneira, os Parceiros
pareciam aceitar que as mentes

D
representava Andrómeda, perdida ragões. Era o que as pequenos saltos, enquanto se loucos que tinham sinapses humanas o pudessem humanas eram complexas e polu-
com tripulação e passageiros, o pessoas lhes chama- moviam de estrela em estrela. sido alvo dos Dragões, mas não suportar durante muito tempo. ídas além do que era concebível.
indicador e o dedo médio eram vam. Para as pessoas As probabilidades mudaram encontraram nelas nada além de Underhill precisava dos seus dois Nenhum Parceiro questionava a
para as Naves Libertação 43 e comuns não existia nada, nada subitamente de cem para um vívidas colunas de terror feroz meses de descanso depois de superioridade da mente humana,
56, encontradas com todos os a não ser o calafrio da viagem contra a humanidade para sessen- que jorravam do próprio id primi- cada meia hora de luta. Woodley embora fossem muito poucos
dispositivos queimados e todos entre planos e o golpe pesado ta para quarenta a favor dela. tivo, da fonte vulcânica da vida. precisava da reforma depois de os que se deixavam impressionar
os homens, mulheres e crianças a da morte repentina ou a nota Isto não era o suficiente. Os Foi então que surgiram os Par- dez anos de serviço. Eram ambos com tal superioridade.
bordo mortos ou loucos. O dedo espasmódica e negra da loucura telepatas foram treinados para ceiros. jovens. Eram bons. Mas tinham Os Parceiros gostavam de pes-
anelar, o mínimo e o polegar a penetrar nas suas mentes. se tornarem ultrassensíveis, para O Homem e o Parceiro faziam os seus limites. soas. Estavam dispostos a lutar ao
da outra mão representavam as Mas para os telepatas, os Dra- se aperceberem da presença dos juntos aquilo que o Homem não Tantas coisas dependiam da lado delas. Estavam até dispostos
primeiras três naves de batalha gões existiam. Dragões em menos de um milési- podia fazer sozinho. O Homem escolha dos Parceiros, assim a morrer por elas. Mas quando um
que seriam perdidas para as Ra- Na fracção de segundo que mo de segundo. possuía o intelecto. O Parceiro como na pura sorte de quem Parceiro gostava de um indivíduo
tazanas – perdidas à medida que se passava entre a percepção Mas descobriu-se então que os 1 possuía a velocidade. atraía quem. da maneira como, por exemplo,
as pessoas percebiam que havia dos telepatas de que existia uma Dragões conseguiam percorrer Os Parceiros deslocavam-se o Capitão Wow ou a Lady May
ali qualquer coisa por baixo do entidade hostil no vazio negro e um milhão de milhas em pouco nas suas minúsculas naves, não gostavam de Underhill, esse afec-
próprio espaço que estava vivo, era oco do espaço e o impacto de um menos de dois milésimos de se- maiores que bolas de futebol, to não tinha nada que ver com
inconstante e malévolo. golpe psíquico feroz e ruinoso, gundo e que este tempo não era no exterior das naves espaciais. A MISTURA o intelecto. Era uma questão de
A entre planos planos era mais desferido contra todos os seres o suficiente para a mente humana Faziam as mesmas viagens entre temperamento, de sensibilidade.
ou menos engraçada. Parecia,
parecia…
Não se parecia com grande
coisa.
vivos que viajavam na nave, os
telepatas identificavam criaturas
de algum modo semelhantes aos
Dragões que existiam no folclore
activar os raios de luz.
Ainda tentaram envolver per-
manentemente as naves em raios
de luz.
planos que as naves. Navegavam
ao lado delas nas suas cápsulas
de menos de três quilos, prontas
a atacar.
As minúsculas naves dos
O Pai Moontree e a pe-
quena menina chamada
West entraram na sala.
Eram os outros dois agentes de
explosão. O complemento hu-
Underhill sabia perfeitamente
que o Capitão Wow encarava a sua
inteligência, a de Underhill, como
patética. Ele gostava da estrutura
emocional amigável de Underhill,
Talvez com o formigueiro de antigo dos humanos; bestas mais Esta defesa esgotou-se.
um pequeno choque elétrico. espertas que as bestas, demónios À medida que a humanidade Parceiros eram velozes. Cada mano da Sala de Combate estava a boa disposição e o brilho de
Como a dor de um dente ao mais palpáveis que os demónios, descobria mais sobre os Dragões, uma levava uma dúzia de mini- agora inteiro. divertimento perverso que passava
morder pela primeira vez. vórtices esfomeados de vida e também aparentemente os Dra- bombas, que não eram maiores O Pai Moontree era um ho- por entre os padrões inconscientes
Como um raio de luz ligeira- ódio, compostos através de meios gões descobriam mais sobre a do que dedais. mem de quarenta e cinco anos, de pensamento do rapaz e a ale-
mente doloroso apontado aos desconhecidos a partir da ténue humanidade. De algum modo, eles Os agentes atiravam os Parcei- rosto vermelho, que tinha vivido a gria com que Underhill encarava
olhos. e frágil matéria que se encontrava conseguiam tornar o seu corpo ros – atiravam-nos literalmente – pacífica vida de um agricultor até o perigo. As palavras, os livros de
No entanto, nesse momento, por entre as estrelas. mais achatado e atacar rapidamente através da determinação telepáti- completar quarenta anos. Só nessa história, as ideias, a ciência – Un-
uma nave de quarenta mil tonela- Foi necessário que uma nave através de trajectórias muito planas. ca, em direcção aos Dragões. altura, tardiamente, as autoridades derhill conseguia pressentir tudo
das que se erguia livremente por sobrevivesse para trazer as notí- Era necessário recorrer à luz O que para a mente humana descobriram que era telepata e isto na sua própria mente, reflec-
cima da Terra desapareceu de um cias – uma nave que, por mero intensa, uma luz com a energia da pareciam ser Dragões, apareciam concordaram em deixar que, ape- tidas na mente do Capitão Wow,
modo ou de outro para uma rea- acaso, tinha um telepata com um luz solar. Apenas as bombas de luz sob a forma de gigantescas Rata- sar do avançado da idade, entrasse como grandes disparates.
lidade de duas dimensões e apare- feixe de luz a postos e que o virou podiam fornecer esta intensidade. zanas nas mentes dos Parceiros. na carreira de agente de explosão. A menina West olhou para Un-
ceu a meio ano-luz ou a cinquenta em direcção à poeira inocente, de Foi assim que surgiu a prática da Lá fora, no nada sem fundo Saía-se muito bem, mas era fantas- derhill.
anos-luz de distância. modo que, no panorama da sua explosão luminosa. que era o espaço, as mentes dos ticamente velho para aquele tipo - Aposto que puseste cola nas
Em dado instante, estava sen- mente o Dragão se dissolveu no A explosão luminosa consistia na Parceiros respondiam a um ins- de trabalho. pedras.
tado na Sala de Combate, com o vazio e os restantes passageiros, detonação de mini bombas fotonu- tinto tão velho como a vida. Os O Pai Moontree olhou para o - Não pus nada!
dispositivo amplificador a postos que não eram telepatas, foram cleares, ultravivídas, que convertiam Parceiros atacavam, batendo com sombrio Woodley e para o pensa- Underhill sentiu as orelhas
e o familiar Sistema Solar a pulsar às suas vidas sem saberem que a alguns gramas de um isótopo de uma velocidade superior à do tivo Underhill. ficarem vermelhas de vergo-
no interior da sua cabeça. Por morte imediata de todos acabara magnésio em radiação pura visível. Homem, passando de ataque em - Como estão os jovens hoje? nha. Durante o noviciado, tinha
um segundo ou um ano (sub- de ser evitada. As probabilidades continuavam a ataque até as Ratazanas, ou eles Preparados para uma boa luta? tentado fazer batota no sorteio
jectivamente, nunca conseguia Daí em diante, tornou-se fácil – descer, a favor da humanidade, no próprios, serem destruídos. Na - O Pai quer sempre uma luta – porque gostava particularmente
dizer quanto tempo se passava), ou quase. entanto continuavam a perder-se maior parte das ocasiões, eram os disse a menina chamada West com de um Parceiro, uma adorável
o pequeno e engraçado raio de naves. Parceiros quem ganhava. uma risada. Era uma menina tão jovem mãe chamada Murr. Era

A
luz trespassava-o e lá estava ele, s naves que se desloca- A situação tornou-se tão má que Com a segurança dos pulos in- pequena. O seu riso era agudo e tão mais fácil operar ao lado de
perdido no Exterior Longínquo, vam entre planos leva- as pessoas nem sequer queriam terestelares das naves, o comércio infantil. Parecia ser a última pessoa Murr e ela era tão afectuosa com
no terrível espaço aberto entre as vam sempre telepatas. encontrar as naves, porque as aumentou imensamente, a popu- no mundo que alguém esperava ele que Underhill até se esqueceu
estrelas, onde as próprias estrelas Os telepatas possuíam uma sensi- equipas de resgate sabiam o que lação de todas as colónias cresceu ver a trabalhar naquela actividade que a explosão luminosa era um

56 /// BANG! BANG! /// 57


trabalho árduo e que não fazia mentes de Underhill e do Capitão enquanto gatinha. Recordava-se tivesse qualquer significado para redor, as luzes palpáveis do tecto a
parte das instruções divertir-se imagens de Dragões, Ratazanas de cada experiência de acasala- um gato quando o dispositivo brilharem pesadamente contra as O JOGO
com o seu Parceiro. Tinham sido mortíferas, voluptuosas camas, mento que ela tivera. Viu numa amplificador não estava colocado. pálpebras fechadas.

U
ambos nomeados e preparados cheiro de peixe e o choque do galeria parcialmente identificável - É uma grande pena, enviar A sala desapareceu à medida que nderhill ficava sempre
para entrarem juntos numa batalha espaço. As consciências de ambos todos os restantes agentes com uma pequena e doce criatura o dispositivo amplificador aquecia. um pouco exasperado
mortal. unidas pelos dispositivos amplifi- quem ela fora emparelhada para como tu aos rodopios pelo vazio As outras pessoas deixaram de ser com a maneira como
Uma batota tinha sido suficien- cadores tornavam-se num com- lutar. E viu a sua própria imagem, gelado para caçar Ratazanas que pessoas e transformaram-se em Lady May experienciava as coisas
te. Acabara por ser descoberto e pósito fantástico de ser humano e radiosa, alegre e desejável. são maiores e mais mortíferas que pequenos e brilhantes montículos antes dele.
tornara-se no motivo de chacota gato Persa. Julgou até ter captado a aresta todos nós juntos. Não pediste para de fogo, brasas, lume vermelho Estava preparado para a rápida
durante anos. Era esse o problema em traba- de um desejo… entrar neste tipo de lutas, pois não? escuro, com a consciência da vida e acre emoção de viajar entre
O Pai Moontree pegou no copo lhar com gatos, pensou Underhill. Um pensamento muito lison- Como resposta, ela lambeu-lhe a arder como se fossem velhos planos, mas apanhou o relatório
de imitação de pele e agitou os Era uma pena que mais nenhum jeador e terno: Que pena ele não ser a mão, ronronou, acariciou o rosto carvões carmesim numa fogueira dela antes que os seus próprios
dados de pedra que determinavam ser servisse para Parceiro. Os um gato. de Underhill com a longa e fofa campestre. nervos pudessem registar o que
os seus Parceiros para aquela via- gatos eram bons a partir do mo- Woodley ficou com o último cauda e depois virou-se de frente À medida que o dispositivo acontecera.
gem. Por direitos de antiguidade, mento em que se entrava telepa- dado. Ficou com aquilo que me- para ele, com os olhos dourados a aquecia um pouco mais, Underhill A Terra tinha ficado tão afas-
foi o primeiro a saber quem lhe ticamente em contacto com eles. recia – um gato macho, taciturno, brilhar. sentiu a Terra mesmo por baixo de tada que ele andou alguns milési-
saía em sorteio. Eram suficientemente inteligentes assustadiço e velho que não tinha Ficaram a olhar um para o outro si, sentiu a nave a deslizar, sentiu a mos de segundo à procura, antes
para corresponder às necessidades nem uma ponta da coragem do durante um instante, o homem rotação da Lua enquanto se afasta-

F
de conseguir encontrar o Sol, no
ez uma careta. Tinha-lhe da luta, mas os seus motivos e Capitão Wow. O Parceiro de agachado, o gato erecto, apoiado va para o lado mais longínquo do canto superior direito traseiro da
saído uma personagem desejos eram com toda a certeza Woodley era o gato mais anima- nas patas traseiras, com as garras mundo, sentiu os planetas e a bon- sua mente telepática.
velha e gananciosa, um diferentes daqueles dos humanos. lesco da nave, um tipo baixo e da frente a enterrarem-se nos dade quente e clemente do Sol, que Aquele era um bom salto, pen-
macho rude e velho cuja mente Eram suficientemente sociáveis embrutecido com uma mente joelhos dele. Olhos humanos e mantinha os Dragões tão afastados sou. Desta forma ia conseguir lá
estava repleta de babosos pensa- enquanto os humanos pensas- bronca. Nem mesmo a telepatia felinos olhavam através de uma do solo nativo da humanidade. chegar em quatro ou cinco pulos.
mentos sobre comida, autênticos sem em imagens tangíveis, mas conseguira refinar a sua persona- imensidão que nenhuma palavra Chegou finalmente à consciên- Algumas centenas de milhas
oceanos cheios de peixes meio as suas mentes fechavam-se e lidade. As orelhas dele estavam conseguia descrever, mas que o cia plena. no exterior da nave, Lady May
estragados. Em certa ocasião, o adormeciam quando se recitava meias roídas, resultado das primei- 1 afecto explicava num único olhar. Estava telepaticamente desperto dirigiu-lhe um pensamento:
Pai Moontree disse que até arro- Shakespeare ou Colegrove, ou ras batalhas que travara. - Está na hora de entrar – disse para uma extensão de milhões de - Ó caloroso, ó homem gigan-
tara a óleo de fígado de bacalhau então quando se tentava explicar a Era um lutador serviçal, nada ele. milhas. Sentiu a poeira em que já tesco! Ó corajoso, ó amistoso, ó
durante semanas depois de lhe ter noção de espaço. mais. Ela caminhou docilmente para reparara antes a pairar bem no alto Parceiro terno e enorme! Que
saído em sorteio o dito glutão, tal Era mais ou menos engraçado Woodley soltou um grunhido. a sua nave esferóide. Entrou. Ele por cima da eclíptica. Com um maravilhoso estar contigo, tão
era a força das imagens telepáticas perceber que os Parceiros, criatu- Underhill olhou para ele com certificou-se de que o disposi- frémito de calor e ternura, sentiu a bom contigo, bom, bom, quente,
de peixe que ele transferiu para a ras tão sombrias e maturas ali no estranheza. Saberia Woodley fazer tivo amplificador em miniatura consciência de Lady May penetrar quente, está na altura de lutar, na
sua mente. Porém, o glutão era tão espaço eram os mesmos animais alguma coisa além de grunhir? estava firme e confortavelmente na sua. A consciência dela era tão altura de ir, que bom estar conti-
sedento por comida como pelo engraçados que as pessoas do- O Pai Moontree olhou para os colocado na base do seu cérebro. meiga e calorosa e no entanto tão go…
perigo. Contava com sessenta e mesticavam há milhares de anos, outros três. Certificou-se também de que as acutilante ao sabor da sua mente Underhill sabia que ela não
três Dragões mortos, mais do que na Terra. Já se tinha colocado em - Mais vale irem buscar os garras estavam cobertas para que como se fosse um óleo aromatiza- estava a pensar palavras, que a sua
qualquer outro Parceiro em fun- situações embaraçosas mais do vossos Parceiros agora. Vou infor- ela não pudesse arranhar-se com o do. Transmitia-lhe uma sensação mente pegava no claro e amistoso
ções e valia literalmente o seu peso que uma vez quando estava no mar o Perscrutador que estamos entusiasmo da batalha. relaxante e reconfortante. Conse- tagarelar do intelecto felino dela
em ouro. solo e cumprimentava gatos per- preparados para o Exterior Lon- Perguntou-lhe suavemente: guia sentir o agrado com que ela o e as traduzia em imagens que o
A seguir chegou a vez da pe- feitamente normais, não telepatas, gínquo. - Preparada? acolhia. Quase não chegava a ser seu próprio pensamento pudesse
quena menina West. Saiu-lhe o porque se esquecera que naquele Para lhe responder, Lady May um pensamento, era apenas uma registar e entender.
Capitão Wow. Quando viu quem instante eles não eram Parceiros. arqueou as costas tanto quanto o emoção pura de acolhimento. Nenhum deles estava absorto
lhe saíra, sorriu. Pegou no copo e agitou o seu arnês permitia e ronronou suave- Mais uma vez, eram finalmente no jogo dos cumprimentos mú-
- Gosto dele – disse. – É tão dado de pedra. O ACORDO mente dentro dos confins da nave um só. tuos. Ele procurou muito para lá
divertido lutar com ele. A sensação Teve sorte – saiu-lhe a Lady que a aprisionava. Num pequeno canto da mente

U
do alcance da percepção dela para
de o ter na minha mente é tão May. nderhill colocou a com- Ele fechou a tampa e observou dele, tão pequeno como o brin- ver se havia alguma coisa perto
agradável e aconchegante. A Lady May era o Parceiro mais binação que abria a gaiola o selo a espalhar-se em redor da quedo mais minúsculo que alguma da nave. Que engraçado como
- Aconchegante, o diabo – disse atencioso que alguma vez conhe- de Lady May. Acordou-a linha de junção. Estaria selada vez vira durante a sua infância, era possível fazer duas coisas ao
Woodley. – Eu também já estive cera. Nela, a linhagem mental com meiguice e pegou nela. Ela dentro do seu projéctil durante ainda estava consciente da sala, da mesmo tempo. Podia perscrutar
na mente dele. Ele tem a mente Persa fora tão delicadamente cria- arqueou as costas luxuriosamente, algumas horas até que um operário nave e do Pai Moontree a pegar o espaço com a mente munida
mais lúbrica desta nave, sem ex- da que tinha atingido um dos seus estendeu as garras, começou a com um pequeno arco de corte a no telefone e a falar para o capitão do dispositivo amplificador e ao
cepções. pontos mais altos de desenvolvi- ronronar, pensou melhor e em vez viesse desencarcerar, depois de ter do Perscrutador que comandava mesmo tempo apanhar um pen-
- Que homem desagradável – mento. Era mais complexa do que disso lambeu-lhe o pulso. Ele não cumprido o seu dever. a nave. samento errante dela, um pensa-
disse a menina. Disse-o de forma qualquer mulher humana, mas a tinha o dispositivo amplificador, Ele pegou no projéctil e colo- A sua mente telepática captou a mento adorável e afectuoso sobre
declarativa, sem vergonha. complexidade era composta por por isso as mentes de ambos es- cou-o no tubo de ejecção. Fechou ideia muito antes que os seus ouvi- um filho que tinha tido com um
Underhill olhou para ela e estre- emoções, memória, esperança e tavam fechadas, mas pelo ângulo a porta do tubo, girou a fechadura, dos pudessem enquadrar as pala- rosto dourado e o peito coberto
meceu. experiência com discernimento – do bigode dela e pelo movimento sentou-se na sua cadeira e colocou vras. O próprio som seguiu a ideia de pêlo branco, suave e incrivel-
Não entendia como podia ela experiência obtida sem o benefício das orelhas, Underhill percebeu o dispositivo amplificador. da mesma maneira que um trovão mente aveludado.
aceitar o Capitão Wow com tanta das palavras. uma espécie de gratificação que ela Premiu o botão mais uma vez. no oceano segue o relâmpago para Enquanto ainda procurava,
descontracção. A mente dele era A primeira vez que entrou em sentia ao constatar que era ele o Estava sentado numa sala o interior, a partir do mar alto. recebeu o aviso dela.
de facto lúbrica. Quando o Capitão contacto com a mente dela, ficou seu Parceiro. pequena, pequena, pequena, quente, - A Sala de Combate está prepa- E saltamos mais uma vez!
Wow ficava entusiasmado no meio espantado com a sua clareza. Com Falou com ela em linguagem quente, com os corpos de outras rada. Estamos prontos para iniciar Assim foi. A nave saltara para
de uma batalha, misturavam-se nas ela, recordava-se da sua existência humana, embora a linguagem não três pessoas a mover-se em seu a viagem entre planos, senhor. um segundo plano. As estrelas

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O P R AZER DAS COISAS
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eram diferentes. O Sol estava incomen- que começava como um ponto quente morado mais algumas décimas Desejou que ela se fosse embora.
suravelmente afastado. Mesmo as estrelas junto ao umbigo de Underhill. Começou de milésimos de segundo, você Inicialmente começara por se A DANÇA DOS DRAGÕES
mais próximas estavam na orla do con- a contorcer-se na cadeira. estaria pronto para ir para o asilo mostrar amistosa, mas agora esta- GEORGE R.R. MARTIN
tacto. Aquilo era a terra dos Dragões por Na verdade, ainda nem tinha tido tem- dos loucos. Que tipo de gato tinha va novamente distante. Era uma     
excelência, aquele tipo de espaço aberto, po para mexer um único músculo quando a combater à sua frente? maçada ser telepata, pensou. Uma Reencontramos an-
amaldiçoado e vazio. Underhill chegou Lady May contra atacou o inimigo de Underhill sentiu as palavras a pessoa estava sempre a tentar che- tigas personagens
mais longe, mais depressa, pressentindo ambos. saírem-lhe lentamente da boca. gar até aos outros, mesmo quando nossas preferidas,
e procurando o perigo, preparado para Cinco bombas da luz igualmente es- As palavras davam tanto trabalho, não estabelecia contacto. como Jon e Tyrion, mas
atirar Lady May para o perigo assim que o paçadas brilharam através das cem mil quando comparadas com a ale- Subitamente ela virou-se para também conhecemos
encontrasse. milhas que os separavam. gria e velocidade do pensamento, ele. outras muito interes-
O terror acendeu-se na sua mente, tão A dor na mente e corpo do rapaz desa- que era rápido, preciso e claro, de - Vocês agentes! Vocês e os santes e que serão
acutilante, tão claro, que o atingiu como pareceram. mente para mente! vossos malditos gatos! muito importantes para
um forte puxão físico. Sentiu um instante de exaltação feroz A sua boca moveu-se lentamen- No preciso instante em que ela o desenrolar dos acon-
e terrível a percorrer a mente de Lady te enquanto articulava as palavras. se preparou para sair, ele entrou tecimentos, tais como
A menina pequena chamada West tinha
- Não chame aos nossos Parcei- na mente dela. Viu a sua própria Cheirete, Melisandre e
encontrado qualquer coisa – algo imen- May enquanto acabava com a sua presa.
ros gatos. O termo correcto para imagem reflectida como um herói uma personagem de cabelo azul. São-nos apresenta-
so, comprido, preto, agudo, ganancioso, Era sempre um motivo de desilusão para
radioso, vestido com o suave uni- dos mais segredos e revelações que nos fazem ficar
horrendo. Atirou o Capitão Wow na sua os gatos descobrir que os inimigos que nos dirigirmos a eles é Parceiros.
forme de camurça, com o dispo- colados à acção e imaginar as reviravoltas que ainda
direcção. pressentiam como gigantescas Ratazanas Eles lutam por nós na equipa.
estarão para vir e que nos irão surpreender. / Patrí-
Underhill tentou manter a sua mente do espaço se desvaneciam no momento Devia saber que lhes chamamos sitivo amplificador a brilhar como
cia Rodrigues (Tita)
límpida. da destruição. Parceiros, não gatos. Como está uma coroa cheia de antigas jóias
- Cuidado! – Gritou telepaticamente Depois ele sentiu a dor, a mágoa e o o meu? reais no cimo da cabeça. Viu o seu
para os restantes, tentando desviar Lady medo a atravessar os corpos de ambos à - Não sei – respondeu o médico próprio rosto, bonito e másculo, a L E R Y CRITICAR
May. medida que a batalha começou e acabou, pesaroso. – Mas vamos procurar brilhar da mente dela. Viu-se mui- h t t p ://ler yc r itic ar.blogspot.c om/
Num dos campos da batalha, sentiu a mais rapidamente que um pestanejar de saber para lhe dizer. Entretanto, to ao longe e viu também como
raiva luxuriante do Capitão Wow à medi- olhos. No mesmo instante, surgiu a dor meu velho, é melhor ter calma. A ela o odiava. DUNA
da que o grande gato Persa detonava luzes aguda e ácida da viagem entre planos. única coisa que o pode ajudar é o Ela odiava-o nos mais secretos FRANK HERBERT
e ele se aproximava do rasto de poeira que A nave saltou mais uma vez. descanso. Consegue adormecer confins da sua mente. Odiava-o     
ameaçava a nave e as pessoas que nela Conseguia ouvir Woodley a pensar na sozinho, ou gostaria que lhe désse- porque ele era – achava ela – ar- O que Duna tem tor-
seguiam. direcção dele. mos algum tipo de sedativo? rogante, estranho, rico, melhor e na-o obrigatório: uma
As luzes quase acertaram no alvo. - Não tens que te preocupar mais. Este - Consigo dormir – disse Un- mais bonito que as pessoas como ideia base brilhante,
A poeira achatou-se sozinha, mudando filho da mãe e eu vamos assumir o con- derhill. – Só quero saber como ela. uma história cheia de
da forma de uma raia para a forma de trolo durante um instante. está Lady May. Underhill afastou a imagem dela intriga familiar, política
uma lança. Novamente a dor aguda, o salto. A enfermeira juntou-se a eles. da sua cabeça e, enquanto enter- e económica, vingança
Não se passaram nem três milésimos Não fazia ideia de onde estava até que Era um pouco antagónica. rava o rosto na almofada, recebeu e sede de poder. Um
de segundo. as luzes da plataforma de aterragem de - Não quer antes saber como uma imagem de Lady May. planeta incrivelmente
Caledonia brilharam por baixo dele. estão as outras pessoas? - Ela é um gato – pensou. – É detalhado em ecologia,

O Pai Moontree estava a dizer Com um cansaço que estava quase para - Elas estão bem – disse Un- tudo o que ela é… um gato! biologia, religião, cos-
palavras humanas e falava numa lá dos limites do pensamento, voltou a derhill. – Já o sabia antes de aqui Mas não era assim que a sua tumes, etc… diálogos
voz que se movia como melaço recostar a cabeça e a estabelecer a comu- ter chegado. mente a via – mais rápida que incrivelmente bem construídos e excelentes persona-
num pesado frasco de vidro: nicação com o dispositivo amplificador, Coçou os braços, fez uma careta qualquer sonho de velocidade, gens. Duna é mais do que um livro, é uma obra-prima
fixando com suavidade e rigor o projéctil e sorriu-lhes. Percebia que estavam astuta, esperta, inacreditavelmen- da ficção científica com pormenores inesquecíveis. Para
- C-A-P-I-T-Ã-O.
de Lady May no seu tubo de lançamento. a descontrair e começavam agora te graciosa, linda, muda e pouco ler e reler… / Luís Pinto
Underhill sabia que a frase completa
seria – Capitão, mexa-se depressa! Ela estava quase morta de cansaço, mas a tratá-lo como uma pessoa e não exigente.
A batalha seria travada e acabada antes ele sentia o bater do seu coração, ouvia-a como um paciente. Onde poderia ele encontrar
que o Pai Moontree acabasse de falar. a arfar e apanhou uma aresta de agradeci- - Eu estou bem – disse. – Avi- uma mulher que se lhe comparas-
MAGI A DOS LIVROS
Agora, fracções de milésimos de segun- mento que lhe chegava através da mente sem-me apenas quando puder ver se? BANG!
http://magia-livros.blogspot.com/
do mais tarde, era Lady May quem estava dela. o meu Parceiro.
directamente na linha. Sentiu-se atingido por um novo
pensamento. Olhou de modo
A RAPARIGA QUE ROUBAVA LIVROS
Era neste momento que a capacidade e MARKUS ZUSAK
rapidez dos Parceiros entravam em acção. esgazeado para o médico.     
Ela conseguia reagir mais depressa do - Eles não a mandaram embora Uma obra que nos
que ele. Conseguia ver a ameaça como O RESULTADO juntamente com a nave, pois não? retrata a inocência
uma gigantesca Ratazana a vir mesmo na - Vou descobrir imediatamente da infância e a rea-

C
direcção deles. olocaram-no no hospital em Ca- – disse o médico. Depois deu a lidade de uma guerra,
Conseguia disparar as bombas de luz ledonia. Underhill um reconfortante aper- onde muito foi perdido.
com um discernimento que podia faltar a O médico era amistoso mas tão no ombro e saiu do quarto. Cordwainer Smith (1913-1966), pseudónimo de Paul Transmitindo-nos bo-
Underhill. firme. A enfermeira levantou o guar- Linebarger, era escritor, professor universitário e militar nitas mensagens, que
Ele estava ligado à mente dela, mas não - Você foi de facto tocado pelo Dragão. danapo que tapava um copo de especialista em assuntos do Extremo Oriente. Escreveu tanto nos fazem soltar
a conseguia acompanhar. Foi o contacto mais próximo que algu- sumo fresco de frutas. livros sobre guerra psicológica, com base na sua exper- uma gargalhada borbu-
A sua consciência absorveu o ferimento ma vez vi. É tudo tão rápido que ainda lhante, como nos fazem

U
iência militar, e a sua obra na ficção científica, apesar de
dilacerante infligido pelo inimigo aliení- vamos demorar algum tempo a conhecer nderhill tentou sorrir-lhe. não ser vasta, expandiu as fronteiras do género e é hoje emocionar. Portador de
gena. Não se assemelhava a nenhuma cientificamente o que aconteceu, mas Não parecia haver nada considerada como uma das mais originais criações da uma linguagem sublime,
ferida terrena – era uma dor louca e rude presumo que se o contacto tivesse de- de errado com a rapariga. literatura especulativa.
quase poética, com pormenores deliciosos e persona-
gens que não nos deixam indiferentes. Em suma, um
livro inesquecível dentro do género fantástico.
60 /// BANG! / Rita Ribeiro BANG! /// 61
de
G e or g e r . r . M a rt in
por Safaa Dib

Primeiro conquistou os tops americanos


de literatura fantástica. Depois os tops de
literatura generalista. A seguir conquistou
tops um pouco por todo o mundo, incluindo
os portugueses. Por fim chegou à televisão.
E voltou a conquistar toda a gente. É um dos
maiores fenómenos literários dos últimos
anos, e nós vamos tentar perceber porquê…

N
unca houve tanta curiosidade pelo mundo da edição como agora. Talvez devido à massifi-
cação da Internet e com tudo o que isso implicou – a blogosfera, os fóruns, as redes sociais,
os sites – os leitores nunca tiveram a possibilidade de contactar tão directamente as editoras
como agora. E deste processo tem nascido uma curiosidade natural pela forma como se rea-
liza a edição em Portugal. Como todos os negócios, tem os seus segredos que é preferível não
revelar mas, de vez em quando, abrimos uma janela para o trabalho diário que fazemos, de modo a revelar
alguns dos detalhes em torno da construção do nosso catálogo.
A construção de um catálogo. Essas são as palavras mágicas que fascinam tanto qualquer editor com vocação
para esse trabalho. Tem os seus espinhos e cada editor tem o seu próprio muro das lamentações por todos os
fracassos e prejuízos.

62 /// BANG! BANG! /// 63


Na série da HBO,
a passar em
Portugal no canal países europeus. Não foi uma decisão inteiramente
Syfy da Meo, Jason movida por paixão, pois começaram os planos
Mamoa interpreta para uma campanha de marketing massiva em
o invencível Khal
torno do lançamento do 1º livro. Jorge Candeias

George
Drogo.
foi o tradutor requisitado para a tradução do 1º
volume, divido em dois na edição portuguesa. A
divisão em dois volumes tornava os livros muito
mais fáceis de manusear, mais baratos e não

R. R. Martin:
afugentaria tanto os leitores. Enquanto o tradutor
e revisora, Idalina Morgado, discutiam os termos e
as opções linguísticas, a editora começou os planos
de marketing e surgiu com ideias ambiciosas e

o fenómeno
inovadoras.
Montras Bertrand foram requisitadas para a promoção
do 1º volume e foram colocados um escudo, uma
couraça, um montante e duas armações de veado,

de vendas
objectos que pertenciam ao próprio Luís Corte
Real que os emprestou à Bertrand. Mas a estratégia
que prometia dar mais que falar era, sem dúvida, o
famoso cupão na badana que podia ser preenchido,
recortado, enviado à editora e recebia-se assim a oferta

N o entanto, no meio pouco atrás no tempo para vos mega-livraria londrina iniciou a de outro exemplar de A Guerra dos Tronos.
de um negócio cada mostrar como tudo começou descoberta deste autor ainda na Uma tiragem impressionante para a altura foi impressa
vez mais competitivo, em Portugal, de modo a década de noventa. e o livro foi lançado nas livrarias em Setembro de
poder publicar um autor que compreenderem o trabalho que Uma vez que parte do catálogo 2007. Escusado será dizer que o cupão e as montras
gostamos é capaz de ser uma envolveu da parte de todos os da SdE dedicava-se à literatura 1 causaram sensação. Sem exageros, a editora, ofereceu
das maiores satisfações. E ter colaboradores, os riscos, os fantástica (H. P. Lovecraft e cerca de 2000 livros no âmbito dessa promoção.
sucesso com um autor que anos de espera e a fé que nunca Edgar Allan Poe foram os Ainda hoje, em 2011, recebemos um ou outro
gostamos e publicamos é a foi perdida. primeiros nomes clássicos a cupão a solicitar a oferta de mais um exemplar.
cereja em cima do bolo. serem publicados), os agentes Muitos leitores portugueses que se renderam pela
Foi o que aconteceu com faziam muitas ofertas de obras primeira vez a George R. R. Martin já não se devem
George R. R. Martin, o autor deste género ao editor. Em 2005, lembrar do posfácio escrito pelo editor, posfácio
das Crónicas de Gelo e Fogo, A história do a agente espanhola de George esse bastante revelador dos riscos inerentes a esta
cujo sucesso actual ajudou a R. R. Martin começa a realizar as publicação:
garantir algum bem-estar à
editor contada pela primeiras propostas. Nas palavras Portugal é um país pequeno e o mercado da literatura
colecção Bang! Hoje fala-se sua assistente do Luís, “ela estava desesperada fantástica é marginal. Será possível levar esta série até ao fim?
em fenómeno George R. R. para vender os direitos dos livros, Farás sentido? Depois de muito equacionar, acreditamos que

M
Martin, um sucesso à escala uitos sabem que ninguém queria aquilo”. E sim. E a prova é que já comprámos os direitos para toda a
mundial, que conquistou a editora Saída de embora gostasse muito do autor, série e não apenas para o primeiro volume.
leitores e livreiros. As Emergência surgiu tinha noção de que o mercado O pedido por mais leitores é quase hilariante no último
encomendas de livros não no mercado em 2004 criada por português ainda não era capaz parágrafo:
param, e acreditamos que ainda dois irmãos, Luís Corte Real e de absorver uma saga daquelas Obrigado/a por ter lido A Guerra dos Tronos. Fazemos
estão longe de se esgotar. Dois António Vilaça. Devido a uma dimensões (cada livro a roçar votos para que esteja desejoso/a por ler o segundo volume e que
factores combinaram-se para conjunção de literatura comercial 800 ou 1000 páginas na edição nos ajude a fazer desta série um grande sucesso, convidando
garantir este extraordinário apelativa e sólida (e a exploração original) pelo que disse à agente familiares, amigos, vizinhos e colegas a lerem-na.
ano a Martin: a estreia da de um nicho muito alternativo, para voltar a contactá-lo daqui a O ritmo de publicação foi essencial para que os leitores
série A Guerra dos Tronos, o fantástico), capas dinâmicas um ano. se mantivessem fiéis à série. O 2º volume, A Muralha de
uma adaptação da HBO, que e uma boa distribuição, no Gelo, foi lançado três meses depois, em Novembro de
triunfou nas audiências, e a espaço de um ano a editora tinha 2007. O terceiro volume, A Fúria dos Reis, em Fevereiro
publicação do muito aguardado ganho solidez suficiente para os de 2008 e assim sucessivamente. A partir do 4º volume
5º (mas não último) volume das dois irmãos se dedicarem em
Marketing, deu-se o inesperado: uma entrada fugaz nos tops que
Crónicas de Gelo e Fogo, A exclusivo à editora. Muita paixão a quanto obrigas começou a provar que a série estava a demonstrar
Dance with Dragons (A Dança dos pelos livros e uma atitude muito vendas sustentáveis.

Q
Dragões e Os Reinos do Caos). mais transparente e próxima ao uando a situação da
Se George R. R. Martin já era leitor marcaram a diferença. Não editora começou a
um nome consagrado nos é uma editora conhecida pelos estabilizar em termos Os primeiros frutos
reinos da literatura fantástica, nomes das pessoas que editam, financeiros (e o mercado editorial

N
explodiu para lá dos seus mas pelos autores que publica. ainda não tinha sofrido metade uma entrevista ao Diário Digital publicada online
limites e, à semelhança da Luís Corte Real era já um grande do que viria a sofrer desde em Setembro de 2011, no âmbito do sucesso de
sua personagem Daenerys, fã de George R. R. Martin muito 2008), Luís Corte Real sentiu George R. R. Martin em Portugal, Luís Corte
conquistou leitores e antes de ter fundado a editora; que era o momento certo para Real revela que “na altura apostámos em capas distintas,
espectadores uns atrás dos uma viagem a Londres e a compra apostar numa saga que até vendia marketing e promoções fortes, imensa promoção na
outros. Mas voltemos um fortuita de Game of Thrones numa bastante bem nos EUA e alguns internet e as vendas acabaram por ser boas”.

64 /// BANG! BANG! /// 65


Já está em produção a 2ª
temporada de A Guerra dos
Após obter patrocínios e
As vendas nunca foram más e
garantir o apoio do Luís Corte
Tronos, a estrear em Abril de A longa espera séries, tornou-se rapidamente
provaram que uma estratégia 2012, com todo um elenco de óbvio que esta seria uma das

O
bem planeada dá frutos a médio Real, fizemos o convite ao autor novas personagens a juntar-se grandes apostas do canal para
s livros continuavam
e longo prazo. Felizmente, não que prontamente aceitou. aos protagonistas principais. 2011. Ao lado de David Benioff
a ser traduzidos
conheceu o mesmo destino que Esse foi o ponto alto desse e D. B. Weiss, George R. R.
incansavelmente pelo
uma outra série de fantasia de ano. Martin ainda não era um Martin trabalhou como produtor
Jorge Candeias, sem nunca
sucesso internacional, A Roda autor mega-bestseller nem executivo e ajudou a mobilizar
falhar um único prazo. O
do Tempo de Robert Jordan, que muito conhecido fora da a sua massiva comunidade de
sucesso constrói-se com base
acabou por ver a sua publicação literatura fantástica e, embora fãs que manifestou todo o seu
no profissionalismo de todos os
cancelada após quatro volumes. já tivesse alcançado um bom entusiasmo pela concretização
colaboradores e o nosso tradutor
Em poucos meses, As Crónicas patamar, ainda era considerado da série.
nunca soçobrou sob o peso dos
de Gelo e Fogo começaram a gerar um escritor de nicho. A sua Ao mesmo tempo, começavam
calhamaços.
uma base de fãs e foi a própria presença durou dez dias em os rumores de que o autor estaria
O Festim dos Corvos e O Mar de
editora que os acolheu a todos e Portugal, no pico de um mês prestes a finalizar, após quase
Ferro foram lançados em 2009;
criou-lhes uma casa na Internet, de Julho muito quente. O 5º cinco anos, o manuscrito do
chamo-lhes os livros da ressaca
no fórum George R. R. Martin volume, A Tormenta de Espadas, próximo volume das Crónicas,
devido aos eventos culminantes
(que mais tarde se expandiu iria ter um pré-lançamento na A Dance with Dragons, um livro
de A Glória dos Traidores, um livro
para se tornar o fórum Bang!, o sala do El Corte Inglès, a 4 de que sabíamos que iria retomar as
glorioso em todos os sentidos. E
fórum oficial da colecção gerido Julho de 2008. E eu, que estava aventuras de várias personagens
depois começou também a espera
pela editora). Abriu as portas à beira de me demitir de um cruciais como Tyrion Lannister,
para os leitores portugueses.
em 2007 e a iniciativa ajudou a emprego lastimável na altura, Daenerys Targaryen e Jon Snow.
Como leitora, a desvantagem de
solidificar ainda mais a relação tinha sido convidada para Por cá, as vendas continuavam
ler uma excelente série é o facto
entre os leitores e a editora, apresentar o autor e conversar ao mesmo ritmo moderado de
de termos que esperar que o autor
ajudou a divulgar as novidades e com ele. Aceitei apenas porque sempre, alheias às movimentações
conclua o próximo volume. No
a criar um ambiente entusiástico julguei que falaríamos para dos produtores da série. A série
caso de George R. R. Martin,
em torno desta saga. uma plateia de dez a quinze 1 tinha data de estreia marcada nos
a espera foi demorada para os
Nem tudo foi executado na pessoas. Os deuses decidiram EUA para 17 de Abril de 2011 e
leitores das edições inglesas, em
perfeição; a 1ª edição do 4º rir-se da minha cara e encheram a imprensa norte-americana não
parte devido ao facto de o enredo
volume tinha uma sinopse com a sala com cerca de trezentos foi imune à intensidade dos fãs de
ter atingido um ponto crucial
spoilers que revelavam toda a leitores muito entusiasmados. O Martin que juraram que era uma
que necessitava de muito labor
história do livro (foi substituída choque foi geral. Deve ter sido das melhores séries de fantasia de
na escrita para ser ultrapassado.
numa edição posterior); esse 4º então que nos apercebemos sempre.
Muitos leitores americanos
volume foi o que apresentou todos de como se criara uma
começavam a desesperar e a
na lombada o título errado; o comunidade de leitores e fãs
insultar o autor.
6º volume foi impresso com o muito forte em torno das
ISBN errado e foi necessário Crónicas.
Mas algo de sensacional estava Os dragões
em preparação. Em 2007,
colar autocolantes com novo Eu, o Rogério e o Luís temos
excelentes memórias dessa
George R. R. Martin anunciara voltam a voar
código de barras na tiragem. no seu blogue que os direitos de

A
semana com o George R. R. As armas
Todos os erros foram corrigidos, adaptação televisiva das Crónicas das principais 27 de Abril de 2011,
mas, na altura, foram fruto da Martin. Uma pessoa afável, uma semana depois da
tinham sido comprados pelo famílias dos Sete
pressa. nada pretensiosa, imensamente Reinos estreia do episódio-piloto
canal norte-americano, a HBO.
talentosa com as palavras, de Guerra dos Tronos, George R.
Foi só em 2010 que a febre
entusiasmada, disponível para R. Martin publica a foto de um
O actor Peter Dinklage pela série começou a atingir o
George R. R. Martin ser arrastado até ao topo do King Kong morto no seu blogue.
venceu recentemente, nos EUA, pico quando se divulgaram os
Castelo dos Mouros, em Sintra, Era o anúncio tão desejado
o Prémio Emmy de Melhor números envolvidos na produção
visita Portugal ou a perder-se num carro às Actor Secundário pelo seu e os nomes dos actores. por milhares de leitores de que,
voltas, em direcção ao Porto. desempenho da personagem

A
Começou então um novo capítulo finalmente, King Kong (o apelido
s minhas próprias Conheceu Lisboa inteira Tyrion, o infame anão “carinhoso” que George R.
neste fenómeno.
memórias começam sem um queixume, mesmo da casa Lannister. R. Martin deu ao seu livro das
a infiltrar-se neste apesar de algumas das suas Crónicas) fora derrotado e a
momento da narrativa. O ano dificuldades em andar muito. obra finalmente veria a luz do dia
de 2008 foi espectacular para É um homem com um espírito
a promoção desta saga por um tremendamente aventureiro A Guerra dos nesse mesmo ano.
E esse dia lançou no caos
motivo muito particular: o autor e a sua amizade tornou-se Tronos na televisão parte do planeamento editorial
planeava uma tour europeia inestimável para todos nós. da Saída de Emergência.

N
nesse ano e iria estar presente Nessa mesma semana perdi o ano de 2010, a Alterações tinham que ser
no evento da Semana Negra, o meu emprego, mas graças HBO arrancou uma feitas, dezenas de e-mails
em Gijón, Espanha. O Rogério ao meu envolvimento nos formidável máquina trocados com colaboradores,
Ribeiro e eu, organizadores eventos, as portas da Saída de de marketing que iniciou a agentes e a distribuidora, planos
do Fórum Fantástico, sabendo Emergência abriram-se para divulgação da série literária em de marketing teriam que ser
desse facto, começámos a mim e, em Setembro de 2008, todo um novo patamar. Sendo pensados, uns livros adiados,
colocar a hipótese de uma tornei-me assistente do Luís um canal norte-americano outros antecipados para dar
deslocação do autor a Portugal. Corte Real. conhecido pela qualidade das suas espaço ao King Kong. E era

66 /// BANG! BANG! /// 67


ROBIN
imperativo obter o manuscrito com a necessidades dos livreiros; marcadores,
maior brevidade possível, manuscrito posters, promoções, descontos, ofertas
esse que tinha data de publicação de livros, etc, e todos os dias surgiam,
prevista a 12 de Julho. e anda surgem, novas ideias. A nossa
Após alguma insistência e muitas tradução do 9º volume foi lançada a 9
negociações, foi-nos cedido o ficheiro de Setembro de 2011, e foi a segunda
com a 1ª metade do livro na língua tradução mais rápida a ser lançada no
inglesa. Jorge Candeias lançou-se de mundo depois da edição croata. A Dança

HOBB
corpo e alma à tradução, e nessa altura dos Dragões entrou directamente para o
nós fomos literalmente afogados no primeiro lugar dos tops nacionais e já
sucesso da série televisiva que fez temos data de publicação do próximo
explodir as vendas em Portugal. A partir volume, Os Reinos do Caos, marcada para
do mês de Junho, as encomendas dos 27 de Janeiro de 2012.
8 volumes das Crónicas não paravam e Os timings foram infalíveis em todo este
entraram num ritmo alucinante. Todos, processo. Não tivesse sido o timing dos
de repente, queriam ler os livros. acontecimentos, muitas destas coisas não
Tendo uma equipa editorial teriam acontecido. Neste Verão, o canal
relativamente pequena, o impacto Syfy lançou a sua própria divulgação,
simultâneo da produção em tempo preparando o terreno para a estreia
recorde de A Dança dos Dragões e o da série em Portugal que aconteceu George R. R. Martin
sucesso de vendas ascendente dos no dia 17 de Outubro, estreia essa que
volumes anteriores tornou-se sufocante promete renovar o interesse de novos regressa a Portugal em

A autora de fantasia
e brutal. Tivemos um Verão esplêndido leitores. Os segredos que tornaram Abril de 2012
de trabalho. Por essa altura, descobrimos George R. R. Martin um bestseller em
que o canal Syfy Portugal tinha os Portugal? Estão todos nesta história e Em 2010, convidámos George
direitos exclusivos de exibição da série basta lê-la com atenção. Houve uma R. R. Martin a regressar a
no país e começaram os contactos e dose de sorte, mas houve também Portugal em Abril de 2012 e
parcerias de forma a promover ainda imenso trabalho envolvido e boa ele aceitou o convite. As datas
mais este autor na imprensa nacional. vontade de todas as partes. O fenómeno já estão marcadas e o autor
irá visitar o país de 17 a 22 de

cujo talento maravilhoso


A fantasia de repente ganhara uma nova ainda continua e não se irá esgotar tão
expressão em Portugal e extrapolou as cedo devido à continuação da série Abril, altura que irá coincidir
fronteiras do género. televisiva que irá estrear a 2ª temporada com a estreia da 2ª temporada
O trabalho de marketing foi também em Abril de 2012 e ao sucesso de uma da série nos EUA. Para já, estão
bastante exaustivo e obrigou a boa história que ainda não foi concluída. asseguradas visitas a Lisboa e

conquistou
alguma criatividade para satisfazer as BANG! Porto e muitas outras surpresas!

Não percas

GEORGE R.
A Guerra dos Tronos
no canal Syfy da Meo,
todas as segundas,

R. MARTIN
às 22:15

E N T R E V I S T A E X C L U S I VA À R E V I S T A B A N G !
http://www.syfy.pt/aguerradostronos
68 /// BANG! BANG! /// 69
SAÍDA DE EMERGÊNCIA:
E O que faz os seus leitores
gostarem tanto dos livros da sé-
rie do Assassino?
ROBIN HOBB: Não acredito A primeira saga,
que seja apenas uma coisa, pois intitulada “A
acredito que cada livro fala a cada Saga do Assas-
leitor de modo diferente. A maio- sino”, tem cinco
ria dos leitores que me escreve fala volumes. As ilus-
de como gostam das personagens trações das capas
da história. Penso que a evolução são da responsa-
das relações entre elas é tão im- bilidade de John
portante como o desenrolar dos Howe, ilustrador
acontecimentos. Portanto, se me oficial de Tolkien
e colaborador
basear nas respostas por e-mail,
fundamental de
diria que os leitores que gostam Peter Jackson na
dos meus livros são leitores que trilogia de “O Se-
gostam de livros alicerçados em nhor dos Anéis”
personagens. Mas na minha obra, bem como no
as personagens moldam o enredo futuro “Hobbit”
tanto quanto o enredo molda as
personagens. RH: A magia, como qualquer ou-
tra habilidade, é tanto uma maldi- to que elaborar e melhorar a cena Com capas ape- seu próprio caminho e deixa-me versidades que enfrentam. Mas é
SdE: A maioria dos seus leito- ção como uma bênção, e varia de torna-se a parte mais divertida. lativas e mais a pensar o que irá acontecer a se- esse tipo de desafios que tornam
res portugueses tem elogiado a dia para dia. Penso que isso seja Quando era jovem e um profes- adultas, o design guir na história. Ele foi difícil, mas uma história boa. Uma história
narrativa pela primeira pessoa verdade acerca de qualquer habi- sor obrigava-me a reescrever um da segunda saga nunca aborrecido. onde nada de errado acontece,
que desenvolveu na série do lidade que uma pessoa tenha. O ensaio, odiava tal coisa. Mas na fic- (O Regresso e os heróis nunca precisam de
1 do Assassino)
Assassino. Não será a aborda- homem que possui um charme ção podemos tornar os diálogos SdE: As suas personagens são enfrentar grandes desafios ou
mais inteligentes, tornar uma cena procura reflectir submetidas, por vezes, a si- decisões não seria uma grande
gem mais fácil mas houve al- especial descobre que isso o livra
o amadureci-
mais subtil ou acrescentar um to- tuações muito angustiantes. história.
“Os leitores que guma razão em particular para
escrever a história de Fitz na
de problemas mas no dia seguin-
te, só o afunda ainda mais. Todas que de emoção. Por isso, nenhu-
mento da trama
e o crescimento
A fantasia da demanda exige
primeira pessoa? as paixões têm um lado perigoso, ma cena é fácil para mim quando da personagem
sempre uma necessidade por SdE: Em Portugal, os contos
gostam dos meus RH: Acredito que a narrativa na um que pode colocar-nos em risco está a ser escrita pela primeira vez. principal que, no redenção através de sacrifí- ainda são uma forma literária
primeira pessoa consiste na forma mas que também nos pode elevar São sempre mais fáceis quando as início da primei- cio, um pouco à semelhança desprezada, ignorada e con-
livros são leitores mais natural de contar histórias.
Quando estamos com a nossa fa-
a grandes alturas. Para Fitz, ambas
as suas magias têm perigos e bene-
reescrevo. ra saga, é apenas
uma criança
do que aconteceu com Frodo,
Sam ou Aragorn em O Senhor
siderada pouco lucrativa. A
maioria dos nossos escritores
mília e amigos ao fim do dia, e lhes fícios. Tem que trilhar o seu cami- SdE: Disse uma vez que a per- dos Anéis? Tornam-se melho- dedica-se a romances e evita a
que gostam de contamos como correu o nosso nho com muito cuidado entre am- sonagem do Bobo é a persona- res personagens no fim? escrita de contos. A Robin tem
dia, contamos sempre do nosso bas as magias se quer sobreviver. gem que mais se recusa a se- RH: Não tenho bem a certeza de romances muito longos mas
livros alicerçados ponto de vista. Por isso, acho que
escrever na primeira pessoa é uma SdE: Quais são as cenas mais
guir os seus planos e manifesta
vontade própria. São as perso-
que circunstâncias adversas nos
tornam melhores pessoas. Pen-
também escreve contos com o
pseudónimo Megan Lindholm.
forma de tornar o livro uma es- difíceis e as cenas mais fáceis nagens que a conduzem pela so que algumas pessoas exibem Como efectua a transição entre
em personagens.” pécie de conversa com o leitor. É de escrever na série do Assas- estrada que desejam tomar? as suas melhores qualidades um e outro?
como se Fitz falasse directamen- sino? RH: De certa forma, todas as quando são confrontadas com RH: Os contos são muito difíceis
te para o leitor e acabasse RH: A resposta pode surpreender minhas personagens têm livre-ar- uma crise. E em grande parte de escrever para mim, e tenho al-
por partilhar uma amiza- os leitores. Todas as cenas são di- bítrio, mas nenhuma goza dessa dos casos, o auto-sacrifício é o guns por publicar no meu com-
de em que conta os seus fíceis quando estou a construí-las, vantagem tanto quanto o Bobo. que define um herói. Se posso putador. O problema é o facto de
segredos e sentimentos palavra por palavra, na página em Ele era tanto difícil como sur- salvar-te sem qualquer custo requererem habilidades especiais,
mais profundos. Penso branco do monitor. Essa é sempre preendente na medida em que para mim, será isso heróico? um pouco como polir um dia-
que funciona bem para este a pior parte. Depois vem a parte transformava cenas sem qualquer Por outro lado, se não me custa mante. Tudo o que é excessivo
tipo de história. Dá ao leitor da reescrita que eu adoro. Com- respeito pelo meu enredo. O meu salvar-te, e recusar-me a fazê-lo, deve ser cortado até restar ape-
uma oportunidade de conhecer a por é muito complicado, enquan- objectivo com as personagens é então estamos próximos de um nas a ideia da história que brilha.
personagem de forma íntima. colocá-las em situações e depois certo tipo de vilania. Ouço fre- Posso escrever um romance por
obter reacções de acordo com a quentemente da parte dos meus ano, mas duvido que conseguisse
SdE: É impossível não notar a sua natureza. Às vezes uma per- leitores de que sou “cruel” para escrever doze excelentes contos
beleza dos profundos laços ge- sonagem como o Bobo segue o com as personagens pelas ad- no mesmo período de tempo. Es-
rados pela Manha que descreve
nos seus livros entre homem
e animal, e é o que considero
uma das suas maiores quali-
dades. No entanto, Fitz é des-
prezado pela sua habilidade na
Manha e nunca realmente do-
minou bem a magia do Talen-
to. A magia é uma maldição ou
bênção para Fitz?

70 /// BANG! BANG! /// 71


crevo-as quando tenho uma excelente ideia mas que não é su- poder confiar nas decisões das pessoas que sabem mais do que
ficiente para sustentar um romance. Algumas ideias têm maior sobre arte e marketing.
impacto numa forma mais curta. Continuam a ser muito difíceis
para mim. Nos EUA, o conto literário ainda é muito importante SdE: Existem escritores de fantasia recentes ou séries que
gostasse de recomendar aos nossos leitores?

anúncio Assassino
para nós e são muito frequentes nas revistas de ficção científica
e fantasia. Muitas vezes é onde os escritores fazem experiências RH: Claro que não posso deixar de nomear George R. R. Mar-
e novos escritores se tornam conhecidos. Nos EUA, se já tiver- tin! Mas também gostaria de chamar a vossa atenção para a série
mos publicado vários contos é uma excelente credencial para Mistborn de Brandon Sanderson, os livros de Dianna Wynne Jo-
apresentar a um editor. Encaramos o conto como algo muito nes, Lynn Flewelling, e Blake Charlton, por exemplo. Gostei de
americano, e reconhecemos Edgar Allan Poe como o “pai do um novo escritor chamado Mark Lawrence, autor de Prince of
conto americano”. Thorns. Há demasiadas boas séries e livros por aí e não consigo
nomeá-los todos. Mas é lamentável que muitos autores ameri-
SdE: Nos últimos dez anos, o género da fantasia ganhou canos estejam disponíveis para tradução mas que tão poucos
mais leitores graças a Harry Potter, J. R. R. Tolkien (e tal- autores europeus sejam traduzidos para os leitores americanos.
vez agora George R. R. Martin), mas começou a escrever
fantasia muito antes disso. Esta nova vaga de leitores de SdE: Quais os próximos projectos que poderemos aguar-
fantasia afectou a sua carreira de escritora? Mudou para dar da sua parte?
melhor? RH: Estou a esforçar-me para terminar os últimos dois livros
RH: É muito difícil responder a essa pergunta. O sucesso na da Rain WIld Chronicles. Estas são as sequelas de Dragon Keeper e
carreira de um escritor é uma coisa difícil de medir. Terei passa- Dragon Haven, dois livros já publicados nos EUA e Reino Unido.
do a vender mais livros porque tornei-me uma melhor escritora, Irei manter-me concentrada nestes livros até terminá-los, e de-
ou porque mudei as capas ou porque o género se tornou mais pois irei pensar no que vem a seguir.
popular? Poderá alguém ter certezas? Penso que tudo o que um
escritor pode fazer é concentrar-se em contar as melhores his- Obrigado, Robin, pela gentileza e pelas suas respostas.
tórias que uma pessoa possa imaginar, e esperar que os leitores BANG!
regressem e tragam amigos. Se me preocupar com forças exte-
riores que não posso controlar, então nunca conseguirei con-
cluir a minha escrita. E o processo de escrever os livros é a coisa
mais importante a fazer. Robin Hobb nasceu na Califórnia em 1952. Sabia desde tenra idade
que queria ser escritora mas era realista o suficiente para perceber
SdE: Em Portugal, acabámos de publicar Golden Fool que muito poucos são capazes de se sustentarem financeiramente
(Dilemas do Assassino e Sangue do Assassino). O que pode apenas através da escrita. Todavia, lutou pelo seu sonho e preparou-
contar aos seus leitores sobre o livro? Decidimos publicar se para desempenhar outras profissões enquanto se dedicava à
a série Regresso do Assassino logo a seguir à primeira sé- escrita. Aos nove anos de idade, Robin e a família deixaram Califórnia
rie do Assassino. para viver no Alasca. Foi aqui que conheceu o seu primeiro amigo
RH: Em termos cronológicos, a trilogia The Liveship Traders exis- e companheiro, um híbrido de cão e lobo chamado Bruno, que a
te entre a série do Assassino e a série do Regresso do Assassino. acompanhava nas suas explorações nas florestas que rodeavam a sua
Por isso, há alguns acontecimentos que podem deixar os leitores casa de família. Devido a este modo de vida auto-suficiente e básico,
um pouco perplexos. Mas falei com muitos leitores americanos
tornou-se especialista em canalização e electricidade.
que só leram The Liveship Traders só no fim e não deixaram de
Depois de se licenciar na Universidade de Denver, regressou ao Alasca
gostar muito.
e casou-se com um pescador. Foram viver numa pequena ilha na costa
SdE: Está satisfeita com as suas capas? Tem alguma favo- do Alasca chamada Kodiak e têm vivido junto ao mar desde então.
rita entre as edições inglesas e estrangeiras? No decurso de dez anos, Robin Hobb teve três filhos e nesse tempo
RH: Tenho sido abençoada com capas maravilhosas para os conseguiu também continuar a escrever histórias e enviá-las para
meus livros. Entre os artistas que já ilustraram capas para mim revistas. Em 1982, publicou o seu primeiro livro e seguiram-se três
temos John Howe, Jackie Morris, Max, Michael Whelan e Gil- outros com as mesmas personagens. Estas obras foram escritas com
les Francescano. E essa é apenas uma amostra. Muitas vezes só o pseudónimo Megan Lindholm e, embora tivessem obtido críticas
vejo a capa depois da publicação e por vezes não sei o nome positivas, a fama e fortuna ainda estavam muito distantes. Depois de
dos artistas. As capas variam imenso de país para país, com cada várias colaborações e outras obras publicadas, decidiu sentar-se e
tipo de leitor a preferir um certo tipo de capa. Fico satisfeita por começar a escrever algo diferente, um livro que ia escrevendo sob o
nome “Bastardo de Cavalaria”, e que era contado na primeira pessoa,
uma técnica pouco comum. Foi por esta altura, em conversa com o seu
agente, que decidiu criar um novo pseudónimo que se adequasse a
este novo estilo de escrita - o andrógino Robin Hobb foi escolhido, pois
Robin tanto podia ser o nome de um homem ou de uma mulher e Hobb
era usado devido à sua semelhança com personagens de fantasia
como Hobbits e Hobgoblins.
A série de fantasia mais popular de Robin Hobb é A SAGA DO ASSAS-
SINO. A ideia para a saga surgiu num pedaço de papel que conservava
numa gaveta e que dizia simplesmente “E se a magia fosse viciante?”
e “E se a magia fosse destrutiva ou degenerativa?”. Constituída por
cinco volumes em português, o enredo segue as aventuras de um as-
sassino treinado de nome Fitz. Alguns anos depois a personagem teve
direito a uma nova saga O REGRESSO DO ASSASSINO. Ninguém pode
dizer que Fitz não é uma das personagens mais interessantes de toda Venha ler excertos das duas sagas do Assassino em
a literatura fantástica. W W W. S A I DA D E E M E R G E N C I A . C O M
72 /// BANG! BANG! /// 73

Literária
Crítica Perguntar a um escritor a
sua opinião sobre críticos é
humor negro, resultado da mistura entre a
ironia das mortes e o comportamento re-
laxado do assassino. Ainda que a premis-
sa do segundo conto me tenha agradado
mais, senti uma estrutura mais relaxada,
com episódios desnecessários.
las suas vidas contra as forças malignas
do circo. O Homem Ilustrado, Mr. Dark,
lidera esta estranha congregação de al-
mas e, quando mais ninguém
suspeita, um carrossel gira em
sentido contrário rejuvenes-
fronto entre estes dois concorrentes que
desconhecem a identidade um do outro.
O verdadeiro teste consiste em disfarçar
a magia como
acto de ilusão pe-
rante os olhares

como perguntar a um poste Sem chegar à categoria do excelente, a


leitura é rápida e aprazível, e as histórias
apresentam-se compostas, pensadas e
cendo todos os que se atreve-
rem a montá-lo.
O sonho cede ao pesadelo e o
dos comuns mor-
tais.
O circo ambu-

o que pensa sobre cães.” com grande dose de ironia. / Cristina


Alves
que aparenta ser uma feira de
entretenimento torna-se uma
entidade perseguidora de duas
lante ganha em
complexidade à
medida que mais
Christopher Hampton, realizador britânico crianças aterrorizadas por coi- tendas vão sen-
sas que nunca deviam ter visto. do adicionadas,
Circos de ilusões e trevas Mas é a poesia negra e sedu- fruto do talento
tora de Bradbury que torna de ambos os ri-
Lá fora encontram; elas chegam
a um ritmo e sentido de
ro é associado apenas
com a banda portu-
Something Wicked este clássico tão inesquecível;
a lírica poderosa invade todas
vais. A sua fama
chega a todos os
oportunidade próprios. guesa Moonspell. Al- This Way Comes as esquinas e ruelas desta his- cantos do mun-
Ademais, o bosque actua guns recordarão ele- Ray Bradbury tória, tornando-a muito mais do e muitos são
Mythago Wood sobre os humanos que mentos mais literários Orion do que uma mera evocação
nostálgica da adolescência. Neste bizarro
os espectadores
que entram nele e são transformados
Robert Holdstock com ele se relacionam, na sua carreira como
Orb Edition modificando-os e até a tradução de uma The Night Circus carnival de freaks condenados à danação, o para sempre pela experiência. Incapazes
incorporando-os. Preva- banda desenhada ou Erin Morgenstern mal é tão velho como o diabo e o pecado. de esquecer as maravilhas que viram,
a participação numa The Random House E é apenas a pureza de coração de duas tornam-se os Revêurs, pessoas que per-
A pós a Segunda Guerra Mundial, Ste-
phen Huxley regressa à casa de infân-
cia na orla do misterioso Ryhope Wood,
lece sempre a vontade da
terra.
Robert Holdstock condi-
antologia. Mas até es-
tes últimos poderão
crianças e um velho que servem como
única arma contra essa coisa malévo-
seguem o circo e o acompanham na sua
viagem.
ser agradavelmente O circo ambulante capturou a imagina- la que se aproxima. Inesquecível a cena A delicadeza e elegância da escrita de
o bosque de carvalhos que consumiu a ciona a maioria da histó- ção de muitos autores e cineastas desde da biblioteca onde se desenrola um dos Erin Morgenstern presta-lhe um exce-
surpreendidos com os
existência do pai George e atrai inexo- ria ao ponto de vista de que surgiram os primeiros empresas de principais confrontos do livro. lente serviço ao criar a atmosfera certa
dois contos de Senhora
ravelmente o irmão Christian. Também Stephen, mas ao adoptar Vingança. Carnival ambulantes nos EUA no início Enquanto Bradbury explora as trevas em que enleia o leitor. As descrições nunca
Stephen acabará imerso nos mecanismos uma estrutura narrativa A primeira história, do século XX. Circo sempre foi sinónimo torno do circo, um outro romance, de são entediantes e as tendas tornam-se
do bosque, apaixo- que se serve TRVE, explora a cor- de marginais e freaks uma estreante norte-ame- peças bem arquitectadas muito fáceis de
nado por Guiwen- dde cartas e rupção comercial do que operam maravilhas ricana, redescobre o circo imaginar. O jogo prossegue ao longo dos
neth, obsessão dos ddiários de terceiros,
ir s p rmi
permi- vampiro, a transformação de um ser ma- e exibem características como palco de ilusões, anos, mas a imprevisibilidade da nature-
homens Huxley e te uma compreensão ampla cabro em jovem romântico, alvo das pai- excêntricas que cho- atingindo estas todo um za humana prega uma partida a todos os
personagem mito- ddas personagens. Além disso, xões dos adolescentes. Desconstruindo a cam os espectadores. O novo patamar. The Night envolvidos e escolhas terão que ser feitas
lógica, um mitago. eestas crescem, modificam-se, realidade, o conto segue os preparativos mundo do circo é uma Circus de Erin Morgens- que podem destruir ou não o trabalho de
Publicado em 1984, im
impedindo definições fixas para o maior evento literário do ano, o realidade alternativa tern é bem capaz de ser um duas vidas ligadas por uma competição
Mythago Wood de- e contradizendo tanto pre- lançamento do próximo livro da escrito- em que operam forças das leituras mais refrescan- mortal. A surpreendente maturidade des-
senvolve-se sobre co
conceitos quanto expectati- ra que terá iniciado a moda vampírica. desconhecidas e nele a tes e surpreendentes desde te romance de estreia torna-o uma leitura
a premissa de um vvas. De modo semelhante, o Esboçando algum sarcasmo, é uma des- arte do entretenimento que Susanna Clarke surgiu certamente recomendada.
bosque primordial, en
enredo avança em cadências crição mordaz dos mecanismos publi- atinge o rubro. Desde em cena com os seus cava- São estas duas abordagens – uma clássica
resistente à explo- al
alternadas, ora calmas ora citários, em que se sacrifica a qualidade Freaks de Todd Brow- lheiros vitorianos. e outra muto recente – que me levam a
ração e em última ap
apressadas, que, conjugadas pela venda de milhões de cópias. Um re- ning até aos muitos ac- Muito à semelhança de concluir que o fascínio pelo circo nunca
lato onde se intercala a ganância dos que tos circenses que povo- O Prestígio de Cristopher se desvaneceu e nunca esteve tão vivo
análise inconquistá- co
com uma linguagem cuidada
exploram o marketing do evento, com a am os filmes de Fellini, Priest, também estamos como agora. / Safaa Dib
vel, onde se geram e escorreita, ajudam à imer-
ofuscação da multidão. nunca o circo e os seus perante a rivalidade de dois
representações car- sã
são nos eventos e conflitos.
O objectivo do evento, inebriar a audiên- habitantes deixaram de mágicos de palco. Mas ao
nais das figuras do MMythago Wood respira mito-
cia, torna-se irónico quando um grupo de fascinar os intelectuais e artistas em am- contrário das personagens de Priest, os
imaginário colectivo britânico provenien- logia celta se
sem se esgotar nela e embo- mágicos de Morgenstern são verdadei-
jovens decide sabotar o evento, um teor bos os lados do Atlântico.
tes das mais diversas épocas: mitagos. ra evite os usos habituais deste tipo de ramente capazes de actos de magia. A
de violência com efeito libertador. Ape- Na literatura, o circo também se fez re-
Ainda que os Huxley procurem entender temáticas não tenciona negá-los, prefe- presentar condignamente. Como não sua rivalidade não se exprime através da
sar de compreensível, o desfecho não me
os mecanismos deste processo, limitam- rindo reinventá-los. O resultado é uma mencionar o grande clássico de Ray Bra- grandiosidade dos seus actos de ilusão,
agradou totalmente. Mas o que gostei foi
se sempre a aflorar a questão. Por mui- obra original, surpreendente, prenhe de de uma história fechada, composta e ba- dbury, provavelmente a sua obra-prima, mas na selecção de discípulos que irão
to que desenvolvam as explicações e as maravilhoso e interesse. / Inês Botelho lanceada, sem descrições desnecessárias. Something Wicked this Way Comes? (a ser disputar um antigo jogo de contornos
dotem de um certo cunho científico, não A segunda história, Exercício de cidadania, publicado pela SdE em 2012). Na me- vagos e enigmáticos.
conseguem controlar a situação nem explora a temática da vingança de forma lhor tradição literária norte-americana, Celia Bowen e Marco Alisdair apenas sa-
compreender até que ponto as suas his- Cá dentro distinta, mas também violenta. A perso- Ray Bradbury evoca a difícil passagem bem que foram seleccionados enquanto
tórias se relacionam e ligam com as dos nagem principal é um assassino em série, da adolescência para a idade adulta numa crianças e estão a ser preparados para o
mitagos. O bosque reina sobre tudo e que escolhe como alvo os homens que, voz poética que parece despertar os mais jogo onde as suas habilidades na magia
todos os que o rodeiam, afirmando-se Senhora Vingança exercendo cargos poderosos, enriquece- antigos instintos primordiais do Homem. serão testadas até ao limite. E como pal-
como um protagonista em si mesmo, Fernando Ribeiro ram ilicitamente, recorrendo à corrup- A curiosidade de dois rapazes por um es- co desta demonstração de talentos foi
algo que a sequência narrativa evidencia. Gailivro ção, à burla ou à vigarice. tranho circo que visita a sua vila no mês escolhido Le Cirque du Rêves, o circo dos
Quando Stephen e Christian se esfor- Entre a objectividade e a frieza do assas- de Outubro desencadeia uma série de sonhos, uma criação deslumbrante que
çam por descobrir respostas, nunca as Para a maioria o nome Fernando Ribei- sino assistimos a pequenos momentos de eventos em que irão terminar a lutar pe- apenas existe para testemunhar o con-

74 /// BANG! BANG! /// 75


TAVOLA
QU AT RO Fã s pa rt il ha
m as
su as ex pe ri ên ci as de
Fa nd om s
C a t a r in a c
.
T e lm a t e ix e
ir a
j o ã o o li v e ir
a
joão barre
ir o s
Texto e entrevistas
por Safaa Dib

REDONDA
género fantástico com um muito maior pendor para a forma-

A
lguma vez leram um livro e gostaram tanto dele como as suas personagens favoritas, sejam elas retiradas de co-
que não conseguiam pensar em outra coisa? ção destas pequenas comunidades. Talvez pela sua natureza O que é um fandom? mics, ou das séries de TV. Chegam mesmo a traduzir a Bíblia
Gostaram tanto desse livro que tiveram que o propícia a nichos, é neste tipo de literatura que se concentram para Klingon.” Refere o caso extremo de um fã, na presença do
reler para repetir a sensação de maravilha e des- alguns dos mais fandoms mais populares e intensos na sua A discussão na presente Távola abre com a inevitável pergunta: Stephen King, que “chegou mesmo a cortar os pulsos para que
coberta que se apoderou da mente e coração. dedicação. o que é um fandom? As respostas são consensuais ao afirma- este autografasse em sangue o novo livro”.
E quem diz livros, diz também filmes, jogos ou Portugal também tem a sua dose de fãs e quatro deles foram rem tratar-se de uma comunidade de “pessoas que se reúnem Quando se aperceberam os nossos convidados de que se ti-
séries televisivas. convidados para esta Távola. O veterano fã da ficção científica, em redor de um objecto de devoção”, para citar a Catarina. Na nha tornado mais do que um gosto, e sim uma paixão? Telma
O gosto transforma-se numa forma de obses- João Barreiros, uma fã de Sangue Fresco (livros e série), Telma perspectiva de Telma Teixeira, “têm um forte desejo de infor- diz que demorou uns bons meses a reconhecer a sua obsessão
são e surge uma imperiosa necessidade de partilha com alguém Teixeira, Catarina C. que se autodenomina uma Potterhead (fã mar, estarem informados e sobreanalisarem tudo até à exaus- em relação à saga Sangue Fresco, mas “quando fiquei acordada
que compreenda o entusiasmo e o intenso prazer de ler, jogar, do universo Harry Potter), e João Oliveira, que vive muitas pai- tão”. João Oliveira vai mais longe e considera os fandoms como pela primeira vez até às 3 da manhã para ver um episódio em
ver algo que nos tocou de uma forma particularmente profunda. xões, mas se tivermos que identificar uma delas terá que ser o uma celebração de uma obra de arte ou autor, “uma experiência directo foi um forte indicador de que a minha rotina normal se
A comunhão entre pessoas que partilham o mesmo objecto universo Star Trek. única e enriquecedora se for aproximada com a mente aberta”. tinha alterado”. Finalmente aceitou o facto de pertencer a um
de devoção é o que gera as comunidades denominadas de E nessa defesa à causa, João Barreiros afirma que quase tudo é fandom quando a Saída de Emergência a convidou a gerir os
fandoms. E esta palavra ganha muito mais importância no permitido, “os fandomistas vestem-se, falam e comportam-se conteúdos do blogue Sangue Fresco. João Oliveira indica o mo-

76 /// BANG! BANG! /// 77


mento em que a Internet foi ins- um fandom é algo extremamente bom, sível melhorar um conceito que se quer
talada pela primeira vez em casa Socializar desde que seja em moderação.” João Bar- saudável”. João Oliveira acredita que os
como determinante para aderir a ou não? reiros encara isso como consequência fandoms estão a ganhar mais fãs em
fandoms, “com a vinda da Inter- dos jogos online e de uma certa cultura Portugal “mas acho que ainda falta que
net descobri que existiam grupos Curiosamente, se a vontade de so- nipónica, mas “não somos Otakus. Pelo ficção científica e fantasia passem a ser
inteiros que giravam à volta dos cializar se tornou mais forte para menos eu não sou”. mais mainstream em Portugal. Não falo
livros que lia, e foi um género de alguns, para outros só conduziu pressão que lá fora “os trekkis só comu- de obras estrangeiras, mas obras Made
revelação”. ao oposto. João Barreiros admite Catarina C. tem 25 anos, nasceu nicam com outros trekkies e só lêem tre- in Portugal para fornecer uma identida-
Em relação à sua paixão por
Harry Potter, Catarina aperce-
que os seus gostos tiveram como
consequência o isolamento, “não
em Tondela e fez os seus estudos
no Porto. Licenciada em Ciências Comunidades quices. Que as vampiras adolescentes só de ao fantástico português e por si aos
fandoms portugueses. Já existem autores
beu-se de que, ao contrário dos falo de futebol. Não falo de peda-
do Meio Aquático, trabalha actual-
mente como bolseira de investi-
portuguesas falam do angst de ter de crescer e verem
a luz do dia. Que os infanto-fantasistas com algum sucesso e é só caso de conti-
amigos, o seu entusiasmo não es- mundo e não conhecesse os seus gogia. Detesto a conversa de treta gação científica. só querem saber de combates às espa- nuar a divulgar e dar oportunidade”.
morecia e lia vezes sem conta os que versa sobre coisa nenhuma. Muitos fandoms em Portugal surgiram Fechamos a távola pedindo aos nossos
nomes verdadeiros, e essas discus- das contra as Forças da Noite. Nenhum
livros. João Barreiros diz não ser Não há pachorra para a seriedade com o boom da fantasia na última déca- convidados que nos descrevam o seu ide-
sões passaram a ser praticamente destes grupos vai ler livros pertencentes
capaz de pertencer a nenhum tipo e absoluta falta de humor. Não há da em Portugal. Nasceram muitas comu- al de fandom. “Gostava de ter uma comu-
rotina”. João Barreiros só se aper- a outras tribos”.
específico de fandom e gosta de pachorra para as almas sensíveis nidades online compostas por uma faixa nidade fandom mais sólida e participativa,
cebeu de que havia outras pessoas Telma refere o caso dos “serial fandom
consumir um pouco de tudo, mas e para os tecnofobos da esquer- etária predominantemente jovem. Recor- aberta a novas pessoas, com mais eventos
com os mesmos gostos muito mais fans que transferem a sua obsessão de
a grande paixão que despertou da miserabilista. Não há pachor- do-me muito bem de ter acompanhado, organizados. Em vez de ser uma coisa
tarde e refere que “se os fandoms fandom em fandom”, um dos casos que
as suas endorfinas terá sido, sem ra para a estupidez. Diz-se que a desde 2001, fandoms em torno de J. R. R. maioritariamente online e conflituosa
fossem grupos bem organizados, acha pouco saudáveis porque acha que
dúvida, a literatura de ficção cien- tolerância aumenta com a idade, Tolkien, Robert Jordan, Filipe Faria, Ge- como tem sido”, comenta Catarina. Tel-
o resultado seria ideal. Seria como “tentam colmatar algo que lhes falta na
tífica. A paixão começou a com a mas é falso. Quanto mais velho orge R. R. Martin, mas havia outros em ma refere ser a favor da criação de mais
um pedacinho de céu na triste me- vida real.” João Oliveira pensa que “irá
descoberta em miúdo dos livros sou, menos paciência tenho.” torno de Juliet Marillier e Harry Potter. “blogues, fóruns e outros espaços em que
lancolia deste nosso inferno”. sempre existir aqueles que não conse-
da Argonauta, do Salgari, do Wells Felizmente que para o João Em ficção científica existia desde há mui- os fãs criem os seus próprios conteúdos
Neste ponto já se tornou óbvio Telma Teixeira, 32 anos, nascida guem ir mais além, pois para estas pesso-
e Burroughs. “A descoberta da FC Barreiros este isolamento não to mais tempo o grupo da FC composto e façam eles mesmos as traduções”, de
constatar o papel vital da Internet em Beja e criada em Setúbal. as admitir que possa existir algo melhor
mudou tudo na minha vida. Os implicou perder todas as carac- Licenciada em Assessoria de Ad- por uma faixa etária mais velha, ranzinza modo a criar um “fandom apaixonado,
no desenvolvimento de fandoms. que aquilo que elas veneram é impossível.
meus afectos. Os meus amigos. A terísticas de sociabilidade. Mas ministração na ESTG de Portalegre, e masculina. Se há algo em comum que participativo, uma comunidade que troca
Foi apenas através do recurso à In- E tal como o geek sem vida, não é uma
aprendizagem de duas ou mesmo todos nós conhecemos histórias trabalha hoje como Assistente de posso apontar a todos eles é o facto de se ideias e discute teorias respeitando aque-
ternet, seja para contactar outros Direcção. Mantém o blogue “Ler e consequência de fazer parte de um fan-
três línguas diferentes”. do lado negro da Internet, do terem iniciado com muito entusiasmo e les que têm opiniões diferentes das suas”.
fãs, seja para procurar mais infor- Reflectir” desde 2005 e colabora no dom, mas de não saber largar.”
nerd que não tem vida social ou boas intenções, deram lugar a fortes ami- João Barreiros termina com uma citação
mação, que os nossos convidados blogue Sangue Fresco desde 2009.
é incapaz de interagir socialmente. zades e inimizades que perduraram ao de Wittgenstein, talvez fruto do seu de-
tiveram a oportunidade para se
A partilha dedicarem em pleno às suas ob- Será essa personagem um cliché? longo dos tempos, mas progrediram em
Na toca do
sencanto com as comunidades fandom

!
Catarina acha que existe essa rea- direcção a um certo desencanto devido a portugueses, “sobre o que não se pode
online sessões. João Oliveira admite que

G
“sou culpado de passar tempo lidade, mas tem a ideia que é cada falta de interesse no foco de devoção ou
coelho falar, importa calar.”

N
vez menos frequente e que, hoje a conflitos sociais internos no fandom. Ainda assim, todos os dias nasce um

A
Uma pessoa não pode deixar de extra à frente de um computador
em dia, “a informação está cada Flame-wars tornaram-se um termo popu- novo fã com uma grande paixão por ex-

B
se interrogar se existem vantagens e sempre preferi ter mais livros e Como terão evoluído os fandoms em
vez mais acessível a toda a gente lar entre os fandoms, significando uma primir. Torna-o mais feliz. Torna-o uma
associadas a este tipo de comu- afins para poder acompanhar o Portugal? João Barreiros diz que são tri-
e na própria Internet há cada vez discussão exacerbada entre participantes pessoa mais interessada na vida. Torna-se
nidades. Apesar de consumirem que falavam na Internet. Essas bos às quais resolveu deixar de pertencer.
mais lugar para a socialização”. que muitas das vezes terminava em insul- um vício, mas em muitos casos é um bom
muito tempo diário, o contacto horas enriqueceram a minha vida, “O nosso país é muito pequeno. Os ter-
Para a Telma, apesar de se parecer tos, posts apagados e muitos egos ama- vício e pode mesmo dar lugar a oportuni-
com outras pessoas que partilham descobri livros e filmes que se ca- ritórios demasiado limitados. As invejas e
que se perde muito tempo isola- chucados. dades sensacionais. Novos fandoms irão
a mesma devoção “tornou-se im- lhar nunca teria descoberto e hoje dores de corno são demasiado poderosas.
do, “a verdade é que o fã esteve a João Oliveira, nascido em 1986 Quantos destes fandoms prejudica- surgir todos os dias em grau proporcional
portante, quase essencial” para Ca- considero-me uma melhor pessoa no Algarve, trabalha na área das Há quem opte por estar horas na Internet
socializar, só que usando formas ram-se ao recusarem-se a aceitar ver para a novos autores e fenómenos de culto. No
tarina que cresceu numa pequena por tal.” Não deixa, no entanto, de Telecomunicações e Informática, e a dizer mal dos outros.” Telma nota que
diferentes de o fazer. Além dis- além do seu objecto de obsessão? Cata- fundo, cada fã enfrenta a mesma escolha
cidade onde pouca gente partilha- avisar contra o excesso da Inter- assegura que Jean Luc Picard é o os fãs portugueses são apaixonados, mas
so, muitos fandoms dão origem melhor capitão da Enterprise. rina afirma que “talvez em proporção de Alice, a de seguir (ou não) o coelho
va os seus gostos literários. Tel- net, “é preciso saber quando está comentam pouco e evitam comentários
a encontros na vida real, o que ao grau de devoção/obsessão, surja por branco e cair bem fundo na sua toca para
na hora de ir offline, e lembrar que negativos, mesmo que tenham argumen-
ma comunga da mesma ideia, “a
existe mais no mundo e na vida”. significa que há uma vontade real vezes um grau de intolerância, por vezes
tos válidos. A situação mais negativa que descobrir o país das maravilhas. BANG!
grande vantagem foi não me sentir de socializar offline.” Oliveira crê agressivo, em relação a novas pessoas,
sozinha. Havia alguém numa parte Catarina também admite que se teve que enfrentar foi “um caso de um
que o geek que não tem vida é como também em relação a outros focos
qualquer do mundo que compre- tornou uma utilizadora intensiva blogue que copiou durante algum tempo
um estereótipo bastante infeliz e de fandom”. João Barreiros tem a im-
endia e partilhava a minha paixão da Internet devido às suas paixões os textos que eram publicados no Sangue
pelos livros, sendo “muito com- não é a norma, mas “os estere- Fresco”.
e com quem eu podia trocar ideias ótipos são baseados em alguma
sobre isso”.Oliveira diz que pas- pensador o estabelecimento de Catarina sempre lidou com fandoms
uma rede social de contactos, que coisa. É bastante fácil uma pessoa num contexto mais internacional, atra-
sou a ter um lugar para discutir as perder-se e esquecer-se que existe
suas estranhas escolhas de passar o mesmo do outro lado do mundo, vés da Internet, “e das poucas vezes que
compreendem as nossas alegrias e mais na vida que fazer parte de me envolvi em comunidades portugue-
tempo com outras pessoas, mes- um grupo dedicado a uma obra
mo que vivessem noutra parte do desgostos em relação àquele livro sas acabei por me afastar. Talvez por ser
que tanto adoramos.” Telma men- de ficção científica. Fazer parte de mais nova na altura, achei que eram gru-
ciona as pessoas com quem con- João Barreiros, licenciado em pos muito fechados, e pouco noob friendly
tacta diariamente sobre Sangue filosofia e professor do ensino (pouco simpáticos para com os novatos
Fresco como “os meus amigos Secundário, é tradutor, autor e (até que ainda se estavam a identificar com
já foi) editor de ficção científica. Os
da terapia” e considera a Internet seus livros saíram com as chance- os fandoms).” No entanto, nem tudo é
como a “única forma que o fã tem las da Caminho, Livros de Areia, negativo e refere que neste momento “já
de obter informação ou discutir Presença, Saída de Emergência e se encontram comunidades mais abertas
ideias com outros fãs”. Gailivro. Em Espanha foi publicado e tolerantes, mas penso que ainda é pos-
pela Bibliopolis.

78 /// BANG! BANG! /// 79


Sugestões Fnac
por Raquel Curvacheiro / Fnac Cascaishopping
Crime e Castigo... à Portuguesa
o pensar nos outros povos, a maior parte de Jesus, uma infanticida

A
são Apáticos.
nós tem ideias preconcebidas que dificilmente
afasta. Quando o assunto são os povos me-
diterrânicos, os conceitos são limitativos…Os
Italianos são Apaixonados e Apaixonantes; os
Espanhóis são Efusivos e Festivaleiros; os Portugueses…

Neste livro, o último título a sair da pena de Pedro Al-


que recolhia crianças
da Roda dos Expostos
(onde eram deixados os
órfãos e “filhos de pais
incógnitos”), apenas
para as matar às dezenas;
e, finalmente, a história
meida Vieira (Nove Mil Passos, A Corja Maldita e A Mão Es- de Maria José, a jovem
querda de Deus), o autor abana as fundações sobre as quais que com o seu crime
assentam esses preconceitos. (matou e desmembrou
Através do relato de 30 crimes cometidos antes da abo- a mãe) acordou a chama
lição da pena de morte no nosso País, Pedro Almeida Viei- literária de um jovem de
ra mostra como, mesmo na pacatez saloia do Portugal de 23 anos, de seu nome
outros tempos, o crime, a sede de sangue, a malvadez e a Camilo Castelo Branco,
crueldade corriam nas veias de um povo que, aparentemen- que a viria a imortalizar
te, possuía a calmaria de um mar sem ondas… apenas para na obra Maria! Não me
provar que, como este, na sua imensidão e profundidade se Mates, Que Sou Tua Mãe!.
escondiam perigos iminentes. O registo de escrita do
Os relatos abrangem toda uma panóplia de crimes; das livro torna-o de fácil e compulsiva leitura. De destacar par-
façanhas de Diogo Alves no Aqueduto das Águas Livres; pas- ticularmente o humor que o autor imprime em algumas das
sando pela bela adúltera que mais que apupada foi cantada narrativas e a forma como se foca no essencial das histórias.
em verso a caminho do castigo final; passando por Luísa de BANG!

Eventos: FÓRUM FANTÁSTICO 2011

A
s criaturas de Bosch estão a doso e Inês Rolo, e os autores Madalena ro, esta com direito a anúncio exclusivo
ser avistadas nas ruínas do Santos (1001 Mundos, Asa), Bruno Mar- dos vencedores do concurso.
Convento do Carmo, em tins Soares (SdE) e Pedro Ventura (Pre- João Monteiro, organizador do Festival
Lisboa. Criaturas de pesa- sença). Conspirações e Apocalipses serão MotelX, irá estar presente para falar do
delo que se libertaram de outros dos temas abordados por alguns seu novo projecto relacionado com a car-
pinturas demoníacas e que fazem questão autores nacionais com obras reira cinematográfica
de estar presentes para anunciar mais uma recentes publicadas, entre eles, de António de Mace-
edição do Fórum Fantástico, a convenção Renato Carreira (SdE) e João do, também um dos
do género fantástico que se realiza este ano Leal (Quetzal). ilustres convidados
de 18 a 20 de Novembro, na Biblioteca O autor David Soares en- desta edição.
Municipal Orlando Ribeiro, em Telheiras. cenará no evento uma peça Filipe Melo marca
O espanhol Félix Palma, autor de O de spoken word, com música presença no início do
Mapa do Tempo, e Victor Mesquita, autor ao vivo de Charles Sangnoir. dia de Domingo com
português da mítica série de banda dese- As antologias fantásticas na- a apresentação do seu
nhada Eternus 9 (Gradiva) serão alguns cionais marcam uma forte mais recente volume
dos convidados desta edição. Juntando-se presença nesta edição e terão de BD, Dog Mendonça
a eles, teremos diversos intervenientes do direito a um painel, bem como – Apocalipse (Tinta da
género fantástico com participações nos apresentações, com destaque China). De resto, será
vários painéis de debate e apresentações. para três antologias que têm um dia com uma forte
Os professores Maria do Rosário Mon- dado que falar: Os Anos de representação da Ban-
teiro, Jorge Martins Rosa e João Lin Yun Ouro da Pulp Fiction Portuguesa (SdE) orga- da-Desenhada portuguesa e muitos dos seus
representam o universo académico e dis- nizada por Luís Filipe Silva e Luís Corte artistas mais reputados.
cutirão o ensino da ficção científica. Real, Lisboa Electropunk (SdE) organizada Não faltarão outros debates, actividades,
O tratamento do género na literatura por João Barreiros e Antologia de Contos surpresas e muito convívio de bastidores
fantástica será um dos painéis do dia de de FC do Fantasporto 2012 (1001 Mun- para tornar esta edição do Fórum Fantás-
sexta-feira com a presença de Daniel Car- dos – Asa), organizada por Rogério Ribei- tico mais uma vez memorável. BANG!

80 /// BANG!

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