É a ti mesmo, meu senhor, guardado por Deus, que recebi
através das tuas cartas dignas de todo o elogio; estás sempre presente e não podes estar de todo ausente no espírito,)senão que, imitando a Deus, não te recusaste a ajudar os teus servidores pela abundância da tua virtude e pela possibilidade que Deus te deu por natureza. Por isso, admirando a grandeza da tua condescendência, fiz com que o meu temor de ti estivesse mesclado de afeição. E de ambos, o temor e a afeição, suscitei uma única caridade, constituída pelo respeito e pela boa vontade, para que o temor, privado da afeição, não se torne em ódio; nem a afeição, não, estando unida a um prudente temor, se torne em desprezo; mas sim, pelo contrário, a caridade se manifeste como lei interior de ternura, que una tudo o que está naturalmente aparentado. Pela boa vontade domina ela o ódio, e pelo respeito repele o desprezo\ Sabendo que ele - fak1 do temor - se aproxima da caridade mais que tudo, diz o bem-aventurado Davi: O temor do Senhor é puro, permanece eternamcnte,1 sabendo que este temor é diferente do temor que consiste em ter medo do castigo que acarretam as faltas. Porque este chega a ser expelido, desaparecendo totalmente pela presença da caridade, como o mostra o grande evangelista João em algum lugar das suas palavras, dizendo: A cnridade perfe. 'a lança fora o temor;2 ao passo que aquele temor caracteriza naturalmente a lei da verdadeira ternura. Com respeito a isso, sempre conservaram os santos, e sem nenhuma corrupção, a lei e o modo d� vida da caridade para com Deus e de uns para com os outros. Assim, pois, como dizia, tendo mesclado a afeição ao temor de meu senhor, suscitei até hoje esta lei da caridade. Por respeito, abstive-me de escrever, para não dar ensejo ao desprezo. E pela boa vontade fui impelido a escrever, para que a total negativa a escrever não fosse tomada por ódio. Escrevo, por mandado, 1 Sal 18, 10. 2 I Jo, 4, 18. INTERPRETAÇÃO DO PAI-NOSSO· 149
princípio da natureza. No movimento deste princípio, deveria
saber qual é a lei da natureza e qual é a das paixões, cuja tirania advém por uma escolha da vontade e não por natureza. Deveria também preservar a lei da natureza com uma atividade conforme à natureza, e manter a lei das paixões afastada da sua vontade; e, com a razão, à natureza, que de per si permanece pura e imaculada, deveria salvaguardá-la, deixando-a livre de ódio e divisão, constituindo a vontade companheira da natureza, de modo que não seja levada de modo algum àquilo que não foi concedido pelo princípio da natureza. Assim teria afastado todo o ódio e toda a distância com respeito a quem lhe é afim por natureza, de modo que, dizendo esta oração, fosse escutado e obtivesse de Deus duas graças em vez de uma só: o perdão das culpas passadas e a proteção e libertação das futuras. Sim, porque é por um único motivo que Deus não permite que alguém caia em tentação nem o deixa entregue à escravidão do Maligno: estar disposto a perdoar as ofensas ao próximo.
ASCENSÃO À DIVINIZAÇÃO
Por isso, também nós - para retroceder aqui um pouco e
retomar sucintamente o significado do que já se disse - se queremos ser libertados do Maligno e não cair em tentação, creiamos em Deus e perdoemos as ofensas aos que nos ofendem. Pois disse [o Salvador]: Se não perdoardes aos homens, tampouco vosso Pai vos perdoará os vossos pecados, 67 para que não só recebamos o perdão das culpas, mas também vençamos a lei do pecado, sem que Deus permita que a experimentemos, e para que esmaguemos a maligna serpente - que engendrou esta lei - de que pedimos sejamos libertados. Porque Cristo, que venceu o mundo,68 nos guiará no combate, e nos armará com as leis dos mandamentos e, conforme a estas leis, com a rejeição das paixões; e unirá, mediante o amor, a natureza humana consigo mesma. E, sendo Ele pão da vida, 69 da sabedoria, do conhecimento e da justiça, mover-nos-á o apetite, insaciavelmente, para Ele, e, pelo cumprimento da vontade do Pai, far-nos-á sem elhantes aos anjos em sua adoração, 67 Mt, 6, 15. 68 Cf. Jo, 16, 33. 69 Jo, 6, 35-48.