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DOENCGAS DO CORACAO Prevengao e Tratamento 2 4S)X APRESENTAGAO CEM ANOS DA HISTORIA DA Rafael Leite Luna PRESIDENTE DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE CARDIOLOGIA, [No inicio do século havia, em Medicina, somente quatro dreas basi cas: Clinica, Obstetriia, Cirurgia e Pediatria. Na década de 20,a Car- iologia, em virtude do seu desenvolvimento e complexidade crescen- te, separou-se,em defiitiv, da Clinica Médiea, passando a constituir espevatidade autnoma e bem definida, “Antes disso, porém, obras pioncitasjé haviam surgido, inclusive no Brasil. A primeira fi Mokéstias do Coragio e das Grandes Vasos Arte rials, de Martins Costa e Carlos Alvarenga,publicada em 1898, seguida de ‘Nogfes Fundamentais de Cardiologia, de Osvaldo de Oliveira, Comega- vasa germinar, no Brasil, um erescenteiteresse plas doensas do corag. Em 1909, Carlos Chagas e seus colaboradores, ene eles Gaspar Vianna, Eurico Villela, Margarino Torres, diagnosticaram a cardiopatia chagisica, primeito grande estudo cientifico de uma doenga cardiaca ro Brasil pare magnifica contibuicio para a Cardiologia mundial Fig. 1 Alunos do 3 Curso do Servigo de Caniologia do Hospital Municipal de Sw ult claro, No ial deste curso fo deciida «fundus da Sociedade Brasileira de iow um verdadeite divisor de éeuas Ja Cardiologia no Bras ‘ARDIOLOGIA NO BRASIL. E logo comegaram a chegar os primeiros eletrocardiégrafos, entre 0s quai 0 que Carios Chagas touxe para Manguinhos. Em 1933, houve a primeita tentativa de eriagio de uma “Sociedade Brasileira de Canfiologiae Hematologia".na Santa Casa de Misercsdia tdo Rio de Janeiro, sob a diregao de Carlos Cruz Lima, Uma pena! Essa Jiclativa fo prosperou. Enquanto isso, em So Paulo, no Hospital Mu- cipal, Dante Pazzanese ministava seu curso anual de eletrocardi fia Seguido da riago de um servigo no qual em 1942, 0 Dr. Frank Nor ‘man Wilson, fundador e diretor da “Heart Station”, do Hospital da Uni versidade de Michigan, vei dar um curso de eletrocardiografa, assstido por grandes noms da medicina nacional interessados nos problemas car ‘tacos, como Magalies Gomes Antinio Villla, do Rio de Janeiro; Jiro Ramos, Barbost Correia ¢ Celestine Bourroul, de Sao Paulo, Finalmente, em 1943, os alunos do 3° Curso do Servigo de Cardio~ logia do Hospital Municipal de So Paulo, liderados por Dante Pazzanese (Fig. 1) fundaram a “SOCTEDADE BRASILEIRA DE CARDIOLO- GIA”, a5" Sociedade Nacional no Continente Americano © a 13" no 1 Paulo, margo de 1943, vendo-seo Dr. Date Pazzanese na primeira fila de “Cardiologia (SBC). consumada no dia ANW/I985. A Tanda da SBC repre —__a>< 1... (Na ——wvVw—e XXVE—_Apreseniacio mundo, que, desde, entio, congregou e conduziu os cardiologistas do Brasil ele aderiram, como sdcios fundadores, Aben Athar Filho. do Pari: Newton de Souza, Arnaldo Marques ¢ Ovidio Montenegro. de Pernambuco; Adriano Pondé, da Bahia: Cail Portoc Caio Benjamin Dias, de Minas Gerais: Weber Pimenta Bueno, Wal iz Feij6, Agenor Porto, Oscar Ferreira Fénior. G Roberto Menezes de Oliveira ¢ Vielra Romeiro, do Rio de Janeico ‘Mendonca de Barros, Luiz Décourt ¢ Bernardino Tranchesi de Sto Paulo; Anchises de Faria, do Parana: Djalma Moellmann, de Santa Catarina; ¢ Aldo Chaves, Henrique Faillace, Rubens Maciel e Mario Salis, do Rio Grande do Sul 'A'1 Reuniao Anual da Sociedade Brasileira de Cardiologia real zou-se em D4, em Campinas, e desde essa data, ver sendo organiza 4a todos os anos, coma fnalidade de congregat os cardiologisia bra sileiros, cienifica e socialmente. Os assuntos discutidos nas teunives cientificas eram a eletrocardiografia, a doenga de Chagas, «hiperten- slo arterial ea cardiopatiareumtica, Durante a Reuniio Anual da So- ciedade Brasileira de Cardiologia, em 1946, em Belo Horizonte, uma das decisdes mais importantes fo a implantagao da "Nomenclatura ¢ Padronizagdo do Diagnéstico Cardiol6gico" ‘Napoca, os Servigos de Cardiologia possifam um elettocardigrafo, uum aparelho de raios X, com abreugrafia, um quimdgrafo e um fonacardiégrato [Em matériade medicamentos, havi ps de folhade digital, digitaina em gotas,diurético mercurial, uinidina. Mas também a penicilin pz de curar a endocanfte bacteriana a sfilis, impedindo as temiveis vuictde qe atnde Cada dia se az mais neces sabe escThe 8 acre gut dsvem scr solicitados, conduta que pode ser sneizada na quagd custfbenetcio. Cam se poet vero dagnésticobaseado 0s conhecimentoseio- atopenicos, aratmicos efsiopatcgics representa o pont de apoio vcada caput. Faaminar bem opacont 1 em dda chave que Shree po Jo racic dagndsico, Saber solicit interpreta os ‘ames complementars eto moment importante. Comeeando mal ‘Ss napvaloraandog exe iio do pene, naa ma dar cer. ‘Cape ress, condo, ue diagnostic € apenas um cr ras ‘esl a histiaatural de ina doeng, © qu petnte a0 mésco uma ‘nhe lonituinal de cada caso € a reconstuiga Ga hist natal poss somente ass serdposivel concer cases eo ators que a Trovocar ou a deseneadearam sua mancira de evlire muitos ou Ts mapesto nabs esqueccodo Jo prognostic, ura anevsto dais tir nora que ainda no aomteceae gue os propomos a medica para benefci do paciene, Quem no leva em cone a histra natura Ais uucngas Sede com propostss teapeuica que poueo OU nada ale sia evoligt. ‘Na verde a evened co tatameno «loos objetivo nas de tudo que occ far, Pars ue el lcance sess objetivo, numa ou toute ea, os aspects piconsociaisaquirem relevanea especial ‘aie ext foce eseura na frmasio dos médicos. As Escolas de Medicina, praticamente sem exceyio, sempre cultivaram idedrio resin ultimamenteaeescdo da lstotxnicit. Sem dGvia, os tspontos biogas eos eangostecoligicos sonora, mas no ‘Chresentam tue. O elsco sabe qe ola humano da medicina & feat mais nore do Seu tabalo. coq os pacientes mas vaorizam {undo peveber quccle nda existe Por alse vé qe, deciiarente Atty a segue a roposa de uma medicina tecnologia. Nas li tas enelinhas, 1 mensagem que o pemeia¢ a de evaloia 0 r- Balko do clic e pr em desague ol human da meicina Desgjas te ehegaoo mals ert possvel dests objetivos. Um psa alate vi epee’ dacricae as sugested quem Mas pr imo esti dos pacientes —0 Cinco, Celmo Celeno Porto Goidnia, Abril de 1998. CONTEUDO APRESENTAGAO, XXV 0 u "EM ANOS DA HISTORIA DA CARDIOLOGIA NO BRASIL, XXV Raphael Leive Luna rRODUCAO, 1 . OSIGNIFICADO SIMBOLICO DO CORACAO EO [ADO HUMANO DA MEDICINA, 3 elmo Celeno Porto A.CARDIOLOGIA NAO PODE PERDER SEU CORACAO, 10 Wilson Alves de Otiveira Jr CO CLINICO E AS DOENCAS DO CORACKO, 12 Celio Celeno Port TRATAMENTO DAS DOENCAS CARDIOVASCULARES BASEADO EM EVIDENCIAS, 20 Alvaro Avezun Sir DIAGNOSTICO DAS DOENCAS CARDIOVASCULARES E.0 RECONHECIMENTO DOS PROBLEMAS DO. PACIENTE: UMA VISAO HOLISTICA, 32 Wilson Alves de Oliveira Jr, Luiz Femando Salazar e Celmo Celeno Porto QUALIDADE DE VIDA E DOENCAS CARDIOVASCULARES, 36 ‘Marco Aurélio Dias da Silva ASPECTOS PSICOSSOCIAIS DAS DOENCAS CARDIOVASCULARES, 43, LLitia Helena Sampaio de Miranda e Celmo Celeno Porto ASPECTOS ECONOMICOS DA PREVENCAO E ‘TRATAMENTO DAS DOENCAS CARDIOVASCULARES, 49 Kalil Lays Mohallem ASPECTOS MEDICO-TRABALHISTAS DAS DOENCAS CARDIOVASCULARES, 54 Gelma Celeno Porto, Alejandro O. Luqueti, Rita Francis Gonzalez ¥ Rodrigues Branco e Antonio da Silva Menezes Sisior * PRINCIPIOS E APLICACOES DA CARDIOLOGIA INTERVENCIONISTA, 60 José Maria Dias de Azeredo Bastos CLASSIFICACAO FUNCIONAL DAS DOENCAS DO CORACAO, 68 Charles Made Fabio Fernandes FUNDAMENTOS DA PREVENCAO DAS DOENCAS ARDIOVASCULARES, 71 Paulo Andrade Loo PRINCIPIOS DE REABILITACAO CARDIOVASCULAR, 3 Rica Dodo D. Biichlere Romeu Sérgio Meneghelo 2 3 “4 as 7 18 er 23 25 26 ” 28 0 CORAGAO E 0S DISTERBIOS EMOCIONAIS, 83 Marco Auréio Dias da Siva SINDROME DO PANICO E DOENCAS: CARDIOVASCULARES, $7 Paulo Roberto Pereira Toscano NBUROSE CARDIACA, 99 Pale Roberto Perera Toscano SEXUALIDADE E DOENCAS DO CORACAO, 98 Wilson Alves de Oliveira Jr. DISTORBIOS DO COMPORTAMENTO APOS CIRURGIA CARDIACA, 97 Maria de Ftima Pde Oliveira, Sibia M. Cur Ismael e Protiso Lemos da bu FATORES DE RISCO, ESTILO DE VIDA E DOENCAS CARDIOVASCULARES, 100 Celmo Celeno Foro FATORES DE RISCO PARA DOENCA ARTERIAL CORONARIANA EM CRIANCAS E ADOLESCENTES, 108, Lic Antonio Ribeiro Inrocaso ALIMENTAGAO F DOENGAS CARDIOVASCULARES, a2 Estlamaris Tronco Moneeo INGESTAO DE SODIO, POTASSIO F CALCIO E DOENCAS CARDIOVASCULARES, 119 Estelamaris Tronco Monego e Paulo César B. Veiga Jardim DISLIPIDEMIAS, 121 Arménio Costa Guimardes ‘TABAGISMO E DOENCAS CARDIOVASCULARES, 133, Abrahio Ane Neto, Roberto Helou Rass e Eunice Montero Labbe SEDENTARISMO E DOENCAS CARDIOVASCULARE: 139 £ Tales de Carvatho ~ OBESIDADE E DOENCAS CARDIOVASCULARES, 142 Celmo Celeno Porto BEBIDAS ALCOOLICAS F SISTEMA CARDIOVASCULAR, 146 ‘André Filipe Marcondes Vieira, Anete Treiman ¢ Mario. Monjordim Casello Branco RESISTENCIA A INSULINA E DOENCAS CARDIOVASCULARES, 150 Ammaldo Antonio Eliane Saulo Puisch DIABETES E DOENCAS CARDIOVASCULARES, 153 loi Carlos Ferera Brag, André Labranie Fabio Village Guimaraes ESTRESSE E DOENCAS CARDIOVASCULARES, 157 Paulo Roberto Perera Toscano O Significado Simbélico do Coragao e o Lado Humano da Medicina Celmo Celeno Porto Esta inusitada introduco tem um claro objetivo: cha- ‘mar a atengao pata o fato de que a medicina moderna nao, pode ser reduzida a uma profissio técnica. E necessério revalorizar seu lado humano, ¢ nada melhor para isso do, que dar destaque ao significado simbolico do coragao. Ver o paciente da maneira mais ampla possivel é 0 gran de desafio do médico moderno, nao ficando restrito aos gréficos ¢ imagens que os aparelhos constroem para ele. este modo, inclusive o significado simbolico do coragao, no pode ser menosprezado, porque é através dele que os aspectos emocionais ¢ culturais, sempre presentes nas do- engas cardiovasculares, podem ser mais bem compreen- didos. Os conhecimentos técnicos atuais em breve estarao su- perados, enquanto os fendmenos culturais que vém ocor- endo ao longo da historia da humanidade acompanharao, ‘ homem enquanto ele existir, influenciando na saiide e na, doenga A medicina do futuro é a que faz a sintese de todos os conhecimentos, conciliando a técnica com 0 lado huma- no. aqui representado nao pelo coragiio anatomico, simples bomba propulsora da corrente sanguinea, mas pelo signi- ficado simbolico adquirido em nossa civilizagao. O significado simb6lico do coragao nao & uma eriagdo de pintores, poetas ou escritores, mas sim um arquétipo — espécie de parte herdada da mente — que habita nosso, inconsciente e influi na nossa maneira de ver os aconteci- mentos, principalmente as doengas que poem em risco nossa vida (Jung, 1978; Clarke, 1992), Nasceu em épocas remotas ¢ esta presente em diferen- tes culturas, em inémeros mitos e manifestagdes (Lewinsohn; Nager, 1993; Helman, 1994). Em uma caverna de Oviedo, na Espanha, denominada EI Pindal, hé um mamute retratado com um coragao pinta- do em seu centro, que data de 15,000 anos antes de Cristo (Fig. 1.1) (Lyons, 1997), O homem que Ié habitava, ao reproduzir 0 corago da- quele animal, estava por certo a consideré-lo como o “cen- tro da vida", local que deveria atingir com sua langa para abaté-lo, Se desejarmos fazer uma bela comparagao. po- demos colocar a0 lado da silhueta do mamute a obra-pri- ma de Matisse — A queda de [caro — pintada em 1947 (Fig. 12), Em ambas as obras, 0 coragdo é 0 érgdo que mereceu figurar no centro da composigao pictorica, representado quase da mesma maneira, apenas insinuando sua forma anatémica, deixando entrever sua importancia, responsd- vel que é pela circulacio do sangue ou da energia vital. ‘Tal como fez. andnimo artista da era paleolitica, o tinico 6rgio representado por Matisse na figura que fundiu um homem e um péssaro foi 0 coragio, a indicar que nele es- tava o “centro vital” da figura mitol6gica. Buscando as origens do simbolo do-amor, até hoje re- presentado por uma seta-trespassando um coragao, chega- mos A India, hd cerea de 6,000 anos. L4 vamos encontrar a figura de um jovem trespassando com uma seta 0s cora- goes de Shiva (Deus Mascutino) e de Shakti (Deusa do Amor). Este mesmo sfmbolo renasce na Grécia 4.000 de- pois, com o nome de Cupido, que vai atravessar os séculos chegando até nés, earacterizando 0 coragdo como a “sede do amor”, Nos troncos de drvores, nos cadernos juvenis, fn0s cartes postais continua presente 0 coragdo trespassa- do por uma seta, indicando que ainda o consideramosa sede do amor (Figs. 13 ¢ 1.4). Se buscarmos a vertente religiosa, componente impor- tante do inconsciente coletivo de todos 0s povos, vamos encontrar na Idade Média, entre os anos 1100 € 1250, 0 sur- -gimento do culto ao coragio de Jesus e de Maria, transfe- 7 Fig Ll Mamuteretatadn em uma caverna de Ovie ea a span, rindo para este 6: Deus” Como se vé na figura nascida no ano 1100¢ preservada no Mosteiro da Visitagdo em Turim, na Ilia, a interpreta- ‘go cat6lica juntou ao coragio, em sua forma simbdlica, a coroa de espinhos que o circunda, as langas que o trespas- sam, a cruz que emerge dele e as chamas da fé em Jesus Cristo (Fig. 15) Na mesma linha, 0 coragio de Maria, mae de Cristo, ‘ou a ser venerado, no século XVII, através de S20 sudes. Mas, em ve2. da coroa de espinhos, passou a circundar 0 coragio de Maria uma coroa de rosas. Na cultura cristd medieval a coroa de espinhos retrata 0 mito do -heréi sacrifiéado, lembrando a humilhagi0, 0 martirio e a crucificago, enquanto a coroa de rosas sim: boliza a pureza e a aceitagao (Ramos, 1993) Estes simbolos permanecem até hoje. Em muitas casas ccostuma-se ter na parede principal da sala de jantar, a0 lado da Santa Ceia, as imagens do Sagrado Coraglo de Jesus € do Sagrado Coragao de Maria (Fig. 1.6). Fato interessante, muito significativo do ponto de vista do simbolismo do coragiio, € 0 ex-voto, datado de 1770, que se encontra na igreja de Lichtental, na Alemanha (Fi 1,7). Pode-se ver nele nao apenas a forma simbélica, mas 6 corag2o anatmico com a aorta, a pulmonar € a drvore coronéria perfeitamente representadas. Se incursionarmos em outras civilizagdes, vamos ver que a tradigao do sacrificio do coracdo era comum nos rituais religiosos entre os habitantes do México ¢ da igo 0 “local onde nasce € vive a fé em Fg. 13 Jovem tespascand os coagies de Shiva (Deus Masculina) e Shakti Deusa do Amor. Lends nacida natn em 4.000 aC América Central. Para que o Deus Quetzolcoatl—o Deus Sol — pudesse vencer sua batalha didria contra a Lua e as 400 estrelas, sobrepujando a escuridao, tinha de ser ali- mentado continuamente com a comida mais sagrada: 0 coracio eo sangue humano, A abertura do trax com um golpe rapido e preciso com uma faca de pedra, para a retirada do coragio ainda pulsando e banhado de sangue, era 0 ponto culminante do ritual que se repetia todas as ees que sobre 0s aztecas se abatiam fendmenos que punham este povo em risco, tais como terremotos e tem- pestades (Fig. 1.8), A fusao do significado simbético com os padecimentos provocados pelas doengas do coracao era inevitivel. Alimentada por mitos, cultos religiosos, simbotos afe- tivos, ineluindo 0 que temos de mais importante na vida — o amor, a fé, a prépria sobrevivéncia — nao ha porque estranhar a estreita relagdo entre os disttirbios emocionais eas doencas cardfacas (Groddeck, 1969; Landy, 1977: Helman, 1981). Se tomarmos a cléssica figura do Atlas de Netter (1987), {que procurou caracterizar o caréter constritivo da dor is guémica, € a compararmos com o gesto do homem que ie no corago a dor da separagao, na tela de Munch, de 896, exatamente como titulo de “A Separagio”, podemos er como sio semethantes os gestos e, talvez, 0 proprio s0- Fig. L4 Canto-postal para 0 Di dos Namorados de 1997. frimento. Um provocado por isquemia miocdrdica e outro pela perda da amada (Figs. 19 ¢ 1.10), De uma maneira muito clara compreendi o significado simbélico do cora¢o na minha pritica médica, quando um paciente portador de blogueio atrioventricular total de etio- logia chagasica voltou ao meu consult6rio dois meses apos ‘© implante de um marcapasso artificial, dizendo “Doutor, quero que retire este aparelho porque nao estou agiientan- do a dor de viver com 0 coragdo amarrado!” Pereebendo que suas palavras traduziam um verdadeiro sofrimento & na tentativa de compreendé-lo methor, dei-the uma caneta e uma folha de papel e pedi que me mostrasse em um de- senho como sentia 0 seu coracdo. Sem titubear, delineou 0 coragio simbélico, com um rel6gio ao lado, do qual tirou tum “fio” que foi “enrolando” no coracao (Fig. [.11). Logo Desenho da devogi dos Sagrados Cortes de Jesus ¢ de Maria, ula enire os anos 110 1250 Fig, L10-"A Separa” 1896) de Edvard Munch (N zur, pedi ao cirurgido que realizou o implante do marca- to simples. Tem um gerador do tamanho de um relégio. Dele passo para me mostrar como explicava tal procedimento ao _ sai um fio que vai até 0 corago, onde dium pequeno cho- paciente. De uma maneira répida e objetiva 0 colega fez.um que, fazendo 0 coragao bater certinho” (Fig. I-11). Cireulo, um gerador de estimulos, do qual nascia um fio cuja__ © paciente partiu daquele inocente esquema e 0 inter- ponta (em forma de seta ia se fixar dentro de uma cavidade pretou culturalmente, transformando 0 gerador em um re- } coragdo). Eexplicava: “O mareapasso €um aparelho mui-_légio de verdade —que marca o passar do tempo, ou seja, 8 a vida. O cfrculo que representava a cavidade ventricular tomou a forma do coragao simbélico ¢ 0 fio mudou o tra- eto, simples na explicagdo do cirurgio, mas que na com- preensio do paciente, passou a ser um arame que envolvia (amarrava!) 0 coragao. Compreendi claramente o sofrimento do paciente e mais ainda o lado humano da medicina A melhor sintese que conhego da fusio do coragzo ana- ‘Omico com seu significado simbélico 0 bico-de-pena co- lotido de Mighael Graf (Fig. 1.12). Como se pode ver em uum coraglo anatomicamente bem feito, ele incluiu, além de rel6gios e manémetros indicadores dos fendmenos rit- ios e presséricos, um homem e uma mulher, rostos hu: ‘manos, flores, borboletas, sol, viboras e um sem-ntimero ado pelo pacente (A) e pelo cirargito (B) de marcpasso cardiac stil de figuras abstratas. Tudo isso em um cendtio surrealist representar coisas reais e imaginérias, realidades e sonh tal como a vida de todos nds. As doengas do coragao tan }bém despertam medos, fantasias, desfazem sonhos, mod ficam a vida interior de quem as sofre Na verdade, o paciente é tudo isso na pritica de tod (0s médicos. Se estivermos atentos a todos estes aspecto ‘nosso trabalho vai adquirindo caracteristicas que recoloca nossa profissio no lugar de honra que sempre teve no c Fagiio de nossos pacientes. Para finalizar e acentuar ainda mais 0 inusitado dest introdugao, gostaria de ler o famoso poema “Para Ser Grau de”, de Fernando Pessoa, de duas maneiras, tal como ele fez © 0 que 0 poema pode signi Fig 112 Bico-e-pena de Michiel Gra fazend fusdo do corago anatbmico com o sora simbsico (Nag, 1993) Para ser grande, sé inteiro: nada Teu exagéra ou exclui ‘Teu exagera ou exclu (Nem o consciente, nem 0 inconsciente Sé todo em cada coisa. Nem o racional, nem o emocional) Poe quanto é Sé todo em cada coisa, No minimo que fazes. Poe quanto és Assim em cada Iago a lua toda No minimo que fazes Brita, porque alta vive. (Seja o exame clfnico ou um transplante eardiaco) Assim em cada paciente a medicina toda Bria, porque alta vive. REFERENCIAS, BIBLIOGRAFICAS 4, Clare 1 In Seach of Jone. Hisar an Piscine. Rote Groddecks Gs La Malai, ’An ee Symbol Ea Helo, CG: Ctra Sasee Drcnga ve Aes ed Hela, J2 The Troup of Hea Seng Fun, Delo ung, C4. Manan sys Pn Boks andy, Calta Dasa lng MM {viento R: Hiss Univoral do Congo Livy do Bre es Lyons 8. Peru: Histiacs Medina Edits Mente Sin Poa. ager Fhe Moly fhe Het Ed Roche Bae 1998 ‘Neti, FH The Cis Cols of Mates so, 197 Resa, Fs OEu Prot eo» Ouro 130 El Neve Pron, 1900 Wilson Alves de Oli A utilizagio excessiva de procedimentos tecnolégicos vem cada vez mais afastando 0 médico da cabeceira do doente, fazendo com que a relagdo médico-paciente — tio importante e valorizada no passado — seja substituida pela solicitagio de exames complementares cada vez mais so fisticados, em detrimento da histéria clinica e do exame fisico. A mio que sentia e percutia e 0 ouvido que escuta- va foram substituidos por visores “precisos”. Se, por um lado, o desenvolvimento tecnoldgico trouxe beneficios inquestionaveis, por outro, o médico foi ficando cada vez mais afastado do doente como ser humano (Décourt, 1995). Em quexpese todo 0 avango tecnoldgico obtido pela Cardiologia ios dltimos anos, alguns profissionais tém-se mostrado insatisfeitos com os rumos que a Medicina vem tomando, insatisfagao esta também visivel em expressiva parcela de pacientes. Hoje, o doente esta sendo reduzido a tum cletrocardiograma, a um ecocardiograma ou a um ca- teterismo, perdendo-se assim a visio integral do ser huma- no. Como quem adoece é a pessoa, e niio 0 érgio, facil- mente se pode constatar uma série de iatrogenias diag- nésticas e terapéuticas decorrentes dessa visio parcial ‘A opuléncia tecnolégica de alguns centros, aliada ao seu poder de marketing e peso econdmico-financeiro, “dita a norma’, transformando o doente em simples objeto para atender aos interesses de poderosas indistrias da “doenga” (Luz, 1995). ‘Com a perda da perspectiva humana na medicina, pas- sou-se a considerar a doenga como um desarranjo mecani- co de Grgdios a serem consertados, estabelecendo-se assim, um dualismo — MENTE-CORPO — e transformando a medicina numa atividade voltada exclusivamente para o corpo, onde o doente é visto como uma méquina compos: ta por pecas funcionando mal. Assim, o médico transfar- m mero mecanico de manutengao. Isto caracteriza a visio mecanicista da medicina atual, na qual 0 olhar do ‘médico se concentra na doenca, e niio no doente. ‘Sem desconsiderar as vantagens auferidas pela tecno- logia ¢ nada tendo contra o uso racional desses métodos auxiliares — ressaltamos auxiliares —, achamos, no en: tanto, que uma grande parcela de cardiologistas tem privi- A Cardiologia Nao Pode Perder Seu Coragao a Jr. legiado seu diagndstico muito mais em resultados dos ex mes produzidos pelas miquinas do que numa avaliags clinica adequada. Ao aplicar a tecnologia como nica for te de informagio, o médico perde a nogdo da singularidi de de cada caso. E importante ressaltar, mais uma vez, qu nio estamos defendendo a volta do médico munido ap nas do estetoscdpio como Gnico recurso tecnolégico, mi sim analisando criticamente o uso excessivo da tecnolog nna medicina, Profissionais ha que tém verdadeiro enca tamento por exames sofisticados — crendo que a sua ui agai produza uma medicina a prova de erros e esquecer dlovse de que esses métodos criam uma falsa segurang quando utilizados como fontes isoladas de informaga Essa paraferndlia eletrénica — quando usada sem nenhi crit jo — resulta apenas no aumento do custo da assisté nédica, sem nenhum beneficio real para o pacien (écourt, 1995). Ouvimos com freqéncia — em consult6rios piiblic ou privados — queixas de pacientes relacionadas com descaso de alguns médicos quanto aos aspectos emoci nais, Na pritica, encontramos cardiologistas competent — profundos conhecedores da sua érea— que parecemn valorizar ow nao prestara devia ateng20 ao softimento p Gitico do stu efiente, tendendo a se fixar apenas nas co dutas técnicas relacionadas com a patologia cardiaca (O veira Jr, 1995). ‘A relacdo do doente com a doenga nao se estabelece ‘uma forma fixa, uma vez que éextremamente vati de doente para doente como também, no mesmo doen cla pode mudar intimeras vezes durante a evolugao, 0 q exige, portanto, do clinico uma postura dinamica diante cada caso. A consulta ndo significa apenas 0 desejo acabar com a doenga organica, mas também a pretens de eliminar 0 temor escondido e a angiistia muitas ve inconfessada. O paciente deseja ser tratado como uma p soa, € ndo como um caso ou um niimero de estatistia.E resimo, pede para ser alguém no mundo impessoal medicina. Nao encontrar a atengdo desejada pode traz Ihe dor moral, bem como a sensaco de abandono ¢ fr tragdo, acarretando, assim, dificuldade no tratamento. $

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