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CAPITULO Ivy RIGOR E VISIBILIDADE: A explicitacdo dos passos da interpretacdo Mary Jane P. Spink e Helena Lima O ossetivo peste capiruto é apresentar algumas es- tratégias por nés desenvolvidas para dar visibilidade ao processo de interpretago na pesquisa e, dessa forma, garantir o rigor da andlise. Entretanto, antes de apresentar as técnicas de visualizagéo, fazem-se necessdrios alguns esclarecimentos de modo a situar 0 conceito de rigor com o qual estamos traba- lhando. B sobretudo necessdrio justificar porque estamos de- positando 0 rigor na explicitagao do processo de interpretagao, -m vez de nos apoiarmos na estratégia consagrada de privilegiar o desenho da pesquisa (0 método). 4 Estamos partindo do pressuposto — conforme discutido ~ nos capitulos anteriores — de que fazer ciéncia € uma pratica social e, como em qualquer forma de sociabilidade, seu sucesso € legitimagao estéo intrinsecamente associados a possibilidade de comunicagao de seus resultados. A comunicacio, em ciéncia, implica a apresentagéo do acervo de informagoes com os quais estamos lidando, dos passos da andlise e da interpretagio a 93 & uma proposigao aparentemente simples compreendida por todos nés que passamos ) em pesquisa que incluem, entre tras coisas, o aprendizado de elaboragio de ee € de artigos para publicagio em revistas cientificas. Entretanto, a aparente simplicidade das regras da boa Pre ee questdes deveras complexas. Qual 6, ‘Por exemplo, 0 conceito subjacente de evidéncia que nos possibilita atribuir aos nossos dados o estatuto de representante do real? Como nos apropriamos dessas evidéncias e as traduzimos, de seus estados brutos, para uma nova linguagem — a da interpretago? Qual é ainda, o estatuto de objetividade que resulta dessa confluéncia de evi- déncia e interpretagio? Propomos, assim, neste capitulo, problematizar a nogao de evidéncia, discorrer sobre a natureza do processo de inter- pretagao e situar o conceito de objetividade com o qual estamos trabalhando. Buscamos, em suma, definir 0 que entendemos por rigor. Associando rigor a visibilidade, desenvolvemos al- gumas estratégias de interpretagio das informagées disponiveis e€ de apresentag’o dos resultados de nossas pesquisas. Estas serao apresentadas na parte final do capitulo. que chegamos. E e suficientemente por processos de form: 1. DA AUTORIDADE DOS TEXTOS A LEITURA D. NATUREZA: A EVIDENCIA DAS COISAS : S6 recentemente a evidéncia das coisas - mentar a ciéncia. Ian Hacking (1975/1984), fildsofo. ais ei para si a tarefa de estudar a emergéncia do conceito mod 3 de probabilidade, fornece (inadvertidamente, talvez na aud esse seu objetivo principal) algumas Pistas valiosas marge a os meandros da evolugio da nogio de evidéncia ¢ pee bilidades atuais da interpretagiio dos dados de Tiel modo a situar a génese da nogiio de probabilidade ss i a embasar 4 teoria matemiatica da probabi ice aaa focaliza a transigdo da scientia medieval para ce’? tacking do método experimental. Lembra-nos que, na SSS logia 94 medieval, ciéneia € conhecimento de ver desta verbal 6 tendo como focs 5 Como € comum em Pesquisas que buscam entender os sentidos dos fendmenos sociais, a anilise i “Se com uma imersao no conjunto de informagdes coletadas, Procurando deixar aflorar os sentidos, sem encapsular os dados em cate- gorias, classificagdes ou tematizagdes definidas a priori, Nao que essas categorias, classificagdes e tematizacdes aprioristicas nao fagam parte do processo de anilise; contudo, na perspectiva conversacional de anilise, tais processos de categorizacio nio sao impositivos. Hé um confronto possivel entre sentidos construidos no processo de pesquisa e de interpretagio e aqueles decorrentes da familiarizagado prévia com nosso campo de estudo (nossa revisio bibliogréfica) e de nossas teorias de base. E desse confronto inicial que emergem nossas categorias de andlise. Buscamos, entio, analisar 0 material que temos a nosso dispor (entrevistas, discussdes de grupos, textos etc.) a partir dessas categorias. Mas no so apenas os contetidos que nos interessam. Para fazer aflorar os sentidos, precisamos entender, também, finalidade que desenvolvel idéias. uso feito desses contetidos. B com essa mos os mapas de associagao de i ia gota ai as plena consciéncia de que mio se «se . Ao fazer esta afirmagao temos ee ae KIX, "(o) 08 : wult, a parti iil . “Aa poor ant ualmentes ri ego 2 ca a a, aed sutar toda essa amos dispostos a esc 1 mais atengdo que nunca, est ee pest ange ais ndo’de surpreender sob as palavras pos . mais essencial” (1987:14). 106 3.1, OS MAPAS DE ASSOCIACAO DE IDE1as Os mapas tém 0 objetivo de Sistematizar 0 process di anilise das priticas discursivas em busca dos asperice (roy da construg’o lingilistica, dos repertérios uti an Jlingtistica, ¢ ilizados nessa cons- trugio ¢ da dialogia implicita na produgio de sentidos. Cone, tituem instrumentos de visualizagio que tém duplo objetivo: dar subsidios ao processo de interpretacao e facilitar a comu- nicagao dos passos subjacentes ao processo interpretativo, A construgao dos mapas inicia-se pela definigéo de ca- tegorias gerais, de natureza temiatica, que refletem sobretudo os objetivos da pesquisa. Nesse primeiro momento, constituem formas de visualizagio das dimensées teéricas. Busca-se orga- nizar os contetidos a partir dessas categorias, a exemplo das anilises de contetido, mas procura-se preservar a seqiiéncia das falas (evitando, dessa forma descontextualizar os contetidos) e identificar os processos de interanimagao dialégica a partir da esquematizagio visual da entrevista como um todo (ou de trechos selecionados da entrevista). Para a consecucao desse objetivo o didlogo é mantido intacto, sem fragmentag’o, apenas sendo deslocado para as colunas previamente definidas em fungdo dos objetivos da pesquisa. Com o duplo objetivo de dar subsfdios para a andlise ¢ dar visibilidade aos seus resultados, os mapas nao sao técnicas fechadas. 4 um processo interativo entre andlise dos contetidos (e conseqiiente disposigo desses nas colunas) ¢ elaboragio das categorias. Dessa forma, embora iniciando com categorias te6ricas, que refletem os objetivos da pesquisa, 0 proprio processo de andlise pode levar A redefinigao das _categorias, gerando uma aproximagfo paulatina com os sentidos vistos como atividade-fim. A construgéo dos mapas, uma vez entendidos seus ches tivos, é simples, embora a técnica possa gerar algumas Culdades, até porque rompe com as formas usuais as cere Categorial (como na andlise de contetido) ou a texto Na andlise clinica), Os programas de processamento 107 adequam-se melhor as alteragdes continuadas de categorias, assim como de disposigao de contetido; colunas do mapa), frutos das discussdes de caso — teajy,"* pelo coletivo de pesquisadores — e do proprio prsceeag refinamento continuo decorrente das demais etapas analticat A técnica envolve os seguintes pasos: a (de ‘construcig a) utiliza-se um processador de dados, tipo Word for Windows, e digita-se toda a entrevis b) constréi-se uma tabela com um ntmero de colunas correspondente as categorias a serem utilizadas; c) usa-se as fungdes cortar e colar para transferir 9 contetido do texto para as colunas, respeitando a se- qgiiéncia do didlogo. Obtém-se, como resultado, um efeito escada, conforme pode ser visualizado nos exem- plos a seguir. 3.1.1. EXEMPLO 1: OS MAPAS DE ASSOCIACOES DE IDEIAS NA PESQUISA SOBRE PERMANENCIA E DIVERSIDADE NOS SENTIDOS DA HIPERTENSAO ARTERIAL ESSENCIAL (Spink, 19942) Nesse estudo, a hipertensao arterial essencial foi escolhida como cenério para o estudo das relagdes médico-paciente, tanto pela prevaléncia desse agravo a satide na sociedade modema, como pela falta de conhecimentos precisos e consensuais sobre sua etiologia. O objetivo principal da pesquisa era entender quais os repertérios disponiveis para dar sentido & hipertensio arterial essencial e as possibilidades de ag&o decorrentes dos sentidos assim produzidos. Partindo do pressuposto de que as possibilidades de sentido para o médico e para os pacientes seriam diferentes, dada a proximidade diferencial com a infor- macio cientifica, havia interesse também em entender como as diferentes visdes eram negociadas na consulta. A fim de analisar os repertorios utilizados e a produgdo de sentidos, as entrevistas realizadas com um médico clinico geral e com quatro pacientes foram gravadas, posteriormente transcritas ¢ inseridas em mapas. 108 Mapa 1: A Medicina, ‘A doenca Tratamento Medicina Eu Existe uma coisa in- teressante na Medici- Ina. Muitas vezes, apesar de ndo se sa- ber a causa profunda- mente, 0 tratamento € bem conhecido. “Erre o diagnéstico mas acerte a conduta.” Existe este tipo de coisa, que no fundo ‘0 que o paciente pre- cisa € a conduta. Mas € claro que se a gente pode esclare- cé-lo mais ele tam- 'bém vai colaborar nes- sa conduta. Nés sabemos muito tratar, as drogas, re duzir a pressio com remédio. O que a gen- te nfo sabe € dar aten- ‘go para a parte do| paciente (...) remédio nds temos muitos: 3s vezes 0 paciente té re- cebendo 3 ou 4 remé- dios e ninguém conver- sou com ele sobre 0 que ele est vivendo. A gente resolve uma parte Mas fica sempre um paciente muito angustiado e ao me- nor descuido a pres- io sobe. Mas é um| tratamento que de- pende da colabora- [go deles, porque ele tem que se cons- cientizar, tem que! tomar uma dieta Jque ndo gosta; pre- cisa tomar remédios que 0 fazem sentir- se muito mal Entio é af que vem a dificul- dade Interessava sobretudo, nessa pesquisa hipertensao e que formas de tratamento forma, NO exemplo aqui apresentado, refe, s o médico, U categorias foram utilizadas para ay revista com é hipertensao (para 0 médico € para o tcisina mialise: © que médico); Como a hipertensio € tratada (na eisp Visio do Medicina, do médico e do paciente) e o investimento v2 da presente na fala do entrevistado, resultando dai eae ae colunas. Seguindo os passos basicos da construgio dos le seis de associagao de idéia, a fala foi transposta em sua Giimee para as colunas, tespeitando a ordem da fala original. Hee Jhemos, para ilustragdo, um trecho da entrevista em que o médico discorre sobre as formas de tratamento; nao havia. portanto, referéncias a natureza da hipertensio ou as caracte. risticas biopsicossociais dos portadores de hipertensio. » entender o ram vidvei dveis, Tente a ent Dessa 3.1.2. EXEMPLO 2: OS MAPAS DE ASSOCIACAO DE IDEIAS NA PESQUISA SOBRE OS SENTIDOS DO CANCER DA MAMA PARA AS MULHERES (Spink & Gimenes, 1994’) Essa pesquisa visava investigar de forma retroativa o enfrentamento do diagnéstico de cancer da mama, assim como entender 0 sentido dado ao cancer por mulheres que nao haviam passado pela experiéncia de um diagnéstico positivo, © suas implicagdes para as estratégias de prevencao. Tendo como objetivo a exploragao de técnicas qualitativas para © estudo do cancer, a pesquisa gerou um espaco propicio pase © desenvolvimento de técnicas de andlise que pudessem scr acatadas por profissionais da rea biomédica. Decorre dai 0 empenho na reflexdo sobre a objetividade na pesquisa coat (num primeiro momento) e na abordagem construcionista (nu! segundo momento). Para essa pesquisa, desenvolvemos uma ™ : de entrevista, por nds intitulada de entrevista 4 a técnica especifica sociativa. —_—_— Dra. Maria da Gloria fa. 7. Pesquisa desenvolvida em colaboragio com & PFO! G. Gimenes. Apoio: poio: CNPq. nt ttzaacom Canscanet Considerando que a entrevista ASSociativa plocos (Compe. seio, satide © cancer) ¢ Sub-bloc; on nvidi-se em eu corpo; foi sempre assim?), a primeira pk rremplo, “erviu. de mareador para a introduesio de cadg objetos — associativo. Ficou restrita, Portanto, aos varios objetos deco bloco jefinidos no roteiro, estando assim intrinsecamente Vasela perguntas do entrevistador ¢ as suas sinteses veer va um bloco € passar para outro bloco ou sub-bloco, Por ‘Voce disse que acha a anatomia linda, Pense agora no sey corpo. O que isso tem a ver com 0 seu corpo?’, Em aga primeira coluna foi reservada as perguntas q 4 ve ae ue inauguray: blocos associativos € as sinteses que os encerravam, ag Na segunda coluna, denominada primeiras associacées, foram colocadas apenas as respostas 4 pergunta efetuada ee primeira coluna. Compreendia, portanto, tanto as associacSes do entrevistador, como as do entrevistado. Essa coluna constituiu o principal apoio para a busca dos repertérios disponiveis para falar sobre corpo, seio etc. A terceira coluna, mais densa, englobou todas as expli- cagdes e esclarecimentos sobre 0 sentido das associagées cons- tantes da segunda coluna: englobava, assim, as explicitagdes do contetido das associagées, incluindo os pedidos de esclare- cimento feitos pelo entrevistador. Reiteramos que as colunas (nesse exemplo, como nos demais usos feitos dessa técnica) falas do entrevistado e do entrevistador. Finalmente, na quarta coluna, denominada nessa pesquisa de qualificadores, foram colocadas as falas que explicitavam 4 tonalidade afetiva das associagdes: emogées, sentimentos © ‘alores. Foram colocadas aj, também, as figuras de linguagem. ‘al como “Ai meu Deus!; “Nossal”, que pudessem aie “ubsidio para a compreenstio. da ruptura_cognitivalemosti” ‘ue determinadas perguntas e intervengdes do enlrey Scravam no entrevistado (e vice-versa). © importante assinalar que o mapa do exe locos nm 4 visualizagao das associages relacionadas ret Sub-blocos, é iado a andlise dos ¢ apropriado 113 mplo 2, que i Fi ébvi rocesso de anéli i jativa. Ficou Sbvio, no PI ise, a entrevista associativa. a as entrevistas sio conversas que oe ao —_ dag corms Inadvertidamente, na pesquisa er Ty c — ide mama, incluimos no roteiro uma segunda parte voltada 4 ‘ , consideradas pelas nossas inci: doen experiéncia passada com i canevibeadés como vivéncias particularmente marcantes. Saimos, assim, do ambito das associagdes para 0 das narrativas. Tor- nou-se dificil, neste caso, utilizar a mesma estratégia analitica, pois as categorias de andlise nao se adequavam a forma discursiva. Optou-se por assinalar esses trechos usando reti- céncias entre parénteses, assinalando a temdtica [por exemplo, (.narrativa sobre a operagdo de titero...)], e analisar 0 trecho posteriormente utilizando a técnica das linhas narrativas, que serd discutida posteriormente neste capitulo. Comparando os dois exemplos, fica 6bvio que a construgao das categorias de andlise depende, fundamentalmente, do tipo de pesquisa realizada. Nao h4 ntimero fixo de colunas, ou seqiiéncia predeterminada de categorias. E um processo de construgdo que estd intimamente relacionado ao objetivo da investigac¢do e aos repertérios disponiveis. Em comum, temos que a leitura vertical das colunas possibilita a leitura dos repertorios, enquanto a leitura horizontal permite a compreensio da dialogia. E quando se visualiza a dialogia e a co-construgéo das formas discursivas que se tora possivel compreender 0 © Processo de interanimagio que faz da pesquisa uma pratica social. 3.2. AS ARVORES DE ASSOCIACAO As 4rvores de associagio constituem mais um recurso para entender como um determinado argumento é construfdo no afé de produzir sentido num contexto dialégico. Permitem Ses de idéias inaugurado pela errado com suas sinteses, com as afi s ntrevistado (por e: lo, “é 86 isso!”) ou, ainda, com a formulacio de a nove pa Possibilitam, dessa forma. ent si s ¢ entender as singularidad dugao de sentidos, Presas tanto a historia de cada cosa 114 a dialogia intrinseca do processo de entrevista. Tém com ponto de origem a pergunta do entrevistador e eta seguem 0 fluxo do discurso, usando linhas simples desenrolar das associagGes dos entrevistados e Tinhas iiaiss para as intervengdes do entrevistador. Apdia-se, assim, is colunas do mapa para uma leitura horizontal das mesmas. No caso especifico da pesquisa sobre cancer da mama. a construgdo das arvores de associagio (assim denominadas pelas ramificagdes geradas por esse procedimento de anilise) obedeceu a estrutura da entrevista associativa, sendo delimitada pelos indicadores de inicio e término de cada bloco ou sub-bloco. O esquema abaixo ilustra esses procedimentos: Arvore de associacgdes 1: bloco corpo da entrevista com Aparecida (E28) Corpo — acho a anatomia feminina e masculina a gente entristece quando muito bonitalinda (indos/perfeitos/muito perde alguma coisa bonitos) Muitas vezes, o fluxo de associagdes resulta de uma co-construgio, gerada a partir das intervengoes do entrevistador. Nesses casos, a fala do entrevistador é inclufda na arvore de associagio, diferenciada pelo uso de linhas duplas. Por exemplo: Arvore 2: O corpo para Elisa (E05) Corpo? — Para ter tem que ter — corpo tem visas corpo fimne mente boa {| ey ee me cere ea fem de momen prs aE rat Gres gosta di pas peter tte ble hae Fazer slgum Ahicologizamene monte de fica ta eee tem chow gonial 2 tosh Sensi berm —_feabe a. imino ———esteticamente ci be, men fen meh 115 reproduzirem as falas, focalizando apenas sinalizadores consi- derados fundamentais para a compreensio do processo de construgio do argumento. Sao, assim, mais sintéticas e, por mesmo, estratégias potentes de visualizagio da construcio argumentativa. Constituem, portanto, estratégias analiticas com- plementares aos mapas. 3.3. AS LINHAS NARRATIVAS As linhas narrativas sio apropriadas para esquematizar os contetidos das histérias utilizadas como ilustragdes e/ou posicionamentos identitérios no decorrer da entrevista. Au- tores como Somers (1994) e Murray (1997) destacam que as narrativas constituem uma das formas discursivas mais presentes no cotidiano. As narrativas estio presentes até mesmo em contextos que nao sio explicitamente narrativos. Por exemplo, as respostas ds perguntas de um questiondrio fechado podem ser entendidas como encadeamentos resul- tantes de posicionamentos identitérios que decorrem de uma narrativa subjacente sobre “quem sou eu” na situagdo de pesquisa. Sempre que, no contexto de uma entrevista ou texto, emergir uma narrativa, pode-se usar a linha narrativa como recurso analitico. Constitui, sem divida, uma imposigio de linearidade, visto que busca situar cronologicamente (numa linha horizontal) os eventos marcadores da histéria contada. Como nem sempre as hist6rias sio contadas de forma lineat as linhas narrativas constituem esforgos de compreensio pau- tados numa perspectiva temporal que hem sempre faz justiga A construgao argumentativa, Decorre dai a necessidade ¢ a riqueza do uso de midltiplas técnicas de anilise que se inter- penetram @ Se complementam. Utilizaremos dois exemplos como ilustragéo. O primeiro, mais simples, € proveniente da re cancer da mama. pesquisa sob" 117 PAR; 3.3.1. EXEMPLO 1: SARDA, A DOENGA MAIS MARCANTE A ANTONIA (E01) Qual foi a doenca mais marcante para voce? Que cu ja tive? E £ sarda, € sarda que fala? Acho que é E cio rie. Eu peguei aquilo Ié ew no sei como, Ela comeu a minha pele mega cogando tudo, sabe, cabelo, pele, tudo. Pelo corpo inteiro, Sepissraem ‘Ai eu tive que ir no médico correndo, foi até particular. Af ele pas oi falou assim se eu demorasse muito que nao tinha nem mais jeito Surgiu de repente? De repente, Acho que foi s6 esta. Foi a mais marcante, Quando foi que aconteceu? Ah, cu tinha dezessete anos. Sarou completamente? as Sarou completamente. Quando eu tive nenem, quando cu engravidei, eles pensou que ia aparecer. Podia volta, eles fizeram varios exames. Ai no apareceu mais. Podia voltar e podia nao voltar, Mas nfo voltou. Gragas a Deus. Sto feridas? Comeu tudo a pele, no corpo todo, no cabelo, caiu minha unha. Tinha dois dias, xé ir a0 médico, foi o méximo que eu agiientei. Até arrumar 0 médico, porque fazia pouco que eu cheguei aqui, eu no sabia muito bem. Se tinha médico assim particular, part ir correndo. Nao deu tempo nem de, tipo, vou no Hospital das Clinicas, que € de graga, nfo €? Tina de ser uma coisa particular, para ser répido. Que come tudo, se deixar come tudo. Meu corpo ficou todo cheio de mancha branca, minha pele ficou diferente, perto da outra que nasceu, af ele assou pomada. Ai voltou tudo ao normal A linha narrativa da doenga mais marcante para Antonia: — peguei com 17 anos af fui a0 médico quando engravidei um negécio que come a pele | | ele passou remédio Peguei nio sei como eles penson que ia apareeer elas s20 coptnee | Y me no apareceu, | Podia volar, me ame mas mo voltow Essa € uma histéria contad: i tt a dois. alguns dos elementos espontaneamente e oy 4s perguntas da entrevistadora. Descreve pri 118 Antonia fornece ros em _resposta meiramente a doen- ca, € 86 entiio, respondendo a entrevistadora, situa a doenga em uma linha histérica: época em que surgiu, seqiiéncia de agdes & implicag6es futuras. Em contraste, no segundo exemplo uma matéria de jornal, publicada por ocasiao da morte da rincesa Diana — 0 texto est4 explicitamente organizado por uma cronologia de eventos. Os textos jornalisticos freqtiente- mente apdiam-se em estratégias narrativas, seja porque essa forma de expressiio é de facil compreensao, tendo em vista a estrutura narrativa das comunicag6es do cotidiano, seja porque possibilitam a organizagio sintética de material complexo. 3.3.2. EXEMPLO 2: DIVORCIO SELOU VITORIA DE DIANA Diana Frances Spencer nasceu no final da tarde de 1° de julho de 1961 em Park House, Sandrigham, a terceira filha do visconde ¢ da viscondessa Althorp. Para seus pais, inicialmente, foi um desapontamento: esperavam © nascimento de um filho homem para manter vivo 0 nome Spencer, préximo da corte britinica por mais de quatro séculos — apenas trés anos depois, com 0 nascimento de seu irmio Charles, todas as condigGes estavam dadas para uma infancia de sonhos. Mas o sonho, sempre mais aparente que real, ruit. Segundo o bidgrafo Andrew Mona: prana sempre se lerbraria de wma discustho viclen's cas #98 TOE Em 1967, os Althorp s¢ separaram depois de 14 anos de casamento. Com 6 anos, Diana se tormou uma pega num caso de div6rcio. O pai conseguiu a custédia ao ann ey garoiaa, fol um wana que marearia sua vide, Dios os ta Silfield, em King's Lynn, ¢, 18 meses depois do divércio dos pais, foi frandada para uma escola preparatoria. eae peslegre, afivel e rapidamente fez novos amigos, Em termos escolares no se destacava. Adquiriu gosto por dangar ¢ um paixio pelos esportes que iia levar para a vida toda. Em 1975, quando Diana tinha quase 14 anos, nova. mudangas. Com @ morte de seu av, seu pai se tornou 0 oitavo dugue Spence seu itmio Charles assumiu oe ew visconde Althorp ¢ ela ¢ suas duas inmls tornaram ladies. ‘Com o dinbeiro herdado ao completar 18 anos comprou um apartamento no la a pré-escolares. fontrou sua futura princesa numa festa em Sandrigham em janeiro daquele ano, para a qual Diana ¢ sua irm’ Sarah haviam: sido convidadas. ‘Sarah é quem seria @ pretensa pretendente do principe. Quase sem , Charles foi ficando encantaddo pela alegre ¢ simples irmi ruipova que esava se fooando wa beld © eAOS mulher diante de seus olhos. "hos 30 anos, Charles estava sob intensa pressio tanto do pablico quanto de seus pais para encontrar a full rainha. Diana se encaixava perfeitamente, Era radiante €, nas palavras de seu tio, lorde Fermoy, “uma virgem de boa fe". ‘Trecho da matéria publicada na FSP em 01/09/1997 (reprodugio de artigo de Rupert cornwell, do The Independent) 119 ttzaacom Canscanet Nesse exemplo, associamos a linha narrativa ao uso de categorias analf ‘as relacionadas a trés elementos de apoio utilizados pelo autor da matéria: og eventos, a nomeacio utilizada para referir-se a Diana e a conotagio aicifva (45 discurso, Os eventos (nascimento, anos de escola, casamento, divorcio, morte ete.) constituem os elementos mais imediatos da construgio das linhas narrativas. Entretanto, por si sds, dificilmente deixam aflorar a construgdo do sentido. Em con- traste, a nomeagdo utilizada para falar sobre Diana (garotinha, virgem de boa fé, rivalizada, vitoriosa) constitui um importante sinalizador dos repertérios que estio sendo empregados para argumentar a favor da tese que est4 sendo veiculada: que a morte selou a vit6ria (e nao a derrota) de Diana. Finalmente, a conotagao afetiva nos informa sobre o processo de escolha dos elementos narrativos e de seu papel na construgao da histéria e do argumento. Concluindo, buscamos, neste capitulo, cumprir a dupla tarefa de discutir 0 conceito de rigor que embasa a pesquisa construcionista e de introduzir algumas técnicas desenvolvidas de forma a dar visibilidade ao processo de interpretacgao. Algumas dessas estratégias fardo parte dos relatos apresentados nos capitulos seguintes desta coletanea. Entretanto, a fun¢gdo dos préximos capitulos nao é exemplificar 0 uso dessas técnicas de andlise. O que buscamos fazer, daqui para a frente, € abordar a diversidade de formas de coletar informagdes para dar subsidios & compreensio dos processos de produgio de sentidos a partir das praticas discursivas. Elegemos, assim, focalizar as diferentes maneiras em que a construgao dialégica do sentido se faz presente no cotidiano: os documentos de dominio ptiblico como processos s6écio-histéricos de construgao de saberes e fazeres (capitulo cinco), as bases de dados como exemplos de processos de legitimagao da ci incia normal (ca- pitulo seis); as entrevistas entendidas como praticas discursivas (capitulo sete); as conversas do cotidiano como recurso meto- dolégico na pritica de pesquisa (capitulo ito); a midia como 121 ttzaacom Canscanet

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