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O HUMANO EM VERSOS. TRANSVER...

“O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê...


É preciso transver o mundo.”
Manoel de Barros. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1996.

(1) RETRATO DO ARTISTA QUANDO COISA.


Manoel de Barros. Vê o visto - é isto?
Idem
A maior riqueza Idem
do homem Idem.
é sua incompletude.
Nesse ponto O homem funde a cuca se não for a júpiter
sou abastado. Proclamar justiça junto com injustiça
Palavras que me aceitam Repetir a fossa
como sou Repetir o inquieto
— eu não aceito. Repetitório.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre Outros planetas restam para outras colônias.
portas, que puxa O espaço todo vira terra-a-terra.
válvulas, que olha o O homem chega ao sol ou dá uma volta
relógio, que compra pão Só para tever?
às 6 da tarde, que vai Não-vê que ele inventa
lá fora, que aponta lápis, Roupa insiderável de viver no sol.
que vê a uva etc. etc. Põe o pé e:
Perdoai. Mas eu Mas que chato é o sol, falso touro
preciso ser Outros. Espanhol domado.
Eu penso
renovar o homem Restam outros sistemas fora
usando borboletas. Do solar a col-Onizar.
Ao acabarem todos
(2) O HOMEM: AS VIAGENS. Só resta ao homem
Carlos Drummond Andrade (estará equipado?)
A dificílima dangerosíssima viagem
O homem, bicho da terra tão pequeno De si a si mesmo:
Chateia-se na terra Pôr o pé no chão
Lugar de muita miséria e pouca diversão, Do seu coração
Faz um foguete, uma cápsula, um módulo Experimentar
Toca para a lua Colonizar
Desce cauteloso na lua Civilizar
Pisa na lua Humanizar
Planta bandeirola na lua O homem
Experimenta a lua Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
Coloniza a lua A perene, insuspeitada alegria
Civiliza a lua De con-viver.
Humaniza a lua.
(3) POEMA EM LINHA RETA.
Lua humanizada: tão igual à terra. Fernando Pessoa.
O homem chateia-se na lua. Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Vamos para marte - ordena a suas máquinas. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
Elas obedecem, o homem desce em marte E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Pisa em marte Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Experimenta Indesculpavelmente sujo,
Coloniza Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar
Civiliza banho,
Humaniza marte com engenho e arte. Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente
Marte humanizado, que lugar quadrado. nos tapetes das etiquetas,
Vamos a outra parte? Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Claro - diz o engenho Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Sofisticado e dócil. Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo
Vamos a vênus. ainda;
O homem põe o pé em vênus, (...)
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Toda a gente que eu conheço e que fala comigo (5) SOBRE IMPORTÂNCIAS
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho, Manoel de Barros.
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na
vida… “Um fotógrafo-artista me disse uma vez: veja que o pingo de
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana sol no couro de um lagarto é para nós mais importante do que
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; o sol inteiro no corpo do mar. Falou mais: que a importância
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balança
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. nem com barômetro etc. Que a importância de uma coisa há
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em
foi vil? nós.
Ó príncipes, meus irmãos, Assim um passarinho nas mãos de uma criança é mais
Arre, estou farto de semideuses! importante para ela do que a Cordilheira dos Andes. Que um
Onde é que há gente no mundo? osso é mais importante para o cachorro do que uma pedra de
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra? diamante. E um dente de macaco da era terciária é mais
Poderão as mulheres não os terem amado, importante para os arqueólogos do que a Torre Eiffel. (Veja
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca! que só um dente de macaco!) Que uma boneca de trapos que
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, abre e fecha os olhinhos azuis nas mãos de uma criança é mais
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? importante para ela do que o Empire State Building (...).”
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil, BARROS, M. Memórias Inventadas: A Segunda Infância.
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza. São Paulo: Planeta, 2006.

(4)EPITÁFIO (6)“Durante milhares de anos, em diferentes culturas, fomos


Sérgio Britto induzidos a imaginar que os humanos podiam agir
impunemente sobre o planeta e fomos reduzindo esse
Devia ter amado mais organismo maravilhoso a uma esfera composta de elementos
Ter chorado mais que constituem o que chamamos de natureza — essa
Ter visto o Sol nascer abstração. Construímos justificativas para incidir sobre o
Devia ter arriscado mais mundo como se fosse uma matéria plástica: podemos fazê-lo
E até errado mais ficar quadrado, plano, podemos esticá-lo, puxá-lo. Essa ideia
Ter feito o que eu queria fazer também orienta a pesquisa científica, a engenharia, a
arquitetura, a tecnologia. O modo de vida ocidental formatou
Queria ter aceitado o mundo como uma mercadoria e replica isso de maneira tão
As pessoas como elas são naturalizada que uma criança que cresce dentro dessa lógica
Cada um sabe a alegria vive isso como se fosse uma experiência total. As
E a dor que traz no coração informações que ela recebe de como se constituir como
pessoa e atuar na sociedade já seguem um roteiro predefinido:
O acaso vai me proteger vai ser engenheira, arquiteta, médica, um sujeito habilitado
Enquanto eu andar distraído para operar no mundo, para fazer guerra; tudo já está
O acaso vai me proteger configurado. Nesse mundo pronto e triste eu não tenho
Enquanto eu andar nenhum interesse, por mim ele já podia ter acabado há muito
tempo, não faço questão de adiar seu fim.”
Devia ter complicado menos – Ailton Krenak, do texto “A vida não é útil”, no livro “A vida
Trabalhado menos não é útil”. Companhia das Letras, 2020.
Ter visto o Sol se pôr
Devia ter me importado menos (7) O que mais penso, texto e explico: todo-o-mundo é louco.
Com problemas pequenos O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece
Ter morrido de amor principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar.
Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-
Queria ter aceitado da-alma...Muita religião seu moço! Eu cá não perco ocasião
A vida como ela é de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio...Uma
A cada um cabe alegrias só, pra mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão,
E a tristeza que vier católico, embrenho a certo; e aceito as preces do compadre
meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas,quando
Devia ter complicado menos posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente,
Trabalhado menos metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora,
Ter visto o Sol se pôr cantando hinos belos deles. [...] Olhe: tem uma preta, Maria
Leôncia, longe daqui não mora, as rezas dela afamam muita
virtude de poder. Pois a ela pago todo mês –encomenda de
rezar por mim um terço, todo santo dia, e nos domingos, um
rosário (ROSA, 2001, p 32).

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