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28/02/2022 14:00 Aulas.

Aulas.

Site: AVA - FACULDADE UNIDA Impresso por: SUELLEN BALTAR DE LEU


Curso: Introdução à Bíblia Data: segunda, 28 fev 2022, 14:00
Livro: Aulas.

Índice

Apresentação da Disciplina
Aula 1 - O conceito de Texto
Aula 2 - O que é a Bíblia I
Aula 3 - O que é a Bíblia II
Aula 4 - Bíblia e sua linguagem
Aula 5 - Bíblia como Literatura do Mundo Antigo
Aula 6 - Bíblia e oralidade
Aula 7 - Bíblia e seu suporte material
Aula 8 - História e dinâmica da formação dos textos bíblicos
Aula 9 - Bíblia e inspiração I
Aula 10 - Bíblia e inspiração II
Aula 11 - O conceito de Cânon
Aula 12 - A história do Cânon: Bíblia Hebraica
Aula 13 - A História do Cânon do Novo Testamento I
Aula 14 - A História do Cânon do Novo Testamento II
Aula 15 - A autoria dos textos bíblicos
Aula 16 - Pseudepígrafos e Apócrifos
Aula 17 - Bíblia e suas traduções
Aula 18 - Bíblia e Cultura Material
Aula 19 - Bíblia e interpretação I
Aula 20 - Bíblia e interpretação II

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Apresentação da Disciplina

QUEM É O DOCENTE DESTA DISCIPLINA?

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Aula 1 - O conceito de Texto

Objetivo:
- Apresentar o conceito de texto e suas implicações para a leitura e interpretação.
- Compreender as teorias do texto e suas implicações para leitura da Bíblia como
texto e literatura.

Introdução

A Bíblia é, antes de qualquer coisa, um texto. Essa


é a afirmação mais básica a respeito das Escrituras.
Contudo, por mais que pareça óbvio, a definição do
conceito texto determinará a maneira como nos
aproximaremos da Bíblia e como a traremos.

Em primeiro lugar, texto é uma unidade de sentido,


qualquer manifestação semiótica tecida para
significar. Isso quer dizer que o texto é sistema não aleatório; um conjunto de
estratégias para produção de sentido. Como dizem Koch e Fávero, texto, em sentido
lato, "designa toda e qualquer manifestação da capacidade textual do ser humano,
(quer se trate de um poema, quer de uma música, uma pintura, um filme, uma
escultura etc.), isto é, qualquer tipo de comunicação realizado através de um
sistema de signos "[1]. Nesse passo, não chamamos de texto somente as
expressões escritas em materialidades (papel, pergaminho etc.), mas qualquer
expressão da cultura que veicula alguma mensagem interpretável.

Como expressão da capacidade humana , o texto é resultado de processos histórico-


socais. Quando usamos “histórico” e “social” para localização da produção textual,
defendemos que o texto é resultado de condições e possibilidades estabelecidas de
língua, imaginário, textualidade, formação ideológica e discursiva de determinado
tempo-espaço.

Consequentemente, o texto é resultado da interação dos humanos com o meio


onde vivem. É obra da cultura, a qual o precede e possibilita a compreensão do (s)
seu (s) sentido (s). Em suma, texto é resultado do que é mais básico no ser
humano: a capacidade de exteriorizar e dar ao mundo sentido.

O texto é resultado de um processo conhecido pela linguística moderna como


enunciação . A enunciação é o ato da língua tornar-se palavra, é colocar a língua
em funcionamento, como diria Émile Benvensite[2] . No texto há a relação
intersubjetiva entre autor e leitor. Contudo, precisamos fazer algumas considerações
a respeito desses dois conceitos.

Ideia 1. No mundo do texto há a ideia do autor/autora e leitor/leitora reais, o/a que


produz e o/a que consome. Esses seriam os seres reais que estão na comunicação.
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Ideia 2. No mundo do texto há, também, o autor presente no texto e o leitor por ele
previsto. Neste sentido, o texto é resultado da interação entre produtor e consumidor
previsto.

Na ideia 1, pensa-se o texto como resultado simples para comunicação. Ele estaria
vinculado a pessoas reais que podem, inclusive, ser prescrutadas* pelo pesquisador.
As disciplinas que surgem no Mundo Moderno podem ser inseridas entre aquelas que
pensam ser possível acessar as realidades que nos textos se manifestam. Na ideia 2,
abre-se outra possibilidade no trato com o texto. O autor e o leitor são circunscritos
no próprio texto; são seres de papel.

Essas duas perspectivas nos revelam algo: texto é instrumento de comunicação.


Para tanto é mecanismo e meio de (ideia 1) saberes e (ideia 2) poder. É saber
porque desenvolve e expõe conhecimentos, e é poder porque revela a capacidade de
movimentação de desejos e apresenta valores, perspectivas, etc. Por isso, nenhum
texto é inocente, mas quer criar mundos, legitimar visões, desenvolver perspectivas,
etc. Ou seja, ele está no processo de comunicação que estabelece vínculos e
práticas.

Veja:

O autor/emissor é aquele que veicula em texto a sua mensagem. Esse, uma vez
produzido, servirá como mecanismo de informação e pressupõe uma relação entre o
que o produz com aquele com quem se fala. Para isso, serão utilizados tipos de
textos, o que chamamos de gênero literário.

Gênero textual
Talvez você não perceba mas, quando nos comunicamos, sempre usamos uma forma
pré-determinada, através da qual podemos nos relacionar.

Veja o texto abaixo:

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A tirinha acima fala, de maneira irônica e lúdica, sobre as discussões a respeito da


paz e do diálogo. Como sei que essa obra do site “um sábado qualquer” é de tal
gênero, uma "tirinha"? Como é comum das tirinhas, tem uma forma de “recorte”,
com teor humorístico e crítico. Aqui estamos tratando de um texto com traços que o
caracterizam.

Quando queremos deixar um recado na geladeira para ser obedecido, precisamos


usar uma linguagem direta, sem metáforas, e que seja de rápida compreensão. Um
recado de geladeira é diferente do anúncio de jornal, de um e-mail, de uma peça
jurídica, etc. Esses são nomes que indicam uma forma literária verificável, seu
gênero ou tipo de texto que tem funções específicas, tem forma comum a outros e
com conteúdos parecidos. Contudo, isso não que dizer que os gêneros sejam
rigidamente estáveis. Ao contrário, eles podem ser híbridos e inter-relacionarem
formando novos tipos textuais. M. Bakhtin, teórico da cultura e filósofo russo,
desenvolve a ideia de gêneros discursivos. Em “Estética da criação verbal ” ele
demostra que as muitas esferas da vida humana geram formas “quase estáveis” de
comunicação, as quais herdamos culturalmente e são usadas no dia a dia.

Quando lidamos com o texto, precisamos levar em consideração seu gênero literário,
porque revelará sua função e intenção social.

Dica: veja as tirinhas no site "um sábado qualquer" e observe as nuanças de um


tipo de literatura. http://www.umsabadoqualquer.com

Para ler os textos

Lotman, um dos mais importantes teóricos da Semiótica da Cultura*, escreveu


vários trabalhos para compreensão do conceito de texto. Segundo o membro da
Escola de Tartú-Moscou*, o texto tem três funções: (1) função comunicativa; (2)
função geradora de sentido; (3) função mnemônica [3] . A primeira função foi a mais
observada pelos linguistas durante muito tempo. Esta mostra o texto como processo
de realização da língua natural. A função da linguagem seria transmitir a mensagem
de um emissor ao receptor. Neste sentido, qualquer ruído atrapalharia a função do
texto. Essa função se refere aos textos de manuais e receitas. A segunda função tem
relação com o seu potencial polissêmico, o que proporciona a produção de novos
textos no ato da comunicação de textos não mecânicos/manuais. Os códigos que
decifram os textos deformam o texto do emissor. A partir disso, os ruídos, na
verdade, são necessários e o resultado do encontro dos códigos de quem produz e
quem lê o texto.

A terceira função do texto é a mnemônica. Como bem diz Lótman, “o texto não é
somente o gerador de novos significados, mas também um condensador de memória
cultural. Um texto tem a capacidade de preservar a memória de seus contextos
prévios ”. Esse processamento se faz possível por meio da tradução de tradições .

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Dinâmica, a cultura pode codificar e decodificar mensagens de períodos diversos,


traduzindo-as em novos sistemas de signos e de textos. Por isso, as culturas,
enquanto textos, sempre se enriquecem recíproca e constantemente, pois é circular.

Por isso o texto não é simplesmente um objeto fechado que tem verdades inflexíveis
e estáveis. Pelo contrário, há no texto a potência de sempre gerar novos sentidos.
Ainda, o texto condensa memórias que lhe são anteriores. Um texto tem muitas
vozes e sistemas para além dele.

A leitura de qualquer texto precisa, então, levar em consideração algumas


coisas:

1. O texto é um sistema através do qual existe e se materializa. Por isso, para


lermos um texto precisamos conhecer seu sistema e como se articula;

2. O texto não é fechado. Isso quer dizer que sua leitura precisa levar em
consideração que o leitor participa na formação do sentido. Desta forma, até mesmo
as muitas interpretações feitas a algum texto pode influenciar nossa leitura;

3. O texto não fala sozinho, pois é um conjunto de memórias, com as quais dialoga e
às quais preserva. Por isso, um texto sempre estará no contexto de diálogo com
outros textos.

Vídeo disponível no AVA

No fim desta primeira aula, creio que já seja possível perceber como seria aplicada
a nossa disciplina. A Bíblia como um texto precisa ser lida levando em
consideração todas das afirmações que se aplicam a qualquer texto. Contudo, não
entenda mal a expressão “qualquer texto”. Isso simplesmente quer dizer que o
caminho pelo qual a Palavra de Deus se expressa é um texto. Por isso as teorias a
respeito do “texto” e seus sistemas poderão nos ajudar na compreensão do texto
bíblico.

[1] FÁVERO, Leonor Lopes; KOCH, Ingedore G. Villaça Koch. Linguística textual :
introdução. 2.ed. São Paulo: Cortez, 1988.
[2] BENVENISTE, E. Problemas de Linguística Geral II. Campinas: Pontes, 1989.
[3] LÓTMAN, I. As três funções do texto . Belo Horizonte. FALE; UFMG, 2007.

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Aula 2 - O que é a Bíblia I

Objetivo:
- Apresentar as questões etimológicas e o conteúdo da Bíblia.
- Descrever os seus livros, divisões e sua recepção.
- Expor as particularidades e implicações da Bíblia ser um conjunto de livros.
- Introduzir os conceitos em torno da Bíblia.

Introdução
Depois de entendermos o que é um texto, precisamos nos perguntar a respeito de
algo básico: o que é a Bíblia?
A Bíblia é um dos livros mais lidos, traduzidos e interpretados no mundo. A Divina
Comédia , de Dante; a Ilíada , de Homero; O Banquete , de Platão; Dom Quixote , de
Miguel de Cervantes ou qualquer outro livro da literatura mundial nem de perto
ganhou tanta notoriedade ou recebeu tanta atenção. Por isso, nas últimas décadas,
pesquisas são realizadas para compreender a recepção da Bíblia na cultura. N. Frye,
em Código dos Códigos , confirma esta presença da Bíblia na cultura como fonte e
instrumento estruturante: Minha idéia (sic) inicial era fazer uma inspeção indutiva e
tão completa quanto possível da narrativa e da imagética bíblica. Seguir-se-iam
algumas explicações sobre como estes elementos da Bíblia montaram uma estrutura
imaginativa – um universo mitológico, como gosto de dizer – dentro do qual a
literatura do Ocidente operou até o século XVII, e dentro do qual ela ainda opera em
grande parte [4].

Por isso, a Bíblia é, antes de qualquer coisa, obra da comunidade humana. Diversas
pesquisas foram realizadas a respeito dos seus gêneros, imagens e narrativas, o que
acumulou um conjunto de conteúdo sobre a seu respeito que servem como fonte
para conhecimento de seus textos e ideias.

A Bíblia: alguns conceitos

A palavra “Bíblia” é um termo grego, o qual significa


“livros, escritos, documento”. Mesmo que no português
esteja no singular, a expressão ta biblia é plural do
substantivo (nominativo) “βίβλος ” ou “βιβλίον”. Desta
forma, a Bíblia é um conjunto de textos que foram
produzidos durante uma longa duração. Nesta afirmação já temos alguns pontos a
serem dissecados:

1. A Bíblia não é um uníssono de imagens e teologias, isso porque é formada por


livros de diversas épocas, os quais carregam diferentes visões de mundo,
experiências sociais e teologias. Enquanto Provérbios e Salmos demostram que o
justo terá sempre benefícios como resultado de suas boas obras, o livro de Jó, por
exemplo, não concorda com a teologia da retribuição, tão comum à antiga
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sabedoria. Poderíamos, ainda, citar os textos de Paulo e Apocalipse de João em


relação ao sistema Romano ou a perspectiva teológica da contagem de Davi na
maneira como é narrada em 2Sm 24 e 1Cr 21 etc.

2. A Bíblia precisa ser lida sempre levando em consideração o pano de fundo das
ideias, relações sociais e até mesmo os outros textos. Nessa perspectiva, desejar
que o texto bíblico seja sempre complementar ou não possua conflitos é deixar de
lado a realidade das mudanças sociais de onde os textos surgem.

Não podemos perder de vista um detalhe importante em relação a este assunto, os


textos em sua forma final, os quais já demonstram diferenças e tensões entre si,
também carregam tensões internas. Isso quer dizer que os textos passaram por
processos históricos de formação, muitos não foram escritos “em uma sentada” e
dão sinais da presença de várias mãos no processo de redação. O livro de Isaías,
como dizem as pesquisas, passou por pelo menos três redações; o Evangelho de
João tem nítidos traços de trabalhos redacionais. Estas constatações deixam claro
que a Bíblia é caminho de revelação e inspirada, mas isso não elimina as suas
tensões e disputas internas, porque carrega as questões e lutas dos contextos dos
seus/suas autores/as.

Outro fator importante a ser lembrado é que há muita oralidade nos textos bíblicos.
Alguns livros bíblicos tiveram longa vida oral, antes de ganharem a forma final.
Alguns textos, hoje materializados na Bíblia, eram cantados em liturgia, recitados em
sacrifícios ou transmitidos entre as famílias. Por outro lado, alguns tiveram vida
original em forma escrita e ganharam espaço na oralidade. Estes dados nos
garantem que mesmo possuindo o teor de palavra inspirada, o texto bíblico tem seus
conflitos e está intimamente ligado às tramas da história.

Em suma:
- Os diferentes textos da Bíblia foram escritos em tempos diferentes e por pessoas
de diversas perspectivas e de diversos grupos;
- Os livros não têm o mesmo gênero literário, o que dá pluralidade literária à Bíblia;
- Ocasionalmente encontramos repetições, tensões, incoerências ou até contradições
entre um ou outro escrito, especialmente por serem livros diferentes, os quais estão
em um mesmo conjunto ou biblioteca.

Vídeo disponível no AVA

[4] FRYE, N. Código dos Códigos . A Bíblia e a Literatura. São Paulo: Bontempo,
2004.

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Aula 3 - O que é a Bíblia II

Objetivo: Apresentar o conteúdo da Bíblia e suas divisões. Comparar a


Septuaginta e as coleções aceitas pelos protestantes e católicos.

Introdução
Continuando nossa discussão, precisamos entrar no conteúdo da Bíblia, suas partes,
assuntos etc. Contudo, agora olharemos de maneira superficial e rápida, porque
teremos outras aulas para avaliarmos esse assunto com mais cuidado. Por agora,
basta-nos saber que o texto tem suas idiossincrasias e particularidades.

O Conteúdo da Bíblia
A Bíblia é dividida em duas partes: Antigo Testamento e Novo Testamento. O termo
“testamento” vem do hebraico “berît”, “aliança”, que significa aliança entre Deus e o
povo. Para o judaísmo, a Aliança foi selada entre Deus com o povo por intermédio de
Moisés (como, também, com Noé e Abraão). Para a fé cristã, essa antiga aliança foi
substituída ou renovada plenamente por Cristo (Novo Testamento). Contudo, essa
proposta de divisão já é cheia de influências teológicas. Chamar a primeira parte do
texto sagrado de “Antigo Testamento” é pressupor que há um Novo. Tal postura já
carrega a interpretação cristã da Bíblia, que tem nos livros da Bíblia Hebraica um
texto prévio ou estágio anterior para a nova aliança. Os judeus, naturalmente,
somente reconhecem a Bíblia Hebraica, que nós, cristãos, chamamos de Antigo
Testamento. Inclusive, as primeiras comunidades cristãs não tinham um Novo
Testamento, que é algo bem posterior. Quando em 2Timóteo 3,16 é dito que toda
Escritura é theópneustos (divinamente inspirada), refere-se aos escritos judaicos
lidos desde sempre nas comunidades cristãs com óculos cristológicos*, os quais se
transformam em ponte para compreensão da experiência vivenciada nas
comunidades que seguiam a Cristo.

A Bíblia Judaica é diferente da Bíblia cristã porque reconhece somente a primeira


parte. Contudo, entre os cristãos também há diferenças entre as Bíblias católica e
protestante. Na divisão e composição da Bíblia como os cristãos protestantes
aceitam, há 66 livros: 39 no Antigo Testamento e 27 no Novo Testamento. O Antigo
Testamento é divido em Pentateuco, Históricos, Poéticos, Profetas Maiores e Profetas
Menores. O Novo Testamento é formado por Evangelhos, Epístolas Paulinas (aqui
incluímos as deutero-paulinas), Histórico (Atos dos Apóstolos), Epístolas Gerais
(incluímos Hebreus) e Apocalipse. Esta divisão é simplesmente pedagógica e serve
para termos acesso a uma imagem geral da grande biblioteca chamada Bíblia. Em
relação à primeira parte da Bíblia (Antigo Testamento), a tradição Católica preserva
alguns outros livros. Isso ocorreu por questões históricas.

Nos tempos de Jesus já havia pelo menos duas versões do Antigo Testamento. Uma
em língua hebraica e uma tradução grega. Esta versão grega preservava alguns
livros e alguns complementos a outros livros, os quais não estavam na versão
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hebraica. No primeiro século da nossa era, usava-se comumente a versão grega


conhecida por Septuaginta ou versão dos setenta (LXX), que recebeu este nome por
causa da lenda dos setenta judeus tradutores. A Septuaginta, além de preservar
outros livros e partes de livros, também tem uma ordem diferente em comparação
aos da Bíblia Hebraica. A Vulgata, versão latina elaborada por São Jerônimo e usada
pela igreja Medieval, preservou alguns desses textos da LXX. Esta é a razão de
encontramos na versão católica outros livros no Antigo Testamento. Os Protestantes,
por sua vez, os quais tinham influencias do humanismo (volta às fontes/às origens),
adotaram os livros da versão hebraica, que era bem menor. Os livros e partes
complementares preservados pela Bíblia Católica são estes: Tobias, Judite, Sirácida
(Eclesiástico), Sabedoria, Baruc (com a Carta de Jeremias), 1 e 2 Macabeus, além
dos acréscimos em grego à Ester (entre 3,13 e 14; 4,17.18; 5,1.2.3; 8.12.13;
9,19.20); Daniel (3,24-90; 13-14). Entre os acréscimos à Ester encontramos duas
orações: oração de Mardoqueu e Oração de Ester.

Oração de Mardoqueu

Orou, então, ao Senhor em lembrança de todas as suas grandes obras, nestes


termos:

2"Senhor, Senhor, rei Todo-poderoso, tudo está sujeito a teu poder e não há
quem se oponha à tua vontade de salvar Israel. 3Sim, tu criaste o céu e a terra e
todas as maravilhas que estão sob o firmamento. 4Tu és o Senhor de tudo e não
há quem te possa resistir, Senhor. 5Tu sabes tudo! Sabes, Senhor, que não foi
por arrogância, orgulho ou vaidade que eu fiz isto, recusando prostrar-me diante
do orgulhoso Amã. 6De boa vontade eu lhe beijaria a planta dos pés para a
salvação de Israel. 7Mas o que eu fiz, era para não colocar a glória de um homem
acima da glória de Deus; e eu não me prostrarei diante de ninguém senão diante
de ti, Senhor; mas não o faço por orgulho. 8E agora, Senhor Deus, rei, Deus de
Abraão, poupa teu povo! Pois tramam a nossa morte, projetam aniquilar tua
antiga herança. 9Não desampares esta porção, que é tua, que para ti resgataste
da terra do Egito! 10Ouve minha oração, sê propício à porção de tua herança e
muda nosso luto em alegria, para que vivamos e cantemos teu nome, Senhor.

As partes da Bíblia Hebraica são: Torá (Lei), Nebiim (Profetas) e Ketubim


(Escritos), que formam a expressão TaNaK. Quando se menciona “Escrituras” no
Novo Testamento (Lucas 24,27.32.45; João 5.39; 10,35), o autor bíblico está
referindo-se a essa coleção ou à LXX.

Veja nos quadros a seguir uma comparação entre os conteúdos da Bíblia Hebraica
(TaNaK), da Septuaginta (LXX) e da Bíblia Cristã.

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Esses livros foram escritos em pelo menos 3 línguas: Hebraico, Aramaico e Grego.
Os livros do AT (a TaNak) foram escritos em hebraico, mas alguns capítulos de Daniel
(2,4b-7,28) e alguns documentos citados em Esdras (4,8-6,18; 7,12-26) estão em

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aramaico, língua muito próxima do hebraico e usada pela administração persa. Na


idade Média o texto hebraico-aramaico foi revisado e ganhou vogais com o trabalho
dos massoretas. Este texto é conhecido como Texto Massorético* (TM). O Novo
Testamento foi escrito em grego, mas um grego conhecido como koiné (comum),
que era mais popular, que no NT tem muitos semitismos

Conclusão
O que é a Bíblia? Um conjunto de livros produzidos em uma história de longa
duração, os quais foram reunidos formando uma grande biblioteca. Contudo, como
texto da cultura, a Bíblia tem sobrevivido não somente nos ambientes eclesiásticos,
mas recebe atenção em muitos ambientes acadêmicos e espaços artísticos. Por isso,
podemos falar em texto da cultura, em obra da humanidade. Não é de se estranhar
que um texto tão importante como a Bíblia seja alvo de muitos ataques e admiração.
Sua popularidade e presença pública torna-a susceptível a tudo isso. Nas próximas
lições entraremos em pontos que esclarecerão essa complexidade e darão luz ao
"como" ler e "compreender" as obras que compõem a Bíblia.

Atividade: Após fazer a leitura de todo o texto, analise e compare a composição


dos livros da Tanak, da Septuaginta e da Bíblia Cristã, observando como são
divididas, quais livros compõem os diferentes tomos, e quais livros fazem parte
apenas da Bíblia Cristã.
(Obs.: Essa atividade NÃO precisa ser enviada para correção).

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Aula 4 - Bíblia e sua linguagem

Objetivo: Apresentar a linguagem própria da Bíblia e suas particularidades, para


que seja lida à luz de seu tempo e mundo discursivo.

Introdução
Depois de duas aulas já é possível, caro aluno/a, perceber que a Bíblia tem muitas
coisas em comum com obras literárias em geral. Como detentora da Palavra de
Deus, por sua vez, ela torna-se, pela experiência da fé, revelação. Essa afirmação,
tratada e aceita pelas comunidades cristãs como verdadeira, não é desconsiderada
quando dizemos ser a Bíblia "literatura". Por isso, precisamos entrar na linguagem
Bíblica.

A linguagem é a expressão humana para comunicar e interpretar o mundo. Inclusive,


as teorias da linguagem defendem, desde muito, que a própria realidade, inclusive, é
intermediada e acessada pela linguagem. Nesse sentido, a Bíblia precisa ser inserida
no seu contexto de compreensão de mundo e linguagem. As circunstâncias e lugares
vivenciais dos quais surgem o texto determinam inclusive a compreensão de mundo
e sua interpretação. Precisamos entrar no âmbito da linguagem da Bíblia para que
não sejamos ingênuos nem injustos. Ingênuos ao ponto de desejarmos que o texto
bíblico se adeque às expectativas modernas e, ao mesmo tempo, injustos ao ponto
de desqualificá-la por não suprir essas mesmas projeções.

Bíblia e Mundo Antigo


É comum a crítica de que a Bíblia tem “mitos”. Antes de qualquer coisa, precisamos
nos perguntar o que é mito. Dizer que mito é mentira, uma visão primitiva ou um
falseamento da realidade é, no mínimo, fragilidade intelectual.

O mito, nas ciências humanas, desde a década de 1960, é tratado como “uma
compreensão de mundo”, verdade para aqueles que desejam interpretar a vida e a
origem das coisas. O mito cosmogônico, por exemplo, que apresenta a origem do
mundo e da civilização, é uma proposta de compreensão da realidade dando-lhe
sentido e razão de ser. Tal qual as perspectivas modernas (que interpreta a realidade
com categorias próprias de seu tempo) o mito é outro olhar sobre a vida e as
relações humanas. Os conceitos “histórico” e “verdade” na linguagem mítica
pertencem ao Mundo Antigo e suas categorias. Por isso, acusar a Bíblia de ter mitos
não a desqualifica, mas a insere em outro conjunto de saberes e torna-a detentora
de outras práticas da linguagem. Ficou claro isso? Mito não é mentira. Narrativa

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mítica é uma maneira, com todas as limitações e potencialidades da linguagem,


paralela a outras formas de compreensão da realidade. Além disso, narrativa mítica é
um gênero de literatura que tem várias variantes que precisam ser analisadas caso
por caso.

Para lermos a Bíblia precisamos observar as diferenças de mentalidade,


particularmente na dinâmica da sua linguagem, e perceber como se situa no mundo,
em que se centra a atenção e o que lhe é próprio. Em termos gerais, temos na Bíblia
a convergência da linguagem hebraica e todas as suas relações e interações culturais
e o mundo grego, estabelecido pela helenização, que gerou diversos encontros com
culturas locais.

Aqui precisamos fazer uma pequena discussão. A linguagem da Bíblia pertence a um


período anterior às grandes revoluções, aos séculos das luzes, ou seja, ao mundo
Moderno. Na modernidade surge um paradigma de compreensão que tem nas
ciências naturais a fonte e metodologia para apreciação da verdade. O que é
considerado como histórico ou verdadeiro precisa se adequar às concepções da razão
e suas categorias.

É comum nas aulas os alunos estarem em crise porque foram informados de que
algumas histórias e personagens da Bíblia não são “históricos”. Quando há essa
discussão, a primeira pergunta que precisa ser feita é: “o que você entende como
histórico?”. O conceito de histórico que temos em nosso tempo surgiu de uma
perspectiva muito recente de comprovação documental e amostragem empírica. As
narrativas e personagens das Escrituras como Adão, Eva, o Dilúvio, Moisés, Elias etc.
não são descritos ou suas histórias lembradas com as preocupações de historicidade
do nosso mundo; o que é óbvio! O que temos são gêneros literários, imaginários e
preocupações que são próprias do Mundo Antigo.

Os textos bíblicos pertencem a outro tipo de compreensão de verdade e história. Sua


linguagem lida com outras posturas diante da compreensão da realidade. Por isso,
exigir que a Bíblia consiga se pronunciar com categorias e saberes que somente
surgiram séculos depois da produção dos textos e narrativas é, no mínimo, injusto.
Por isso, a Bíblia precisa ser lida à luz do mundo e linguagem aos quais pertencem e
não esperar que preencha às expectativas do que é histórico e verdadeiro para o
homem moderno. Por exemplo, para nosso tempo usar o nome de outro para dar
autoria ao texto seria crime de falsidade ideológica; usar uma tradição ou obra sem
colocar a devida fonte, um plágio. Pelo contrário, o mundo bíblico tem a prática
da utilização de nomes de figuras importantes em homenagem ou para valorização

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da obra, . O verdadeiro e histórico para os tempos bíblicos não se realizam no


comprovável, repetível, empiricamente demonstrável ou adequado à razão moderna.
É um mundo no qual realidades transcendentais e históricas estão em continua
relação, o que torna as imagens bíblicas sempre como muito estranhas ao nosso
modo técnico-mecânico de ver o funcionamento da vida.

A linguagem Bíblica e a realidade


Ainda nessa discussão da linguagem Bíblica, podemos nos referir à poesia. Quem
pode melhor expressar o amor, o ódio ou as frustrações do que as metáforas de um
poema? A linguagem das Escrituras tratam da maldade humana, como Gn 3; explica
a respeito do sentido da existência e da origem da cultura, como em Gn 1-2 ou 6-
11; abre as portas para a esperança de um mundo novo possível, como o Apocalipse
de João ou Mt 25 com imagens que se adequam perfeitamente às memorias e
imaginários do seu tempo.

O grande problema é, exatamente, compreender que a Bíblia expressa as


percepções dos autores/autoras do Mundo Antigo, com todas as suas compreensões
e perspectivas, as quais não podem ser julgadas com pressupostos modernos. Não
devemos nos escandalizar ao ouvirmos Paulo afirmando que as mulheres deveriam
tomar cuidado com anjos (1Co 11), ou Jesus indo ao deserto para lutar contra
Satanás (Lc 4), como também a ideia de um mar que está no céu (Gn 1), torres que
seguram, como alicerces, as comportas celestiais (Sl 104). Essa linguagem demostra
o mundo pensado pelos autores bíblicos. Este era o conceito de realidade próprio de
tempos antigos. Por isso, comprar as descobertas científicas modernas, que servem
como instrumento de compreensão da realidade, com a Bíblia é um descaso com sua
linguagem.

Antes de qualquer coisa, precisamos nos perguntar pelos gêneros literários dos
textos bíblicos. Temos lendas, etiologias, parábolas, narrativas cosmogônicas etc. As
biografias, artigos científicos etc. são tipos de textos da Modernidade que possuem
preocupações com o que lhes é próprio. Nos textos bíblicos não há as mesmas
intenções. Desta maneira, perguntar se Adão é histórico, se Elias realmente foi
levado pelo carro de fogo ou se o mar vermelho se abriu é um “não pergunta”. Vou
explicar isso. Quando você pergunta sobre a existência ou não destes “fatos” é
esperar de textos do passado expectativas do nosso tempo. Quando as narrativas
que preservam essas histórias foram escritas não se tinha essa preocupação; ou
seja, a existência histórica das imagens desses textos não é a primeira pergunta que
deve ser feita, porque o que eles revelam são experiências e modos de ver o mundo
de onde podemos retirar, como Palavra de Deus, lindas experiências e valores para
vida.

A linguagem violenta e a Bíblia


Uma questão sobre a Bíblia que mais preocupa alguns leitores é a violência. Alguns
textos são bem sangrentos. Veja um exemplo:

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28/02/2022 14:00 Aulas.

16Mas, das cidades destes povos, que o Senhor, teu Deus, te dá como
herança, não deixarás com vida nada que tem fôlego.17 Pelo contrário, tu
os destruirás por completo: os heteus, os amorreus, os cananeus, os
perizeus, os heveus e os jebuseus, conforme te ordenou o Senhor teu
Deus; (Deuteronômio 20.16,17)

Outros textos apresentam imagens bem duras contras as mulheres, como em


Deuteronômio 22, no qual a violação sexual de uma mulher é um prejuízo somente
para o pai ou noivo, e não para a vítima, a qual é obrigada a casar-se com seu
violentador. Além deste, poderíamos citar muitos outros, com linguagem vingativa,
como em o Apocalipse de João ou outros textos imprecatórios dos Salmos. Como
texto do seu tempo, a Bíblia acaba carregando valores e propostas de relação de
gênero que refletem sociedades patriarcais e com pouca compressão dos direitos
humanos. Textos como esses precisam ser enfrentados, relidos e colocados em seu
devido contexto para que não sirvam de fonte para mais violências. Contudo, a
presença desses não desqualifica a Bíblia ou descredencia seu valor. Pelo contrário,
há textos, também, libertários que promovem o cuidado ecológico, empoderamento
da mulher, justiça de gênero e promoção da vida.

Os conceitos de justiça e violência não podem ser vistos de maneira anacrônica.


Anacronismo é olhar para um tempo com pressupostos de épocas diferentes.

"Todas as palavras da Bíblia, como toda palavra humana, estão condicionadas por
fatores culturais e limitadas pelos conhecimentos do momento. Fala-se como se
pensa. Nos tempos bíblicos pensavam de outra maneira que nós a respeito do
homem, do mundo e de Deus. Pois bem, se Deus não falou como os humanos,
deveríamos concluir que seus pensamentos e sua fala são perfeitos, pois ele é
perfeito em tudo. Mas na Bíblia encontramos conceitos e conhecimentos iguais aos
das pessoas dos tempos em que se compuseram os escritos bíblicos”.
(Eduardo Arens. A Bíblia sem mitos, p. 295.)

Vídeo disponível no AVA

Conclusão
Teríamos muitos outros pontos importantes para serem discutidos. Contudo, uma
coisa pode ser tratada como central desta lição: a linguagem da Bíblia tem íntima
relação com o Mundo Antigo. Seu modo de ver a realidade e maneira de
compreensão são diferentes dos nossos. Isso não significa que a Bíblia seja texto
fadado a ficar no passado, como museu. Pelo contrário, sabermos destas
propriedades da Bíblia ajuda-nos na sua melhor compreensão e aplicação para
vida.

Veja o documentário de Joseph Campbell sobre Mito:


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28/02/2022 14:00 Aulas.

Vídeo disponível no AVA

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28/02/2022 14:00 Aulas.

Aula 5 - Bíblia como Literatura do Mundo Antigo

Objetivo: Compreender o que é o Mundo Antigo e como isso nos ajuda na


compreensão da Bíblia. Aplicar as ferramentas dos estudos culturais para termos
ideia de como as culturas em torno da palestina foram importantes para formação
dos textos bíblicos.

Introdução
Na aula anterior, tocamos na discussão que aqui faremos. Talvez você se pergunte
pela razão da insistência neste assunto. É simples, e aparentemente óbvio: a Bíblia é
obra do Mundo Antigo. O que isso tem de importante? Ora, a importância está
exatamente no fato de levarmos em consideração o contexto histórico onde ela se
insere. No entanto, não seja rápido em logo dizer que o contexto histórico é
simplesmente a economia, relações sociais, as classes ou políticas dos séculos
antigos. Como contexto histórico, fala-se também em imaginários, memórias, textos
da cultura, discursos etc. A Bíblia como obra do Mundo Antigo precisa levar em
consideração muito mais do que os “quatro lados”, como diriam os exegetas Latino-
Americanos.

O Mundo Antigo
Por Mundo Antigo compreende-se a geografia das terras e período nos quais os
textos bíblicos foram gerados. É comum encontrarmos nome de lugares em toda a
Bíblia. Fala-se em Egito, Babilônia, Pérsia, Israel, Damasco, Moabe, Babilônia, Roma,
Antioquia, Éfeso e etc. Estas localidades marcam não somente lugares, mas também
o contexto histórico, econômico, social e temporal dos textos bíblicos.

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28/02/2022 14:00 Aulas.

O principal cenário da Bíblia é a terra de Israel, conhecida pelos antigos gregos como
Palestina. Contudo, a história do povo da Bíblia está profundamente vinculada às
relações internacionais com Egito, Canaã, Mesopotâmia etc. Entre o Mar
Mediterrâneo e o Golfo Pérsico estendem-se a região que chamamos de Oriente
Médio, de onde surgiram diversas culturas e povos.

Israel e o Cristianismo têm relações íntimas com estas regiões e povos, e os textos
bíblicos refletem isso. A história de Israel e Judá passa pela relação com estes povos
vizinhos. O povo de Deus, como mostram as pesquisas atuais, surge da região da
Palestina depois de um rompimento com as nações canaanitas (estas informações
serão tratadas no decorrer do curso). Vivendo nas planícies e montanhas desta
região, forma-se como povo entre grandes potências. Na história vão surgindo
impérios como Assírio, Babilônico, Persa, Grego e, depois, Romano. Com o contato
com estas culturas Israel formata seus discursos, teologia e imaginário. O textos
bíblicos são escritos de maneira muito insipiente em tempos do rei Josias (622 a.C),
mas a produção acelerada acontece nos períodos do exílico e pós-exílico, quando a
Babilônia leva cativo um grupo de Judeus e depois, com o Império Persa, há uma
volta em massa para Judá. Não podemos nos esquecer de um período mais recente
conhecido como Segundo Templo, quando alguns textos bíblicos estão em processo
de redação e outros estão surgindo com ideias que serão muito importantes para o
NT.

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28/02/2022 14:00 Aulas.

Literatura do Mundo Antigo e Bíblia


A Bíblia foi escrita neste contexto e algumas coisas só podem ser entendidas se
inseridas neste ambiente. Uma coisa não podemos negar, os discursos teológicos e a
maneira como Israel pensou, no decorrer da sua história, a sua fé e a imagem da
sua divindade têm continuidades e descontinuidades com os imaginários religiosos
dos povos do Mundo Antigo, especialmente os que estão no eixo da região do
Crescente Fértil. Encontramos nas tradições judaicas ecos e a criativa recepção das
teologias egípcia, cananeia, hitita, mesopotâmica, persa e posteriormente a helênica.
Isso há muito já tem se percebido através dos testemunhos textuais e na cultura
material da região siro-palestinense.

Os estudos culturais revelam nos últimos anos a dinâmica da cultura. Sabe-se que
suas fronteiras são porosas, permitindo trocas e circularidades[5] desde as relações
culturais mais antigas[6]. Por isso, podemos perceber que os discursos sobre a
divindade e as teologias que dão vida a fé do povo de Israel não se sustentam a
partir de posições puristas.

Hoje em dia defende-se que Israel originalmente não era um fenômeno étnico não
cananeu. Sabe-se, através da cultura material das regiões da Palestina, que o grupo
que conheceríamos mais tarde em inscrições e na própria Bíblia como Israel, era em
parte continuidade das nações cananeias, talvez como fruto de um “nomadismo
interno”. Esta teoria diz que a origem de Israel está no declínio das cidades e em
seminômades que se assentaram nas montanhas de Efraim, como dizem os autores
do livro “A Bíblia Desenterrada”[7]. Se os escritores bíblicos tentaram diferenciar
Israel e Canaã, as pesquisas cada dia aproxima-os dando-nos fortes indícios de que
a religião vivida por aqueles que hoje chamamos de pagãos da terra prometida,
muito nos ensinou sobre as formas de pensar a divindade. Esta afirmação torna-se
mais contundente ao olharmos os textos de Ugarit, nos quais encontramos
testemunhas do panteão dos cananeus, ou de parte deles, nos conhecidos Ciclos de
Baal. Nestes aparecem expressões tais com El, El Shaday e Asherá. Em Gn 14,18
aparece, por exemplo, a expressão El ‘Elyon, revelando-nos como estamos em
espaços de imaginários religiosos comuns. Precisamos levar em consideração que os
primeiros israelitas designavam seu deus como El, o que mostra participação na
cultural e religião cananeias.

Uma questão muito discutida é a presença de uma divindade feminina ao lado de


Javé, a cananita Asherá. Em alguns textos da Bíblia Hebraica percebemos muito bem
isso. Em Gn 49, 25 encontramos as bênçãos dos shadayim waraham, dos “seios e do
útero”. Em Dt 33,2 fala-se de Asherá vir à sua destra, de Javé. As pesquisas falam
da existência do culto à Asherá no templo de Samaria, à luz de Am 8,14, 1Rs 16,33
e as inscrições de Kuntillet Ajrud[8]. Não é sem razão que os deuteronomistas
exortam a não plantar uma Asherá junto do altar do Senhor (Dt 16,21-22).

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28/02/2022 14:00 Aulas.

As tradições escatológicas e apocalípticas do Segundo Templo, a partir das quais se


constrói as ideias do eus que depois da ressurreição individual julgará para
condenação, dentro de um quadro de vida após a morte, só podem ser pensadas à
luz das relações e assimilações culturais com o mundo persa, que tem em
seu corpus literário o Gathas, parte antiga do Avesta[9].

Assista ao vídeo: Ashera, a Deusa proibida:


Vídeo disponível no AVA

Pense: Como o mundo antigo percebia suas divindades femininas e qual a relação com a
Bíblia?
Sua resposta servirá para você perceber o que compreendeu do assunto tratado, não sendo
necessário enviá-la ao tutor, professor, nem postar no sistema.

Conclusão
No decorrer das lições entraremos com mais cuidado nestes assuntos. Contudo, já
podemos perceber que ideias, imaginários, textos, compreensão de mundo,
relações sociais, econômicas e políticas do Mundo Antigo são o pano de fundo
desta literatura tão cara para todos nós que cremos nas Escrituras. Por isso,
precisamos lê-la assim: como texto da antiguidade para que tenhamos bons
resultados para nossa prática de fé hoje.

[5] A ideia de circularidade cultural foi muito bem exposta na obra de Bakhtin, na
qual mostra a interação da cultura não hegemônica (popular) e hegemônica (erudita)
na idade Média e Renascimento. Mesmo que o autor russo estivesse preocupado com
o corte temporal medieval e renascentista, suas pesquisas formam importantíssimas
para diversos estudos culturais, inclusive foram fontes frutíferas para a Nova História
Cultura. Cf.: BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento:
o contexto de François Rabelais. São Paulo: Annablume, 2002.

[6] GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano das idéias de um moleiro


perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. A respeito da
questão da construção de identidade e a interação cultural no Mundo Antigo, cf.:
HALL, Jonathan M. Ethnic identity in Greek Antiquity. Cambridge: Cambridge
University Press, 1997.

[7] FINKELSTEIN, I. & SILBERMAN, N. A. A The Bible Unearthed. Archaeology’s New


Visiono f Israel and Origins of Its Sacred Texts. New York: The Free Press, 2001.

[8]DEVER, William G. Did God Have a Wife?Archaeology and Folk Religion in Ancient
Israel. Michingan/Cambridge, UK: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 2005. p. 214

[9] SOARES, Dionísio Oliveira. As influências persas no chamado judaísmo pós-


exílico. In: Revista Theos 2 (2009): 1-24, p.7.

https://ead1.fuv.edu.br/mod/book/tool/print/index.php?id=8956 21/89
28/02/2022 14:00 Aulas.

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28/02/2022 14:00 Aulas.

Aula 6 - Bíblia e oralidade

Objetivo: Apresentação e compreensão da dinâmica da formação do texto bíblico.


Análise da tradição oral na formação da Bíblia. Compreensão da formação dos
textos bíblicos e sua vida na oralidade.

Introdução
Temos uma afirmação muito batida até aqui: a Bíblia como literatura. No entanto,
precisamos entender que estes textos que hoje acessamos tiveram uma longa
história de oralidade. Nos tempos bíblicos a memória era instrumento indispensável
para preservação das tradições. Anedotas, histórias, epopeias, lendas etc. eram
cantadas e contadas e passavam de geração em geração antes de se tornarem
textos escritos.

Na história encontramos muitos arquivos com escritas cuneiformes ou pictogramas


em Ugarit, Mari, Ebla, Assur etc., mas isso não era uma prática acessível para todos,
o que tornava a oralidade o mecanismo mais eficiente de preservação de saberes e
cultura de um povo. A própria cultura de Israel fala em lei oral, que são
interpretações dos rabinos que sobreviviam na oralidade e somente posteriormente
tornaram-se textos escritos.

Vídeo disponível no AVA

Oralidade
Em Rm 10,17 é dito que a fé vem da audição. O mesmo Paulo, em 1Co 11, 23ss, e
em muitos outros lugares, faz menção das coisas que recebeu da tradição oral (1 Co
7,10.25; 9,14; 15,3).
Em Dt 6,4-7 lemos:

Ouve, ó Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor.


Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas
as tuas forças. Os mandamentos que hoje te dou serão gravados no teu
coração . Tu os inculcarás a teus filhos, e deles falarás, seja sentado em tua
casa, seja andando pelo caminho, ao te deitares e ao te levantares. (Grifo nosso).

Era na oralidade que se transmitiam as leis e outros gêneros. O livro de Juízes, por
exemplo, preserva várias histórias dos heróis tribais; os Salmos eram cânticos que
serviam para liturgias; as palavras dos profetas eram anunciadas oralmente e, por
vezes, viravam panfletos como os ditos do profeta Ageu etc. Nos textos do Novo
Testamento encontramos hinos que eram cantados pelas comunidades que foram
utilizados para produção de textos, como, por exemplo, o hino do amor de 1Co 13,
ou hinos cristológicos, como Cl 3,16ss.

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28/02/2022 14:00 Aulas.

Devemos esclarecer que alguns textos nascem escritos e se popularizam em leituras


comunitárias, outros têm uma longa história oral e depois são colhidos e tornam-se
textos escritos. Há ainda os que são primeiramente orais, depois escritos e, mais
tarde, voltam para a oralidade.

Julio Trebolle Barrera explica a relação entre oralidade e escrita na


produção dos textos bíblicos:

A transmissão oral jogou papel decisivo nos processos de formação e


interpretação da Bíblia: nos momentos iniciais, quando a palavra viva
dos narradores e profetas se converteu em texto escrito, e nos
momentos finais, quando o escrito começou a ser interpretado primeiro
em forma oral e ao mesmo tempo serviu-se de materiais da tradição
oral. Na verdade estes momentos iniciais e finais não estavam sempre e
necessariamente distanciados no tempo. Os dois processos, a
transmissão oral e a escrita, ao contrário, iam necessariamente juntos.
Os “filhos dos profetas” punham por escrito os oráculos pronunciados
por seus mestres, porém ao mesmo tempo os interpretavam e
atualizavam, gerando deste modo novos textos escritos e, por sua vez,
novas interpretações orais.

Da oralidade ao texto bíblico

A exegese, que é a ciência da interpretação


bíblica, no decorrer da história desenvolveu
ferramentas para trabalhar com o aspecto
oral da Bíblia. Uma dessas ferramentas é a
Crítica das Formas, que mesmo trabalhando
com os gêneros literários em material
escrito, não perde de vista que estes textos
tiveram um estágio anterior na oralidade,
os quais eram transmitidos de boca em
boca como forma de veiculação de cultura,
orientação ética e conteúdo de fé. Desta forma, essa ferramenta pressupõe que as
tradições tiveram vida em formas orais fixas. Isso é muito simples de se entender.
Quando contamos alguma piada, percebemos, por mais variável que seja, uma
forma fixa, com conteúdos que se repetem. E ainda, esta quase rigidez serve para a
preservação da possibilidade de repetição.

Alguns tipos de formas foram usados, inclusive, em ambientes comuns. Diversos


tipos de cânticos servem para certas liturgias, anúncios imperiais ao ambiente da
corte, narrativas de exorcismos à missão etc. Inclusive, há relatos que ganham
novos contornos e conteúdos de acordo com os lugares onde são usados.

https://ead1.fuv.edu.br/mod/book/tool/print/index.php?id=8956 24/89
28/02/2022 14:00 Aulas.

Por isso, na transmissão escrita dos textos bíblicos temos a presença, na linguagem,
nos temas, nas formas e conteúdo de sua existência oral. Milton Schwantes, biblista
brasileiro já falecido, costumava dizer em suas aulas de exegese que “Bíblia é
memória dos pobres”. Esta frase representa uma clara perspectiva de os textos
escritos serem reformulações de tradições que os povos cultivavam.

Conclusão
A cultura da memória é o pano de fundo da Bíblia. Nós, modernos, somos
treinados para o esquecimento, porque armazenamos fotos, escrevemos livros,
enciclopédias, colocamos em HD's de computadores, etc. O mundo da Bíblia, pelo
contrário, é da oralidade. A escrita não era tão comum ou popular, o saber se
estabelecia pela tradição. Narrativas, lendas, etiologias, parábolas, etc., corriam
nas memórias e na boca das comunidades. As Escrituras têm muitas tradições
que, por um logo tempo, passaram pelo estágio oral.

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28/02/2022 14:00 Aulas.

Aula 7 - Bíblia e seu suporte material

Objetivo: Apresentar as materialidades dos textos bíblicos, suas várias formas e


usos. Explicar a respeito do processo da escrita dos textos e suas cópias.

Introdução
Quando você abre um livro ou abre um artigo na internet e lê acontece aqui um
acesso ao texto, que está preservado em algum espaço ou lugar. O suporte é
exatamente o mecanismo através do qual o texto é veiculado. A Bíblia, como temos
estudado, teve longa duração na oralidade. Contudo, depois ou simultaneamente, foi
ganhando materialidade em textos escritos. Esses, por sua vez, foram preservados
em diversos suportes. Inclusive, existem ciências especializadas em estudar estes
materiais como a manuscritologia*, epigrafia*, paleografia*, a crítica textual* e
outras, as quais auxiliam o estudo dos textos bíblicos.

O Material para a Bíblia


Com o decorrer do tempo, por diversas razões, as tradições que circulavam foram
sendo escritas em unidades independentes, depois em pequenos grupos até
tornarem-se livros. Assim, por exemplo, ajuntaram-se as tradições de Jacó (Gn
25,19ss; 32,3ss ), seus encontros com Deus, seus lugares sagrados de culto (Betel,
Penuel e Siquém). Da mesma forma, comunidades cristãs ajuntavam tradições de
Jesus para diversos fins. Depois, Mateus, Lucas e outros reuniram-nas e formaram
seus livros. Em outros casos, encontramos exemplos de epigrafias, escritas em
pedras, pedaços de cerâmica, pergaminhos ou papiros, nos quais encontramos
textos bíblicos ou não bíblicos.

No entanto, quando falamos em livros não podemos esquecer que somente séculos
depois do primeiro século surgiu o modelo que temos hoje. O material e estrutura
eram outros.

Materiais para suporte de textos na Antiguidade


Em alguns lugares da Bíblia há referências às tábuas da Lei (Ex 24,12; 34,1; Dt
4,13). Em 1 Macabeus (8,22 e 14,81.27.48) fala-se de placas de bronze. Nos
achados em Qumran há o Rolo de Cobre e há um amuleto de prata do séc. VI a.C
encontrado em um túmulo a sudeste de Jerusalém com o texto de Nm 6,22-27.
Materiais como couro de animal (pergaminho), papiro e argila, serviram de suportes
para os textos bíblicos. Há ainda as peças de cerâmicas quebradas, encontradas em
abundância, um material barato para escritura usado no Egito desde os tempos do
Império Antigo. Esses são chamados de óstracos, escritos com tinta e pena.

Alguns materiais:

PEDRA

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28/02/2022 14:00 Aulas.

ÓSTRACOS

PAPÍRO

Os papiros eram feitos à partir dos talos da planta da qual se retira seu nome, muito
comum no Egito. Cortavam-se em tiras finas, sobrepostas umas sobre as outras,
cruzadas. Esses eram enrolados, como o pergaminho. O papiro era um material
muito comum; inclusive, há muitos papiros com porções do Antigo e Novo
testamentos.

https://ead1.fuv.edu.br/mod/book/tool/print/index.php?id=8956 27/89
28/02/2022 14:00 Aulas.

Os Papiros poderiam ser chamados de rolo. Termos técnicos para rolo é sefer (livro)
ou megillâ (rolo). Em Jr 36.2,4 aparece megillat-sefer (rolo do livro). Eles poderiam
ser um pergaminho, também. O leitor deveria desenrolá-lo e depois enrolá-lo. Em Lc
4.17 diz que Jesus anaptúxas (desenrolou) o livro. Em Jr 32,10-14 provavelmente se
refira a um papiro dobrado e selado.

PERGAMINHO

É um suporte para textos feito de couro de animal. Foi em Pérgamo que a técnica se
aperfeiçoou, em torno do Séc. II a.C. Não há pergaminhos preservados do NT
anteriores ao Séc. IV. Em Qumran foram encontrados diversos manuscritos em
pergaminho.

Sobre os Manuscritos do Mar Morto, veja:


Vídeo disponível no AVA

https://ead1.fuv.edu.br/mod/book/tool/print/index.php?id=8956 28/89
28/02/2022 14:00 Aulas.

CÓDICE OU CODEX
O códice aparece no Império Romano no séc. II. Diferente do rolo, poderia
comportar todos os textos da Bíblia em um volume (ex. Códice Leningrado B19a,
Códice Alexandrino), tipo um livro, feito de papiro ou pergaminho. As folhas (fólio)
poderiam ser escritas em cada lado. Por vezes, o texto era estruturado em colunas.

As cópias dos Manuscritos


Os textos bíblicos foram escritos à mão, manuscritos. Eles saíram da pena dos
autores que não existem mais. Ou seja, os autógrafos não estão mais à disposição.
O que temos são cópias das cópias, as quais mostram diversas variantes. Isso revela
que no processo de produção das cópias, algumas alterações foram feitas por razões
teológicas, deslizes dos copistas ou por comentaristas que desejavam explicar partes
difíceis.

Talvez você pergunte: e como podemos, então, ler os textos originais? O que temos
hoje são os textos originais reconstruídos pela Crítica Textual, que é uma ciência que
se utiliza de técnicas para comprar os manuscritos e chegar, usando diversos
critérios, ao que seria mais original. Para o Novo Testamento, por exemplo, temos
o Novum Testamentum Graece, que está na 28ª edição. Nesta obra temos o
resultado do trabalho dos críticos textuais, além do aparato crítico*, onde se pode
perceber as testemunhas textuais dos manuscritos.

https://ead1.fuv.edu.br/mod/book/tool/print/index.php?id=8956 29/89
28/02/2022 14:00 Aulas.

Leia neste link, no blog Kenner Terra, um exemplo de análise de variantes


textuais:

http://kennerterra.blogspot.com.br/2012/05/anjos-que-tomam-banho-
variacoes.html

https://ead1.fuv.edu.br/mod/book/tool/print/index.php?id=8956 30/89
28/02/2022 14:00 Aulas.

Aula 8 - História e dinâmica da formação dos textos bíblicos

Objetivo: Apresentar a formação dos textos à luz do desenvolvimento histórico.


Mostrar as diferenças entre aproximações sincrônica e diacrônica. Descrever o
texto bíblico como resultado de longa duração, o que não desqualifica seu valor.

Introdução
Uma das grandes questões que perturbam o sono daqueles que estudam
academicamente a Bíblia é a dinâmica da formação dos textos. É muito comum
projetarmos para a Bíblia expectativas de autenticidade aplicadas à produção
literária moderna. Explico isso. Um texto costuma ser tratado como autêntico e digno
de aceitação se não for alterado ou mexido. Ele é escrito numa ocasião, durante um
tempo ou em uma sentada, o qual não recebe qualquer mudança. Quando falamos
em Bíblia estamos lidando com um texto que passou por um processo histórico de
formação e escrita, o qual já é natural em sua forma oral, como temos mostrado em
outra lição. Nesta aula trataremos deste a formação histórica e como isso pode nos
ajudar para termos uma concepção equilibrada e piedosa a respeito da Bíblia.

A narrativa da história à luz da Bíblia: um olhar sincrônico.


Quando falamos em ler a Bíblia “sincronicamente” estamos nos referindo a acessar
os textos na ordem que estão disponíveis nas Escrituras. Pelo contrário, a leitura
diacrônica lê à luz da formação histórica dos textos, que nem sempre segue a ordem
como estão na Bíblia. Por exemplo, no evangelho de João a leitura sincrônica segue o
esquema do livro e a sequência dos capítulos para procurar sentido na organização
interna e como foi redigido. Por outro lado, pesquisas de cunho diacrônico* revelam
que Jo 14, 31 deveria ser seguido por Jo 18,1, mostrando que 15-17 foi inserido em
estágio posterior, o mesmo que se acredita ao cap. 21, como redação posterior.

Seguindo o caminho sincrônico* do texto sagrado,


temos um esquema geral da criação, patriarcas,
êxodo do Egito e instalação em Canãa, monarquia
(unidade e posteriormente dividida), destruição
do Norte pela Assíria, exílio na Babilônia e
diáspora, volta do exílio e reconstrução da cidade
e do templo, período do segundo templo e império grego, período do império
Romano e origens das comunidades cristãs. Em termos mais específicos, as
narrativas representam, em uma perspectiva sincrônica, a relação paralela entre os
textos e suas narrativas e o pano de fundo histórico de suas referências. Por
exemplo, a narrativa do livro de Daniel insere seu enredo no contexto histórico do
exílio Babilônico (Dn 1.1; 2.1; 3.1), no séc. V, o que não é confirmado pelas
evidências internas e informações que o próprio livro expõe, o que lhe insere no séc.
II, no período do Império Grego, especialmente a crise com o governo de Antíoco
Epifanes.
https://ead1.fuv.edu.br/mod/book/tool/print/index.php?id=8956 31/89
28/02/2022 14:00 Aulas.

Nessa perspectiva, os relatos bíblicos seriam como exposição direta dos referentes
históricos. As informações seriam como reflexos, quase que contemporâneos das
histórias contadas. Esta perspectiva não teve em consideração alguns detalhes: 1.
Os textos foram escritos anos depois dos fatos e, por vezes, representam menos o
passado do que as situações dos que estão escrevendo; 2. Os textos bíblicos são
antes textos teológicos do que históricos (histórico aqui segundo a perspectiva
moderna). Isso quer dizer que as narrativas estão recheadas das expectativas de fé
dos que escrevem.

A Formação dos textos e suas dinâmicas


Neste ponto, começamos a fazer dialogar as ferramentas modernas com a maneira
como a Bíblia se formou. Com instrumentos tais como a crítica literária, a usada pelo
método histórico-crítico, foram encontradas tensões, rachaduras, repetições,
descontinuidades, rupturas nos textos bíblicos. Isso denuncia que estes textos que
agora estão cristalizados linearmente passaram por um processo de formação até
chegarem no estado que estão. Por isso, a linearidade dos textos é frágil e muitos
dos textos das Escrituras são resultados de processos longos de formação e fases de
redação. Isso acaba, consequentemente, atingindo a ideia de autoria e formação
instantânea dos textos.

Por isso, é comum encontrarmos expressões do tipo “esta parte é uma inserção
posterior”, “uma glosa” (as quais existiam no rodapé dos textos e depois entravam
na obra), “um redator posterior” etc. Estas expressões, que para alguns são pouco
comuns, estão no vocabulário dos estudos acadêmicos dos textos bíblicos. Quando
estudamos a oralidade e os textos bíblicos temos indícios dessa realidade de longa
duração. Assim, temos a realidade de textos como resultado de procedimentos
mnemônicos (memória) e preservação posterior dos textos.

Podemos indicar alguns exemplos que mostram como os textos da Bíblia revelam
processos longos de inserções e releituras. Um clássico está em 1Co 14. 26-39.

26Que fareis pois, irmãos? Quando vos ajuntais, cada um de vós tem
salmo, tem doutrina, tem revelação, tem língua, tem interpretação.
Faça-se tudo para edificação. 27 E, se alguém falar em língua
desconhecida, faça-se isso por dois, ou quando muito três, e por sua
vez, e haja intérprete. 28 Mas, se não houver intérprete, esteja calado
na igreja, e fale consigo mesmo, e com Deus. 29 E falem dois ou três
profetas, e os outros julguem. 30Mas, se a outro, que estiver
assentado, for revelada alguma coisa, cale-se o primeiro. 31 Porque
todos podereis profetizar, uns depois dos outros; para que todos
aprendam, e todos sejam consolados. 32 E os espíritos dos profetas
estão sujeitos aos profetas. 33Porque Deus não é Deus de confusão,
senão de paz, como em todas as igrejas dos santos. 34 As vossas
mulheres estejam caladas nas igrejas; porque não lhes é permitido
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28/02/2022 14:00 Aulas.

falar; mas estejam sujeitas, como também ordena a lei. 35E, se


querem aprender alguma coisa, interroguem em casa a seus próprios
maridos; porque é vergonhoso que as mulheres falem na igreja.
36Porventura saiu dentre vós a palavra de Deus? Ou veio ela somente
para vós? 37Se alguém cuida ser profeta, ou espiritual, reconheça que
as coisas que vos escrevo são mandamentos do Senhor. 38 Mas, se
alguém ignora isto, que ignore. 39Portanto, irmãos, procurai, com zelo,
profetizar, e não proibais falar línguas. 40 Mas faça-se tudo
decentemente e com ordem”

No meio da discussão sobre os dons aparece uma exortação extremamente dura às


mulheres, exigindo que não falassem na assembleia e perguntassem ao marido em
casa a respeito de suas dúvidas. Este texto é visto por muitos exegetas como não
paulino, porque desentoa com sua postura mais liberal em relação às mulheres e sua
participação na liturgia, como encontramos no mesmo livro no cap. 11. O que se
percebe aqui é o indício que o livro recebeu inserções posteriores representando uma
história de produção. O mesmo pode ser dito a respeito de Jo 12, 44-50 que está
fora de lugar e não é continuidade natural de 12, 42. Outro exemplo muito conhecido
é o livro do profeta Isaías que os seus 66 capítulos representam um longo período de
formação de, no mínimo, três momentos (primeiro Isaías, deutero-Isaías e o trito-
Isaías). Neste, inclusive, alguns textos da primeira parte foram acrescentados no
período pós-exílico. Há um amontoado de trabalhos e pesquisas sobre a história da
formação dos textos, que por vezes desconstroem os textos partilhando-os para
muitos períodos diferentes.

Formação histórica e autenticidade

Como temos discutido, não podemos esperar


dos textos o que eles não são. A importância da
Bíblia não pode ser medida por sua escrita ou
maneira de formação. Cabe ao leitor atento das
Escrituras levar em consideração, quando
necessário, os momentos de formação do texto
para compreender as intenções da redação e
suas possíveis aplicações. Os métodos
modernos nos mostraram a dinâmica, o
funcionamento da formação do texto, o que revela complexos procedimentos de
escrita, releituras e inserções, que por vezes, revelam as teologias, os interesses
sociais etc.

Os textos não foram escritos “numa sentada”, como se diz, e alguns foram escritos
por comunidades, por várias mãos. Como termina o Evangelho de João: “[...] e
sabemos que o testemunho é verdadeiro” (Jo 21,24). O verbo no plural denuncia
uma obra coletiva, a voz de uma comunidade que se expressa no texto. Desta
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28/02/2022 14:00 Aulas.

forma, encontramos as ânsias e dilemas de grupos que se mostram nos textos, os


quais nem sempre são as manifestações de mentes individuais, como os escritores
modernos em suas escrivaninhas na sala de um escritório ou biblioteca.

A formação dos textos acontece em longa duração, o que permite, inclusive, a


presença de tensões internas entre perspectivas diferentes, dependendo de quando
cada parte foi escrita. Por isso, não é possível simplesmente uniformizarmos as
vozes dos textos, pois são múltiplas. O autêntico, então, precisa ser a proposta e
suas releituras. Não é possível exigir da Bíblia autenticidade como sinônimo de
adequação à expectativa sincrônica. Contudo, com todos os seus dilemas e complexa
formação encontramos as experiências de homens e mulheres com o Deus e pai de
Jesus Cristo, o qual se revela através desta longa e dinâmica formação.

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28/02/2022 14:00 Aulas.

Aula 9 - Bíblia e inspiração I

Objetivo: Iniciar a discussão a respeito do conceito de inspiração. Avaliar as


formas conservadoras de inspiração. Apresentar a relação de inspiração e
autoridade da Bíblia.

Introdução

Olá, atento/a aluno/a. Até aqui discutimos diversos pontos importantes das
pesquisas a respeito da Bíblia. Agora é hora de entrarmos em um assunto que, por
vezes, foi tratado de irresponsável. Podemos afirmar isso porque, historicamente, em
termos gerais, duas forças se digladiaram em torno do assunto inspiração da Bíblia.
De um lado estão os fundamentalistas que, às vezes, quase caem em um tipo de
“bibliolatria”, por conta de suas leituras simplistas e inocentes. Por outro lado, estão
os mais críticos, que em muitas ocasiões não dão à Bíblia nada mais do que o valor
de literatura histórica, sem qualquer importância divina ou de revelação. Esta última
tem suas bases em pesquisas modernas através das quais se percebeu
principalmente as dinâmicas e condicionamentos históricos presentes na origem da
Bíblia. Se por um lado esta é uma postura reducionista, por outro, aquela também
deixa de lado os últimos resultados das pesquisas.

Nesta aula, que precede de propósito as outras sobre cânon, apresentaremos


algumas discussões a respeito da autoridade da Bíblia e em torno da questão da
inspiração. Até a Renascença e o Iluminismo, movimentos que estão no curso da
Modernidade, esta não era uma questão a ser discutida, pois foi nesse período que
começaram a se discutir as mais variadas questões da participação humana na
origem da Bíblia.

Conceito de inspiração e autoridade da Bíblia

A expressão “inspiração” vem do latim inspirare , que significa “soprar para dentro”.
Em 2Tm 3,16 é dito que toda Escritura é theópneustos (θεόπνευστος ),
inspirada/soprada por Deus. Esta expressão pode gerar um emaranhado de
confusões alimentadas por estereótipos e apologética, comumente superficiais. A
epístola refere-se aos escritos judaicos lidos desde sempre nas comunidades cristãs
com óculos cristológicos. São talvez os textos do Antigo Testamento lidos com
perspectiva cristã. “Toda”( πᾶσα), aqui, é o conjunto até então acessado pelas
comunidades cristãs, que não tinham ainda o Novo Testamento. Nada se fala de
infalibilidade ou inerrância, que são preocupações modernas, à luz do sentido de
“erro” e “acerto” do Mundo Moderno.

Inspiração, então, tem sentido de que a Bíblia é obra do Espirito Santo, que esteve
no processo de sua produção e formação, soprada por Ele. Esta afirmação foi levada
até às últimas consequências por alguns e surgiu a expressão “inspiração verbal” ou

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28/02/2022 14:00 Aulas.

“plenária verbal” que significa que a


Bíblia é Palavra de Deus e que até a
escolha das palavras foi dirigida de
maneira sobrenatural. Com o
surgimento das pesquisas mais críticas
na Modernidade, como o método
histórico-crítico, a ideia de inspiração
começou a ganhar novos contornos.

Antes de qualquer coisa, precisamos


afirmar que fé é: em Deus e sua ação
no mundo e em Jesus Cristo. A Bíblia é o meio pelo qual acessamos isso. Neste
sentido, em termos básicos, nossa FÉ É EM DEUS E NÃO NA BÍBLIA. Como assim?
Deus se revela a homens e mulheres através de experiências e momentos da
história. Estes fatos são interpretados e depois se tornam textos. A revelação não se
deu em um instante, mas ao longo do tempo, às pessoas concretas e através de
acontecimentos vividos que foram compreendidos como revelados à luz da fé,
interpretados como tais. Neste sentido, a fé existiu antes do texto. Por isso, das
experiências de fé, uma vez interpretadas por homens e mulheres, virem os escritos.
As Escrituras são meios, caminhos, através dos quais acessamos estas ações de
Deus na história, ou seja, a sua revelação. A revelação não é a Bíblia em si, mas
para o que ela aponta. Aqui está a autoridade a Bíblia: sua origem em Deus e porque
contém em si os testemunhos da revelação. Ela é mediação com limitações e
condicionado por múltiplos fatores, os quais não desqualificam o valor da Bíblia, mas
revelam sua natureza e maneira de formação. Este ponto nos leva ao conceito de
“inerrância”, o qual será discutido mais a frente. A Bíblia é, então, testemunha
histórica de experiências que foram interpretadas por homens e mulheres de fé.

A fé surge das manifestações de Deus na história, a qual foi interpretada como tal
por pessoas de fé. Por isso, quando chegamos ao texto como Palavra de Deus, ele é
mecanismo de comunicação, com seus gêneros literários, perspectivas culturais e
sociais. Então, não sãos os fatos como tais que acessamos, mas sua interpretação.
Não é o relato do êxodo como acontecimento em si que é a verdade, mas o que ele
nos revela sobre Deus.

Vídeo disponível no AVA

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28/02/2022 14:00 Aulas.

Aula 10 - Bíblia e inspiração II

Objetivo: Continuar a discussão a respeito do conceito de inspiração. Tratar do


conceito de inerrância e inspiração. Apresenta a relação da produção humana e o
conceito de inspiração.

Inerrância
Inerrância é um conceito tomado como responsável e determinante, para muitos,
especialmente os fundamentalistas, para afirmar a inspiração da Bíblia. Inerrância
significa, aplicado ao texto bíblico, que na Bíblia não há qualquer erro, inclusive em
relação às informações geográficas, culturais, históricas e em termos de afirmações
científicas. Para essa perspectiva de inerrância, se Deus é o autor dos textos, mesmo
que haja a presença das características de cada autor (linguagem, capacidade de uso
da gramática e estilo), todas as informações são factuais e verdadeiras, inclusive a
respeito de informações históricas e funcionamento do mundo natural. Isso seria não
conter erros, ou seja, ser inerrante.

Logo na primeira olhada para essa declaração, temos alguns problemas:

Desta forma, seria, inclusive, um problema usarmos o conceito de “erro” para


averiguar a Bíblia e suas informações, o que torna a expressão inerrância também
um problema. A Bíblia, como ela mesma mostra, contém erros informativos,
mesmo que acerte na exposição do projeto de salvação . Poderíamos listar
alguns aqui.

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28/02/2022 14:00 Aulas.

- Em Levíticos 11,6 e Deuteronômio 14,7 fala-se que lebre é ruminante, mesmo


sendo roedor. Em Jó 20,16 diz-se que a víbora mata com a língua, mas sabemos que
é com as presas. Na arqueologia ficou claro que Jericó, Ai e outras cidades não eram
habitadas no período de Josué 6-9.
- O livro de Daniel diz que Baltazar era filho de Nabucodonosor (Dn 5), mesmo sendo
de Nabonid. No mesmo livro fala-se de Dario o Medo (6,1), que conquista a
Babilônia, que na verdade foi Ciro. Em Atos 7,16 confunde Abraão com Jacó. As
narrativas da criação em Gênesis 1 a 3 contam as histórias diferentes, e em ordens
diferentes. Em um momento se diz que o sogro de Moisés é Jetro, em outros lugares
é Jeter, Reguel, ou Hobab.
- Os decálogos de Êxodo 20 e Deuteronômio 5 são diferentes (os dois apresentam
motivos diferentes para o sábado). Em 2Samuel 24,1ss a razão do recenseamento
foi ordem de Deus, enquanto que em 1Crônicas 21,1, foi por insistência de Satanás.
- Encontramos diferenças entre a maneira como as comunidades interpretaram Jesus
e contaram sua vida. Além dos detalhes por vezes diferentes, há estruturas
contrastantes. Em Lucas, Jesus vai uma vez à Jerusalém, onde morre, enquanto em
João ele vai e volta pelo menos quatro vezes.
- Há informações com anacronismos. Isso quer dizer que há imagens colocadas em
períodos nos quais não poderiam estar, por nem existirem ainda. Em Gênesis 4
registra que Caim, depois da morte de Abel, poderia ser morto por qualquer um que
encontrasse. Isso só seria possível em uma terra habitada, o que seria muito depois.
Em Gn 47,11 fala-se da cidade de Ramsés no tempo de José, que só poderia existir
depois da existência do faraó Ramsés, séculos depois.
Poderíamos acumular muitos outros exemplos de duplicações, informações históricas
divergentes, anacronismos, citações com problemas, uso de outros textos anteriores
etc. Esses dados somente nos mostram que as informações no texto podem, por
vezes, não serem coerentes com a realidade ou com aquilo que esperariam os
modernos a respeito do factual. Mais ainda, o que se escrevia, e a maneira como se
pensava, representavam a visão de mundo e teologia do período de cada texto. No
processo de revelação de Deus, estes textos surgem dentro das categorias de seu
tempo, e apontam para um sentido que nos revela coisas sobre as pessoas e Deus.
A própria Bíblia fala da participação humana na sua produção. Lucas, na abertura do
seu evangelho, admite que pesquisou fontes. Fala-se nas Crônicas dos Reis e outras
fontes no processo de escrita da Bíblia.

A Escritura é um conjunto de testemunhas de fé, vividas por pessoas diferentes, em


diferentes tempos e circunstâncias. Ela mostra uma evolução na compreensão da
natureza do mundo, de Deus e sua vontade; temas que são tratados de maneira
diferente em cada livro ou texto que a compõe. A grande questão não é a verdade
histórica, como o mundo moderno quer, mas a verdade religiosa, a mensagem, o
sentido e a intenção do texto. Não se pergunta sobre a factualidade dos textos, mas
a respeito de sua mensagem. Não se pergunta pelo que realmente aconteceu, como
se pudéssemos reconstruir o passado, mas o que tem a ensinar sobre Deus, fé,
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28/02/2022 14:00 Aulas.

experiência humana e relação com o mundo. Em suma, falar que a Bíblia contém
erros refere-se a erros de informação. Isso não desqualifica sua inspiração ou autoria
divinas, mas leva em consideração que há a participação humana no processo, o que
a própria Bíblia nos leva a crer.

Palavra de Deus
Em círculos mais fundamentalistas, falar que a Bíblia é a Palavra de Deus tem
sentido de ser ditada por Deus e inerrante. Essa perspectiva seria a razão para
considerá-la inspirada. Por vezes, usam-se as partes de textos bíblicos que
apresentam a introdução “assim falou Javé” dos profetas ou narrativas nas quais
Moisés recebe de Deus ou o próprio Deus escreve as letras (Êx 17, 14; 24,4; Êx
24,12; 31,18; 32,15) para se defender o conceito de Palavra de Deus. Para os que
seguem esta metodologia, usam esses textos como se fossem afirmações Bíblicas de
que as linhas da Bíblia foram ditadas diretamente. O problema começa (começou)
quando alguns provérbios ou outras obras literárias do Mundo Antigo foram
encontrados, e percebeu-se familiaridade com os textos bíblicos, ou, também,
quando os próprios textos das Escrituras demonstram problemas e tensões internas.
Para resolver isso, alguns até diferenciam duas ideias: “Bíblia como Palavra de Deus”
e “Bíblia como lugar que contém a Palavra de Deus”. Este caminho não ajuda muito
na discussão. Em que sentido, então, a Bíblia é Palavra de Deus?

Levando em consideração as discussões até aqui, a revelação é anterior ao texto. A


Bíblia é resultado de uma revelação e meio de comunicação da interpretação desta
experiência. Observe que no Decálogo (Os Dez Mandamentos) que é introduzido com
a afirmação de que foi ditado por Deus no processo de escrita, possui versões
diferentes ( Êxodo 20,1ss x Deuteronômio 5,4ss).

Volto a perguntar: como, então, entender a Bíblia como Palavra de Deus?


Eduardo Arens, creio, pode nos ajudar:

Se não se trata das mesmíssimas palavras de Deus, em sentido literal,


então, de quem são? A Mensagem é de Deus, mas não as palavras com
as quais se expressa. Embora seja redundante, a “Palavra de Deus”
deveria ser qualificada como “em palavras de homens”, para não cair no
literalismo. Ao nos referirmos à Bíblia como “Palavra de Deus”, não o
fazemos no sentido estrito de que se trata das palavras impressas, dos
sinais linguísticos (sic) próprios do escritor. Em poucas palavras, a
expressão “a Bíblia é a Palavra de Deus” é uma metáfora . É metáfora,
como o é “Deus falou/disse”, porque em sentido estrito, falar é um
fenômeno corporal humano, como o são os outros sentidos que também
se predicam a Deus [...]. Por ser uma expressão metafórica, “Palavra de
Deus” não se refere as palavras, mas ao discurso, à mensagem que é
atribuída a Deus. Refere-se ao que se diz, não ao como se diz; ao
conteúdo, não à forma[10].
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28/02/2022 14:00 Aulas.

Concluímos que qualquer discussão a respeito da formação histórica do texto,


autoria ou informações não adequadas a respeito da Bíblia, ou encontradas em suas
linhas, não determinam seu valor de inspirada. Pelo contrário, demonstra como Deus
se fez conhecer através da fragilidade dos processos históricos, e através desses
revelou seu Filho ao mundo.

[10] ARENS, E. A Bíblia sem mitos. Uma introdução crítica. São Paulo-SP: Paulus,
2007, p. 290-291.

Agora que você chegou na metade dos estudos desta disciplina, aproveite
para realizar as seguintes atividades:

Fórum 1
Atividade Dissertativa 1
Atividade Objetiva 1

Consulte o seu material e suas anotações. Escolha, então, o momento


mais adequado para realizá-las.

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28/02/2022 14:00 Aulas.

Aula 11 - O conceito de Cânon

Objetivo: Apresentar os conceitos “cânon” e “canônico”. Discutir a teologia do


cânon. Expor os critérios para canonização dos livros da Bíblia.

Introdução

Olá! Falar de cânon é continuar a discussão iniciada nas últimas aulas. Os livros
canônicos são aqueles considerados inspirados por Deus, os quais ganharam
este status na história da comunidade judaica ou cristã. Para entrarmos no assunto,
precisamos ter em mente o conceito de “Escritura Sagrada”.

Todas as religiões têm um conjunto de textos considerados de origem, direta ou


indiretamente, divina. Em princípio, as obras consideradas como escritura sagrada
são o conjunto de escritos que contém os textos do culto, da oração ou dos ritos de
determinada religião, assim como sua doutrina original. Artola e Caro definem
escritura sagrada assim:

Quando falamos neste conjunto de livros que forma a Bíblia, estamos tratando do
cânon. Mas, como essa coleção foi organizada? Por que estes, e não outros? Qual foi
o processo? Como isso influencia na nossa caminhada na comunidade que tem a
Bíblia como fonte de orientação? Estas questões nortearão nossas discussões.

O conceito de cânon

A palavra cânon vem do grego kanon (cf. 2Co 10,13.15.16; Gl 6.16), que por sua
vez procede da raiz qnh, que significa “vara de medir”, “régua” ou “prumo” usado
para construção (cf. Ez 40,5-8; 41,8; 42,16.18-20). Na LXX aparece esta expressão
em 1Macabeus 7,21 no sentido de “medida”, que já poderia ser vista como palavra
para “norma” ou “regra”. No segundo século, a palavra tem sentido de norma e ou
critério da fé. O adjetivo canônico foi usado pela primeira vez referindo-se aos livros
bíblicos no Concílio de Laodiceia (360) e na carta pascoal de Atanásio, em 367. A
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28/02/2022 14:00 Aulas.

palavra cânon em sentido de catálogo de livros bíblicos reconhecidos começa a ser


usada na Igreja Latina pelos meados do século IV[11]. Neste sentido, a
palavra cânon, aplicada à Bíblia, tem um primeiro significado de norma de fé e de
vida para os fiéis. Ela é ativamente normatividade, que é sua qualidade de ser
norma, regra, cânon da fé e da vida do cristão. Assim, os livros canônicos da Bíblia
são a coleção do Antigo Testamento e o Novo Testamento, os quais foram
determinados de formas diferentes, em intervalos de tempo e, por vezes, ganhando
novos contornos de acordo com a localidade das comunidades judaicas e cristãs.

Aqui temos um ponto importante. Não é preciso/correto dizer que a Igreja, ou


alguma instituição judaica, determinou deliberadamente a lista dos livros, mas eles
já eram tratados, em níveis e variações diferentes, pelas comunidades como regra e
norma de fé. HOUVE UM RECONHECIMENTO E NÃO DETERMINAÇÃO. Por isso, em
alguns momentos, alguns livros gozavam de valor normativo e, por vezes, perdiam
este status. Por conta disso, podemos falar de um processo de fixação do cânon.

Critérios para canonização

Precisamos tomar cuidado com esta expressão, porque pode parecer que houve um
tipo de reunião institucional ou conjunto pré-estabelecido de proposições através das
quais os livros passariam, como uma peneira, pela avaliação de válidos ou não. Estes
critérios são indícios que se desenvolveram na história da permanência de certos
livros que foram dando a eles peso de norma. As obras eram usadas,
tradicionalmente aceitáveis, o que gerou seu reconhecimento, não como simples
manipulação, o qual possibilitou o recorte.

Mas como estes livros foram separados? Quais foram os critérios? Levando em
consideração o que já falamos sobre “critérios”, podemos indicar como fundamental
critério a identidade entre a fé vivida pela comunidade e a fé que se expressa no
livro. Esse é conhecido como regula fidei. Inclusive, esse critério pode representar a
localidade do cânon, que era utilizado por comunidades cristãs de regiões
específicas.

Os livros que eram usados durante muito tempo (por isso a importância da
antiguidade da obra) e em muitas comunidades locais (caráter universal, aceitação
coletiva) tratados como Palavra de Deus ou venerável, foram ganhando autoridade.
O que percebemos com a Torá, nas comunidades judaicas, e com as cartas paulinas,
nas comunidades cristãs. Contudo, alguns livros eram usados por algumas
comunidades, os quais eram vistos como duvidosos pela ortodoxia. Portanto,
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28/02/2022 14:00 Aulas.

perguntava-se sobre a continuidade destes livros com a fé vivida e sustentada.


Claro, isso é visto a partir dos que estão no centro, ou os que são
considerados ortodoxia, os quais são o lado que venceu mais tarde nos concílios. Por
isso encontramos livros lidos e representativos de outros cristianismos considerados
heréticos pelos vencedores da história; um exemplo são os livros do cristianismo
gnóstico.

O outro indício se estabelece a partir deste que citamos. O escrito em avaliação


deveria ser coerente em relação aos demais escritos, que desde algum tempo já
havia ganhado peso de “sagrado” ou importante, como é o caso da Torá para o
judaísmo, contra o qual nenhum livro poderia estar em contradição. Neste sentido,
a tradição era um sério critério para aceitação como canônico, pois o livro deveria
ter servido como norma de fé e conduta por algum tempo e na maioria das
comunidades, o que lhe dava peso de tradicional e universal. Assim, fala-se em
catolicidade (livros aceitos pelas comunidades) e tradição (historicamente presente e
útil). Por isso, os livros mais recentes ou os que eram importantes para alguns
poucos grupos foram desconsiderados.

A questão do autor era parte destes critérios, porque alguns livros tinham autoria
não real, mas tradicional ou ficcional como o Evangelho de Maria Madalena ou
Testamento de Abraão. O autor, pelo que parece, desempenhou maior importância
no judaísmo do que no cristianismo. O critério de inspiração divina se aplica mais ao
judaísmo, que percebia o Pentateuco vindo de Deus, os proféticos como oráculos
diretos de Javé etc. No NT alguns já eram vistos como Escrituras (Mc 9,12; Lc 4,21;
At 8,32; Rm 4,3 etc.). Mesmo que tenhamos diferenças no NT entre a teologia de
Mateus e Paulo, das cartas Petrinas e o Apocalipse, ambos são considerados
ortodoxos, porque refletem o Evangelho.

Dica: Leia o artigo: https://digitalis-


dsp.uc.pt/bitstream/10316.2/33016/1/Cadmo22_artigo13.pdf?ln=zh-hans

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28/02/2022 14:00 Aulas.

[11] ARTOLA, J. M. S. ; CARO, A. M. A bíblia e a palavra de Deus. São Paulo:


Editora Ave-Maria, 2011, p. 55.

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28/02/2022 14:00 Aulas.

Aula 12 - A história do Cânon: Bíblia Hebraica

Objetivo: Apresentar a história da formação do cânon da Bíblia Hebraica. Discutir


as questões da organização dos livros.

Introdução

Olá! Depois de compreendermos melhor o conceito de cânon, discutir seus critérios e


apresentar suas mudanças, concluímos que a separação dos livros considerados
inspirados ou aptos à instruir, tanto da tradição judaica como cristã, é resultado de
longo processo de uso e acumulo de status de normatividade nas comunidades. De
maneira didática, precisamos nestas próximas aulas descrever e avaliar, na medida
do possível, os caminhos pelos quais os livros foram se cristalizando na lista do
cânon. Contudo, como já temos mostrado em algumas lições, a Bíblia Hebraica, o AT
para os cristãos, é uma referência de livros aceitos. Em outros ambientes, como no
judaísmo helenista, em Qumran, na tradição católica romana e outros, a lista tem
algumas modificações. No entanto, focar-naos-emos no AT e apresentaremos a
história de sua formação e reconhecimento.

A TaNak
O cânon judaico de Escrituras ou Bíblia,
“Antigo Testamento” para os cristãos, e
formado por três partes: Torah
(Lei), Nebiim (profetas) e Ketubiim
(Escritos), por isso o acróstico TaNaK.
A Torah é conhecida como Pentateuco
(cinco rolos). Os profetas são divididos
em duas partes (anteriores e
posteriores). Os anteriores, na
organização seguida pelos
protestantes, são conhecidos como livros históricos. Diferentemente do cânon
protestante, não há dois livros de Reis, Samuel ou Crônicas. Eles eram, na versão
hebraica, um rolo cada. Foi na tradução grega, Septuaginta, que estão divididos.
Essa divisão é seguida pela Vulgata e pelas traduções protestantes. Em relação à
terceira parte da TaNaK, os Escritos, esses são os outros livros em geral. Inclusive,
Daniel não está entre os profetas, mas nessa terceira parte.

Em Eclesiático, no prólogo do tradutor, sec. II a.C, já encontramos indicações da


existência de uma Bíblia com essa divisão tripla (Eclo 1,1.8). Na mesma obra, Eclo
49.10, cita-se “aos doze profetas”, revelando que este bloco da Bíblia Hebraica já
estava estruturado desta forma. Contudo, não é possível sabermos se nos blocos, na
época dessa indicação, já estavam todos os livros que hoje compõem a Bíblia
Hebraica. Talvez não, porque em Qumran, perto do Mar Morto, onde foram
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encontrados rolos de livros judaicos, não se achou o livro de Ester. Entre esses
manuscritos, inclusive, está a Carta Haláquica (4QMMT), onde encontramos o
testemunho mais antigo do cânon, pois se refere ao livro de Moisés, Profetas e Davi.
No Novo Testamento, no séc. I d.C, havia o reconhecimento de dois grandes blocos:
“Leis e os Profetas” (Lc 16,29; Mt 24,24.27; 7.12).

A ordem na qual se encontram estes blocos da Bíblia Hebraica não corresponde à


ordem de sua composição, mas da aceitação como normativa. Algumas partes da
Torah, por exemplo, formas compostas depois da existência de várias partes dos
profetas. Esta organização reflete a primazia da Lei. Outra razão desta ordem é a
questão literária. Ou seja, estão agrupados segundo os tipos de literatura e não da
data de composição.

A história da cristalização dos livros da Bíblia Hebraica

O indício para o reconhecimento ou aceitação de que certos pronunciamentos e leis


eram divinas já está presente em expressões do tipo “Javé disse a Moisés” (Ex
24,12; 31,18; 34,28) e em sua expressão de normatividade como na reforma de
Josias (2Rs 22ss), que fala de um “livro que foi encontrado”, o qual provavelmente
seja uma parte central do Deuteronômio.

Mesmo que os oráculos proféticos fossem recebidos como voz de Javé, o processo de
estabelecimento do cânon da Bíblia Hebraica tem na Torah seu início. Essa é a razão
do questionamento da aceitação de partes do AT por alguns rabinos, porque não
estavam em sintonia com os cinco primeiros livros, como é o caso de Ezequiel 40-48,
Eclesiastes e Provérbios.

Sobre os cinco primeiros livros, a formação do Pentateuco é alvo de muitos estudos,


o que denuncia a forma de cinco livros (Gn-Dt) e a síntese histórica de muitos anos
de desenvolvimento de tradições e agrupamento de livros. Há partes que são do
período pré-exílio, mas sua forma final somente surgiu no pós-exílio. Alguns
pesquisadores falavam em Hexateuco, no qual se incluiria o livro de Josué aos cinco
primeiros, pois significaria a conclusão da caminhada do deserto. Outros falam de
um originário Tetrateuco, no qual faltava o livro do Dt, que deveria ser tratado como
um livro autônomo, diferente dos outros quatro (cf. Dt 5 e Ex 20) e que era a
introdução e inspiração para o bloco conhecido como Obra Histórica Deuteronomista
(é o conjunto de livros de Js a 2Rs).

Provavelmente, no final do séc. V e início do séc. IV a.C a Torah já estava fechada.


No período de Esdras temos o indício da força desta obra como Escritura normativa.
O autor de Crônicas, no séc. IV, conheceu este bloco como normativo. Assim, a Torah
possuiu um valor normativo desde este tempo e serviu como fonte para avaliação
das demais partes e livros.

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Os livros proféticos também passaram por longo processo de estabilização em textos


escritos (em sua maioria tiveram existência em ditos orais), releituras, acréscimos e
organização em blocos. Como já citamos, os livros considerados proféticos são
divididos em dois grupos (anteriores e posteriores). O primeiro grupo é considerado
pela Septuaginta, ideia seguida pelos cristãos, como históricos. Na Bíblia Hebraica
são proféticos por terem presença clara de figuras proféticas e possuírem caráter
profético.

Nos últimos anos, falou-se na academia de uma obra escrita em três ou pelo menos
duas fases, que tem como fundo o livro de Dt: Obra Histórica Deuteronomista (Js,
Sm e Rs). Por isso, acredita-se que o Dt foi inserido em Gn-Nm posteriormente,
separando a Torah e os profetas anteriores. A OHDtr recebeu acréscimos até o pós-
exílio, quando foi finalizada e incluída na coleção dos Nebiim. Os profetas
posteriores também passaram por longo processo de redação, desde os oráculos de
seus porta-vozes, a catalogação de folhetos menores, acréscimos posteriores e
formação dos livros em forma final. Daniel encontra-se entre os profetas somente na
LXX e na Vulgata, pois na Bíblia Hebraica está entre os Escritos. Jonas está entre os
doze porque serviu para completar a cifra 12. Os Nebiim, a partir de 200 a.C, tempo
em que esses textos não recebem mais retorques, vão ganhando caráter de
aceitação e normatividade. Contudo, sabemos que livros como Ez ainda eram aceitos
com reservas, o que é mais comum aos Escritos.

Os Escritos tem história mais complexa. Seu fechamento somente acontece no


primeiro ou segundo século depois de Cristo. As afirmações dos Escritos como parte
do grupo dos livros judaicos autorizados, como aparece em Eclesiástico e outros
textos, não comprova a existência deste bloco como o temos hoje. Entre os rabinos
se discutia a santidade de Coélete (Eclesiastes) ou o valor de Ester. Ao mesmo
tempo, estavam circulando e sendo lidos por comunidades judaicas os livros de
caráter revelatório e misteriosos, como 1 Enoque, Jubileus e outros textos
apocalípticos. O livro dos Salmos mostra-se como exemplo desta longa história
destes que formam “escritos”. Ele é formado por cinco coleções que sobreviviam
separadamente até se tornarem uma obra só.

Contudo, devemos tomar cuidado para não entendermos, depois desta exposição,
que estas coleções foram sendo sucedidas linearmente. Pelo contrário, as coleções
paralelas circulavam e alguns dos que depois seriam inseridas entre os Escritos,
eram contados entre os profetas, como é o caso dos Salmos de Davi, até que os
livros narrativos desta terceira parte foram dispostos em ordem cronológica, os livros
atribuídos a Salomão são colocados juntos e os maiores no início do conjunto, tendo
o livro de Crônicas no final.

Por fim, o uso da Septuaginta e dos textos apocalípticos pelos cristãos e a


radicalidade destes últimos, influenciou o fechamento do cânon judaico rabínico.

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A enumeração mais antiga que reconhecemos de escritos judaicos com peso


canônico, mesmo que se fale de coleções já citadas, é a de Flavio Josefo, em 95 d.C,
quando cita 22 livros, na sua obra Contra Apião . Anos mais tarde, em 2Esdras
14,44s, fala-se de 24 livros. Nos textos de Josefo, Rute e Juízes formam uma só
obra, assim como Jeremias e Lamentações.

Para a história da fixação do cânon judaico, alguns citam o concílio em Jâmnia, como
se rabinos tivessem definido ou decidido ali os livros aceitos. Contudo, essa ideia
distorce um pouco a compressão do processo de canonização. Não houve uma
decisão oficial que delimitasse o cânon. Pelo contrário, havia o uso de livros
veneráveis. O enceramento do cânon judaico foi à força do uso e sua aceitação pelas
autoridades rabínicas como textos autorizados para leitura nas sinagogas e para o
ensino. No período de Jâmnia, houve, na verdade, debates a respeito de alguns
livros e se defendeu a importância de livros que ora e outra eram questionados por
alguns, como é o caso de Ct e Ecl. Contudo, afirma Trebolle, “se não se pode afirmar,
portanto, que no fim do séc. I d.C o cânon estivesse completamente fechado, sem
contestação, a corrente rabínica central considerava, todavia, o cânon bíblico
praticamente definido. Então, podemos falar que se reconheceu entre os séc. I a II
d.C os livros que já tinham peso de Escritura, mesmo que alguns fossem
questionáveis. Contudo, mesmo Rt ou Ct (alvos de algumas dúvidas) foram
preservados nas listas posteriores.

Em síntese:
1. Os livros e suas coleções surgiram em longo tempo histórico;
2. Seu reconhecimento e uso foram dando aos textos valor canônico;
3. Algumas listas foram surgindo, as quais discutidas (não definidas) em lugares
como Jamnia;
4. E entre o I e II séc. d.C já havia a afirmação dos livros considerados canônicos e a
lista da TaNaK.

Veja o vídeo sobre “Introdução ao AT” de José Luis Sicre:


Vídeo disponível no AVA
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Aula 13 - A História do Cânon do Novo Testamento I

Objetivo: Iniciar a discussão a respeito do cânon do NT. Apresentar o processo de


formação dos textos e do cânon.

Introdução

Olá, como podemos compreender a formação da lista do NT? Uma coisa está clara
para nós até aqui: as listas dos livros considerados canônicas nos concílios foram
formadas em longos períodos e sob a tensão de muitas discussões. Esta afirmação
nos reporta a duas coisas: 1) não tivemos apenas uma e definitiva lista de livros
canônicos do NT, como, também, percebe-se na tradição judaica; 2) para a formação
do conjunto dos livros que se tornaram o Novo Testamento, concílios foram reunidos
e determinaram a aceitação dos livros, como aconteceu no Séc. IV.

Como chegamos à lista que hoje usamos como Novo Testamento? Qual era a Bíblia
usada pelos cristãos das origens? Estas questões nortearão nossa aula.

Cânon judaico e o NT

O cânon cristão é de origem judaico-cristã, que chamamos de Antigo Testamento e


Novo Testamento. A expressão “Testamento” já designa uma postura teológica,
porque percebe os textos e ideias da tradição judaica como presságio, sombra ou
apontamentos para Cristo. Além disso, apresenta-se como leitura cristológica
daqueles textos, os quais além de revelarem o Cristo, representam um antigo pacto
ou maneira de relacionamento com a humanidade. Contudo, como já sabemos, no
período do NT os livros da Bíblia Hebraica não estavam totalmente fixados, mesmo
que já houvesse indícios dos aceitos como canônicos. Então, para o Cristianismo a
expressão Antigo Testamento quando se refere aos livros é algo posterior. Por isso,
podemos falar no período do NT da ideia de antiga aliança e nova aliança, aquela
pela estruturação legal e esta em Cristo. Esta, inclusive, é a mensagem que
encontramos em todo o NT. Contudo, isso não significou a eliminação do uso dos
livros judaicos pelos cristãos. Pelo contrário, quando encontramos expressões no NT
como “como dizem as Escrituras” há referencia não a textos que seriam considerados
do Novo Testamento, mas indica citação e uso de livros judaicos, inclusive de livros
que não fariam parte posteriormente da Bíblia Hebraica. Por isso, aparece no NT
citações de textos não canônicos, como na Epístola de Judas 14-15 e outros. Ainda,
a versão que se popularizou entre os cristãos foi a Septuaginta, com todos os seus
outros livros, os quais foram rejeitados pelo judaísmo rabínico oficial.

Mesmo que não houvesse um cânon judaico fixado e definitivamente fechado, os


livros, ou a maioria deles, já eram lidos como Escrituras e publicamente. Era o Antigo
Testamento, lido à luz da cristologia e da escatologia cristã, a fonte textual dos
cristãos do primeiro século e início do segundo. Com o surgimento das Cartas

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Paulinas, obras específicas para certas comunidades, algumas delas começaram ser
lidas nas reuniões públicas ao lado daqueles textos judaicos, como, também, alguns
Evangelhos. Inclusive, estes textos começaram a ganhar peso de Escritura por sua
utilização e origem apostólica.

Em 2Pd 3,15-16 são citadas as cartas escritas por Paulo, as quais eram alvo de
distorções por alguns. Isso mostra algumas coisas.

1. Havia uma coleção de Cartas Paulinas que corriam nas comunidades;


2. Eram tratadas como escrituras;
3. Eram lidas e interpretadas;
4. Estavam sendo usadas e tinham peso apostólico.

Formação do Cânon do NT: primeiras informações

Quando as cartas e os evangelhos foram escritos, não havia interesse de serem


canônicos ou coisa do tipo. Eram obras instrumentalizadas para orientação de
comunidades locais, arquivamento da vida de Jesus e instrução para a vida prática.
Inclusive, a vida oral destas tradições era mais forte do que os textos, porque muitas
coisas eram preservadas e ensinadas pela oralidade. Contudo, os textos formavam
escritos, ganhavam reprodução e circulavam. Em Cl 4,15 há uma indicação de
interesse pela circulação de cartas, pois afirma que deveriam levar a carta escrita
aos Colossenses para as igrejas de Laodicéia e, por sua vez, deveriam ler em
Colossos a carta escrita para os irmãos de Laodicéia. Não sabemos qual era essa
carta. Talvez tenha se perdido; outros acreditam que fosse a carta aos Efésios.
Independentemente destas hipóteses, o que fica evidente é a circulação de cartas
consideradas apostólicas nas comunidades cristãs, lidas ao lado das Escrituras do
Antigo Testamento.

O processo de formação do NT constitui, em termos gerais, reunião de coleções de


pequenas coleções.

As tradições de Jesus e as narrativas dos apóstolos são preservadas na oralidade e


circulam neste suporte. Hinos, liturgias, doxologias etc. são usados pelas
comunidades em seus cultos e na missão. Claro, algumas coisas já nascem escritas.
As cartas Paulinas, por exemplo, são expressões de trabalho literário. Mas, mesmo
assim, preservam indícios da utilização de tradições orais (ex. Fl 2, 6-11). Estes
textos, uma vez escritos, circulam nas comunidades de maneira autônoma e servem
às liturgias ao lado dos outros textos.

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Outra coisa que precisamos levar em consideração é que se hoje há uma lista
fechada do NT em 27 livros, nos primeiros dois séculos, ou até no terceiro, mesmo
que alguns livros já tivessem ganhado peso e eram mais utilizados, circulavam,
também, outras obras, as quais tinham valor e utilização dependendo do lugar
(Egito, Roma, Grécia etc.). Evangelhos, Atos e Apocalipses que não estão na lista
atual do NT eram também lidos e tinham, ora e outra, certa autoridade, como o
Evangelho de Pedro, Apocalipse de Paulo, Pastor de Hermas, Carta de Barnabé e
outros.

Algumas obras que hoje estão na lista do NT, mesmo depois das coleções serem
formadas, continuavam existindo independentes, como o Apocalipse de João,
Hebreus e Atos (antes de ser inserido entre os Evangelhos e a coleção de Paulo).

Com o tempo, cartas paulinas e evangelhos começaram a ser agrupados. Mesmo que
circulando independentes, dois ou mais evangelhos começaram a ser utilizados
juntos e ao mesmo tempo. Mesmo que alguns acreditem que desde Irineu a coleção
dos quatro evangelhos já estava estabelecida, é melhor a concepção de que em
meados do século II a situação fosse ainda bem fluída; em algumas igrejas se
discutia a aceitação de um ou outro evangelho que no fim não entrou no cânon.

Inclusive, houve algumas tentativas de sincronização dos


evangelhos. Taciano, Séc. II, produziu o Diatessarão , que
era uma fusão dos sinóticos em um só evangelho unificado,
uma tentativa de harmonizar as plurais narrativas. No
tempo de Justino, em meados do séc. II, há diversos
evangelhos, conhecidos como “memórias” dos Apóstolos.

As coleções Paulinas também passaram por fluídas formas.


No final do século II, todas as igrejas cristãs conheciam e
utilizavam na liturgia e no ensino a coleção das cartas
paulinas, mas com variações de composição. A redação de algumas cartas paulinas,
a composição de alguns escritos atribuídos a ele, e a reunião de seu legado literário,
foi realização de uma escola paulina, formada por admiradores da história e da obra
do apóstolo. O corpus paulino possuía pelo menos dois grupos. O primeiro com sete
cartas e o segundo, acrescentado àquele, com as pastorais. Contudo, havia em
diversos lugares coleções com diferentes obras paulinas. O primeiro com 1 e 2Co, Gl,
Fl, 1Ts e 2Ts e Rm. O livro de Atos serviu de link entre as coleções dos Evangelhos e
as Cartas Paulinas. A coleção das Cartas Gerais teve difusão restrita somente em
zonas determinadas. As cartas de 1Pd e 1Jo gozaram de grande difusão no séc. II. O
Apocalipse era muito difundido no Ocidente, mas pouco no Oriente, enquanto
Hebreus é pouco conhecido no Ocidente e bem aceito no Oriente. No fim do séc. II,
os quatro Evangelhos, as cartas paulinas, 1Pedro e 1João gozavam de
reconhecimento geral. Contudo, houve ainda muitas disputas até chegar à lista
final.

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Depois, a igreja e seus concílios organizaram as listas canônicas e a lista final que
hoje utilizamos como NT. Na próxima aula continuaremos discutindo esse assunto e
apresentaremos uma síntese dos critérios para exclusão e aceitação dos livros.

Dica: leia a resenha de Pedro Lima Vasconcelos ao texto de Paulo Nogueira:


"Experiência religiosa e crítica social no cristianismo primitivo".

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Aula 14 - A História do Cânon do Novo Testamento II

Objetivo: Continuar a apresentação da histórica da formação do cânon do NT.


Discutir os critérios para canonização. Refletir teologicamente a história do cânon.

Introdução

Como já observamos na aula anterior, ao lado das obras judaicas, foram sendo
usadas as Cartas Paulinas e Evangelhos. No caso das Cartas Paulinas, elas foram
reunidas e copiadas por comunidades que as aceitavam como valiosas ao
Cristianismo em geral. Isso pode ser confirmado, por exemplo, quando o estilo e as
primeiras Cartas de Paulo começaram a ser copiados e imitados, como vemos nas
Cartas Deuteropaulinas (Cl, Ef, 2Ts, 1-2Tm, Tt).

O processo de separação destas obras pode ser traçado como produção, utilização de
primeira instância, utilização litúrgica, uso, formalizações e formalização final.
Primeiramente, o texto é escrito pelo apóstolo ou comunidades, depois é recebido e
utilizado pelos destinatários, ganha peso de circulação litúrgica, uso para outros
textos e é copiado, torna-se parte de coleções que possuem lugar especial nas
comunidades e, por fim, são canonizados por concílios.

Vamos nos deter, agora, nessas variações e oficialização da canônica.

A separação dos livros e aceitação conciliar

Com a circulação de muitos textos e pequenas coleções de escritos cristãos, surge a


necessidade de criar fronteiras canônicas. No decorrer dos séculos II e IV, listas são
propostas e há variações. Dessa forma, a necessidade da fixação da identidade
cristã forçou as tentativas de definição daqueles que poderiam expor aquilo que era
o corpo literário do Cristianismo. Sobre esse assunto, podemos, inclusive, dizer que o
NT é resultado da construção da identidade cristã, porque revela as ideias e visão de
mundo que se tornaram centro da sua fé. Além disso, o surgimento de grupos
cristãos diversos – como os gnósticos e montanistas, os quais possuíam corpus
literários particulares e usavam livros com suposta autoridade apostólica –
fortaleceu a necessidade de reunir textos reconhecivelmente válidos. No segundo
século, por sua vez, é um período da cristalização da tradição oral em textos, o que,
inclusive, fortalece o caminho para se estabelecer limites entre os grupos
considerados sectários.

Como temos sublinhado, para formação do cânon e sua afirmação conciliar há um


longo caminho, com circunstâncias históricas e reflexões teológicas sobre as
Escrituras.

Na primeira fase deste processo, até metade do séc. II, os textos da tradição oral se
tornam texto, estes começam a ser usados ao lado dos textos judaicos, os quais
eram a única fonte textual dos cristãos durante alguns anos, sempre em chave
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interpretativa cristã. Possivelmente, no início não havia interesse por um corpus de


textos exclusivo do Cristianismo. Os livros eram de propriedade local. No fim do
primeiro e, especialmente no segundo século, algumas obras parecem circular e dar
origem a outros textos. Os Evangelhos são escritos e as Cartas Paulinas circulam em
algum nível. Até 150 d.C já há outros Evangelhos (Evangelho de Tomé, Evangelho de
Pedro, Evangelho dos Hebreus). Já encontramos coleções Paulinas, preservadas e
utilizadas pela “Escola Paulina”.

Antes disso, em 96-97 d.C, Clemente de Roma escreve


aos Coríntios e parece reconhecer algumas Cartas
Paulinas (Rm e 1Co). Neste momento já começa ser
aceita a categoria “sucessão apostólica”, ponto
importante para a canonização, pois os textos seriam em
sua maioria aceitos por esta relação tradicional.
Policarpo, por exemplo, por volta de 130, como
testemunha Eusébio de Cesareia em sua História
Eclesiástica, fala de Marcos a respeito de sua relação
com Pedro, de quem recolheu sua catequese em Roma para escrita do seu
Evangelho. Ainda neste período do segundo século, encontramos a Epistula
Apotolorum (140-150), que parece conhecer os evangelhos sinóticos (Mt, Mc, Lc),
Jo, At e Tg, mas ainda não representa um cânon fixo do NT.

Na segunda metade do século II, o cânon ainda está em variável e sem definição.
Pelo contrário, se por um lado surge a necessidade da fixação de uma lista; por
outro, geram-se várias tentativas. A tradição oral fica sob suspeita e incontrolável.
Em cerca de 150-160, Justino Mártir atribui aos Evangelhos valor apostólico, e cita
textos de Mt com a clássica formula “está escrito”, o que era comum para os textos
do judaísmo e “no evangelho está escrito”, dando a estas obras cristãs o valor de
Escritura.

Um momento muito importante na trajetória da fixação do cânon e da consciência de


sua necessidade é a obra de Marcião, que em cerca de 140 elabora e propõe o
primeiro cânon Neotestamentário conhecido. Esse cânon reflete sua teologia, que
afirmava a diferença entre o Deus do AT e o Pai de Jesus Cristo, o que o leva a
eliminar qualquer presença de judaísmo no cânon. Por isso, a lista de Marcião retira
todo o Antigo Testamento e aceita somente 10 Cartas Paulinas e o Evangelho de
Lucas. Não precisamos tratar este fato como determinante para a formação do
cânon, mas uma tentativa de fixação da lista.

Outros dois documentos valiosos para este assunto no final do segundo século são os
escritos de Irineu, bispo de Lyon, e a lista canônica conhecida como fragmento
Muratoriano ou Cânone Muratori. Irineu defende a canonicidade dos quatro
Evangelhos e defendeu teologicamente o número quatro. Ele cita e confirma At como
canônico, reconhece e valoriza as Cartas Paulinas, inclusive as pastorais, aceita como

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Escritura Ap, 1Pd e 1Jo. Irineu é reconhecidamente o primeiro a fazer discussões


teológicas a respeito do cânon. O fragmento Muratoriano é uma lista em latim, bem
fragmentada, talvez de Roma, onde encontramos uma lista de livros com alguns
comentários. Nessa obra há uma defesa a Jo, reconhece como canônico At e as
Cartas Paulinas (com as pastorais), aceita o Ap, 1-2 Jo e Judas. Contudo, faltam-lhe
Hb, Tg, 2Pd e 3Jo.

O fim do segundo século foi decisivo para fixação do cânon cristão.

Clemente de Alexandria (150-215) aceitava uma lista bem


mais flexível que conhecemos. Ele valorizava os quatro
Evangelhos canônicos, as Cartas Paulinas, At, Ap, Hb e
algumas cartas gerais. Porém, ele também utilizava como de
origem apostólica a Carta de Barnabé e a 1 Carta de
Clemente; além de citar o Evangelho dos Hebreus e o
Evangelho dos Egípcios. Da mesma forma, ele reconhecia
como inspirada a obra Pastor de Hermas . No séc. III, o
Orígenes, um dos grandes pais da igreja, enquanto viveu em
Alexandria, parece ter reconhecido valor canônico na Didaqué , Pastor de Hermas e à
Carta de Barnabé.

Havia muita disputa entre as regiões e suas respectivas listas e usos dos livros. Os
Evangelhos e as Cartas Paulinas eram um núcleo bem sólido, mas outros textos e
evangelhos eram, ora e outra, avaliados como importantes e até canônicos. Eusébio
de Cesaréia, em sua História Eclesiástica , resume a situação até 325 classificando os
livros em três classes: reconhecidos ou aceitos (homologoumenoi), discutidos
(antilegómenoi ) e heréticos. Entre os aceitos ou reconhecidos pelas Igrejas em geral
como Escritura estão os quatro Evangelhos, At, as Cartas Paulinas (com Hebreus),
1Jo, 1Pd e, com reservas, Ap. Entre os discutidos encontravam-se Tg, Jd, 2Pd, 2 e 3
Jo, e também, Atos de Paulo, Pastor de Hermas, Apocalipse de Paulo, Carta de
Barnabé, Didaqué e Apocalipse de João.

Somente na metade do IV aparecem tentativas de caráter definitivo para o cânon do


NT. Um documento importante foi a Carta Pascal 39 de Atanásio de Alexandria,
escrita na páscoa, em 367, porque lista (além da TaNaK, com alguns livros que
estavam na LXX) os 27 livros que seriam aceitos nos concílios e se tornariam as
obras reconhecidas como NT.

Vamos ler aqui o estrato de sua carta:

“Há, então, do Velho Testamento, 22 livros em número, pois, como


tenho ouvido, é transmitido que este é o número de letras entre os
hebreus, sua ordem e nomes respectivamente, são da seguinte forma:
O primeiro é Gênesis, em seguida Êxodo, próximo Levítico, depois
Números, e em seguida Deuteronômio. Seguindo estes há Josué o filho

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de Num, em seguida Juízes, e Rute. E novamente depois destes os 4


livros dos Reis, o primeiro e o segundo reconhecidos como um livro, e
da mesma forma terceiro e quarto como um livro. E novamente, o
primeiro e segundo Crônicas são reconhecidos como um livro.
Novamente Esdras, primeiro e segundo são similarmente 1 livro. Depois
destes há os livros dos Salmos, depois os provérbios, depois
Eclesiastes, e o Cântico dos Cânticos. Depois Jó e então os profetas, os
12 profetas [profetas menores] sendo reconhecidos como um livro. Em
seguida Isaías, um livro, então Jeremias com Baruc, lamentações e a
Epístola, um livro; adiante Ezequiel e Daniel, cada um, um livro. Assim
se constitui o Antigo Testamento.”

Novamente, não é tedioso falar dos [livros] do Novo Testamento. Estes


são os quatro Evangelhos, segundo Mateus, Marcos, Lucas e João.
Depois, os Atos dos Apóstolos e as sete epístolas (chamadas católicas),
um de Tiago, de Pedro, duas; de João, três; depois destas, uma de
Judas. Além disso, há quatorze Epístolas de Paulo, escrito nessa ordem.
A primeira, aos Romanos, em seguida, duas aos Coríntios, após estas,
aos Gálatas; seguinte, aos Efésios, em seguida, aos Filipenses, em
seguida, aos Colossenses, depois destas, duas aos Tessalonicenses, e
aquela aos hebreus; e, novamente, duas a Timóteo, uma a Tito e,
finalmente, aquela à Filemon. E, além disso, o Apocalipse de João.[...].

Mas, para maior exatidão, acrescento também, escrevendo de


necessidade; que há outros livros, além desses, de fato não incluídos
no Cânon, mas nomeados pelos Pais para serem lidos por aqueles que
recentemente se juntaram a nós, e que desejam instrução na palavra
de piedade. A Sabedoria de Salomão, a Sabedoria de Sirac, Ester, Judite
e Tobias, e aquela que é chamada o Ensinamento dos Apóstolos e o
Pastor. Mas os primeiros, amados, são incluídos no Cânone, os outros
para leitura, não há em nenhum lugar uma menção de escritos
apócrifos[12] .

Percebe-se aqui, mesmo que em ordem diferente, a lista que se cristalizaria como
NT. No entanto, ele ainda admite alguns livros não canônicos para instrução e cita
textos da LXX para o cânon cristão do AT.
A primeira resolução conciliar para fixação do cânon foi no Oriente, no sínodo de
Laodicéia, em 363, quando são enumerados 26 livros canônicos, faltando o
Apocalipse de João. Este depois é reaberto, por conta da carta de Atanásio, e insere-
se o Apocalipse. No Ocidente, o mesmo cânon foi fixado nos concílios de Hipona
(393) e de Cartago (397), e foi reafirmado pelo papa Inocêncio I no ano de 405.

Critérios para canonização

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O processo para canonização foi longo e complexo. Talvez, o principal indício seja sua
relação direta com os apóstolos. Contudo, explícita e implicitamente, foram levadas
em consideração para determinar a canonicidade dos escritos as seguintes
características:
- Origem apostólica: deveriam ser compostos por apóstolos ou por alguém
próximo que garantisse fidelidade à tradição apostólica. Esse critério também era
temporal, porque eliminava da lista textos considerados posteriores.

- Regula fidei : os textos deveriam ter continuidade e conformidade com a fé da


Igreja. Com outras palavras, os escritos deveriam testemunhar a fé transmitida
pelos apóstolos e serem coerentes com ela. Nesse sentido, o cânon reflete a fé
das comunidades e não o contrário.

- Aceitação e uso universal: os escritos em questão, para serem reconhecidos


como canônicos, deveriam ser aceitos e usados pela maioria das comunidades, os
quais eram até lidos em reuniões litúrgicas, o que dava segurança de sua origem.
Por isso, obras de caráter sectário, acessadas por grupos pequenos e
“misteriosos” foram descartadas.

A combinação de critérios históricos e teológicos não tinha aplicação igual em cada


caso. Além disso, ainda em poucos lugares e grupos mais sectários, essa lista não
era levada totalmente a sério.

Em síntese, percebemos aqui que os concílios não simplesmente determinaram os


livros a serem canonizados, mas refletem o uso das comunidades. Alguns como
Pastor de Hermas e Carta de Barnabé, por exemplo, quase entraram; por sua vez,
Ap de João e Hebreus, o contrário.

Avaliação Teológica do Cânon

“A história do cânon é a história da busca da fidelidade à Revelação” (Eduardo


Arens). O NT é o testemunho mais antigo e considerado fidedigno da revelação de
Deus na História. Como o AT, ele é resultado da fé de comunidades e não o contrário.
Não é o “papel”, as linhas, simplesmente que nos importam, mas a revelação da
ação de Deus no mundo. Especificamente, o NT é onde encontramos a revelação
direta da Palavra encarnada, Jesus. Como diz W. G. Kümmel, o cânon físico é parte
do desenvolvimento da Igreja, cuja função como tal é possibilitar o acesso do crente
ao anúncio originário do Evangelho. Portanto, a autoridade não está no conjunto dos
livros canônicos em si. Se fossem assim, a autoridade das Escrituras derivaria de
uma mera decisão eclesial. Por isso, a autoridade destes textos está em ser
derivação da autêntica pregação de Cristo, a qual precisa ser descoberta nos textos,
pois neles está veiculada. Por isso, alguns até falam do cânon dentro do cânon.

Coube a igreja, guiada pelo Espírito Santo, o mesmo que tornou possível a existência
dos textos, na figura das comunidades, a preservação dessas que seriam as obras da
revelação.

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28/02/2022 14:00 Aulas.

Para uma exposição da importância da literatura apócrifa e pseudepígrafa, veja


esta aula proferida na Webnar 05:
Vídeo disponível no AVA

[12] Disponível em: <http://www.newadvent.org/fathers/2806039.htm > . Acesso


em: 14 jan. 2017.

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28/02/2022 14:00 Aulas.

Aula 15 - A autoria dos textos bíblicos

Objetivo: Discutir o conceito de autor para o estudo da Bíblia. Apresentar as


diferenças entre autoria na Bíblia e na perspectiva moderna. Analisar a questão
entre autoria e valor do texto bíblico.

Introdução

Olá! Talvez você se pergunte: “qual a razão de estudarmos a questão de autoria? Os


livros já não dizem quem são os autores?”. Eu responderia rapidamente: “não”. E
aprofundaria a questão dizendo que a autoria dos textos bíblicos é assunto de muitas
discussões e divisões entre os biblistas. A ala mais conservadora, mesmo que
defenda a autoria da tradição, em alguns pontos acabam se divergindo, como no
caso das epístolas pastorais. Por sua vez, o grupo dos biblistas mais críticos também
acabam se dividindo em relação a alguns textos, como, por exemplo, a carta aos
Efésios ou Filipenses.

Antes de qualquer coisa, o que significa ser o autor de um texto? Na perspectiva do


senso comum, o autor é aquele que com uma pena ou caneta escreve uma obra e
coloca seu título. Para nosso tempo, inclusive, a falsidade ideológica, o plágio ou uso
não identificado de fontes são tratados como crime. Por isso, para alguns, ao
saberem que os autores indicados pela tradição não correspondem ao que se
percebe no próprio texto ou pelas pesquisas, sentem-se escandalizados. Vamos por
partes. Primeiro precisamos entender o que seria autor na perspectiva da formação
da Bíblia e no Mundo Antigo. Isso vai redirecionar nossa pergunta pela autoria dos
textos.

O autor nos textos bíblicos

Para começo de conversa, a maioria dos textos bíblicos é anônima. Ou seja, não há
uma indicação interna no texto para seu autor. Nos livros da Torá, por exemplo,
encontramos Moisés como receptor e anunciador das leis, mas não é dito ser ele o
autor do livro de Êxodo, por exemplo. Além disso, em Gênesis, por sua vez, Moisés
ainda não é protagonista. Quando encontramos no NT a indicação de Moisés como
autor, só é prova de que a tradição colocou em Moisés a responsabilidade de autoria.
O mesmo podemos dizer de Josué, Samuel, Rute, Neemias etc. Estes são
personagens muito importantes nos livros que carregam seu nome. Por isso,
tornaram-se, na tradição, seus autores. Somente algumas cartas de Paulo, Tiago,
mesmo que não se identifique com total certeza, indicam seus autores. Contudo, até
mesmo estas precisam ser avaliadas, como mostraremos. A mesma coisa
encontramos no NT, porque textos como o Evangelho de Marcos, Lucas ou João
recebem esta autoria em seus títulos, mas isso foi orientação da tradição e não

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indicação do próprio texto. Pelo que parece, a preocupação por autoria não era a
mesma que possuímos hoje em dia. Mas isso não seria diferente, porque estamos
lidando com contextos diferentes.

Em termos conceituais, e à luz do processo de formação dos textos


bíblicos, quem seria o autor?
Ora, sabemos que os textos bíblicos até sua forma final passaram por um
processo muito complexo de produção. Temos alguns que originalmente
eram tradições orais que foram catalogadas e redigidas em uma obra
maior. "Autor" seriam aqueles que preservaram o texto em sua forma
oral ou o redator final do texto?

Ainda a respeito dessa discussão, as epístolas Paulinas, mesmo que saiam da pena
de Paulo, preservam, em vários lugares, hinos ou tradições orais das comunidades
cristãs. O caso dos profetas é ainda mais emblemático. Muitos textos que hoje estão
inseridos em quadros temporais e locais (cf. Ag 1.1; 2.1) são trabalhos de redatores,
seus discípulos (?), os quais preservaram e escreveram os anúncios pré-existentes
em oralidade. Outra prática muito comum é a ajuda de um escriba, o amanuense,
que escrevia o que o autor ditava. Em Rm 16,21 fala-se de Tércio, que escrevia o
que Paulo ditava. Este poderia, simplesmente, escrever como, também, parafrasear
ou inserir coisas. Então, de quem falamos quando dizemos “o autor”?

Há nos textos bíblicos os redatores, os quais são os


organizadores e sistematizadores das tradições que lhes
precederam. Por exemplo, encontramos nos Evangelhos de
Mateus e Lucas parábolas e passagens que contam a mesma
história, mas em contextos de personagens não paralelos, em
ambientes diferentes (confira a oração do Pai Nosso em Lc e
Mt) e em programas redacionais diferentes. A própria narrativa
dos evangelistas não são idênticas. Isso é possível porque os
redatores organizaram seus textos com perspectivas teológicas e intenções
diferentes. O redator não é o “autor” dessas composições originais, mesmo que
tenha seus toques finais. Esta questão já é bem presente nas pesquisas a respeito
da composição do Pentateuco, o qual foi visto por algum tempo como resultado da
junção de 4 fontes (Eloísta, Javista, Sacerdotal e Deuteronomista). Mais tarde, as
pesquisas migraram para a origem em perícopes ou ciclos de narrativas, os quais,
segundo alguns pesquisadores, foram mais tarde redigidos. O mesmo pode ser dito a
respeito do livro de Provérbios, cuja forma final é a junção do saber popular e
proposições vividas na cultura israelita.

Esses textos, por sua vez, passam depois de escritos por acréscimos ou ganharam
novos contornos. O livro de Isaías, por exemplo, tem três estágios de composição. O
primeiro, conhecido como Proto-Isaías, tem algumas profecias do próprio Isaías e

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outras de sua escola e pertence ao período pré-exílico. O Deutero-Isaías, que seria


os capítulos 40-55, foi escrito no exílio e já é uma releitura das tradições do livro que
lhe precede. Por fim, sua terceira parte, o Trito-Isaías (56-66), é do pós-exílio. Isso
mostra que muitas mãos estiveram na composição do livro de Isaías, o que acontece
em muitos outros livros bíblicos. Poderíamos citar aqui, também, Zc, porque Zc 1-8 e
9-14 são duas composições diferentes. Outro fenômeno muito comum nos textos
bíblicos é a presença de glosas e inserções posteriores em textos já prontos, os quais
recebem novas informações ou correções, como é o caso de Jo 21; Mc 16,9ss; Jo
7,53-8,11 etc.

Outro dado importante é a presença de produção de textos em comunidades. Ou


seja, obras que são expressão literária das tradições comunitárias. Por isso, fala-se
da comunidade Joanina, comunidade de Mateus, comunidade exílica etc. Em alguns
casos é possível até mesmo observar a história destas através dos textos, como
acontece com o Evangelho de João, a respeito do qual pesquisadores defendem,
desde muito tempo, a presença de cinco ou três fases de redação e da própria
comunidade.

Desta maneira, a questão da autoria ganha novos ares, porque a oralidade, as


redações e as releituras tornam-se o campo conceitual que pode ser chamado de
“autor”, “autores” ou “autoras”. Além disso, os autores indicados pela tradição não é
garantia de exatidão da indicação de autoria, porque foram identificados
posteriormente. Por esta razão, dizer que Moisés não é o autor do Pentateuco não é
desvalorizar a obra ou coisa do tipo, mas, simplesmente, revela que o autor da
tradição é figura central do texto que ganhou essa origem.

Ainda na discussão sobre autoria, há o fenômeno da pseudografia ou pseudonomia.


Alguns textos recebem a indicação de autoria para certos textos, mas é indicação por
autoridade ou homenagem, prática bem comum no mundo judaico e que reaparece
no NT.

Textos pseudepígrafos

Uma questão importante a respeito desse assunto é a indicação de autoria no


próprio texto. Um fenômeno muito comum no Mundo Antigo, e bem presente na
tradição judaica, é a “pseudografia”: quando se atribui a alguém a autoria de um
texto não escrito por esse indicado. Na tradição judaica temos isso em vários
lugares. Textos atribuídos a Enoque, Judá, Abraão etc., que não foram escritos por
eles. Talvez, você logo diga que isso seja desonesto e criminoso. Não se esqueça,
estamos em outro contexto, no qual atribuir um texto a um mestre ou figura
importante era o mesmo que homenagear ou, ainda, inserir as ideias do texto em
algum conjunto de saberes, os quais tinham o indicado no texto como seu
representante. Por isso, não estamos falando em falsidade ideológica, mas expressão
de honra e localização de ideias de um texto.

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28/02/2022 14:00 Aulas.

As pastorais, por exemplo, indicam que Paulo está escrevendo a Timóteo e Tito (1Tm
1,1; 2Tm 1,1; Tt 1,1). No entanto, a linguagem, as ideias e a estrutura eclesiástica
pressupostas nas pastorais demonstram que Paulo não foi o escritor; chamamos
estas cartas de Deuteropaulinas, porque carregam o nome de Paulo, mas não foram
escritas por ele – ainda, a maneira como as pastorais tratam as mulheres é bem
diferente do que encontramos em Rm ou Gl. Por isso, é comum firmar que o trecho
de 1Co 14,26-39 foi inserido pela mesma escola que produziu as pastorais. Podemos
fazer iguais afirmações a respeito das cartas de 1 e 2 Pedro, que, provavelmente,
por conta do contexto e linguagem, não foram escritas por Pedro, o apóstolo. A
epístola aos Colossenses também se revela como pseudônima, no sentido aqui
descrito, porque provavelmente Paulo não tenha escrito este texto.

Contudo, mesmo que o livro não seja escrito pelo autor indicado no texto,
frequentemente o escritor (ou escritores) compôs sua obra com base nas tradições
provenientes de alguém importante. Por isso, eram apresentadas sob o nome de tal
personagem; ou, o autor literário, seguiu o mesmo espírito e linha de pensamento
que seu personagem ideal preservado no texto. Não se pode negar, também, que o
respaldo moral da personagem indicada garante autoridade ao documento.

Em suma, a autoria atribuída não é simplesmente uma falsificação, mas expressão


cultural e preservação de memória. Não seria diferente, uma vez que este texto foi
escrito no período em que tal prática era corriqueira.

Autoria e valor do texto

O grande escândalo dessa questão se dá pela rápida relação entre valor do texto e
autoria, como se o texto merecesse aceitação por causa daquele que o escreveu.
Como temos apresentado, até mesmo a questão do autor não é tão simples como
imaginávamos. A história da formação do texto, desde a oralidade, mostra que não
há um simples “autor”, uma figura fixa que senta e produz de uma só vez uma obra,
à luz de suas intuições e valores. Esta leitura alimenta a ideia de que inspiração é um
ato único, de uma pessoal, de uma vez só.

Desta forma, não é a autoria do texto que nos importa em si, mas seu conteúdo,
com o qual lidamos e torna-se parte da nossa experiência de fé. Consequentemente,
a Bíblia é Palavra de Deus enquanto expressão de sua revelação e não por causa de
seu autor.

"Questionar a identidade do escritor não é por em dúvida a inspiração do


autor, seja ele quem for.
A pergunta pela identidade do autor é caráter acadêmico, não matéria de
fé teológica (e menos um dogma da fé).
Afinal, de contas, é determinante para o valor de uma obra conhecer quem
foi seu autor literário ou até intelectual?
Não é mais importante o próprio conteúdo, mesmo se desconhecemos a

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28/02/2022 14:00 Aulas.

identidade de seu autêntico autor?


Julga-se o valor de uma obra por seu conteúdo, e não pela identidade de
seu autor [...].
De fato, foi seu conteúdo mais do que sua suposta autoria que constituiu
um critério importante,
quando se tratava de determinar quais livros são normativos e
‘sagrados’[...]”
(ARENS, E. A Bíblia sem Mitos , p.96)

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Aula 16 - Pseudepígrafos e Apócrifos

Objetivo: Apresentar as obras pseudepígrafas e apócrifas. Discutir a respeito dos


livros que ficaram fora do cânon.

Introdução

Aqui vamos discutir dois conceitos importantes para os estudos bíblicos. Talvez, você
já tenha ouvido a palavra “apócrifo” referindo-se a textos mentirosos, ficcionais,
fabulosos etc. Por sua vez, a palavra “pseudepígrafo” não é tão corriqueira; é
possível que você tenha lido aqui pela primeira vez. Como é comum aos conceitos,
esses também são muito escorregadios e servem mais para questões pedagógicas do
que esgotamento de suas idiossincrasias. Por isso, vamos fazer definições de
maneira que possam ser aplicadas aos estudos, ou como se faz comumente. O que
é literatura apócrifa? E pseudepígrafa? Elas são importantes? O que isso pode me
ajudar nos estudos bíblicos? Essas serão algumas questões que conduzirão nossa
caminhada na lição.

Apresentando os conceitos: Apócrifos e Pseudepígrafos

Como temos dito até aqui, tanto nos judaísmos como nos Cristianismos antigos,
além dos livros que estão inseridos hoje no cânon, foram escritos diversas outras
obras. A Bíblia Hebraica, a mesma seguida pelos protestantes, é parte de um
conjunto de outros livros que, por vezes, e para alguns grupos judaicos e cristãos,
eram tratados como importantes. Dessa forma, a canonização foi um processo longo
no qual alguns textos foram fixados como mais importantes e inspirados, por
critérios já indicados. Contudo, outro grupo perdeu ou nunca possuiu esse status. Os
livros que ficaram de fora do cânon, em termos gerais, são chamados de apócrifos.

A palavra apócrifo significa “escondido”, “oculto”, em referencia à origem secreta.


São Jerônimo empregou esta expressão para os livros ou partes de livros que não
estão na Bíblia Hebraica. A Septuaginta preservou em grego alguns textos que,
posteriormente, foram traduzidos para o Latim, a Vulgata. Esses livros que estão na
LXX e Vulgata e não estão na Bíblia Hebraica são chamados de apócrifos. Lutero, em
sua tradução, colocou-os em um apêndice, informando que não poderiam ser
comparadas às Sagradas Escrituras, que para ele seriam os livros do cânon em
hebraico. Os mesmos, são chamados pelos católicos romanos de “deuterocanônicos”
(outros canônicos). Há também os apócrifos do Novo Testamento, os quais são
literatura cristã do primeiro e terceiro séculos (evangelhos, epístolas, apocalipses
etc.) Alguns exemplos: Evangelho dos Hebreus, Evangelhos dos Egípcios, Evangelho
de Filipe, Atos de Paulo, Atos de Pedro, Apocalipse de Tomé, Apocalipse de Pedro etc.

Ainda falando dos apócrifos cristãos, foi encontrado, em Nag Hamadi, no Egito, a
partir de 1945, um grupo de textos em copta. Uma coleção de treze códices feitos de
papiros e cobertos com couro, os quais recebeu dos especialistas o nome de
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Biblioteca Copta de Nag Hammadi. Ela abrange textos teológicos e filosóficos, a


maioria deles cristã, e boa parte deles gnósticos. Entre os textos encontrados
podemos citar alguns: Apócrifo de Tiago, O Evangelho da Verdade, Tratado Sobre a
Ressurreição, Evangelho de Tomé, Hipóstases dos Arcontes, Diálogo do Salvador
etc.

Leia o artigo a seguir a respeito da Biblioteca de Nag Hammadi:


A BIBLIOTECA COPTA DE NAG HAMMADI UMA HISTORIA DA PESQUISA

A palavra “apócrifo” é muito geral, porque há texto para além desta lista grega.
Estes são chamados de “pseudepígrafos”, do grego “escritos pseudonímicos”. Essa
expressão refere-se a obras que usam como autor alguma figura importante
(Enoque, Abraão, Isaías etc.). A nomenclatura é problemática porque até mesmo os
livros canônicos são, muitos deles, pseudônimos, porque os autores indicados não
são os históricos. Os pseudepígrafos são de vários gêneros e tipos. Há testamentos,
apocalipses, salmos etc.

Os textos pseudepígrafos foram preservados em diversas línguas e muitos eram lidos


e usados por cristãos dos primeiros séculos. Percebemos isso em citações no NT,
como em Judas 9, que cita Assunção de Moisés, e Judas 14-15, que cita 1Enoque.
Estes foram tão importantes para os primeiros cristãos que algumas destas obras
receberam inserções cristãs, como acontece no Testamento dos Doze Patriarcas.
Podemos listar alguns pseudepígrafos aqui: Jubileus, 1Enoque, 2Enoque, 3Enoque,
Testamento de Levi, Oráculos Sibilinos, 4Esdras, 2Baruc, Testamento de Moisés, A
Vida de Adão e Eva, José e Asenet.

Há outro conjunto de obras conhecido como manuscritos de Qumran ou manuscritos


do Mar Morto, que são textos encontrados desde os anos de 1940 em cavernas
próximas das ruínas de Khirbet Qumran, perto do Mar Morto. Nesse local, como
defendem algumas pesquisas, viveu um grupo religioso acético, o qual interpretava a
Lei de maneira radical e preservava ideias apocalípticas. Garcia Martínez em suas
pesquisas defende que os homens de Qumran eram essênios e formavam uma
comunidade apocalíptica. Outros autores ainda avançam e defendem que eram
enoquitas, ou seja, defendiam a visão de mundo preservada nas obras de Enoque.

Em Qumran foram encontrados diversos manuscritos do Antigo Testamento (exceto


Ester), livros apócrifos, pseudepígrafos e outros textos sectários de cunho
apocalíptico e de ordenações práticas da comunidade. Estes últimos são muito
importantes para compreensão das ideias e perspectivas correntes na palestina entre
o I sec. a.C e I d.C. Entre eles estão hinos, salmos, apocalipses, manuais, etc.
Podemos citar alguns textos sectários deste grupo: 11QMelquisedec, Documento de
Damasco, Regra da Comunidade (1QS), Rolo da Guerra etc.

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Por que estudar os Apócrifos e Pseudepígrafos

Estas obras, hoje em dia, podem ser acessadas especialmente em Inglês, Espanhol e
Alemão. Temos algumas traduções para o Português, mas são cheias de fragilidades.
Para os pseudepígrafos, a obra mais importante é a organizada por James H.
Charlesworth, The Old Testament Pseudepigrapha, em dois volumes. Há, também
um trabalho em Espanhol, preservado em 5 volumes, Apocrifos del Antigo
Testamento, de A. Diez Macho.

Para o estudo dos apócrifos do Novo Testamento, uma das obras de referência é o
trabalho de Wilhelm Schneemelcher, New Testament Apocrypha, Gospels and Related
Writting, em dois volumes.

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Muitos não entendem que estas obras são importantíssimas para os estudos bíblicos.
Para as pesquisas do Antigo Testamento, os manuscritos de Qumran serviram para
descobertas sobre a forma e conteúdo de textos canônicos, como no caso do livro de
Isaías encontrado em Qumran. Além disso, as obras pseudepígrafas circulavam e
algumas ideias cristãs primitivas, especialmente presentes no NT, somente podem
ser entendidas à luz dos imaginários e perspectivas teológicas destes textos – não
podemos nos esquecer do uso cristão desses livros.

Com os apócrifos do Novo Testamento percebemos a multiplicidade de Cristianismos


nos primeiros séculos e as muitas cores das primeiras comunidades cristãs. Isso nos
serve para reconstruções do passado e compreensão das práticas e teologias das
comunidades cristãs primitivas. No caso dos Atos dos Apóstolos, por exemplo, como
bem explica Paulo Nogueira, essas narrativas se configuram, junto com os
evangelhos, como os mais antigos testemunhos de literatura que preservam
memórias populares do Cristianismo. Por isso, esta literatura é uma rica fonte de
tradições e lendas a respeito dos apóstolos, assim como de temas, gêneros e
liturgias. Os Atos dos Apóstolos tornam-se, assim, fontes indispensáveis, ao lado dos
evangelhos e literatura apocalíptica, para compreensão científica dos Cristianismos
das origens.

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Aula 17 - Bíblia e suas traduções

Objetivo: Apresentar as teorias da tradução. Tratar das versões críticas. Explicar a


respeito da comparação de tradução.

Introdução

Olá, espero que até aqui você tenha percebido com clareza como a Bíblia passou por
diversas fases até sua formação final. Uma vez tornada texto, passou por diversas
traduções. Originalmente o texto bíblico foi escrito em hebraico (AT) e em grego
(NT). Contudo algumas partes da Bíblia Hebraica foram escritas em aramaico: Gn
31,47; Jr 10,11; Dn 2,4–7,28; e duas perícopes em Esdras (4,8–6,18; 7,12-26). No
Novo Testamento, escrito em grego Koiné (“comum”, língua corrente no comércio e
nas cidades helenizadas), há algumas expressões preservadas em aramaico (Marcos
5,41- Talitha qum (ταλιθα κουμ) que significa “criança levanta-te”; Marcos 7.11
Corban (κορβαν); Mc 15, 34 "Eloì, Eloì, lemà sabachthàni, que significa “Deus meu,
Deus meu, por que me abandonaste?” Mt 27,46). Mesmo que ainda se discuta a
respeito da origem hebraica ou aramaica de versões originais de textos do NT, o que
temos é o grego como afirmação de sua língua original. A tradução para as línguas
antigas como copta, eslavo, siríaco, entre outras, e as modernas (alemão, inglês,
espanhol, português etc.) demostram a dinâmica da circulação dos textos bíblicos e
suas comunidades.
Precisamos levar em consideração que as traduções são trabalhos que passam pela
criatividade do tradutor. Não é simplesmente um transporte límpido de um sistema
para outro. Por isso, para leitura e trato com a Bíblia, precisamos explicar alguns
detalhes sobre a tradução, as nuanças das versões, além das diferenças dos projetos
de tradução. A Bíblia, antes de qualquer coisa, é consumida como objeto de tradução
para milhares de leitores, que em suas línguas maternas relacionam-se com seus
textos.

Tradução e criatividade

Toda tradução incide sobre a obra com a qual trabalha. Por isso consideramos que a
tradução é criação de novo (s) texto (s). Como bem afirma Maria Elisa Rodrigues
Moreira, “a tradução aparece sempre como uma questão relativa ao fazer literário, e
não apenas como um processo técnico de transposição idiomática”[13].
Falando das dificuldades da tradução, Luis Borges diz que os textos poéticos são
mais desafiadores para os tradutores do que os prosaicos. Depois de ler textos tais
como os apocalípticos não é possível concordar plenamente com isso, porque nestas
obras há um complexo de sensações e movimentos/ações conduzidos pelos verbos,
dentro de vinculações imaginárias, que dificultam a transposição do sentido. Por isso,
podemos aplicar a qualquer tradução as dificuldades citadas pelo escritor argentino:
“cada palavra tem uma significação peculiar, conotações próprias e totalmente
arbitrárias”[14].
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28/02/2022 14:00 Aulas.

O próprio esquema exposto por Yuri Lotman sobre a linguagem ajuda-nos a pensar a
tradução de um texto como produção criativa de um novo texto. Nas linguagens
artificiais[15] há identidade direta entre mensagem do emissor e mensagem do
receptor. Na tradução de um texto em uma língua para a outra, a distância é
preenchida pela criatividade da tradução. Entre o texto 1 (original) e o texto 2
(tradução) existe somente uma equivalência convencional[16] e por haver
complexidade de códigos entre texto original e texto de tradução, o tradutor é
obrigado a fazer escolhas:

O relacionamento assimétrico e a constante necessidade de escolha fazem


da tradução, neste caso, um ato de produção de novas informações e
exemplificam a função criativa tanto da linguagem quanto do texto[17].

Conhecendo o intransponível caráter interpretativo da tradução, o melhor a se fazer


é levar a sério a máxima de Octávio Paz: “por um lado suprime as diferenças entre
uma língua e outra; por outro lado, revela-as plenamente”[18]. Ou seja, o tradutor
acaba escolhendo pelo segundo “lado” da tradução.

Por isso, é comum a mesma tradução passar por várias revisões.

Traduções Antigas

Escrita em hebraico, aramaico e grego, a Bíblia, desde 200 a.C, recebeu diversas
traduções. Estas podem ser divididas em três categorias: traduções antigas, as
medievais e as modernas. As antigas continham trechos do AT e, às vezes também,
do NT, quando estes já existiam. Entres as traduções antigas estão Targum, A
Septuaginta e a Vulgata.

Targum: tradução, mais próxima de uma paráfrase, porque quase reescreve a Biblia
Hebraica. Chamamos de tradução porque transporta para o aramaico os textos
hebraicos, mas o fazem como um comentário. Depois do exílio, o aramaico era a
língua usual. Os mais antigos targumim (plural de targum) foram escritos no sec. II
d.C, mas há indícios de textos aramaicos antes da era cristã. Os dois targumim mais
conhecidos são o Targum Onkelos e o Targum Jonatã bem Uziel, este sobre os
profetas e aqueles a respeito da Torah.

Peshita: tradução da Bíblia Hebraica para o siríaco. A Peshita do AT deriva de um


texto que surgiu em meados do séc. II ou no início do III d.C, mas a
designação Peshita data do séc. IX. A Peshita usou o hebraico, mas se adequou à
Septuaginta. O Novo Testamento siríaco padrão deriva, por sua vez, de uma revisão
do séc. V. A edição do NT em siríaco, mais a revisão cristã feita no AT siríaco, viria a
ser conhecida como Peshita.

Septuaginta: essa é uma palavra grega que significa “setenta” e se refere a


tradução do hebraico para o grego realizada pelo judaísmo helênico de Alexandria,
Egito. A Septuaginta (LXX) começou a ser produzida entre o séc. III e II a.C. A
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primeira parte, a Torah, foi terminada, provavelmente, no período de Ptolomeu II


Filadélfo, rei do Egito. Segundo informa a carta de Aristéia a Filócrates (130-100
a.C), o bibliotecário do rei o convenceu traduzir para o grego, língua corrente da
época, às obras dos judeus para enriquecimento de sua biblioteca. Muitas lendas são
colocadas sobre esta versão. O que se sabe bem é que até 150 a.C todo o AT estava
traduzido para o grego. Na LXX estão, também, outros livros do judaísmo helênico
(os apócrifos). Esta versão tem algumas diferenças em relação à Bíblia Hebraica. O
livro de Jeremias, por exemplo, é maior do que o encontrado na Bíblia Hebraica. A
LXX acabou se tornando a versão do AT usada pelos cristãos. Essa foi uma das
razões para o surgimento de outras versões gregas do AT realizadas pelos judeus.
Entre elas encontramos a versão de Áquila (130-150 d.C.), a versão de Teodócio
(150-185) e a versão (ou revisão) de Símaco (185-200). No séc. III surgiu um texto
que tentou “harmonizar” estas quatro versões/revisões gregas do AT: os Héxaplas de
Orígenes, que eram divididos em seis colunas paralelas. Cada coluna continha uma
versão particular do AT. A ordem era a seguinte: texto hebraico, uma transliteração
grega do hebraico, a versão de Áquila, a revisão de Símaco, uma versão do próprio
Orígenes na quinta e, por último, a revisão de Teodócio.

Fragmento da Héxapla do Sl 21 (22). In:


http://ccat.sas.upenn.edu/rak//earlylxx/images/genizah/hexapla2.jpg

Veja nesse link alguns documentos do Antigo e Novo


Testamentos: http://www.artefacts.divinity.cam.ac.uk/collection.html

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28/02/2022 14:00 Aulas.

Vulgata: Em 200 a.C, no Ocidente, foi realizada uma tradução do AT, a partir da
LXX, para o Latim, língua oficial do Império Romano, conhecida como Antiga Latina.
Os numerosos textos da Antiga latina apareceram ao redor da segunda metade do
século IV obrigaram uma revisão desta versão latina, que resultou na Vulgata Latina.
Quem ficou incumbido desta tarefa foi Jerônimo (340-420). A Vulgata Latina é o
nome dado para este trabalho realizado por Jerônimo que se tornou o texto modelar.
Seu trabalho começou com uma revisão dos evangelhos da Antiga Latina e depois
passou para o Saltério, conhecido como Saltério Romano. Depois de estudar
hebraico, dedicou-se mesmo aos textos originais. Primeiro traduziu o Saltério.
Continuou sua tradução das Escrituras Hebraicas, finalizando, em 405 d.C., o AT. Os
Apócrifos que estavam na LXX, forma preservados na Antiga Latina, e
permaneceram na Vulgada, não foram todos traduzidos por Jerônimo. Contudo, na
Idade Média, esses foram inseridos na Vulgata Latina, como conhecemos até hoje.

Tradução, versão e revisão

Já temos falado em alguns lugares a respeito da Septuaginta e Vulgata. Essas são


versões antigas de traduções para o Grego e o Latim. Muitas traduções foram
realizadas no decorrer da história. Seria impossível apresentar todas aqui.

Precisamos ter em mente que na tradução haverá perdas, porque o tradutor sempre
fará escolhas. A sintaxe e os sentidos das palavras são muito estranhos ao
português. Por isso, a tradução pode ser de dois tipos: a formal (literal) ou
a funcional (dinâmica).

Os dois tipos têm seus pontos fortes e fracos. A tradução formal preserva aspectos
do texto original — incluindo sintaxe, expressões idiomáticas e coerência no uso de
termos, de grande valor para acadêmicos e estudos profissionais, mas não é tão
importante para as leituras mais populares das comunidades. Por sua vez, a
tradução dinâmica proporciona acesso direto ao texto, permitindo que o significado
fique claro em uma primeira leitura, sem exigir que o leitor lide com expressões
idiomáticas e sintaxes incomuns. Também, facilita o estudo sério da mensagem do
texto e dá clareza no uso devocional e na leitura em público. Como exemplo de
traduções consideradas formais, podemos citar a Bíblia de Jerusalém, Tradução

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28/02/2022 14:00 Aulas.

Ecumênica (TEB) e algumas versões da João Ferreira de Almeida. Como exemplo de


traduções dinâmicas: Bíblia Viva, Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH), NVI
e a Almeida Revista e Atualizada.

Aprofundando a questão, precisamos compreender alguns conceitos e diferenças


entre tradução, versão e revisão. Tradução é o transporte de uma língua original para
a língua receptora. Do grego e hebraico para o espanhol, português etc. Em
português temos o trabalho de João Ferreira de Almeida, como também as traduções
realizadas mais recentemente por exegetas e tradutores brasileiros, como a Bíblia de
Jerusalém. As versões são os diversos tipos de traduções realizadas para o
português. A mesma expressão pode ser usada para se referir às traduções das
línguas maternas para outras, como a Bíblia do Peregrino, que é uma versão
brasileira do espanhol. A “revisão” é o trabalho posterior de adequação das
traduções às mudanças da língua ou correções de equívocos.

A tradução para o português feita por João Ferreira de Almeida passou por longo
processo de revisão. Em 1681 foi publicado o Novo Testamento. Depois de sua
morte, o Antigo Testamento foi terminado e publicado, em 1753. Mesmo quando só
havia o NT e depois, com os dois testamentos, a tradução em português passou por
revisões. A edição de 1898, feita em Lisboa, seria conhecida como Almeida Revista e
Corrigida (ARC). Em 1959, foi publicada no Brasil uma versão revisada da ARC, a
qual era muito usada em países de língua portuguesa. Este trabalho chama-se
Almeida Revista e Atualizada (ARA). Entre as diferenças de linguagem e estilo, a ARA
leva em consideração manuscritos que não eram conhecidos na época da versão
ARC. Uma segunda edição da Revista e Atualizada (ARA) foi publicada em 1993. Por
sua vez, a Revista e Corrigida (ARC) sofreu alguns ajustes em 1995. A Sociedade
Bíblia Trinitariana do Brasil publicou em 1994 a Bíblia Almeida Corrigida e Fiel,
revisada em 2007.

Outras versões foram feitas no Brasil por especialistas, as quais já estão citadas aqui
(NVI, NTLH, BJ. TEB). Quando encontramos Bíblias com nota de rodapé ou estudos,
conhecidas por Bíblia de Estudos, precisamos levar em consideração que as versões
podem ser as mesmas, somente com explicações e introduções são diferentes.

As versões originais

Os textos bíblicos passaram por muitas fases, desde oralidade às muitas cópias, até
chegarem à sua forma final. Os manuscritos circularam por várias mãos e grupos,
gerando diversas variantes, ou seja, textos com conteúdos diferentes, frutos de
cópias que não seguiam exatamente, seja intencionalmente ou não, o texto base.
Por isso, não há o texto “original” saído da pena de Paulo, João etc., mas cópias das
cópias. Com o tempo, as ciências bíblicas desenvolveram critérios e ferramentas para
reconstrução, avaliando e comparando manuscritos, dos textos mais próximos do
original. Essa ciência é conhecida como “Crítica Textual”. O resultado deste trabalho

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28/02/2022 14:00 Aulas.

de reconstrução encontra-se nas chamadas “edições críticas”. Essas são edições dos
textos do Antigo Testamento e do Novo Testamento, que trazem no rodapé o
“aparato crítico”, onde se encontram, codificadas em símbolos, as principais
variações dos manuscritos. Para o Antigo Testamento a Bíblia Hebraica
Stuttgartensia, a edição crítica publicada em Stuttgart, na Alemanha, pela Deutsche
Bibelgeellschaft, tornou-se a versão padrão usada pelas traduções mais modernas.
Para o Novo Testamento, a utilizada como padrão é a edição de Nestle-Aland, que já
está na 28º edição. Essa edição é resultado de pelo menos vinte e oito revisões e
novas publicações do texto. O trabalho começou em 1898, com E. Nestle, que
publicou a primeira edição crítica do NT, a qual foi aprimorada e revisada à luz de
novos manuscritos e trabalhos de pesquisas. Atualmente a comissão responsável é
liderada por K. Aland. Fruto deste trabalho, temos duas edições parecidas, com
aparatos críticos de tamanhos diferentes, mas que seguem a mesma reconstrução
base: o United Bible Societie’s Greek New Testament [UBS] (que está na 5º edição)
e Novum Testamentum Graece (atualmente na 28º edição). Esta é apropriada para o
uso de exegetas, aquela para tradutores. As traduções de diversas Bíblias seguem
estas obras e elas são usadas nos seminários e cursos de Bíblia no mundo inteiro.
São as ferramentas dos exegetas, as quais você usará o tempo todo nas aulas.

Comparação de traduções

Por conta da criatividade da tradução ou mesmo das diferentes edições dos textos
usados como base para as diversas versões, encontramos algumas disparidades de
uma tradução para outra. Por isso, precisamos comparar as traduções. Aqui
mostraremos as propostas de algumas versões para Rm 12,3:

A tradução segue perspectivas teológicas, o que determina o resultado do trabalho.


Neste caso, enquanto a ARC parece valorizar a ignorância, as demais valorizam a
humildade. O trato com as traduções, mesmo que você não tenha acesso aos
originais, já é um grande salto na compreensão dos textos.

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28/02/2022 14:00 Aulas.

Dica: Veja a entrevista com o prof. Edson Francisco.


Vídeo disponível no AVA

NOTAS

[13] MOREIRA, Maria Elisa Rodrigues. A Questão de Tradução em Jorge Luiz Borges e
Italo Calvino. In: Alea: Estudos Neolatinos 2, Rio de janeiro, vol. 11, Dezembro de
2009. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1517-
106X2009000200004&script=sci_arttext#linkinicio. Acesso em: 13 de Mar. 2013.
[14] BORGES, Jorge Luis. Las dos maneras de traducir. In: La prensa, Buenos Aires,
01 ago. 1926. Disponível em: http://webcache.googleusercontent.com/. Acesso em
13 mar. 2013.
[15] Paulo Nogueira ilustra bem este tipo de linguagem usando o exemplo da
gravação de uma música por meio do MP3 que é um código digital. Cf. NOGUEIRA,
Paulo A. religião como texto... p. 17.
[16] LOTMAN, I. Por uma teoria semiótica da cultura. Belo Horizonte: FALE/UFMG,
2007. p.18.
[17] LOTMAN, I. Por uma teoria semiótica... p. 19.
[18] PAZ, O. Traducción: literatura y literalidad. Barcelona: Tusquets, 1990. p. 12.

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28/02/2022 14:00 Aulas.

Aula 18 - Bíblia e Cultura Material

Objetivo: Apresentar a arqueologia e sua relação com os estudos bíblicos. Expor


as perspectivas arqueológicas e a Bíblia. Descrever as principais contribuições da
Arqueologia Siro-Palestinense.

Introdução

Uma das ciências que tem tomado muito espaço nas pesquisas bíblicas é
a arqueologia. Esta ciência analisa a cultura material dos povos para reconstrução do
passado e compreensão de suas práticas e vida. Como reconstrutora do passado, por
algum tempo, especialmente no início de sua formação, tinha-se a impressão de que
era possível com este instrumento reconstruir os fatos de maneira direta e neutra.
Hoje em dia, a arqueologia tem passado por notáveis avaliações epistemológicas e
se percebe como construção criativa, uma narrativa do passado. Para os estudos
bíblicos esta ciência tem se tornado parte constituinte. Como explica José Ademar
Kaefer:

No final do século XIX e início do XX, quando as ciências foram


incorporadas nos estudos da Bíblia, a arqueologia começou a ter papel de
destaque. No início, com técnicas ainda rudimentares e com interesses
nem sempre bem definidos, os resultados foram, em muitos casos,
catastróficos. Mais tarde, quando as técnicas melhoraram, a arqueologia
se desenvolveu e começou a trazer à luz um mundo oculto pela terra,
pelas pedras e pelo tempo. Os investimentos aumentaram, surgiram
escolas e cresceu o número de especialistas. Assim, pouco a pouco a
arqueologia ajudou a “ desenterrar a Bíblia”.

KAEFER, J. A. Arqueologia das terras da Bíblia, p.7

Um exemplo deste tipo de trabalho de Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman na


famosa obra The Bible Unerthed: Archeology’s New Vision of Ancient Israel and the
Origin of Sacred Texts, traduzida para o português com o título A Bíblia
desenterrada (2018-Editora Vozes). Outro texto que também está em língua
portuguesa é o Para além da Bíblia: história antiga de Israel, de M Liverani (2008).

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28/02/2022 14:00 Aulas.

Arqueologia e Bíblia

A arqueologia no início de sua história nas pesquisas bíblicas estava perpassada por
interesses religiosos e teológicos. Fala-se, inclusive, da postura dos pesquisadores
em entrarem nos sítios com a Bíblia com referência para as escavações; daí a
expressão “Bíblia na mão e a pá na outra”. Nessa perspectiva, fala-se
em arqueologia bíblica, porque a Bíblia seria a indicadora dos trabalhos
arqueológicos. Esta posição vem da ala mais conservadora. Os arqueólogos iam para
as escavações para confirmarem o que os textos diziam.

Com o desenvolvimento das pesquisas e da disciplina, a arqueologia foi perdendo a


dependência dos interesses religiosos e teológicos e se tornando mais autônoma. Por
isso, surge a arqueologia Siro-Palestinense que se desprende da Bíblia e pretende
observar as “pedras”, os achado arqueológicos, sem que seja necessário se adequar
às narrativas bíblicas.

Esta “nova arqueologia” gerou, pelos menos, duas perspectivas. Uma rotulada
como minimalista, os quais dão pouco crédito às narrativas bíblicas enquanto
fontes históricas, exceto se receberem confirmação arqueológica. Nessa perspectiva,
a arqueologia é fundamental e precede o texto bíblico, o qual somente será
confirmado caso haja prova material. Figuras como Israel Finkelstein, Thomas L.
Thompson, Niels Peter Lemche pertencem a essa fileira. A
perspectiva maximalista, por sua vez, defende a Bíblia como fonte histórica
confiável. Estes, afirmam que aquilo que a arqueologia não conhece não pode ser
tratado como inexistente. Autores como Albright, John Bright, Roland de Vaux e Eilat
Mazar são representantes deste grupo.

Tanto a negação da Bíblia para hipervalorizarão da arqueologia quanto o contrário,


são exageros que precisam ser remediados por uma posição conciliadora. Negar a
arqueologia ou a Bíblia, pura e simplesmente, é obscurantismo ou ingenuidade. Por
isso, a defesa, em outro texto, do professor Ademar Kaefer pode ser frutífera e
ajudar na discussão.

Portanto, a arqueologia não substitui o texto, mas o auxilia. E, assim,


deve ser. É comum, nos últimos anos, estudiosos do mundo bíblico
afirmarem que as recentes descobertas arqueológicas contradizem o
texto bíblico, porque apresentam outras verdades. Isso não é correto. A
Bíblia vê e narra a realidade com a preocupação de mostrar a ação de
Deus na história, coisa que a arqueologia não tem como escavar. Sua
função é de fazer a leitura preliminar da sociedade, da maneira mais
neutra possível. A partir daí, os exegetas devem adentrar ao texto
bíblico. O que não se pode fazer, para uma boa exegese, é cometer o
disparate de ignorar as descobertas arqueológicas[19]

Ler a Bíblia com a Arqueologia

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28/02/2022 14:00 Aulas.

Para compreender a Bíblia em diálogo com a Arqueologia, faz-se necessário um


método que pretenda levar em consideração o contexto histórico. Para a história de
Israel, a arqueologia tem se tornado fundamental. Com a arqueologia, por exemplo,
a forma triunfalista como a Obra Histórica Deuteronomista (textos reunidos de Josué
até 2Reis) apresenta as monarquias do sul é questionada. Com a arqueologia, é
possível se perceber, por exemplo, que o Norte foi uma região bem mais próspera do
que queriam expressar estes textos do sul. Além disso, podemos ter diversas
informações da cultura, economia etc. do contexto tanto do NT quanto do AT.

Os arqueólogos trabalham num espaço chamado de “sítio arqueológico”, ou Tel.


Esses preservam restos de materiais que podem revelar coisas a respeito do passado
que tenham relação com a Bíblia. Para as pesquisas Siro-Palestinense, os sítios de
Tel Hazor, Tel Guezer, Tel Meguido, Tel Jezreel, Tel Dã etc. são muito importantes.

Um exemplo de achado arqueológico que ajuda na interpretação Bíblica é a Estela


de Dã, encontrada em Tel Dã, uma cidade várias vezes citada na Bíblia. Em 1933 e
1994, neste lugar, foram encontrados pedaços de pedra de basalto contendo
inscrições em aramaico, ainda bem conservadas.

Vejamos a tradução desta inscrição:

[................................................................] e cortou [..................]


2 [.........] meu pai foi [contra ele quando) ele lutou em [......]
3 E meu pai deitou-se, ele foi para seus [ancestrais]. E o rei de I[s-]
4 rael entrou previamente na terra de meu pai. [E] Hadad me fez rei.
5 E Hadad foi à minha frente, [e] eu parti de [os] sete [....-]
6 s do meu reino, e eu matei [sete]nta rei[s], que utilizavam milha[res de bi-]
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28/02/2022 14:00 Aulas.

7 gas e milhares de cavaleiros [ou cavalos]. [Eu matei Jeho]rão filho de [Acab]
8 rei de Israel, e matei [Ocoz]ias filho de [Jehorão re]i
9 da Casa de Davi. E transformei [suas vilas em ruínas e tornei]
10 sua terra em [desolação........................ ]
11 outro [.............................................................. e Jehú rei-]
12 nou sobre Is[rael..........................................................e pus] 13 cerco
sobre [............................................................][20]

A tradução é bem truncada porque o material é cheio de lacunas. Contudo,


encontramos nomes de personagens que estão no texto bíblico: Hadad, Jorão
(Jeohorão), Ocazias e, pela primeira vez fora da Bíblia, “casa de Davi”. O texto
relembra 2Rs 8-10, onde se narra a morte do rei Bem Adad. Na estela, Hazael foi
feito rei e tem função importante. É dito na estela que ele matou 70 reis, entre eles
o rei Jorão (Jeorão), filho de Acabe, e, também, Ocazias, da casa de Davi. No achado
arqueológico, Hazael é quem mata os reis no norte e do Sul, e não Jeú, como diz a
Bíblia (2Rs 9). Na Bíblia, inclusive, Eliseu tem papel estratégico. Primeiro, ele vai,
em nome de Javé, a Damasco para ungir a Hazael como rei, no lugar de Ben Adad
(2Rs 8,7-13). Depois, envia um discípulo seu ao campo de batalha, em Ramot de
Galaad, para ungir a Jeú, no lugar de Jorão (2Rs 9.1-10). Parece que Hazael na
Estela, ao contrário da Bíblia, foi o grande realizador da manobra e mudanças de
reinado, e não Jeú. Em outros achados arqueológicos confirma-se a força de Hazael
(Inscrições de Salmanassar III), que era chamada nessas inscrições de “filho de
ninguém”, o que se assemelha muito com a maneira como é apresentado em 2Rs:
ele não é filho do rei, mas seu oficial (2Rs 8,7s); e ele mesmo diz ao profeta Eliseu
que é um ninguém (2Rs 8,13). Desta forma, como afirma Kaefer, a Estela não
contradiz, simplesmente, a Bíblia; pelo contrário, ela amplia o texto bíblico,
mostrando detalhes obscuros, como os interesses de Damasco e sua participação em
todos estes movimentos. Os mesmos dados mostram a dinâmica teológica dos textos
antigos e como são perpassados por interesses teológicos.

A arqueologia mostra-se como instrumento eficaz também para compreensão do


contexto dos textos e as imagens que aparecem na Bíblia. Desta forma, o diálogo
entre cultura material e Escrituras serve, também, como instrumento de avaliação e
interpretação dos textos bíblicos.

Dica: assista a entrevista de Isarel Finkelstein:


Vídeo disponível no AVA

[19] Estela de Dan. Acessado em:


http://portal.metodista.br/arqueologia/artigos/2013/a-estela-de-da.pdf

Imagens disponíveis em www.google.com

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Aula 19 - Bíblia e interpretação I

Objetivo: Descrição dos conceitos relacionados à interpretação bíblica. Exposição


dos pressupostos das interpretações e suas tipologias. Apresentação histórica das
práticas interpretativas.

Introdução

Interpretar é uma exigência básica da vida humana: seja em uma conversa entre
amigos, num sermão do púlpito, nas instruções paternas e maternas ou quando
estamos dirigindo. O mundo onde habitamos convida-nos o tempo todo à sua
compreensão. Mesmo que não percebamos, não é possível fugir do ato de “ler” as
mensagens da cultura. Interpretar é automático e intransponível, e sem
interpretação não conseguiríamos viver e nos relacionar. A Bíblia, como nossa fonte e
instrumento de compreensão da vida, também é lugar no qual realizamos esta
tarefa. Mesmo o crente em Cristo que nunca tenha sentado oficialmente em uma
sala de teologia ou se quer ouvido falar em “exegese”, quando se aproxima das
Escrituras sagradas e a lê naturalmente inicia uma “caminhada hermenêutica”. Como
bem indicou Júlio Zabatiero, “a interpretação da Bíblia é uma prática que tem
diferentes sujeitos, tempos e espaços de realizações. Dominicalmente, pregadores,
pregadoras explicam passagens bíblicas a pessoas que desejam aprender, servir a
Deus e tornar a vida mais feliz”[21]. Neste sentido, a tarefa de compreensão da
Bíblia é fundamental para saúde da igreja, conhecimento das orientações divinas, fé
equilibrada e esperança. Contudo, para que esta realidade se materialize na igreja ou
na vida individual de cada servo de Deus, não basta ser um leitor, é preciso ser
um bom/boa intérprete. Esta afirmação é muito séria, porque permite dizer que
podemos perpetuar, mesmo bem intencionados, alguns erros. É comum encontramos
movimentos e expectativas pessoais extremamente arriscados, simplesmente porque
não há uma boa compreensão do sentido do texto bíblico. Sim, podemos, por causa
dos diferentes sujeitos, tempos e espaços, produzir boas ou más leituras das
Escrituras.

Em At 8,26-40 encontramos um eunuco etíope tentando interpretar um texto de


Isaias (Is 53). O problema não era decodificar os sinais gráficos (letras e palavras),
mas saber o seu sentido, o que significavam, a relevância para sua vida e a que se
referiam. Como dizem os versos 32 e 33, o texto do profeta lido falava de “ovelha
levada ao matadouro”, “cordeiro”, “justiça” e outros. Para o ansioso funcionário de
Candace, aquelas palavras não eram inteligíveis. Ao encontrá-lo, guiado pelo
Espírito, Filipe lhe pergunta: “Entendes o que lês?” (ginóskeis há anagnóskeis?).
Imediatamente, o eunuco demonstra seu desespero hermenêutico: “como o poderia,
se ninguém me explica?”. O verbo usado na resposta é hodegéo, usado em outros
lugares (Mt 15,14; Ap 7,17) significa, literalmente, “conduzir”. No entanto, na
passagem citada tem sentido de “instruir”, “ensinar”; ou seja, ele precisava de algo

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28/02/2022 14:00 Aulas.

ou alguém para que o conduzisse metodologicamente, somente assim o texto


deixaria de ser obscuro e ficaria compreensível. Nesta ocasião, os resultados foram
bons. A interpretação passa pelos olhos cristológicos de Filipe, o que possibilita, no
fim, o batismo daquele ouvinte atento da Palavra. Contrapartida, em 2Pd 3,13-16
ficamos sabendo a respeito da circulação de algumas Cartas Paulinas. Por causa da
sua difícil compreensão, ignorantes e instáveis torciam para sua própria condenação.
Tanto a ignorância (Gr. amathés), que tem relação com pouco acesso a saberes e
falta de instrução, quanto a instabilidade (Gr. astériktos), no sentido de ter tendência
a mudar com facilidade, possuir pouca rigidez de postura ou não ter firmeza, podem
ser instrumentos para distorções ou má interpretações. A mesma Bíblia, uma vez
interpretada, proporciona vida ou morte; condenação ou salvação; libertação ou
claustro da consciência; fé saudável ou adoecida.

Diante do desafio de interpretação da Bíblia, entraremos em algumas discussões e


apresentaremos mecanismos e princípios que sirvam para boas interpretações e,
consequentemente, ajudem na boa exposição (2Tm 2,15).

Exegese e Hermenêutica

Os termos técnicos na teologia para interpretação bíblica


são Exegese e Hermenêutica, que em suma significam, em suas variações sintáticas,
“interpretação”. Exegese vem da palavra grega ἐξήγησις (exégesis - literalmente:
"levar para fora") , que pode significar tanto “explicação” quanto “interpretação”. O
prefixo grego “ex” dá sentido de movimento indutivo: “de dentro para fora”. Ou seja,
a expressão significaria, assim, retirar para fora do texto o seu sentido, fazê-lo falar,
e não o contrário: colocar no texto o sentido que desejamos. Hermenêutica, por sua
vez, vem do grego hermeneuein. Tornou-se comum dizer que exegese é o ato de
compreender o texto no passado, o que ele disse e como disse para seus primeiros
ouvintes, e hermenêutica como aplicação para o presente. Contudo, esta
diferenciação simplista não consegue descrever com precisão o que seriam estas
duas ciências tão comuns às pesquisas bíblicas. Segundo Uwe Wegner:

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Hermenêutica é a ciência que pensa as regras e reflete sobre os métodos e seus


pressupostos para o ato da interpretação. Como disciplina, ela observa e critica as
ações da compreensão do texto e suas aplicações. Neste sentido, hermenêutica seria
como uma filosofia do ato de interpretar, ela lida com princípios gerais da
interpretação e atualização do texto. Já a exegese está preocupada com o acesso
científico-descritivo ao texto. Como parte prática do trabalho de interpretação, ela
quer descobrir o sentido do texto em seu próprio contexto, e para isso utiliza-se de
diversos procedimentos metodológicos desenvolvidos no decorrer da história.

Possibilidades de Interpretação na tradição judaica

Podemos listar diversas metodologias de interpretação desenvolvidas desde os


rabinos até os mais ressentes recursos metodológicos aplicados aos textos bíblicos.
Entre as hermenêuticas judaicas podemos citar:

1. Pesher: interpretação ao Antigo Testamento e obras judaicas em geral, muito


comum entre os essênios de Qumran. Esta interpretação privilegiava as aplicações
escatológicas dos textos do AT à realidade da comunidade que vivia nos arredores do
Mar Morto. Há o pesher de Oséias, pesher de Habacuque, 11QMelquisedec etc.

2. Midrash: método rabínico de interpretação das tradições legais (midrash halacá) e


narrativas (midrash agadá) da Torah. Esse privilegiava a aplicação e atualização sem
preocupação com a literalidade do texto.

3. Peshat: diferente do midrash, o peshat era a interpretação literal realizada pelos


rabinos, aplicada especialmente a casos de litígios concretos.

4. Regras de Hillel: lista de normas de interpretação atribuída a Hillel, que se


tornaram treze com R. Ismael e trinta e duas com R. Eliezer bem Yose ha-Gelili.
Essas regras estão no tratado ‘Abot de Rabbi Natan. São sete regras que eram
aplicadas aos textos bíblicos para que pudessem ser compreendidos e vivenciados.

No Novo Testamento é possível encontrarmos essas práticas interpretativas.


Inclusive, Paulo, como um judeu conhecedor das regras hermenêuticas de sua
tradição, utilizou-se desses mecanismos de interpretação.

Interpretação no Cristianismo

Podemos, também, listar algumas metodologias de interpretação desenvolvidas


pelos primeiros cristãos e os modernos métodos que até hoje são ensinados em
faculdades e seminários.

1. Hermenêutica Patrística: esta expressão significa, em suma, a prática


interpretativa dos pais apostólicos. A hermenêutica patrística oscila entre a alegoria
e o literalismo, o que a dividi em duas escolas: alexandrina e antioquena.

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2. Hermenêutica Medieval: modo de interpretação desenvolvido na Idade Média, que


percebe no texto níveis de sentido, como se ele, em si mesmo, possuísse pelo menos
quatro sentidos. João Cassiano (400 d.c) formulou em latim o que seria adequado
pela interpretação do mundo medievo: “Littera gesta docet, quod credas allegoria;
Moralis quid agas; quo tendas Anagogia” (a letra diz o que acontece; a alegoria, em
que crer; a moral, como agir; a anagogia, a que tendes).

3. Hermenêuticas modernas: estas foram desenvolvidas na modernidade depois da


Reforma Protestante. Seu fundo epistemológico é o paradigma do sujeito, comum às
ciências e ao racionalismo moderno. Os dois conjuntos de ferramentas de
interpretação desenvolvidos neste período ficaram conhecidos como Método
Histórico-Crítico e Método Histórico-Gramatical.

4. Hermenêuticas contextuais: metodologias que foram desenvolvidas especialmente


em territórios latino-americanos. Estes métodos surgem na esteira dos métodos
modernos, mas estão preocupados com as questões sociais, emancipação,
erradicação da pobreza etc. A luz desta preocupação surgem as leituras feministas,
leitura popular da Bíblia, leitura negra da Bíblia etc.

5. Hermenêuticas pós-paradigma do sujeito: este grupo de projetos de interpretação


bíblica é mais ressente e é desenvolvido a partir das novas teorias da linguagem,
especialmente depois do que chamaram de “virada linguística”. São resultado do
diálogo entre exegese e teorias literárias e métodos que privilegiam a leitura
sincrônica do texto. Alguns vão denominar estas hermenêuticas de leituras pós-
modernas da Bíblia. Entre essas estão a Semiótica, Narratologia, Análise do Discurso
etc.

Como se percebe, a Bíblia passou por diversas possibilidades de interpretação. Em


resumo, podemos dizer que os métodos se preocuparam ora com a intenção do
autor, ora do texto, ora do leitor. Na história da interpretação o “autor”, “texto” e
“leitor” se tornaram mundos em favor dos quais as perspectivas hermenêuticas
lutaram pela defesa do seu valor e imprescindibilidade para “compreensão”, ou
“construção”, ou “criação” do sentido.

Dica: assista a mesa de debate e observe as diferenças de perspectivas


hermenêuticas.
Vídeo disponível no AVA

[21] ZABATIERO, J. Manual de Exegese. São Paulo: Hagnos, 2007.

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Aula 20 - Bíblia e interpretação II

Objetivo: Continuação da apresentação dos princípios de interpretação bíblica.


Exposição das práticas interpretativas no Medievo até às formas mais atuais.
Descrição de processos interpretativos.

Introdução
A Bíblia é um livro com características peculiares, a começar pelas línguas nas quais
os textos foram escritos. Contudo, esse é simplesmente um exemplo dos desafios
que nós leitores precisamos enfrentar, os quais levam alguns a desistirem de sua
leitura esperando que do púlpito ou de outros ambientes recebam porções de seu
conteúdo.

Estamos lidando com um texto com contextos diferentes! O Contexto histórico das
Escrituras é outro em relação ao nosso. Os homens e mulheres que produziram a
Bíblia viviam no Mundo Antigo, com visão de mundo, imaginários, modos de
produção, organização política, percepção de gênero, etc., bem diferentes do que
observamos em nossos dias. O Contexto literário também era completamente
diferente do nosso. As fraseologias, estratégias e usos de gêneros literários, os
sentidos das palavras, a linguagem e a sua organização pertencem ao Antigo
Oriente. Por isso, um passo importante na tarefa da leitura do texto é esclarecer
suas situações.

Nesse sentido, precisamos entender o que lemos para, só assim, conseguirmos


aplicar as Escrituras. No entanto, preciso fazer um esclarecimento: não quero dizer
que uma coisa está desligada da outra, como se fosse possível ir ao texto ou ao
passado, como se nos anulássemos, para depois encaminharmos este conteúdo para
nossos dias. Esta é uma das mais infantis esperanças para aqueles que desejam
interpretar e pregar a Bíblia. Quando vamos às Escrituras, levamos conosco nossas
perguntas e preocupações, as quais nos ajudam na compreensão do texto, e não o
contrário. E isso não quer dizer que estamos adulterando a Bíblia, mas abrindo a
possibilidade de ouvir seus ensinamentos para nossos dias. Assim, precisamos
acessar o texto observando suas articulações e contextos para, com essa ação,
ouvirmos o que ele nos diz a respeito das perguntas que temos que responder a nós
mesmos, ou aos nossos interlocutores modernos. Sem isso, acabaremos sempre
respondendo às perguntas que não nos foram feitas. Veja o esquema abaixo e
perceba a relação circular das questões do nosso tempo, a Bíblia e a nossa ação:
todo o processo é hermenêutico.

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Intenção do Autor, do texto ou leitor


Na longa história da interpretação encontramos as preocupações se movendo entre
a intentio auctoris , intentio operis e intentio lectoris .

Até o fim do século XIX, o enfoque principal era a intentio auctoris e suas indicações
sociais e históricas. Ou seja, as conexões ao sujeito (sujeitos) da produção do texto
eram a preocupação basilar da prática interpretativa. Para a hermenêutica isso
significava, desde Schleiermacher, compreender as intenções do autor materializadas
na obra literária destinada aos ouvintes/leitores “originais”. Para a exegese bíblica
isso significou, com todas as ferramentas necessárias e disponíveis, ser uma
arqueologia do sentido por meio da qual se busca (buscava?) saber as intenções
primeiras do texto sagrado. Isso significa uma dívida para com o autor (a)/res ou
redatores(as) do texto com o qual se trabalha.

Há muito a exegese tem passado por renovações. Atualmente não podemos pensar,
por exemplo, o método histórico-crítico sem levar em consideração as contribuições
das ciências sociais, das ciências da linguagem, semiótica, etc. Durante muitas
décadas, dizer exegese equivalia a dizer método histórico-crítico : critica textual,
crítica literária, crítica e história das formas e dos gêneros literários, história das
tradições, crítica e história da redação e da composição.

Para nossa tarefa de leitura e interpretação fiel das Escrituras, cabe-nos a iluminação
do Espírito Santo e o auxílio das possíveis metodologias hermenêuticas. Por isso,
podemos agora seguir com alguns detalhes importantes para esta tarefa, na prática.

Interpretação e aplicação
Aqui podemos enumerar algumas indicações metodológicas para interpretarmos a
Bíblia neste processo de compreensão e aplicação de suas verdades. Devemos
começar lidando com texto, depois observar seus contextos e, logo em seguida,
fazer a exposição.

1) LIDANDO COM O TEXTO: Uma coisa óbvia: quando interpretamos a Bíblia,


estamos lidando com um texto. E o que é um texto? Texto é como um tecido que se
entrelaça e forma uma peça que precisa ser compreendida. Esta peça tem
estratégias e usos de artifícios para sua coesão e coerência. Sem coesão não há
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interconexão entre as frases e parágrafos; sem coerência não há ordem e macro-


organização temática. Assim, o texto bíblico é uma rede de sentidos que você precisa
decifrar; perceber como diz o que diz. Para isso, temos os seguintes procedimentos.

a) Descubra onde ele começa e termina : O nome disso é delimitação do texto.


Talvez você diga que o fim e o começo de um texto (perícope é o nome para esta
unidade de sentido) sejam obviamente apresentados pelas versões bíblicas.
Recomendo que veja as várias versões e perceberá que elas não são unanimes
nisso. Por exemplo, onde começa a recomendação de Efésios 5 a respeito da
relação entre homem e mulher? No verso 21 ou 22? Se a resposta for v. 22, fica
claro que a submissão é somente responsabilidade feminina; mas se começar no
v. 21, as coisas mudam e esta recomendação torna-se mútua: “sujeitando-vos
uns aos outros no temor de Cristo” (v. 21).

b) Leia o texto muitas vezes : a primeira leitura de um texto é somente para


observação superficial das suas frases. Nas outras leituras você encontrará novos
pontos.

c) Observe as relações internas do texto : No texto aparecem imagens,


personagens, verbos, adjetivos etc. Estes estão numa relação interna que você
precisa perceber e fazer com que o texto seja ouvido. É necessário, nesse passo,
saber a quem se refere a informação do verbo, quem a faz e o que faz. Quem diz?
O que diz? Diz sobre o quê?

d) Resumo dos resultados: Depois de extrair estas informações, faça um resumo


das descobertas da leitura, deste o primeiro passo até o último.

2) OBSERVANDO OS CONTEXTOS: quando falamos em contexto, precisamos fazer


as devidas diferenciações. Temos o contexto literário e o contexto histórico-social. O
contexto literário se refere ao tipo de texto com o qual estamos lidando, sua forma,
a saber, seu gênero literário , e em que bloco de textos ele está – um conjunto de
textos dentro de um tema de discussão forma um bloco. O contexto histórico-social é
o tempo ou o lugar histórico onde este texto se encaixa.

a) Gênero literário : nós conseguimos diferenciar um cartão de natal de um e-


mail; ou um anúncio de jornal de uma conta de banco etc., porque identificamos
seu gênero literário. Os textos têm características que servem para agrupá-los em
tipos comuns, as quais reaparecem em outros textos e possibilitam criar uma
tipologia literária. A Bíblia tem gêneros maiores (Evangelho, Carta, Livro profético)
e menores (narrativa de milagre, parábola, oráculo de salvação, exortação etc.).
De acordo com o gênero, as intencionalidades do texto podem ser apreendidas.
Você não deve, por exemplo, exigir da parábola uma preocupação histórica. Outro
exemplo é o catálogo (Gl 5,22ss; Fp 4,8; Rm 1,29-31). É comum no catálogo um
resumo de práticas ou fenômenos (como a lista de dons espirituais – 1Co 12,4-

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11) que não podem esgotar nem a lista moral e muito menos as manifestações
listadas. Ou seja, você precisa ler os catálogos como eles desejam ser lidos,
enquanto gênero literário ao qual se encaixa. Assim, quando lemos Gn 1,1-2.4a
ou Ap 13, devem nos perguntar pelo gênero literário desses textos, sua intenção e
para o que é usado. Não é bom usar gêneros que não tenham preocupação com
afirmações históricas para fazer descrições históricas do passado, por exemplo.

b) Observando o bloco do texto : para olhar o contexto do texto é precisa


observar em que bloco de textos ele está. Os blocos textuais bíblicos são
organizados em temas. Um versículo não diz nada fora da perícope; uma perícope
não diz nada fora do bloco. Por exemplo, em Gl 3,1 – 5,12 Paulo está discutindo a
respeito da justificação pela fé e graça e a relativização da Lei. O bloco é reunido
neste tema e os textos que o compõem precisam ser lidos neste contexto de
discussão. Dentro desse grande bloco que trata a questão da relação Lei e
fé/graça, o apóstolo dos gentios fala a respeito da diferença entre seguir a lógica
da Lei e da graça. Então, quando em Gl 3,1-5 ele critica seus ouvintes por
começarem com o Espírito e agora estarem na carne, não podemos compreender
esta afirmação fora deste contexto literário. Por isso, começar no Espírito é a vida
segundo a lógica da graça, que não depende de circuncisão ou obediência legalista
para relação com Deus, enquanto a carne é, ao contrário, uma vida sob os
ditames da Lei mosaica. Esse texto não pode ser usado para falar em práticas
moralistas, porque aqui Espírito e carne estão relacionados, pelo contexto, com a
vivencia da fé ligada às práticas legalistas ou não.

c) O contexto histórico-social : O Antigo e o Novo Testamentos são resultado de


anos de produção do povo de Israel e das comunidades Cristãs. Para lermos estes
textos, precisamos inseri-los dentro do seu tempo, porque assim saberemos o que
certas expressões significam e como são usadas. Por exemplo, quando Paulo
escreve para os irmãos em Roma, ele está no contexto do Império Romano com
toda a sua lógica imperial. Por isso, ao lermos Rm 13, 1-7 não podemos deixar de
lado que estamos em um contexto não democrático e que havia uma expectativa
que o governo aplicaria a justiça.
Como poderíamos ler o lamento (esse é o gênero do texto) de Jr 17,14-18? O
contexto histórico é o reinado de Jeoaquim (608-597 a.C), um tempo em que
Jeremias passou por profundos sofrimentos (cap.19-20), sendo ameaçado de
morte (cap.26) por causa da dureza do seu discurso. Eram tempos difíceis! Com a
alta tributação para o Egito e depois Babilônia, o povo era alvo da dura mão do
estado monárquico que o extorquia para cumprir seu compromisso tributário
internacional. Nesse tempo, sua profecia fica mais crítica ao templo (lugar central
para arrecadação), aos sacerdotes e aos profetas que defendiam os interessem
dos donos do poder, em detrimento do povo que sofria. Parece que esse é o
contexto onde podemos encaixar muito bem o pedido de restauração e da dabar
(palavra) não ouvida de Jr 17,1-18. Para trazer ainda mais luz sobre o lugar do

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texto, basta olharmos a crítica aos profetas e sacerdotes em Jr 23, 9-40, porque
aparece a palavra ra‘ah , mesma expressão usada no anúncio desacreditado por
alguns no nosso texto. Essa lamentação deve ser lida à luz do período de
Jeoquim, antes da deportação, quando sua profecia sobre o dia da destruição, a
dabar de Javé, era desdenhada. Assim, é possível saber o que ele quer dizer
quando fala de ser curado (v.14) ou quando pedia a Deus que envergonhe seus
perseguidores (v.18).

3) PRINCÍPIOS DE EXPOSIÇÃO
Depois de uma leitura atenta ao texto, ficará claro que algumas afirmações que você
tinha sobre ele serão deixadas. Por outro lado, outras perguntas ou questões
pessoais serão respondidas. É preciso, agora, conduzir este texto para o nosso
tempo, atualizá-lo. No entanto, como já disse, não há uma separação rígida, no ato
da interpretação, entre o passado do texto e nosso tempo, a ponto de a atualização
ser um passo posterior sem qualquer relação com o primeiro. Contudo,
metodologicamente, você precisa separar os passos para fazer o caminho. Percebe-
se o que o texto diz para atualizá-lo à vida de hoje. Na exposição do texto, é
necessário, antes de qualquer coisa, aplicar com discernimento os princípios
encontrados no texto.

Na Aplicação dos princípios é preciso tomar cuidado para não fazer relações rápidas
entre o texto e suas imagens com os nossos dias. Quais os valores que podem ser
retiramos? Quais os princípios e práticas para nossos dias? Como ele responde ao
nosso tempo? Contudo, precisamos tomar cuidado com as colagens (transposições
literais dos enunciados para nossa realidade), com as justificações para nossas
posturas (usar a Bíblia para legitimar algumas de nossas escolhas pessoais), com as
interpretações legalistas (interpretar os textos colocando a vida em segundo lugar) e
com os imediatismos e voluntarismos (tem a ver com isolar e absolutizar certos
textos sem levar em consideração que há outras recomendações em outros textos).

Assim, pergunte-se sobre o significado da mensagem do texto para você ou para a


comunidade receptora. Dessa forma, a leitura do texto será mais adequada.
Contudo, no decorrer do curso outras disciplinas (hermenêutica, exegese e outras) te
ajudarão nessa tarefa.

Agora que você concluiu a última aula, aproveite para realizar as seguintes
atividades:

Fórum 2
Atividade Dissertativa 2
Atividade Objetiva 2

Parabéns! Você concluiu a última aula desta disciplina.

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28/02/2022 14:00 Aulas.

Conclua as atividades relacionadas e faça a Avaliação Online.

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