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A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós
Fonte:
A CIDADE E AS SERRAS
Eça de Queirós
Advertência
24 de abril de 1901.
- Irra! É demais!
Logo nessa semana, sem escolher, Jacinto Galião
comprou a um príncipe polaco, que depois da tomada de
Varsóvia se metera frade cartuxo, aquele palacete dos
Campos Elísios, nº.202. E sob o pesado ouro dos seus
estuques, entre as suas ramalhudas sedas se enconchou,
descansando de tantas agitações, numa vida de pachorra
e de boa mesa, com alguns companheiros de emigração
(o desembargador Nuno Velho, o conde de Rabacena,
outros menores), até que morreu de indigestão, duma
lampreia de escabeche que mandara o seu procurador
em Montemor. Os amigos pensavam que a Srª. D.
Angelina Fafes voltaria ao reino. Mas a boa senhora temia
a jornada, os mares, as caleças que racham. E não se
queria separar do seu Confessor, nem do seu Médico,
que tão bem lhe compreendiam os escrúpulos e a asma.
- Eu, pôr mim, aqui fico no 202 (declarara ela), ainda que
me faz falta a boa água de Alcolena... O Cintinho, esse,
em crescendo, que decida.
Suma ciência
X = Suma felicidade
Suma potência
-Caramba!
II
-Ó Jacinto!
-Ó Zé Fernandes!
-Eis a Civilização!
Eu coçava a barba:
-Grilo!
-É bom?
-Eis a Civilização!
III
-Eu?
-Ó, este Paris, Jacinto, este teu Paris! Que enorme, que
grosseiro bazar!
-Vem no Fígaro!
-Tua?
-É brilhante!
-Em quê?
IV
-Uma festa?...
-Pôr causa da Grão-duque, coitado, que me vai mandar
um peixe delicioso e muito raro que se pesca na
Dalmácia. Eu queria um almoço curto. - O Grão-duque
reclamou uma ceia. É um bárbaro, besuntado com
literatura do século XVIII, que ainda acredita em ceias,
em Paris! Reúno no Domingo três ou quatro mulheres, e
uns dez homens bem típicos, para o divertir. Também
aproveitas. Folheias Paris num resumo... Mas é uma
maçada amarga!
Jacinto acudiu:
-Um erro?
-Ó!
-Para o peixe?...
E um dos homens:
-Parece um cornetim...
-Não, é o Paulim!
Oh les casquette-e-e-tes!...
-Fogo?
-E o nomezinho, hem?
-Madame Colombe?
-Já não mora... Abalou esta manhã, para outra terra com
outra porca!
VI
-É curioso!
-Eh Jacinto!
-Eh Maurício!
-Há três anos que não te vejo, Jacinto... Como tem sido
possível, neste Paris que é uma aldeola e que tu
atravancas?
-Ainda o cultivei.
-O Ruskinismo?
-E então? então?...
VII
-E Jacinto?
-Ó Jacinto!
-Ó viajante!...
-Aborrecidote, hem?
VIII
-É do Silvério? - exclamei.
-Medonha, hem?
a caminho!
senão Paris!
Em Biarriz.
Ay Soledad, Soleda...á...á...á.
- Irun! Irun!...
Nessa Irun almoçamos com suculência - porque sobre
nós velava, como deus onipresente, a Companhia do
Norte. Depois “el jefe d’Aduana, el jefe d’Estación”,
preciosamente nos instalaram noutro salão, novo, com
cetins cor de azeitona, mas tão pequeno que uma rica
porção dos nossos confortos em mantas, livros, sacos e
impermeáveis, passou para o compartimento do Sleeping
onde se repoltreavam o Grilo e o Anatole, ambos de
bonés escoceses, e fumando gordos charutos - Buen
viage! Gracias! Servidores! - e entramos silvando nos
Pireneus.
-Mas então?...
Fernandes!
-Ó belo Pimentão!...
-E o grilo? as bagagens?...
A sineta tilintou.
-Que beleza!
-Que beleza!
-E agora, Zé Fernandes?
Encolhi os ombros:
-É uma beleza!
-Não sei.
-Hem, Jacinto?
-É verdade, os ossos...
-Zé Fernandes...
-Diz.
-Zé Fernandes...
-Que é?
-Zé Fernandes...
-Hem?
IX
Cedo, de madrugada, sem rumor, para não despertar o
meu Jacinto, que, com as mãos cruzadas sobre o peito,
dormia beatificamente na sua enxerga de granito - parti
para Guiães. Ao cabo duma semana, recolhendo uma
manhã para o almoço, encontrei no corredor as minhas
malas tão desejadas, que um moço do casal da Giesta
trouxera num carro com “recados do sr. Pimentinha”. O
meu pensamento pulou para o meu Príncipe. E lancei
pelo telégrafo, para Lisboa, para o Hotel Bragança, este
brado alegre: - “Estás lá? Sei recuperaste Grilo e
Civilização! Hurra, Abraço!” - Só depois de sete dias,
ocupados numa delicada apanha de aspargos com que
outrora civilizara a horta da tia Vicência, notei o silêncio
de Jacinto. Num bilhete postal renovei, desenvolvi o grito
amigo: - “E tornam desatento e mudo? Eu, todo
aspargos! Responde, quando chegas? Tempo delicioso!
23º à sombra. E os ossos?” - Veio depois a devota
romaria da Senhora da Roqueirinha. Durante a Lua-nova
andei num corte de mato, na minha terra das Corcas. A
tia Vicência vomitou, com uma indigestão de morcelas. E
o silêncio do meu Príncipe era ingrato e ferrenho.
-Não.
Eu ri:
-É um azinheiro, Jacinto.
-Pois sim... Mas sem ser milho nem cevada... então ali no
pomar, rente do muro velho, não se podia plantar uma
fila de pessegueiros?
-Não.
ensina o ditado:
-Então como vai tua mãe? Abre lá a porta, que estão aqui
estes senhores... Ela abriu, lentamente, e ia murmurando
numa voz dolente e arrastada mas sem queixume, que
um vago, resignado sorriso acompanhava:
-Não há de ser nada, tia Maria!... Isso foi friagem! Não foi
senão friagem!
Ah! ah! ah! Ora viva a bela chalaça!... Está boa a risota!
XI
Eu rira:
-E tu?
-Até faz gosto, até faz gosto!... Ora mais uma destas
batatinhas recheadas...
XIII
Jacinto ecoou:
-Divina!!
-E tu?
-Eu fiquei tão espantado, que nem o desiludi!
XIV
Ele ria:
-A mão!
-Mas, ó tio João, ouça cá! Sempre é certo você dizer pôr
aí, pelos sítios, que El-Rei D. Sebastião voltara?
O pitoresco velho apoiou as duas mãos sobre o cajado, o
queixo de espalhada barba sobre as mãos, e murmurava,
sem nos olhar, como seguindo a percussão dos seus
pensamentos:
-A Flor da Malva.
XV
XVI
-Eh, Fernandes!
-E Jacinto?
-Madame de Oriol?
-Continua.
-Dornan?
-Eh, Fernandes!
O Grão-Duque! O belo Grão-Duque, de jaquetão alvadio e
chapéu tirolês cor de mel! Apertei com gratidão
reverente a mão do Príncipe, que me reconhecera.
-E Jacinto? Em Paris?...
Curvei a cabeça:
-Silêncio, brutos!
- Sale Maure!3
-E esse Paris?
-Medonho!
FIM