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Os evangelhos apócrifos – textos que foram proibidos pela Igreja e que desapareceram
por mais de um milênio – trazem um Jesus diferente daquele que conhecemos
Por Érica Montenegro
Esta frase acima é atribuída a Jesus Cristo. Mas não adianta ir procurá-la na Bíblia. Ela
não está em nenhum lugar dos Evangelhos de Lucas, Marcos, Mateus ou João, os únicos
relatos da vida de Jesus que a Igreja considera autênticos. A citação faz parte de um
outro evangelho - o de Tomé. Também não perca seu tempo procurando por esse livro no
Novo Testamento. Não há por lá nenhum evangelho com o nome do mais cético dos
apóstolos, aquele que queria "ver para crer".
Mas nem todos. O Evangelho de Tomé, o de Filipe e o de Maria Madalena, por exemplo,
escaparam por pouco da destruição - graças a um egípcio anônimo. Em algum momento
do século 4, esse egípcio teve a boa idéia de esconder num jarro de barro cópias
manuscritas na língua copta desses textos e de muitos outros ameaçados pela
perseguição da Igreja. O jarro ficou 1.600 anos sob a areia do deserto. Acabou resgatado
por um grupo de beduínos, em 1945, perto da cidade egípcia de Nag Hammadi. Só nos
últimos anos os textos acabaram de ser traduzidos e chegaram ao conhecimento dos
cristãos do mundo.
Assim, por acidente, alguns apócrifos sobreviveram ao tempo. E agora, 2 mil anos depois
da morte de Cristo, eles estão fazendo um tremendo sucesso. Inspiram filmes milionários
(como Matrix) e best sellers (como O Código Da Vinci). São adotados por seitas cristãs,
geram religiões, dão origem a teorias conspiratórias e são cada vez mais lidos por fiéis do
mundo, inclusive cristãos tradicionais, que não vêm contradição entre alguns desses
textos e a religião que eles seguem. Só no Brasil há pelo menos 30 grupos cujas crenças
são baseadas nos apócrifos. Como explicar essa súbita popularidade para textos que
estiveram sumidos por mais de um milênio e meio?
Talvez a principal razão seja o fato de que os textos revelam mais sobre Jesus. Os quatro
evangelhos canônicos contam uma história fascinante, mas deixam muitas brechas. Os
cristãos do mundo têm vontade de saber mais sobre esse homem, ainda que seja através
de textos que a Igreja não considera legítimos.
E vários dos apócrifos trazem passagens reveladoras para aqueles que tentam enxergar o
homem por trás do Deus. "É um Jesus mais humano, em situações mais próximas da
vida de homens e mulheres de hoje", diz o jornalista espanhol Juan Arias, do El País,
autor de livros sobre a história do cristianismo. Arias, que cobriu o Vaticano por 14 anos,
está terminando um livro em que resume as pesquisas históricas a respeito de Maria. Um
dos temas que ele examina é a falta de referência em alguns apócrifos à virgindade da
mãe de Jesus. "Que mulher se identifica com outra que foi mãe sem perder a
virgindade?", pergunta.
Além disso, vários apócrifos trazem o retrato de um Jesus diferente do que conhecíamos.
"As questões de gênero, as relações de poder e até mesmo a espiritualidade estão
colocadas em termos mais ecumênicos e holísticos nos apócrifos", diz o frei franciscano
Jacir de Freitas Farias, professor do Instituto São Tomás de Aquino, em Belo Horizonte.
Frei Jacir promove retiros em que evangelhos apócrifos, meditação e ioga se misturam
para proporcionar conforto espiritual aos participantes.
Veja por exemplo aquela citação lá atrás, a que abre a reportagem. O que está escrito ali
é que nada é mais importante que a sabedoria, e que o autoconhecimento é o caminho
para a sabedoria. Essa idéia - que não é muito diferente daquilo que prega o budismo -
está completamente ausente dos evangelhos de Mateus, Marcos, João e Lucas. Qualquer
bom cristão sabe que o Novo Testamento oferece um caminho de só duas pistas para a
salvação. Primeiro: é preciso ter fé (ela remove montanhas). Segundo: suas ações têm
que ser boas (ame o próximo como a si mesmo). Em nenhum lugar há referência a outra
rota para o Paraíso. Nem Lucas, nem Marcos, nem Mateus, nem João mencionam a
salvação pelo autoconhecimento, ou pela sabedoria.
Sem falar que muitos apócrifos deixam em segundo plano uma velha conhecida dos
cristãos: a culpa. Você conhece a história dos livros canônicos: eu e você somos
pecadores, e Cristo morreu na cruz para nos salvar. Nós pecamos, ele morreu - durma-se
com isso na consciência. Já os evangelhos de Tomé, Filipe e Maria Madalena não contêm
uma só linha sobre o julgamento e a condenação de Jesus. Ou seja, a Paixão de Cristo,
que hoje consideramos central para a fé cristã, não tinha a menor importância para os
seguidores desses textos. Nada de culpa, portanto. Ele traz apenas charadas que
convocam seus leitores a reflexões espirituais.
Para resumir: os apócrifos revelam um Jesus mais democrático e menos sexista, mais
tolerante e menos autoritário - características que combinam com nossos dias. Eles
eliminam a culpa e abrem caminho para uma fé pessoal, algo que faz sucesso nestes
tempos individualistas. Sem falar que estão cercados de uma charmosa aura de mistério.
"Esta é uma sociedade que desconfia de qualquer instituição, então dizer que eles foram
condenados pela Igreja vira um chamariz e tanto", diz o teólogo Pedro Vasconcellos, da
PUC de São Paulo. Deu para entender por que eles estão tão na moda?
Mas, afinal, que textos são esses? Dá para dizer que eles são vestígios de cristianismos
perdidos. Sim, é isso mesmo: o cristianismo, no começo, não era um só, eram vários.
"Nos séculos 2 e 3, havia cristãos que acreditavam em um Deus. Outros insistiam que Ele
era dois. Alguns diziam que havia 30. Outros, 365", escreve Bart Ehrman, professor de
Estudos Religiosos na Universidade da Carolina do Norte, no livro Lost Christianities
("Cristianismos Perdidos", sem versão em português).
Não há como saber se o Evangelho de Mateus foi escrito pelo próprio Mateus. "Naquele
tempo, como ainda hoje, não faltava quem se candidatasse a pregar em nome de um
personagem tão importante", afirma o teólogo Paulo Nogueira, da Universidade Metodista
de São Paulo. Mas é bastante provável que o texto tenha sido construído a partir dos
ensinamentos do apóstolo recolhidos por seus seguidores. Da mesma forma, os
evangelhos de João, Pedro, Maria Madalena, Tomé e Filipe devem ter sido os textos que
guiavam as práticas dos grupos que se reuniram em torno dessas figuras importantes da
religião nascente (ou que buscaram inspiração nelas). "Os evangelhos apócrifos, da
mesma forma que os canônicos, não devem ser encarados como reproduções exatas das
palavras de Jesus Cristo, mas como interpretações da mensagem dele feitas pelas
primeiras comunidades cristãs", diz o teólogo Vasconcellos. É claro que essas
interpretações nem sempre concordavam umas com as outras. E, portanto, é claro que,
naquela aurora do cristianismo, produziram-se diversos textos - muitas vezes
contraditórios entre si.
Entre os primeiros grupos cristãos havia, por exemplo, os ebionitas, uma das seitas mais
antigas. Eles se consideravam judeus e achavam que Jesus era o Salvador apenas do
povo hebreu. Os ebionitas mantinham os rituais judaicos, rezavam voltados para
Jerusalém e acreditavam que Cristo tinha sido especial não por ser filho de Deus, mas
por ter seguido à perfeição a lei judaica.
No outro extremo, estavam os marcionitas, para quem havia dois deuses. O primeiro
deles seria um deus mau - o deus dos judeus, responsável por tudo de ruim no planeta.
Jesus seria o segundo, um deus bom, que teria surgido para nos liberar da divindade
maligna. Esse cristianismo, que hoje soa bizarro, foi popular no começo do século 2,
antes de ser condenado como heresia em 139. Uma das razões para o sucesso é que a
tese de dois deuses exclui a culpa cristã. Se um deus mau criou o mundo, é ele o
responsável pelos sofrimentos sobre a terra.
Os gnósticos tinham crenças aparentadas às dos marcionistas. Também para eles o
mundo foi criado por uma divindade imperfeita e não havia por que nos sentirmos
culpados pelos males que existem. A diferença é que os gnósticos acreditavam que o
Deus bom influiu na criação. Ele dotou cada um dos seres humanos de uma centelha
divina - que nos dava a capacidade de despertar dessa imperfeição e conhecer a
verdade. Se conseguirmos acumular conhecimento (gnosis, em grego), nos libertaremos
desse mundo mau e estaremos salvos. Cristo, para os gnósticos, seria um enviado desse
Deus verdadeiro, cujo objetivo seria nos ensinar a despertar. A escrita e a leitura
cumpririam um papel importante nesse processo, e por isso eles deixaram muitos textos
(boa parte dos apócrifos são gnósticos). Nota-se uma forte influência da filosofia grega
nesse cristianismo.
Há uma boa pitada de gnosticismo naquela frase do Evangelho de Tomé que abre esta
reportagem. Mas os tomasinos (seguidores de Tomé) eram uma seita à parte. Eles
também acreditavam na salvação pelo conhecimento, mas iam além: pregavam que a
busca é completamente individual. Os tomasinos rejeitavam a hierarquia - e, portanto, a
Igreja. A salvação está dentro de cada um de nós e podemos atingi-la sem a ajuda de
um padre.
Cada uma dessas comunidades cristãs seguia um certo conjunto de textos - e rejeitava
outros. Mas a maioria considerava legítimos os evangelhos de Marcos, Matias, Lucas e
João, que provavelmente são os mais antigos e menos controversos. Em 312, o
imperador romano Constantino se converteu ao cristianismo. E foi o cristianismo de
Roma que ele escolheu. Constantino administrava um império que era quase "universal",
e queria também uma "Igreja universal". Quando, 13 anos depois, sob as ordens do
imperador, a Igreja se reuniu para decidir o que era o cristianismo, os bispos de Roma,
mais organizados e com o apoio decisivo do imperador, sobressaíram nas discussões. "O
credo de Nicéia acabaria por se tornar a doutrina oficial que todos os cristãos deveriam
aceitar para participar da Santa Igreja, a Igreja Católica", escreve o teóloga Elaine
Pagels, da Universidade Princeton, nos Estados Unidos, no livro Além de Toda Crença: O
Evangelho Desconhecido de Tomé.
Os textos que não davam importância à crucificação de Cristo acabaram proibidos. Afinal,
a Igreja romana, que cresceu em meio a violentas perseguições, valorizava muito o
martírio - associado ao martírio de Cristo. Os evangelhos dos tomesinos, que pregavam a
busca individual pela salvação, também caíram fora. A hierarquizada Igreja de Roma
obviamente não simpatizava com essas idéias libertárias. Entre os textos que foram
proibidos, vários faziam parte das bibliotecas gnósticas. Para Eusébio de Cesária, que no
século 4 escreveu o primeiro livro sobre a história do cristianismo, o gnosticismo estava
sendo introduzido pelo demônio, "que odeia o que é Deus, que é inimigo da verdade,
hostil à salvação do mundo, voltando todas suas forças contra a Igreja". Acredita-se que
os manuscritos de Nag Hammadi sejam tesouros salvos da biblioteca gnóstica do
Mosteiro de São Pacômio, que ficava lá perto.
Ninguém sabe ao certo quantos evangelhos foram suprimidos. O que se sabe é que só
quatro livros foram considerados "corretos". Apenas neles "o ensinamento das linhas de
Deus é proclamado. Não acrescentem nada a eles, não deixem nada se afastar deles",
segundo um decreto de um bispo de Alexandria. Daí para a frente, haveria quatro
evangelhos. E, pela primeira vez, um só cristianismo.
Voltemos então à pregação gnóstica, expressa em vários dos evangelhos apócrifos. O
mundo é mau por natureza, mas cada um de nós traz dentro de si uma centelha e, se
atingirmos o conhecimento, iremos despertar. Jesus veio à Terra para nos ensinar o
caminho. Agora substitua nessa história o nome de Jesus pelo de Neo. E temos um dos
maiores sucessos pop dos últimos anos, a trilogia Matrix.
Matrix fez tanto sucesso porque toca num tema com o qual é difícil não se identificar: a
sensação de não pertencer a esse mundo, de se sentir estranho nele, e de que ele é
banal demais para nossas altas aspirações espirituais. É claro que seria um absurdo dizer
que o sujeito que saiu do cinema empolgado com a saga dos irmãos Wachowski tenha
sido tocado pelo mesmo tipo de revelação que os cristãos envolvidos pelas pregações
gnósticas no século 2 ou 3. Mas talvez não seja por coincidência que o roteiro, inspirado
por textos gnósticos, tenha soado tão transcendental .
Os evangelhos apócrifos, assim como os canônicos, foram escritos por pessoas inquietas,
numa época conturbada e difícil, em que as antigas respostas já não davam conta de
acalmar os espíritos. É claro que os tempos, hoje, são muito diferentes. Mas, de novo,
boa parte da humanidade está inquieta e insatisfeita com as respostas que existem. Tem
muita gente em busca de alguma coisa que torne nossa existência mais transcendente,
mais valiosa. E esses textos escritos por outros homens, numa busca parecida, podem
nos dar uma dica de onde começar a procurar.
Na livraria:
Lost Christianities: The Battles for Scripture and the Faiths We Never Knew, Bart D.
Ehrman, Oxford University Press, EUA, 2003
Além de Toda Crença: O Evangelho Desconhecido de Tomé, Elaine Pagels, Objetiva, Rio
de Janeiro, 2003
As Origens Apócrifas do Cristianismo, Jacir de Freitas Faria, Paulinas, São Paulo, 2003
Jesus, Esse Grande Desconhecido, Juan Arias, Objetiva, Rio de Janeiro, 2002
Tomé x João
Talvez ele não fosse tão cético assim
Um dos critérios para explicar por que só os evangelhos de Marcos, Lucas, Mateus e João
entraram na Bíblia é a datação. Um consenso entre os especialistas situa os canônicos
como tendo sido escritos entre 60 e 90. Já os apócrifos teriam sido produzidos a partir do
século 2. Mas também sobre essa questão pairam dúvidas.
Está lá no Evangelho de João. Cristo disse: "Porque me viste, Tomé, creste; bem-
aventurados os que não viram e creram". Alguns pesquisadores, como a americana
Elaine Pagels, da Universidade Princeton, nos Estados Unidos, acham que o autor do
texto, quando o escreveu, estava respondendo ao Evangelho de Tomé. Se a tese dela
está correta, o Evangelho de Tomé é mais antigo que o de João.
Segundo essa teoria, o Evangelho de João seria um esforço para negar que a salvação
pudesse ser atingida pela busca pessoal do autoconhecimento, tese central de Tomé. O
Evangelho de João coloca então Tomé no papel do cético exagerado que é repreendido
por Cristo. E conclui apontando um caminho mais simples para a salvação: basta
acreditar nela. A fé salva.
Fora da Bíblia
Os principais evangelhos apócrifos e a razão de sua proibição
Evangelho de Pedro
Conteúdo: Provavelmente circulou no século 2, tendo sua autoria atribuída ao apóstolo
Pedro. Conta uma versão diferente da ressurreição de Cristo: o Salvador teria sido
conduzido ao céu por dois anjos
Por que foi proibido: Foi acusado de uma heresia chamada "docetismo", pela qual Jesus
era somente espírito
Como foi descoberto: Arqueólogos franceses encontraram um fragmento do texto na
tumba de um monge no Egito, em 1886
Evangelho de Filipe
Conteúdo: Traz histórias que não estão na Bíblia, como a de que Jesus mudava de
aparência para conhecer aqueles a quem se revelava. Sugere seu relacionamento com
Madalena. Circulou no século 3
Por que foi proibido: Por ser gnóstico e afirmar que só mulheres virgens entravam no
Paraíso (o que inviabilizaria as famílias)
Como foi descoberto: Foi encontrado em 1945, em meio aos manuscritos enterrados num
vaso em Nag Hammadi
Evangelho de Tomé
Conteúdo: São 114 frases atribuídas a Jesus. Nelas, Ele afirma que a salvação vem do
autoconhecimento e que a centelha divina está em cada um. Alguns pesquisadores dizem
que o texto é do século 1
Por que foi proibido: Foi combatido pelos primeiros padres da Igreja por causa de seu
contéudo gnóstico
Como foi descoberto: É um dos textos que estavam perdidos até a descoberta de Nag
Hammadi, em 1945
Um evangelho gay?
Ou uma falsificação competente?
"Jesus disse ao jovem o que devia fazer, e à noite este veio a ele com um vestido de
linho sobre o corpo nu. E ficaram juntos aquela noite, pois Jesus ensinou-lhe o mistério
do reino de Deus." Esse trecho explosivo foi divulgado nos anos 70 por Morton Smith,
pesquisador da Universidade da Califórnia.
Apócrifo é pop
A trilogia Matrix não é o único sinal da influência dos evangelhos apócrifos sobre a cultura
pop. Outro que se fartava na fonte era o autor de ficção científica Philip K. Dick. O
escritor, cujos livros inspiraram filmes como o clássico-mor do sci-fi, Blade Runner, e
também Minority Report (de Spielberg) e O Troco (de John Woo), era entusiasta de
textos gnósticos, que abasteceram a "dualidade bem e mal" em sua obra.