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ARTES CENICAS NA FORMACAO HUMANA Marcia Strazzacappa UM, DOIS, TRES... E JA! A IMPORTANCIA DAS UM EPISODIO Como toda boa contadora de histérias, i minha fala narrando um episédio ocorrido em 2004, por ocasiao do XII Endipe realizado na Pontificia Universidade Catélica do Parand, em Curitiba, cujo tema era “conhecimento universal e conhecimento local”. Era a primeira vez que participava de um Endipe. Recém-credenciada no Programa de pés-graduagio da Faculdade de Educagio da Unicamp, estava na capital do Parana acompanhada por dois mestrandos do Laborarte, Cristina Decico e Conrado Federici. Haviamos proposto uma mesajuntos_e _estévamos entusiasmados pela perspectiva de apresentar nossas pesquisas sobre personagens, faz de conta e clowns na escola. No entanto, ao pegarmos a programacao, constatamos que nossa mesa estava locada no liltimo hordtio do wltimo dia do encontro. Testemunhei a mudanga de expresso dos mestrandes & medida que localizava no mapa impresso a sala de nossa sessio: no ultimo andar do prédio mais distante da Faculdade de Medicina, Do entusiasmo por estarmos 14 com um trabalho aprovado, para o descontentamento (quase desilusio) ao ter ciéncia da conjuntura espaco-temporal de nossa sessio, De fato, apés 4 dias de encontro e jd com 0 certificado de participacio em méos, quem restaria no evento para ir A nossa comunicacio? O tema por nés proposto era “Quando © corpo ganha voz na sala de aula”. Haviamos preparado uma comunicagio fora dos padrdes convencionais para tratar do assunto. Ao invés de slides de Power Point, cada qual iria realizar sua exposic’o por meio de seus respectivos personagens: Conrado Federici iniciaria a mesa com seu clown, 0 Lord, todo formal e fazendo citacdes em alemfo. Em seguida, Cristina Decicofalaria sobre como trabalhar com o faz de conta na hora da leitura em sala de aula pela presenca da professora-personagem, transformando-se, durante sua fala, em Nona Carmela, Eu, até entio ausente da sala, chegaria de surpresa com minha personagem clownesca, Dona Clotilde - uma faxineira que fala o que Ihe vem A cabega -, para fechar a discussio. Porém, palhacaria, faz de conta e personagens s6 funcionam na interagio com © outro. De que adiantaria trazer os personagens sem ptiblico? Com pouquissimas pessoas presentes? Ou ainda pior, estando apenas entre nés? Rapidamente, propus aos mestrandos que féssemos até a Feira de Livros que acontecia no saguio central da universidade para anunciar a nossa sessio. Mas, divulgar como? Com filipetas? No téte-d- téte? Nao. Sugeri que levassemos os préprios personagens. Num primeiro momento, eles toparam, mas na hora, apenas Dona Clotilde ocupou © espaco e, gritando em meio As pessoas, foi chamando a atengio para sie tumultuando a feira. Em poucos minutos, um circulo se formou ao seu redor com varias pessoas querendo saber o que estava acontecendo. Neste momento, os mestrandos interpelavam os curiosos convidando- os para assistirem & continuagio da cena em nossa sessio, fornecendo hora e local No dia da mesa, um pouco antes de comesar nossa apresentacao, convidei ainda estudantes de Enfermagem que estavam tendo aula numa sala ao lado da nossa. Conversei com a professora, expliquei sobre o que se tratava e ela liberow a turma para assistir. As taticas funcionaram: tivemos publico! A mesa foi um sucesso e rendeu varios frutos! . Dona Clotilde na Feira de Livros do XII Endipe na PUC-PR, em Curitiba Crédito da foto: Conrado Federici, 2004. Aonarrar esse episédio ocorrido ha quase duas décadas, tenho um duplo intuito: Primeiro, mostrar, Aquela época, o lugar que a arte ocupava dentro de eventos no campo da educagio; segundo, evidenciar o proprio poder da arte ao ter sido 0 meio de comunicasao para conduzir as pessoas & sessio oral e & reflexio. Apés esta primeira comunicagio sobre personagem e faz de conta na escola, participei da edigdo seguinte do Endipe, no Recife/ PE, ao lado de duas doutorandas, Livia Brasileiro e Valéria Figueiredo, com uma sessio intitulada “Educacio, Corpo e Arte: sensibilizago & flor da pele”. Nesta ocasiio especifica, nao foi necessirio ir 4 Feira de Livros para divulgar a mesa. Pelo contrario, havia outras sessdes que abordavam o ensino de arte, provavelmente pelo tema do encontro: “Educacdo, Questées Pedagégicas e Processos Formativos: compromisso com a inclusio social”. Embora nao seja meu desejo adensar tal discusséo aqui, gostaria, no entanto, de salientar 0 quanto a arte costuma ser 0 carro- chefe quando se trata de projetos sociais e/ou projetos de inclusio, mas perde esse status no instante seguinte, quando o(a) jovem egresso(a) do projeto decide fazer da arte sua profissio! No referido Endipe, apresentei uma comunicagio em parceria com Eliana Ayoub, na qual compartilhei as experiéneias acerca de uma disciplina do curso de Pedagogia da Faculdade de Educacdo denominada “Educacio, Corpo e Arte”. Esta disciplina, criada em 1998. como optativa, trés anos mais tarde tornou- se obrigatéria na Pedagogia e eletiva para as demais licenciaturas. Uma disciplina de cunho pratico que, justamente por isso, néo permitia (nem permite) exercicios domiciliares. O conhecimento nela é construido pela praxis. Minha participacio na mesma se dava por meio de discussdes sobre a Danga e Teatro. Além do Endipe, j4 discorzi sobre as contribuicdes dessa disciplina em congressos e eventos como Anped, Confaeb, Enaef, Cole , dentre outros. Embora (ainda) a nao possa_ chegar uma conclusio, ouso sinalizar alguns acontecimentos que podem ter influenciado a mudanga ocorrida nos tiltimos quinze anos, em que o corpo foi marcando presenga nas escolas de diferentes niveis da educagio, seja na sala de aula de artes, seja nos projetos educacionais. Um dos primeiros pontos que destaco é a prépria LDB n. 9.394/96. Nos primeiros anos de sua promulgacao, pouca coisa ocorreu, no entanto, quando se aproximava 2006, prazo limite para a adequagio A nova legislacdo, houve uma grande mobilizagdo por parte de universidades publicas e privadas, centros de formacio, secretarias de educagio, visando A certificagio dos professores e/ou a complementagao curricular . Em segundo lugar, especificamente no tocante & danga, destaco que o Brasil passou de 12 cursos superiores de danga para um total de 43 graduacées entre bacharelados e licenciaturas. A mesma expansio ocorreu nos programas de pés-graduages em artes cénicas (danga e teatro) que elevaram, por sua vez, o néimero de mestres e doutores formados* . Com mais pesquisadores na rea, aumentou 0 niimero de pesquisas e, consequentemente, de publicacées. Houve o fortalecimento de associagées de pesquisadores da rea como a Abrace ea criagéo de uma nova associacio de pesquisa sobre danga, a Anda. No campo da Educacio, a criagio de um GT especifico focado na Arte dentro da tradicional Associagio Nacional de Pesquisa e Pés-Graduagio em Educacao (Anped) foi um marco na década passada. Infere-se que a geragio de conhecimento especifico no campo das artes cénicas e a divulgacao deste contribuiram para a expansio do pensamento sobre ensino de arte. Embora de forma lenta, 0 ensino de arte foi ocupando espacos antes reservados apenas para a lingua portuguesa e a matematica, Dentro dos contetidos do componente Arte, 0 corpo foi, paulatinamente, se tornando mais evidente e o ensino de arte passou a ser compreendido para além das artes visuais, abarcando as demais linguagens artisticas como a misica, a dancaeo teatro. Dentro deste contexto, deixo registrada aqui a minha satisfacio ao participar do XX Endipe e testemunhar a Arte em posicio de destaque num dos mais importantes encontros de educagio do pais. Ver a Arte se deslocar da tiltima hora no ultimo dia em 2004 para ser tema de um dos simpésios integradores no Endipe de 2020, nao tem prego. Esse destaque comprova que as lutas valem a pena! DOIS CONCEITOS Minha contribuicio para a mesa intitulada “artes, movimento e transgressio: insurgéncias formativas na escola e na universidade” traz como recorteasartes cénicas, isto é,o teatro e a danca. Explicito 0 conceito de —danga como sendo “movimentos humanamente organizados segundo uma (STRAZZACAPPA, 2007). Esta intencao estética” definigéo, cunhada pela primeira vez durante uma sessio especial na Anped, visava a desmistificar a ideia de uma danca espetacular e elitista, feita por poucos e para poucos, permitindo ao professorado (tanto de sala de aula quanto responsavel pelas aulas de arte) trabalhar com esta linguagem. A danga é uma producao humana e est presente em todas as culturas do planeta. Trata-se de um patriménio cultural imaterial. Cada povo tem seu ritmo e seu movimento caracteristicos. O teatro, assim como a danga, também é uma producao humana. Compartilho a explicacio dada pelo teatrélogo inglés radicado na Franga, Peter Brook, que, em sua obra de referéncia intitulada “O Espaco vazio” (1977/2015), afirma que basta um espaco vazio, alguém que atravessa enquanto outro o observa para se ter o teatro. Compactuo igualmente com a definic&o do saudoso diretor teatral campineiro, Luis Otavio Burnier, para quem o teatro é a arte de ator (BURNIER, 2001). Para nossa discussio, especificamente, chamo outro brasileiro, Augusto Boal, que via no fazer teatral um ato politico (BOAL, 1999). Tanto a danga quanto o teatro se materializam no/com o corpo. Linguagens nas quais 0 corpo estd em cena, em evidéncia, em movimento, em aco. Linguagens em que o corpo se apresenta como suporte. Séo linguagens artisticas de um © corpo vst (BURNIER, 2001). Ao me aproximar e pesquisar a educacao somatica (FORTIN, 1999; 2008) sobretudo em sua interface com as artes cénicas, opto por substituir o verbo “ter” da maxima - “temos um corpo” -, pelo verbo ser - “somos um corpo” - ¢, desta forma, defendo © ponto de vista de que nés somos nosso corpo. O corpo visto e compreendido como um todo, como um soma. £ por meio do corpo e seus sentidos que nos relacionamos com 0 mundo, intervindo nele e aprendendo com ele (ROBINSON, 2015). Essas duas linguagens artisticas, danca e teatro, nas quais 0 corpo est4 no centro, foram reconhecidas como contetidos a serem contemplados dentro do espago escolar com a LDB n. 9.394/96, mas ainda estéo sendo paulatinamente incorporadas & pratica escolar, como citado anteriormente. Majoritariamente, ainda se presencia nas escolas 0 ensino de arte como sindnimo de artes plisticas (desenho, pintura, colagem, modelagem) ou de artes visuais (incluindo-se ai a fotografia, 0 video, 0 cinema). Em algumas regides do pais, além das, artes visuais, a musica também ocupa um lugar de destaque por meio da criagio de fanfarra marcial. Em outros casos, com aulas especificas de banda ritmica e de canto coral . Diferentemente das artes visuais e da misica que demandam materiais (papéis, tinta, cola, argila, tecidos, dentre outros) e instruments musicais, poderiamos afirmar que as artes cénicas séo as “primas pobres” do ensino de arte, pois necessitam tinica e exclusivamente do corpo em movimento e de um espaco vazio. Essa percepgio das artes cénicas como “primas pobres” nao slo por mim apelidadas. O teatrdlogo polonés, Jerzy Grotowski, em sua obra “Em busca de um teatro pobre” (1987), defendia justamente a eliminagio de todos 0s aparatos como cenério, figurino, aderecos, iluminagio, sonoplastia, mantendo apenas o necessirio, ou seja, ofa) artista em sua vulnerabilidade, diante de uma plateia. Paraele, aesséncia do teatro esta na ago do(a) artistaem cena e sua relagio com 0 piblico. ‘Numa pesquisa“li realizada entre 2007 e 2010, identifiquei que as escolas que tinham aula de teatro (e, em alguns casos, aulas de danca) nao o faziam por opcio. Pelo contrario, faziam justamente diante da falta de opgao. Em outras palavras, era a auséncia de material basico para as aulas de misica como instrumentos musicais, e para as aulas de artes plisticas como papéis, tinta, pincéis, dentre outros, que impulsionava os(as) professores(as) a trabalharem o teatro e a danga. De fato, basta um espaco vazio ea presenca de estudantes com seus corpos em movimento para que o teatro ea danga acontecam, Ocorre, no entanto, por muitas vezes, professores e estudantes utilizarem parte da aula justamente empurrando cadeiras e mesas para criar 0 espaco vazio dentro da sala e, em seguida, utilizarem outra parte da aula para recolocar o mobilidrio no lugar, restando apenas 30 dos 50 minutos da aula para os jogos teatrais e para os processos de criacao cénica e coreografica em si. TRES PREOCUPACOES Apés a narrativa de um episédio e da apresentagio de dois conceitos, compartilho com o leitor algumas preocupagées recentes (¢ crescentes) das quais, para o presente texto, gostaria de destacar apenas trés. A preocupacao mais incisiva diz respeito & conjuntura politica atual em queo corpo eaarte passaram a ser clara e abertamente ameagados, tendo sido colocada em cheque a autonomia dos cidadaos. Nao se podia imaginar que, em pleno século XXI, iriamos presenciar situages de cerceamento da liberdade de expressio e de tentativas de aprisionamento dos corpos, com a volta da censura, tanto nas artes quanto na imprensa, e afirmacées como “meninas vestem rosa e meninos vestem azul”, Para citar apenas alguns atos governamentais contundentestlil, assistimos estupefatos esta gestio extinguir o Ministério da Cultura e substitui-lo pela criagio de uma secretaria subordinada ao Ministério de Turismo (?), explicitando claramente que visio de cultura é por ela sustentada. O entio secretario desta nova secretaria divulgou, no dia 16 de janeiro, um edital para o Prémio Nacional das Artes por meio de um video no qual fez referéncia a uma “arte heroica e nacional’, parafraseando Joseph Goebbles, ministro de Hitler. A sociedade civil e politicos de diferentes partidos se posicionaram de forma categérica contra o video e escreveram criticas ¢ manifestos sobre esse episédio nas midias sociais ¢ nos jornais. O protagonista do video acabou sendo exonerado do cargo. Gostaria, porém, de focar no edital em si, que foi cancelado alguns dias apés a saida do secretario. O contetido do mesmo acabou ficando em segundo plano com tamanha polémica sobre sua divulgacio. No referido edital, havia premiacio para épera (indicada em primeiro lugar), para teatro, misica, literatura, conto, histéria em quadrinhos, mas absolutamente nenhuma premiacio para danca, circo nem performance. Ora, por que essas linguagens explicitamente do corpo nao foram contempladas? Nao é apenas a recém-criada secretaria que vem realizando aces nefastas. Poderia seguir citando impropriedades de outras pastas como as do Ministério da Educacao ouas do Ministério da Mulher, da Familia e dos Direitos Humanos, porém optei em destacar apenas trés das muitas preocupagées, selecionando as que tocam diretamente a arte. Passo, entao, a segunda, que nao est ligada ao governoe sim A globalizagioe diz respeito ao uso das tecnologias. Por mais que as tecnologias jé estejam incorporadas ao nosso cotidiano, que estejam ai para nos ajudar e, de fato, nos ajudam, preocupa-me o tipo de uso que grande parte da sociedade tem feito delas a ponto de alterar seu comportamento, Sao alguns desvios observados quando, por exemplo, uma pessoa considera mais importante registrar um momento que vivé-lo. Assim, em restaurantes, parques, museus, festas, ao invés de se estar nos lugares, de se contemplar, provar, admirar, degustar ou simplesmente conversar, a prioridade é fazer pose, fotografar e postar a foto. Pior ainda, estar nestes lugares e ficar a ver a foto do outro, a pose do outro, o corpo do outro pelo celular. Vivemos a era do cheque entre o real versus © virtual. Um fenémeno que comegou com os jovens e que hoje os adultos assumiram para si, Neste contexto, deparamo-nos com pessoas aparentemente esclarecidas que privilegiam os interlocutores virtuais, com quem dialogam pelo celular, que o amigo real sentado a frente A mesa, Neste didlogo virtual (algumas vezes, com mais de uma pessoa ao mesmo tempo), a manifestago das emogées é feita por meio emojis, substituindo-se a expressio corporal e vocal por “carinhas amarelas”, Para além da critica as tecnologias das midias sociais, gostaria de falar sobre a Inteligéncia Artificial (HARARI, 2019). Nao sou pesquisadora do campo, mas como uma habil observadora das pessoas no mundo, gostaria especificamente de refletir sobre os aplicativos de uso pessoal voltados, em teoria, A satide dos individuos. Refiro-me aos monitores de atividade fisica (/itbif), aqueles “relégios de pulso” que medem a frequéncia cardiacal , as, horas de sono, que alertam o usuario para a hora de beber agua, de se mexer ete. Digo “em teoria” pois acredito que se trata de um desservigo do aplicativo ao retirar do individuo a percepcao de si. Ao invés de sentir suas necessidades através dos sinais em seu préprio corpo, passa- se A terceirizacio dos sentidos. Esses acessérios podem colaborar para a satide, sobretudo de idosos que, justamente pela idade avangada, perderam a percepcio da sede e acabam nfo se hidratando corretamente, por exemplo. Mas,e para o individuo comum? 0 aplicativo acaba por deseducar a pessoa sobre si prépria. E notério como ja incorporamos naturalizamos a terceirizagio como, por exemplo, do senso espacial. Para se localizar numa cidade, na grande maioria das vezes, recorre-se ao GPS. Terceirizamos as emocdes, a0 usar emojis para expressar como nos sentimos. Terceirizamos a percepgio da sensagio térmica pois, em vez de se esticar o brago para fora ou de se olhar pela janela, busca-se os dados sobre o clima fornecidos pelo site. Talvez.a mais séria terceirizagio seja a de nossas habilidades, como a meméria:Quantos numeros de telefone e enderecos, sejam de amigos ou de familiares, datas de aniversario, compromissos da agenda, se sabe de cor? Ao nao usarmos 0 cérebro para tarefas prosaicas, diminuimos a ativacio das células nervosas e, com isso, estamos perdendo nossa capacidade de armazenamento e nossa capacidade de realizar sinapses. Fico a imaginar que, num futuro nao muito distante, as pessoas terfo de consultar 0 que indica o aparelho no pulso para poder responder & simples pergunta: “Ola, tubo bem?” Destaco que nao podemos negar as tecnologias, nem rejeitar os avancos que elas representam em nossas vidas. As tecnologias esto ai e a tendéncia é que elas sigam sendo aprimoradas, evoluindo, avangando e inovando. © problema, afinal, nao esta nas tecnologias em si, mas no uso que se faz delas, sobretudo quando elas influenciam o desenvolvimento e/ou manutengio de nossas habilidades e sentidos, como afirmei acima.Quanto mais se usa a tecnologia, menos se usa 0 corpo (incluindo aqui a mente) e isso leva a consequéncias tanto fisicas quanto psiquicas. E assim, chego & terceira e tiltima preocupacio. Trata-se de uma preocupacao localizada. Refere-se ao ntimero exorbitante de estudantes universitarios sofrendo com depressio, solidao, ansiedade, sindrome do panico e sindrome de burnout. Refere-se igualmente & constatacao do aumento no niimero de suicidios e de tentativas de suicidio entre jovens _universitdrios. Estariam esses fatores interligados? O que estaria ocorrendo nas universidades para se tornar cenario dessas situagdes? A desesperanga é grande. Desesperanga diante do quadro_ politico nacional e mundial. Desesperanga ao ver conquistas sociais que levaram anos para serem alcangadas sendo desmanteladas. Desesperanca diante dos cortes de auxilios para a educagio superior. Desesperanca diante do fato de que a formacio universitaria de hoje pode se tornar obsoleta amanha. Desesperanca diante da falta de perspectiva de um futuro préspero, imaginando que, ao substituir pessoas por maquinas ou pela inteligéncia artificial nao haverd emprego para todos. Desesperanga por simplesmente nio se saber o que esperar. Mas, qual a relagio destas trés preocupacées com as artes cénicas? Com o tema do presente simpésio? O que isso tudo tem a ver com nossa discussao sobre a arte na escola e na universidade? E JA! - PROPONDO UMA TOMADA DE ATITUDE Nao sou profissional do campo da filosofia, nem da psicologia, nem das Ciéncias Sociais. Sou artista da cena e clown, logo, é a partir do lugar da imaginagio, do sonho, da criagéo e da aco, que fago minha reflexio. O tempo urge. Estamos sendo atropelados e no podemos perder o passo, Por isso afirmo que é para ja! Defendo a necessidade de as artes cénicas estarem presentes de forma pratica e vivencial nos diferentes niveis da educacao basica, da educagio infantil ao ensino superior, passando pelo ensino fundamental, ensino médio e ensino técnico, pois defendo a importancia da arte do corpo na formagio de todo e qualquer individuo. Por qué? Qual sua relevancia? Sua importancia se encontra no fato de que, na atualidade, estes dois fazeres, teatro e danga, sio dos poucos a colocar 0 individu em contato consigo préprio, com seu corpo, com suas emocies, com suas sensagdes e sua individualidade. E as pessoas esto carentes de sipréprias. Estar carente de si proprio parece ser a epidemia que assola a contemporaneidade. Nao se trata de uma visio romantica, nem de uma solugio milagrosa. Néo se trata sequer de crer que as artes cénicas sejam salvadoras do mundo. Longe disso. Trata-se de reconhecer © potencial que estas linguagens tém para se trabalhar questdes primordiais para a vida dos individuos, lembrando que, historicamente, a vida cotidiana das pessoas envolvia a totalidade do corpo em movimento (LABAN, 1990), seja no ambiente doméstico, seja no ambiente de trabalho. No Ambito social, as pessoas se ocupavam de projetos criativos e faziam-no tanto de forma individual quanto coletiva. © século XX trouxe a revolugio digital, permitindo maior agilidade nas agées, facilitando a comunicasao e acelerando a vida dos cidadaos para, em teoria, oferecer uma melhor qualidade de vida as pessoas, porém, a maior preocupacio foi com 0 aumento da produtividade. Ja estamos na segunda década do século XXI, era da inteligéncia artificial. Sera que aprendemos com os erros e acertos de nossas escolhas passadas? Com as tecnologias terceirizando os sentidos, as habilidades e as emogées; com tantas virtualidades; com tantas mentiras (fake news) e imagens distorcidas, urge trazer o jovem para © mundo real e concreto. Precisamos tomar consciéncia do aqui e agora, do tocar e do sentir, em outras palavras, precisamos simplesmente estar presentes de corpo inteiro, © historiador israelita Yuval Noah Harari, grande pensador da atualidade, afirma que a tecnologia nos dé um poder imenso, mas ainda somos nés que decidimos o que fazer com ela (HARARI, 2019). Cursos de meditagio, mindfulness, yoga e tantas outras propostas apontam caminhos para superar (e em alguns casos suportar) as preocupacées apontadas anteriormente que representam alguns dos desafios deste novo século. Cada dia que leio, estudo, ougo um podcast, me informo, identifico os beneficios e vejo as conexdes que existem entre estas priticas sugeridas e as artisticas, como o teatro e danga. Pessoalmente, ainda nao fiz nenhuma destas formacées, porém, tenho ao meu redor colegas que vém flertando com algumas dessas priticas e, ao ouvir atentamente seus relatos, reflito sobre as constatages e confirmo algumas suposisées. Identifico que a pratica artistica da cena trabalha, por principio, com varios dos aspectos contidos nestas técnicas agora tio em voga, estudadas e divulgadas, Como artista da cena, por exemplo, eu dango, interpreto e represento. Eu coloco meu corpo em estado de atengio. Busco um estado de presenga e, para tal, dilato meus sentidos. Para conseguir esta ampliacdo da presenca, preciso, primeiramente, me ocupar de minha consciéncia corporal. Pensar em meus apoios, minhas articulagées, minha respiracio, os miisculos ou as cadeias musculares envolvidas em determinada postura e/ou movimento. Preciso ter consciéneia da distribuigio do meu peso entre os apoios, preciso ter nacio do espaco que ocupo na sala, na cidade, no mundo. Preciso agusar todos os meus sentidos. Preciso estar com os olhos, ouvidos, olfato, tato, paladar atentos para perceber o mundo. Quando assume um papel, seja numa improvisagio teatral seja quando incorporo minha clown, Dona Clotilde, isso me obriga a estar dentro e fora de mim ao mesmo tempo. Como um corpo dilatado em que se esta dentro do personagem, em cena, jogando com o outro e, a0 mesmo tempo, se esta fora de si, assistindo a cena de outro Angulo e imaginando a préxima acho. Para se improvisar em cena, é necessario ampliar os sentidos para permanecer atento a todo e qualquer acontecimento, pois a minima ocorréncia pode ser o estopim para outro desfecho da cena. Ao realizar o exercicio de estar dentro e fora de mim no ato da improvisagio, acabo por incorporar essa pratica ¢ realizo a mesma agéo em muitos momentos do cotidiano. Assim, a pratica teatral acaba por ser um ensaio para a vida. E, a0 fazer isso, posso prever reacées do outro e pensar em minhas préprias agées, posso me colocar no lugar do outro, posso pensar e me apropriar de um discurso, posso me conhecer melhor. Conhecer-se melhor é um dos objetivos de se praticar atividades meditativas. Yuval Noah Harari, pensador acima citado, aponta para os beneficios da meditacao e compartilha sua experiéncia pessoal dizendo que medita duas horas por dia, Dentro da légica universitaria em que se tem de quantificar a produgo académica e alcangar metas, isso poderia parecer uma perda de tempo - ora, por que ele fica duas horas “sem fazer nada” ao invés de estar lendo? Produzindo um texto? Preparando sua préxima palestra? O historiador responde que consegue ter uma produgio intensa justamente por passar todo este tempo meditando, abrindo espacos para que novas conexées se estabelegam e se conhecendo melhor. Ao acreditar na relevincia e defender a arte do corpo na formagio de professores, tenho invertido minhas aulas (STRAZZACAPPA, 2012), tanto da graduacéo quanto na pés- graduacio, iniciando com uma_pritica/ vivéncia corporal/sensorial, seguida de um registro imagético, poético, textual individual dos participantes para, somente entio, trazer indicagdes de leituras e fazer reflexdes filos6ficas. Com isso, tenho mostrado 0 quanto © corpo é nossa mais basica tecnologia (MAUSS, 2003) e tenho comprovado o quanto o corpo é poténeia. Isto posto, convoco pesquisadores e docentes universitarios, a uma tomada de atitude: Retornemos ao bisico! Voltemos ao corpo! Nés somos nosso corpo (STRAZZACAPPA, 2001). Defendo, mais do que nunca, nos dias atuais, a necessidade de estudos acerca das artes cénicas, teatro e danca, estarem presentes nos cursos de formacéo de pedagogos, aqueles profissionais que trabalharao com criancas de zero a dez anos deidade. Defendo a necessidade de estudos acerca das artes cénicas estarem presentes também nos cursos de licenciaturas, que formam professores especialistas que trabalharo com as disciplinas especificas no Ensino Fundamental 2, no Ensino Médio e na Educagio de Jovens e Adultos (EJA). Defendo a necessidade de estudos acerca das artes cénicas igualmente estarem presentes nos diferentes cursos superiores, seja como atividades de extensio, extracurriculares, seja como disciplinas obrigatérias nos distintos bacharelados como ja fazemos no caso da Faculdade de Medicina na Unicamp* Compreendo a palavra “estudos” aqui para além da aquisico de saberes racionais, teédricos, histéricos, por meio de leituras, reflexdes abstratas, filosdficas. Reconhego a palavra “estudos” no sentido da experiéncia pratica em si, da vivéncia, da experimentagio. Enfatizo a importancia de se por “a mao na massa’, ou melhor, 0 corpo em movimento. Afinal, o teatro e a danca compéem uma rea em que a forma de se construir conhecimento passa, necessariamente, pela aso, pela praxis. Uso como analogia para falar sobre o ensino de arte a ideia de que s6 se aprende a nadar, nadando. Assim, sé se aprende a fazer teatro, teatrando. S6 se aprende a dangar, dancando. Assim, vamos nos colocar em movimento! Vamos abrir espagos na escola, empurrar cadeiras dentro da sala de aula. Fazer um circulo com as pessoas, estudantes, professores e demais agentes escolares, todas pessoas de mios dadas (ninguém solta a mio de ninguém), percebendo sua individualidade no circulo, como elo tinico que compée a corrente e, ao mesmo tempo, reconhecendo a forca do coletivo. Vamos fazer teatro! Vamos improvisar cenas nas quais possamos colocar nossas questées e problematicas em evidéncia e assim possamos, no coletivo, pensar outras solugdes possiveis. Vamos dangar! Vamos mover nossos corpos de acordo com os movimentos dos colegas, seguindo os sons do ambiente, ou as mtisicas propostas, vamos expressar pelo gesto nossas sensacées vividas e, assim, vamos experimentar novos ritmos e outras vibragées. Vamos criar com o corpo! Ao interpretar e ao dangar, ao se reconectar consigo préprio por meio da arte, ao se apropriar de seu corpo é que 0 individuo se torna consciente, potente e criative. Uma vez empoderado, individualmente, torna-se capaz de pensar e promover mudancas coletivamente. Cabeanés, docentes, promover espagos/tempos para que criangas, adolescentes e jovens possam vivenciar a arte da cena e, assim, possam se preparar para os desafios que despontam neste nosso século e, quem sabe, possamos ter um futuro diferente. Finalizo reproduzindo a frase do psicanalista Roberto Gambinino no encerramento do Encontro Potticas do Fazer + “artistas, pensadores, poetas: maos a obra, que esta é longa, ea vida, curta” (GAMBINI, 2010). REFERENCIAS BRASIL. 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Concluiram que era muito interessante discorrer sabre sum assunto de forma critica por meio da personage. 4 Sobre esse tema, aconselho a leitura da dissertacio demestrado de Alexandre Randi intitulada: “Palco, Academia, Periferia: a dissonante polifenia da Banda Bate Lata na (trans}formagio de um educador’, com orientacéo de Ana Angélica Albano, 2006. © Respectivamente, Associagio Nacional de Pesquisa e ‘pés-graduacao em Educagiio (Anped); Encontro Nacional de Arte e de Educagio Fisica (Enaef); Confederagio ‘Nacional de Arte Educadores do Brasil (Confaeb); Congresso de Leitura do Brasil (Cole), © OLaboratério de Estudos sobre Arte, Corpo e Educacio/ Laborarte, grupo de pesquisa do qual faco parte, foi convidado por mais de uma ocasiio a ministrar ‘cursos voltados aos professores de arte da rede ptiblica (graduados na antiga Educagio Artistica ou em Artes Plisticas) para complementar sua formacao e permitir ‘que também trabalhassem nogies de teatro, miisiea e danca na escola, Dados obtidos em consulta ao portal do MEC (emecamec.govibr) em 29/01/2010 31 Lembrando que isso ocorre ni pela importiincia ou selevincia das linguagens artisticas em si, mas pelo fato ‘de que pesquisas demonstraram o quanto o ensino de artes visuais contribuiu para a methoria do aprendizado daescrita ea miisica para a aquisigao de conhecimentos no campo da matematica, il “visio de Arte das professoras da rede puiblica da Regio ‘Metropolitana de Campinas/SP", Pesquisa de Iniciagao Cientifica com bolsa Capes. Estudantes bolsistas: Gustavo \Valezai e Lucia Kakazu. “8 Trata-sedeum texto datado, que estava sendo redigido ‘em janeizo de 2020, quando diversas ages ocorreram no campo da cultura, Num futuro préximo, alguém pode acreditar que esses fatos no aconteceram. Opteiem nio citar nomes, apenas cargos para nao dar visibilidade a estas pessoas. % Yuval Harari em sua palestza em Davos, em 24 do janeiro de 2020, for um alerta sobre como as informagées obtidas e armazenadas por esses aplicativos poderiam num futuro ser usadas de forma nefasta por politicos, empresas e pessoas mal-intencionadas. Vide o Youtube (httpsi//www.youtube.com/watch? v=gG6WnMb9Fhoafeature=youtu.be). * Desde 2012, introduzimos uma disciplina obrigatéria no curriculo do curso de formacio de médicos na Universidade Estadual de Campinas/Unicamp, oferecida parao segundo ano (40 semestre). A princfpio, a disciplina visava o desenvolvimento da comunicagio médica, Como tempo, desenvolvemos uma metodologia que intitulamos ‘Medical Education Empowered by Theater (MEET), que contribui para a formagio do individuo, * Encontro “Poéticas do Fazer’, promovide pelo Laboratério de Estudos sobre Arte, Corpo e Eaucacio/ Laborarte da Faculdade de Educagio da Unicampem 2010.

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