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PRECONCEITO LINGUISTICO Marcos Bagno Diregao: ANDREIA CusTODIO Capae diagramagao: TELMA CusTODIO Revisdo: KARINA MOTA Fotos da capa: ARQUIVO PUBLICO Do Distrito FEDERAL CIP-BRASIL. CATALOGACAO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LiVROS, Ry 8134p Bagno, Marcos, 1961- Preconceito linguistico / Marcos Bagno. - 56* ~ Sao Paulo: Pardbola Editorial, 2015. 352 p.; 17 cm. (Pardbola breve ; 6) ed. revista e ampliada Inclui bibliografia e indice ISBN 978-85-7934-098-7 uistica. 2. Lingua portuguesa - Aspectos sociais - Brasil, 14-16953 COD: 469.798 CDU: 811.134.3'36 >A 811.134.336 Direitos reservados & PARABOLA EDITORIAL Rua Dr. Mario Vicente, 394 - Ipiranga 04270-000 Sao Paulo, SP pabx: [11] 5061-9262 | 5061-8075 | fax: [11] 2589-9263 home page: www.parabolaeditorial.com.br e-mail: parabola@parabolaeditorial.com.br Todos os direitos reservados. 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Me vali igualmen- te de tudo o que venho colhendo em minha permanente militancia contra 0 preconcei- to lingufstico e em favor de uma educagao em lingua materna mais democratica e coerente com o estado atual das ciéncias da linguagem e da educagao. Quando, no inicio de 1999, sob insis- tente convite de meu querido amigo e editor i) Marcos Marcionilo, recolhi num pequeno volume algu- mas das ideias que tinha divulgado em palestras mj. nistradas no ano anterior, jamais imaginei que essa inj. ciativa teria tamanha repercussio ¢ accitacdo, De fato, parece que existia uma lacuna importante na biblio- grafia brasileira sobre questdes de linguagem: livros escritos de forma acessivel aos nao especialistas ( a fy- turos especialistas) que explicitassem, com a maxima franqueza, opinides divergentes da idcologia linguistica dominante em nossa cultura — uma idecologia antibys- sileira, repressora e autoritaria, assumida ¢ divulgada por gente que vé “erros” por todo lado ¢ que acredita no mito da existéncia, num passado longinquo, de uma “época de ouro” dalingua, quando todos falavam “certo” e ninguém “corrompia” a mistica “lingua de Canes” Tao logo o livro foi publicado, comecei a receher em grande quantidade, mensagens de agradeeinven to da parte de incontaveis pessoas que, como fessavam, “sempre tinham pensado daque! mas jamais tinham encontrado, no meio alguém que se solidarizasse com tais ¢ Ihes provasse que havia boas razées para os fatos numa perspectiva diferente da tr Também foram (e continuam sendo) ince manifestagdes daqueles que, aps a leitura do | Se conscientizaram de seus proprios preconce!! tomaram a decisiio de mudar de atitude diante dor fatos de linguagem em sua vida diaria E claro que também chegaram (e continuam che- gando) reacoes grosseiras e furiosas da parte de gen- te que nao esconde seu idedrio polftico conservador, elitista e autoritdrio. A grande maioria jamais se deu ao trabalho de ler o livro, reagindo ao que ouviram dizer que alguém ouviu dizer. O fascismo ignorante e arrogante sempre encontra quem se preste a levar adiante seu projeto ligubre contra a democratizagao da sociedade. Felizmente, essas reagdes tém sido em numero infinitamente menor. & claro que 0 livro po- dia e continua podendo ser criticado, mas a critica perde todo o seu efeito saudavel quando se transfor- ma em ataque pessoal e deixa explicito o sentimento da intolerancia, a maior inimiga da humanidade em todos os tempos, hoje mais do que nunca! Para os que ja leram e apreciaram o livro, esta nova edigdo vai revelar inimeras surpresas (espero que todas agradaveis). Tentei esclarecer alguns pon- tos, aprofundando discussées que, parece, foram fei- tas de modo superficial na versdo anterior, deixan- do margem a interpretagdes ambiguas, quando nao distorcidas, das propostas tedricas e politicas dos educadores brasileiros engajados numa transforma- cao (para o bem) das relagées entre lingua, escola e sociedade. Também acrescentei material novo, com discusses bem recentes em torno de alguns temas que suscitaram algum debate ptblico em torno de questées de linguagem. sages a1uevoduy, (2) g 3 A principal modificagao se encontra no plano da terminologia. Abandonei definitivamente a exprey. sao “norma culta” por causa das muitas ambiguida- des que ela implica. Como se sabe, esse mesmo rétulo é empregado, sem critérios claros, tanto para rir ao modelo idealizado de lingua “certa” pri pelas gramaticas normativas e por seus divulgadores quanto para designar 0 modo como realmente falam (e escrevem) os brasileiros urbanos, letrados e de status socioeconémico elevado. Ora, essas duas enti- dades sao profundamente diferentes. Quarenta anos de pesquisa sociolingufstica no Brasil tém demons- trado que existe uma distancia muito grande entre o “portugués” que as gramaticas normativas tentam impor como uso tinico e exclusivo da lingua ¢ os va- riados modos de falar que encontramos na atividade linguistica real dos cidadaos que gozam de prestigio social. Por isso, desde que publiquei, em 2003, olivro Anorma oculta: lingua & poder na sociedade brasi- leira, venho insistindo no uso de outros termos para designar essas duas coisas. Cada vez mais se torna evidente que é preciso analisar a nossa realidade sociolinguistica sob trés focos: de um lado, (1) a norma-padrao, isto é, 0 mo- delo idealizado de lingua “certa” descrito ¢ prescrito pela tradi¢&o gramatical normativa — e que de fato ndo corresponde a nenhuma variedade falada autén- tica e, em grande medida, tampouco a escrita mais monitorada —, e, do outro lado, como extremos de um amplo continuum, (2) 0 conjunto das variedades _prestigiadas, faladas pelos cidadaos de maior poder — aquisitivo, de maior nivel de escolarizac4o e de maior prestigio sociocultural, e (3) 0 conjunto das varieda- des estigm tizadas, faladas. pela imensa maioria da nossa populagao, seja nas zonas rurais, seja nas pe- riferias e zonas degradadas das nossas cidades, onde vivem os brasileiros mais pobres, com menor acesso a escolarizagao de qualidade, desprovidos de muitos de seus direitos mais elementares. nao faz parte da lingua, ‘isto nao é um modo de— falar auténtico, nao é uma variedade do portugués ~prasileiro contemporaneo. Ela s6 aparece, e ainda “assim nunca integralmente obedecida, em textos es- critos com alto monitoramento estilistico, nos quais, porém, ja é bastante significativa a presenca das inovacées linguisticas proprias da verdadeira lingua dos brasileiros, uma lingua que procurei descrever o mais exaustivamente possivel nas mais de mil pagi- nas da minha Gramdtica pedagégica do portugués brasileiro, langada em 2012. Um minimo exemplo pode esclarecer essa neces- sidade de distinguir a norma-padrao ideal das varie- dades urbanas de prestigio. Em qualquer gramatica ou livro didatico, encontramos a formagao do modo imperativo sempre apresentada da mesma maneira. sages auevoduy = ay &B Preconceito linguistico Quando se trata do imperativo negativo na segunda ), a tinica forma deserita 6 do pessoa do singular (00 ” ete. Ora, tipo “nao fales “nao comas”, “nao peca em nenhum lugar do Brasil, em nenhuma classe so. cial, se usa essa forma do imperativo negativo. Mes- mo em lugares (como 0 Para e 0 Maranhao) onde o pronome tu é empregado com a morfologia classion em outros tempos e modos (falas, falaste, falasses), o imperativo negativo se faz ou como “nao fala”, “nao come’, “nao pede”, ou como “nao fale’, “nao comma’, “nao pega”. Ninguém, portanto, na fala normal ¢ es pontanea (e mesmo na escrita monitorada), usa a for ma prevista pela norma-padrao. Por isso, ¢ pows z parte da lingua, dizer que a norma-padrao nao fi ‘por lingua entendermos a atividade linguistica real dogs falantes em suas interacdes sociais, Como mencionei, algumas das ideias apresenta das neste livro foram interpretadas numa dire: tanto diferente daquela que presidiu a minha in cao no momento em que as registrei por escrito. Pa tentar esclarecer pelo menos alguns dos pontos criticos dessa situacdo é que faco a seguinte baseada na reflexio mais recente de intime quisadores e agentes de politica educacional: © a prioridade absoluta, no ensino de lingua ae dada as priticas de letramento, isto 6, 4s pra tieas: que possibilitem ao aprendiz uma plena in- sercao na cultura letrada, de modo que ele seja pes Seta comcamscamet capaz de ler e de escrever textos dos mais dife- rentes géneros que circulam na sociedade. Para ler e escrever, por mais dbvio que parega, é pre- ciso ler e escrever, e no, como sempre se acredi- tou, decorar toda uma nomenclatura gramatical numerosa, confusa e frequentemente contradi- toria, nem fazer analise sintatica e morfologica de frases soltas, artificiais, irrelevantes, muitas vezes ridiculas, praticas que nao contribuem em nada para a verdadeira educacdo linguistica dos cidadios — com isso, 0 ensino explicito da gramatica, como objeto de reflexao e teorizacao, deve ser abandonado nas primeiras etapas da escolarizacao em favor de uma real insergao dos aprendizes na cultura letrada em que vivem; todos os aprendizes devem ter acesso as varie- _dades_linguisticas_urbanas de prestigio, nao porque sejam as tnicas formas “certas” de fa- lar e de escrever, mas porque constituem, junto com outros bens sociais, um direito do cidadao, de modo que ele possa se inserir plenamente na vida urbana contemporanea, ter acesso aos bens “Gulturais mais valorizados e dispor dos mesmos recursos de expresso verbal (oral e escrita) dos membros das elites socioculturais e socioecond- micas; 0 acesso e a incorporagao dessas varieda- “des urbanas de prestigio se fazem pelas praticas de letramento mencionadas acima, por meio do sages aiuevoduwy| a convivio intenso, sol etudo no ambiente escolar, com 0s géneros textuais discursivos mais rele- Yantes para a interagao social nos modos de vida contemporaneos; ~ é imprescindivel reconhecer que essas varieda- des urbanas de prestigio ndo correspondem inte- gralmente as formas prescritas pelas gramaticas normativas, isto é, néo correspondem a norma- -padrao tradicional: uma grande quantidade de regras prescritas pela norma-padrao tradicional ja cafram na obsolescéncia, j4 deixaram de ser seguidas até mesmo pelos escritores mais con- sagrados nos tltimos cem anos (se nao mais), assim como muitos usos nao normativos jé se in- corporaram plenamente 4 lingua falada das ca- madas sociais privilegiadas e a lingua escrita nos géneros textuais mais prestigiados — com isso, embora 0 acesso do estudante 4 norma-padrao tradicional também faca parte da sua educagiio lingufstica (sobretudo pela e para a leitura dos classicos), este acesso deve ser feito o numa pers- pectiva critica, para ‘a que nao se caia na a velha pra- “tica (anti)pedagégica de condenar t todas as ino- ‘vacdes linguisticas (resultantes dos inevitaveis Processos de mudanga dal lingua) como se fossem ‘indicios da “ Tuina” e da “decadéncia” do idioma; © a pratica da reflexdo lingutstica 6 importan- te para a formagdo intelectual do cidadao; com isso, ainda existe lugar, em sala de aula, para o estudo explicito da gramatica, desde que ele no seja visto como um fim em si mesmo nem como 0 aprendizado de um conjunto de dogmas, de ver- dades ‘absolutas e imutdveis: a reflexdo sobre a lingua deve ser feita por meio da investigacdo de fatos linguisticos reais, em manifestacdes fala- das e escritas auténticas, e por meio do confronto critico entre as abordagens tradicionais e as teo- rias cientificas mais recentes — se a pratica da pesquisa, da reflexdo sobre a constituig&o hist6- rica dos campos de conhecimento, da contesta- cio e revisao dos postulados cientificos ocorre em todas as demais disciplinas do curriculo es- colar, nao existe justificativa alguma para que ela nao ocorra também nas aulas de lingua: se os professores de ciéncias nao podem mais ensinar que Plutao é um “planeta”, por que os professo- res de portugués devem continuar a ensinar que vocé é mero “pronome de tratamento”, que existe uma “flexdo de grau” ou que 0 verbo preferir nado admite construcdes comparativas do tipo “prefi- ro mil vezes cinema do que teatro”? a variacdo linguistica tem que ser objeto e obje- tivo do ensino de lingua: uma educacio linguisti- ca voltada para a construgao da cidadania numa sociedade verdadeiramente democratica nao pode desconsiderar que os modos de falar dos sages aueodwy (5) diferentes grupos sociais constituem elementos fundamentais da identidade cultural da comuni- dade e dos individuos particulares e que denegriy ou condenar uma variedade linguistica equivale a denegrir e a condenar os seres humanos que q falam, como se fossem incapazes, deficientes oy menos inteligentes — é preciso mostrar, em sala de aula e fora dela, quea lingua varia tanto quanto a sociedade varia, que existem muitas maneiras de dizer a mesma coisa e que todas correspon- dem a usos diferenciados e eficazes dos recursos que o idioma oferece a seus falantes; também é preciso evitar a pratica distorcida de apresentar CT.) a variacao como se ela existisse apenas nos meios Co rurais ou menos escolarizados, como se também nao houvesse variagao (e mudanca) linguistica entre os falantes urbanos, socialmente prestigia- dos e altamente escolarizados, inclusive nos gé- neros escritos mais monitorados. Espero que esses pontos estejam suficientemen- te claros para evitar que os linguistas e educadores continuem sendo acusados de pregar ideias que nun- ca passaram por suas cabegas! Ninguém jamais dis- se que é preciso deixar os alunos provenientes das camadas desfavorecidas da populacao encerrados em sua propria variedade linguistica, sem permiti! que tenham acesso a outros modos de falar e de es- | crever. Infelizmente, essa caliinia (fruto de leitura Preconceito linguistico apressada, quando nao mal-intencionada) continua sendo estampada com lamentavel frequéncia nos jor- nais e revistas brasileiros. Como é facil ver, a luta esta apenas comecando. E agradeco profundamente as muitas pessoas que ja se juntaram a ela e as que venham a unir suas forcas no nosso dificil trabalho de construgao de uma socieda- de de fato linguisticamente democratica. Brasilia, 1° de janeiro de 2015. Marcos BAGNO www.marcosbagno.org sages auewoduy 3 |

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