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Fayga Ostro UNIVERSOS DA-ARTE Didatico, analitico, e também contemplative, este livo representa uma contribuicdo original para a compreensao da arte. Procedendo em varios nfveis, a autora expde os. princfpios fundamentais de composicao ao mesmo teripo que relata uma experiéncia fascinante: a de um curso teérico ministrado a operérios de uma fabrica, transcrevendo dialogos e questionamentos que surgiram nas aulas. Alem disso, numa visdo global da arte como experiéncia de vida, ela examina os significados do trabalho artistico. Apresentando dados biogréficos de artistas © uma anélise estilistica de suas obras (fartamente ilustradas aqui) - usando como critérios objetivos os préprios principios da linguagem visual - ela mostra como nas obras se revela claramente o crescimento da personalidade do artista, sua figura humana. Através da leitura deste livro somos levados a entender 0 quanto a arte amplia nossa sensibilidade e nossa consciéncia.. Das mais de 300 ilustragdes que acompanham o texto, 118 sao desenhos que exemplificam os conceitos de composicao e 188 reproducdes (37 em cores) de obras datando desde a Pré-Historia até os dias de hoje. Todas as ilustracbes sao acompanhadas de andlises da estrutura espacial da imagem, demonstrando as correspondéncias que existem entre essas estruturas e 0 seu contetido expressivo. Dedicando-se hé mais de vinte anos ao ensino da arte, Fayga Ostrower tornou-se artista de renome internacional, tendo sido premiada com 0 Grande Prémio Internacional da Bienal 4 de Veneza e 0 Grande Prémio Nacional da Bienal de So Paulo. as Foi eleita Membro Honorario da Accademia dell’Arti del Disegno (fundada por Michelangelo), de Florenca. Sua b rea de ensino abrangia a teoria da arte, sobretudo os aspectos basicos da linguagem visual, a estrutura de espaco relacionada a expressividade das formas e 0 papel da percepcéo e intuicdo nos processos criativos, Durante quase duas décadas foi professora de cursos de composi¢ao analise no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, além de lecionar em numerosas universidades brasileiras e ser convidada para dar cursos e confe- réncias no exterior. E autora de artigos sobre educacao artistica e dos livros Criatividade e Processos de Criagao (Editora Vozes), Goya ~ Artista, Revolucionério e Humanista (Editora imaginario), A Sensibilidade do Intelecto (Elsevier), Acasos e Criagdo Artistica (Elsevier) e A Grandeza Humana (Elsevier). : Uma empresa Elsevier CAMBS retrpicconte B s ge wi) XI SEMELHANCAS. E CONTRASTES indo o artista compe uma imagem, desdobrando os varios elementos ais, dispde de duas modalidades basicas para fazé-lo: pode relacionar formas através de semelhancas ou através de contrastes. Eventualmente fard predominar um ou outro modo, ou interligara ambos proporcio- hente — as opg6es, jd sabemos, serao intuitivas. O importante para nés xder seguir as indicagdes e reconhecer os caminhos de ordenagao da gem, a fim de compreender o que o artista tem a dizer. Ainda que nao sejam alternativas que se excluam mutuamente, cada esses modos ~ semelhangas ou contrastes — implica conseqiiéneias es- ficas, formais ¢ expressivas. Resumindo-as, podemos dizer que atra- de semelhancas 0 artista introduz seqiiéncias ritmicas, enquanto wés de contrastes ele articula tensdes espaciais. Quando predominam ualmente os aspectos ritmicos, 0 carter expressivo da imagem tende ‘a 0 lirico, ou também épico, ao passo que as tensdes determinam o con- lo dramético da obra. Fui ao quadro-negro e tracei varias linhas verticais, distribuindo-as por laa rea, Em seguida pedi a um voluntitio que continuasse 0 desenho ‘outras linhas “em pé”. Podiam ser curtas, longas, finas, grossas, con- was, pontilhadas (desenho 87). Comentei que, apesar de cada traco recer um pouco diferente do outro e ocupar outra posicao no plano rico, eles eram suficientemente semelhantes em sua orientagio espa- Para nos permitir consideré-los variagdes da vertical. Também os via- como variagdes de uma linha que eu nem sequer havia desenhado no jadro-negro, mas que existia presente em nossa visio mental, como uma écie de referéncia ideal: a vertical perfeita, uma linha ideal imaginéria, endicular ao chao. A essa linha ideal referimos as verticais que perce. }05 na natureza ou as que produzimos (desenho 88). Quando o critério comparacao é o da verticalidade, como estipulamos anteriormente, linhas desenhadas no quadro-negro passam a constituir semelhancas mais. Pedi ao rapaz que no meio das linhas “em pé” desenhasse uma linha Scitada”, horizontal (desenho 89). Nao foi dificil ver que, entre tantas li- s verticais, a horizontal deixava de ser uma semelhanca, pasando a stituir um contraste formal. O grau de diferencia¢ao envolvia agora a 125 Desenho 89 Desenho 90 Deseno 92 prépria diego espacial e nao permitia avaliar a horizontal como seme- Ihante as verticais. Entendido 0 principio basico de semelhancas ¢ contrastes, caberia amplié-lo. Ele sempre se definiré dentro de um contexto. Enquanto ao: lado da linha horizontal, as varias verticais constituem um contraste 6b- vio, elas sdo vistas entre si como semelhantes. Mas digamos que com ‘umas cinco verticais~ trés pontilhadas e duas continuas ~se faca uma pe~ quena composigio (desenho 90). Agora, o que antes fora visto como se- melhante, passa a ser contrastante. Comparadas entre si, as poucas linhas aparecem bastante diferentes umas das outras, em termos de peso visual e densidade, assim como na extensdo e continuidade do trajeto vi sual. No novo contexto (dessas cinco linhas) a diferenga passaria a con- tar tanto quanto a semelhanca. ‘Vejamos outro exemplo. Pedi ao rapaz que ao tracado linear acrescen- tasse um tridngulo € um circulo (desenho 91). Comparadas com as duas superficies, as diferengas anteriores entre as linhas sio absorvidas numa nova relagio. Agora todas as linbas se unem — como variagdes do elemen- 10 linha~e se contrapdem em bloco ao elemento superficie. No novo con- texto visivel no quadro-negro, as semelhancas e os contrastes encontram-se em varios niveis: Semelhangas: ~entre linhas verticais, ~entre todas as linhas, em relagao ao elemento supe ~ entre as superficies, em relagio ao elemento linha. Contrastes menores: ~entre as linhas verticais, de tamanhos ¢ tessituras diversas, ~ entre linhas verticais e horizontais, ~ entre a configuragao triangular e circular. Contraste maior: ~ entre linhas e superticies. Os contrastes se tornam “menores” ou “maiores” sempre em relacéo ‘aos outros e em relagao ao contexto em que se encontram. “Crescem” em importincia formal quando so acumulados e, sobretudo, quando, além de tessituras ¢ magnitudes, indicam mudangas de escala dimensional, en- volvendo a propria organizagio do espaco (desenho 92). O artista pode sgradué-los, conjugando contrastes. Assim, por exemplo, a0 lado de linhas verticais, um retingulo ~ que jé é um contraste de elementos ~ contrastaria ‘ais se fosse horizontal do que vertical. Mais entao, um cubo horizontal. O contraste ainda aumentaria se as linhas verticais fossem verdes e o cubo ho- izontal vermelho e, novamente acumulando contrastes, sc as linhas fossem verde-claro contra um cubo vermelho-escuro, verde-claro transparente con- tra vermelho-escuro opaco, e assim por diante. Nas semelhangas e nos contrastes, avaliamos visualmente o grau de dife- renciagZo entre os fendmenos. Trata-se de um processo basico de percepcao. 126 realidade, tudo 0 que percebemos nao deixa de ser contrastante, pois io 6 efeito de diferenciago; até mesmo as semelhangas implicam uma dife- iciagio. Se nao fosse assim, nosso campo visual ndo passaria de uma tinica em nebulosa. O que fazemos é correr a vista rapidamente, instintiva- te, pelas varias diferenciagdes existentes, comparando-as entre si e com- =] -ando-as também ao maximo contraste presente. Este se destaca no campo I, chamando nossa atengao e nos servindo de parametro, pois é a partir sua presenca que se desencadeia, em cada caso, um novo processo de gra- —— 1G6es (o que pode ocorrer em fracdes de segundo). Diante de contrastes maiores (acumulados, ou contrastes entre elemen- .) 0s contrastes menores se unem, nos fazendo perceber, prioritariamen- um denominador comum entre eles. Por exemplo, no caso da izontal (desenho 89) ou do triangulo (desenho 91) entre as diversas li- as verticais, ressalta o efeito de verticalidade ou de linearidade. Perce- ndo-o, classificaremos as linhas verticais como semelhantes entre si, mmo variagées formais. Na percepsao, as semelhangas passam a constitu- um “fundo” (menos diferenciado), 20 passo que os contrastes (mais di- enciados) denotam “figura”. ‘Vejamos agora que tipo de contrastes formais conhecemos. Pedi ao ra- que apagasse tudo e desenhasse umas linhas horizontais retas. Ao lado tase umas curvas (desenho 93). Observamos ento um contraste esté- -o/dinamico. Esse contraste ocorre dentro da mesma diregio ¢ revela 0 .dro dimensional do elemento linha.t Se tivéssemos curvas verticais a0 lo das linhas horizontais, o contraste seria intensificado por uma inver- io de diregdes, Continuaria, contudo, puramente linear. Que mais? O rapaz foi recebendo sugestdes: linhas grandes, peque- as, finas, grossas, Tessituras contrastantes. Uma espiral pontilhada, ortada por tracos finos verticais. Entre duas horizontais, uma onda si- ‘nuosa, desenhada com o giz deitado (tessituras caracteristicas da linha =desenho 94). E outros elementos? Fomos lembrando as aulas anteriores em que dis- cutimos as possibilidades especificas de desdobramento formal de cada elemento. Superficies: além de contrastes de figuras e tamanhos, superfi- cies fechadas contra abertas, superficies planas contra superposicées. Vo- Jumes: as varias configuragdes, esferas, cubos, cilindros, pirdmides; vistas externas e internas, volumes cheios e vazios. A lis, que constitui em si um contraste de valores claros e escuros. Na cor, 0 caso é mais complexo: certas relacdes coloristicas assumem mais facilmente o cardter de seme- Ihangas e outras de contrastes. Nas tonalidades, por exemplo, temos se- melhangas, variages em torno de uma cor dominante. Nas relagies de cores primérias-secundérias temos ambos, semelhancas e contrastes.? As relagdes de cores quentes e frias e, sobretudo, as de cores complementares Desenho 93 yc Desenho 9% 41 Alina, recordamos, um elemento unidimensional, a superficie, bidimensional, €o volume, ti- dimensional. 2 quando as rlagbes primaras-secundarias se estendem pare cores vizinhas e mstram igagbesla- terais,apresentam semethangas; na contraposigio de cores primiria, azul-amarelo-vermelho, ou secundrias laranja-verde-roxo, temos um contrast 127 T Desenho 95 so compreendidas principalmente em seu cardter contrastante (um azul-turquesa visto ao lado de um laranja, por exemplo, representa um, contraste intenso, especifico da cor, intranspontvel para qualquer outro elemento — ver ilustragio 64F). © que fazem as semelhangas € 0s contrastes? Voltamos a0 quadro- negro. Pedi a outro voluntério que desenhasse uma composicao. Ele teria liberdade para inventar qualquer coisa que viesse & sua cabega e poderia usar qualquer elemento visual (menos, evidentemente, a cor, por falta de material). Iriamos descobrir o que ele pretendia mostrar. O resultado foi tum desenho onde prevaleciam superficies linhas, embora também surgis- sea nogio de profundidade, através de alguns poucos planos superpostos. ‘Chamava a atengao a forma de grandes losangos contra um fundo de li nas onduladas e de superficies mais ou menos retangulares, uma espéci de grade cortada por uma grande barra horizontal (desenho 95). Parecia vista de casas ou um céu cheio de pipas. Comentei que € importante podermos reconhecer certos tipos de cor trastes e de semelhaneas formais. Bles nos levam a identificar os element: com que o artista trabalha. E, a partir dos elementos, podemos compre der o caréter do espaco que foi ordenado através desses elementos e, sobr tudo, o cardter expressivo da ordenagao. Eo que nos dara os significadk de uma obra. No caso em questo, viamos um espaco plano porém ani do por uma série de linhas diagonais e curvas. Em nossa percep¢o, as ‘melhangas se agrupam em conjuntos maiores (as vérias linhas sinuosas, varias reas retangulares que compdem a “grade”). Acompanhando- como transigées, nossa vista as percorre com relativa rapidez. Porém, encontrarmos um contraste maior (nesse caso, os losangos), paramos. seguida, partimos novamente do contraste, percorrendo outras areas transigio, menos diferenciadas, até determo-nos no préximo contra Ao produzir uma parada, o contraste interrompe momentaneamente: curso do movimento visual, concentrando nossa aten¢do em certos Iu res eadensando o espaco. Dessa maneira, os contrastes criam focos de sdo espacial. Os contrastes e as semelhancas nos servem, pois, de guia visual imagem, orientando-nos quanto aos percursos ou as pausas em nos apreens4o do espago configurado. Além disso, articulam para nés terminados contetidos emotivos. Recordamos nossa observacao ini de que os contrastes indicam um contetido mais dramdtico, Eles sentidos como um confronto entre forcas diferentes — pela oposi formal que percebemos ~ eventualmente como expressio de confi levando-nos até 0 tragico, de conflitos sem solugao. Jé as semelhan formais séo percebidas como repeticdes ritmicas, de contetido mais coe contemplativo. Ou épico, quando o formato fisico da obra for tante grande. Naturalmente, essa é apenas a definicio de um prinef atuante. Nada sera encontrado unicamente em contrastes ou ut mente em semelhangas, e assim nao cabe dividir mecanicamente 0 & tetido expressivo das obras em categorias nitidas, ou “dramaticas”, “liricas". Nem os dois modos se excluem mutuamente. Ao contra nas obras de arte, assim como nas situagdes de vida, os modos se i 128 snetram ¢ se determinam em conjunto. Mas 0 principio basico € esse € fos servird para compreender melhor os miltiplos niveis de significa los que existem em cada obra. Exemplificando os conceitos, passei a reapresentar algumas obras ja istas em aulas anteriores. Nessas imagens, procuramos identificar a pre- saga dos elementos de composigio e acompanhar a estrutura do espago sue se torna expressive. Klee: linhas ¢ superficies, em semelhancas. Kan- nsky: linhas e cores, em contrastes. Mondrian: superficies, em semelhan- s. Picasso (fase azul): superficies € cores, em semelhangas. Giotto: sficies e volumes, em semelhangas. Botticelli: linhas ¢ volumes, em se- angas. Leonardo da Vinci: volumes e luz, em semelhangas. Entre as novas obras mostrei trés pinturas de JAN VERMEER 32-1675). E um artista maravilhoso. Na espiritualidade que emana de s pinturas, Vermeer se coloca a0 lado de Rembrandt. Mas na delicade- no encanto meditativo ele é sem precedentes na arte. ‘bre a biografia de Vermeer nao se sabe praticamente nada. Nao exis- cartas dele, nem comentarios de contemporaneos (embora cle talvez se até reconhecido na época e tivesse tido sucesso). Quando morreu foi uuecido e, por incrivel que pareca, s6 foi redescoberto no final do século sado. Sobre ele existem apenas trés datas no registro civil: a data de ba- smo, +632, a do casamento com Catherina Bolenes, em 1653 (quando rermeet tinha 21 anos € aparentemente ja se estabelecera como mes: -pintor), ¢ a data de sua morte, a 13 de dezembro de 1675. Morrendo 5 43 anos, Vermeer deixou mulher ¢ oito filhos menores & beira da misé- com dividas. Existe ainda um outro documento: segundo um acordo irmado depois da morte de Vermeer, Cathcrina se comprometeu a read- nirir, mediante prestagdes mensais, um néimero de quadros com que Ver~ eet havia pago ao agouguciro e a0 padeiro em momentos de grandes ificuldades financeiras. De ambos, Catherina conseguiu resgatar um to- ‘al de 28 telas. Por escassos que sejam, esses dados revelam aspectos existenciais in- sélitos. Nao s6 projetam uma luz indireta sobre a dedicagio eo compa- nheirismo de Catherina - ao se propor resgatar as obras do marido (escondera outras dos credores) ~ e sobre a relagao de profundo afeto que devia ter existido entre o casal? como também iluminam de modo dramatico a pentiria enfrentada por Vermcer, para ele ter que empenhar suas pinturas em troca de pao e carne. O mistério da personalidade do artista cresce, e nossa admiracao também, quando diante de tio dificeis condigdes de vida consideramos 0 carter das obras produzidas, sobretu- do seu contetido contemplativo. ‘Como tema principal Vermeer pintou cenas de interiores. Vemos am- bientes {ntimos, com uma pessoa, eventualmente duas, a uz filtrando por tama janela invariavelmente colocada do lado esquerdo. Na simplicidade, sdo interiores nobres, com lustres, tapegarias, ¢ freqiientemente espelhos € {3 Por parte de Vermeer, hé um testemunho de grande ternura no quadro Mulher em Azul Lendo una arta. mais do que provivel ter sido Catherina o madelo do quacto, pois dificilmenteoutra mulher, ‘om estado de gravider avancada, teria posado pare o artista 129 quadros nas paredes. Muitas vezes, ha instrumentos de mtisica, cravo, Ioncelo, alatide (que Vermeer pinta como profundo conhecedor dam ia). As pessoas, trajadas com elegincia, aparecem sempre nos mes interiores (os mesmos méveis macicos, as cadeiras de espaldar alto rev das de veludo ou couro e pregadas com tachas de cobre, com os peque! ledes esculpidos nas pontas, as mesmas tapegarias, os mesmos map: instrumentos musicais). Ter Vermeer pintado sua propria casa? (Na breza em que vivia?) E pura conjetura dizé-lo. Hé um outro enigma. do que a distingao das pessoas ou dos recintos em que se encontram — sé @ menor ostentacao de riquezas materiais, de brilhos de seda e broca suntuosos ¢ reflexos de ouro e de acabamentos polidos demais, to a go: da pintura do género da época ~ ressalta nas imagens de Vermeer um ai biente de profundo recolhimento e harmonia, onde nao ha um gesto vi lento ou a mais leve indicagao de tormenta. Nao é uma perfeigao vari Tudo revela vida interior, nessas imagens de pessoas imveis, em pé sentadas, num gesto suspenso em meio a uma tarefa cotidiana, ow len ‘uma carta ou ouvindo um som musical, a s6s com seus pensamentos, refi tindo. A paz que emana dos quadros tem algo de indizivelmente complet © que nos surpreende é justamente que, na pobreza em que vivia, nes dia-a-dia aflitivo, o artista pudesse criar e preservar intacta uma visio vida como esta, captando as profundidades do ser nas horas de grande si léncio interior. MULHER EM AZUL LENDO UMA CARTA (ilusteagio 75) Sugeri ao grupo descobrirmos as varias semelhangas ou os contrastes for- ‘mais que existem nessa imagem. Grata tarefa, pois nao hé uma pincelada’ supérflua. Identificamos os elementos volume e superficie. ‘Como um eco, em variagées e inversdes formais, 0 angulo reto da ca- deira a direita nos remete & cadeira atras da mesa, a0 mapa, a parede do fundo. As varias superticies funcionam como faces laterais ¢ frontais de cubos (no conjunto formado pelo assento diagonal eo espaldar vertical da cadeira, e ainda pela linha horizontal do bastio do mapa), indicando-nos a profundidade da sala. Onde quer que olhemos se refletem formas seme- Ihantes: o retngulo do mapa e o encosto da cadeira do fundo, mapa e pa~ rede a esquerda (inversao do reténgulo}, mapa ¢ 0s pequenos intervalos ‘nos pés da cadeira de frente (variagio e inversio do retingulo). Ainda os volumes: a cadeira na frente, mostrando a figura de um cubo aberto na parte superior e fechado na parte inferior; a mesa, os livros. E sobretudo, dentro do invélucro ciibico que é a prépria sala, como um eixo regendo concentrando o espago ao redor, a figura cilindrica da mulher, pesada na gravidez, alta na proporcdo, com a cabeca ligeiramente abaixada (a forma da cabeca é ainda refletida na pequena esfera do bastio). E também as co- res, Elas esto sendo desdobradas em semelhancas ~ tonalidades - nos vé- rios tons de azul (no casaquinho, nas cadeiras), € em contrastes tensos — complementares indiretas ~ nos azuis e cinzentos que se fecham em ocres, marrons-claros, cremes ¢ brancos. As muitas semelhancas formais nessa imagem, fluindo em repetigdes e variacdes to precisas que parecem ser fei- tas sem esforco qualquer, convergem na figura dominante da mulher, ere- 130 cilindrica, densa. No abandono de si, ela nao s6 dimensiona a profun- ide ao redor dela, como também dé ao quadro peso visual e tensio in- jor. O siléncio meditativo que reina nessa imagem € quase palpavel. Pa- se que se ouve a respiragio da mulher. LICAO DE MUSICA (ilustragio 76) ;ntamo-nos novamente com a riqueza e clareza dos detalhes da ima- . Acompanhando algumas formas mestras, reconhecemos suas varia- em toda parte. O tracado das nervuras do marmore nos remete aos or- nentos do cravo, da tapegaria, das vidragas. Ou entio, seguindo ao lon- da grande diagonal da parede esquerda, que recua na profundidade, ;cebemos no chao as variantes dessa mesma diagonal. Do lado dircito ha -as variagGes: passando pela mesa do primeiro plano (volume cheio), cadeira (inversio para volume vazio), pelo violoncelo no chao (contra dia- al, volume cheio), vemos nas duas figuras do fundo um contra movimen- {volumes yerticais contrapostos a horizontais). Numa nova caminhada ~ re insimeras outras, e sempre o prazer é renovado ~ vamos reencontrar Josangos do chao a forma invertida do encosto da cadeira, ou nos retan- los horizontais do cravo a inversao das verticais do espelho e do quadro. smbém descobrimos as cores, uma por uma, 0s varios vermelhos-amare- azuis.* A gama do vermelho: na saia da mulher, no tampo do cravo, na ecaria da mesa; a gama do amarelo (ocre, ouro, branco}: na blusa da mu- :r,no tampo do cravo, no violoncelo, nas golas e nos punhos, no jarro; a sma do azul (cinza, preto): na saia da mulher, no terno do homem, nos ss escuros do mérmore, no cravo, nas molduras. Annarrativa do quadro é minima: a luz.se filtra pelos caixilhos das jane- ‘Vemos duas figuras, professor e aluna, que esto em pé, ao lado do cra- . Nao fazem qualquer movimento, nenhum gesto. Apenas se olham. Os 0s trajes ~ele em veludo preto com faixa, gola e punhos brancos; ela, saia rmelha, sobre-saia azul-escura, blusa amarela ~ ea decoracio igualmente ica do saldo ~ marmores no cho, madeirame escuro nas janelas e no teto, jtrais, cravo ¢ violoncelo, tapecaria, jarra de porcelana ~ tudo proporciona 1a sensacao de bem-estar e de harmonia, Contudo, ha nessa harmonia 1a dimensao de ser que ultrapassa a mera vista de belos objetos. Projetan- -se na profundidade, os objetos ¢ as figuras humanas ocupam trés lados grande volume que éa sala, de tal modo que enquadram um espaco livre meio e na frente (posigo do espectador). Nesse vo, novamente prevale- 0 siléncio. Uma paz secreta se irradia das coisas, como se seu destino se umprisse nesse ato de estarem plenamente presentes. No fundo da sala, ima do cravo, a cabeca da mulher reflete-se no espelho, entreabrindo um. Wvo espago de profundidade na parede. O olhar das trés pessoas forma um ssenho triangular que, junto com o reflexo dos losangos no piso, faz ecoat a iiltima vez o grande vio do primeiro plano. ‘A relacdo colorstica de priméras-secundéras,lembramas, pode compensar a sibitaprofundidade 1espaco configurado pelos volumes, aplanando-2. Nao & por acaso que a combinacao amarelo(ouro) yemetho-azul (pret) surge por uma Gitima ver dentro dos retangulos marcadamentahorizontais do 0, no fundo da sala, Intepbe-se a0 recuo anterior (do chao) posterior (no espe). 131 PEQUENA RUA EM DELFT (ilustracao 87) Este quadro é das raras vistas exteriores pintadas pelo artista (uma outr também da cidade de Delft, encontra-se no Museu de Haia). Do mes modo que nas imagens de interiores, reencontramos aqui a magica luz d Vermeer. Mais do que fenémeno fisico, iluminagio natural, vemos wi claridade limpida, porém misteriosa, adensando as horas do dia num mi mento de paz e recothimento. A rua est vazia, apenas trés mulheres de cansam. Nessa hora tranqiiila, clas simplesmence existem, cada uma vol tada para dentro de si, em pequenos afazeres cotidianos. A poesia € 0 et canto desta obra so indescritiveis Fomos seguindo na imagem as formas ordenadas da estrutura espacial € dessa vez foi mais fécil a0 grupo identificar as varias semelhancas ¢ contrastes formais na composicao, Janelas, portas, telhados, figuras hi manas. arco do portal se reflete na figura da mulher curvada. A mulh sentada na porta da casa, bordando, um cone s6lido dentro de um vao r tangular. Os tons vermelhos nas venezianas das janelas, nos tijolos do muros c nas telhas (variagGes tonais), fechando a complementar com verdes no beco e nas janelas, e ainda os tons de amarelo e ocre-claro f chando outra complementar, indireta, com os cinzentos-azulados claro: do céu e 0s escuros das trepadeiras no telhado. As linhas livres e sinuosas, verticais, do calcamento da rua, contrastando com os pequenos ornamen= tos lineares, nervosos, da argamassa nos tijolos da fachada, Em Vermeer, esse tipo de leitura visual torna-se facil. Logo em seguida apresentei um outro quadro com um tema bastante si- ilar: uma cena de rua, com fachada de casas, algumas pessoas passeando com criangas, cachorros correndo. O autor é um artista chileno e eu havia recortado a reproducdo de uma agenda. Pedi ao grupo que observasse @ composi¢ao do quadro e, como antes, tentasse descobrir quais as seme~ Ihangas ou os contrastes que se encontravam formulados na imagem. O grupo fez. vérias tentativas de interpretacio, pés-se a discutir, mas no chegou a um resultado positivo. Intervim para explicar que havia uma boa razo para as dificuldades: nao era possivel determinar a presenca de cer~ tos elementos visuais através de semelhancas ou contrastes, porque nada, no quadro, se apresentava suficientemente parecido para ser visto como semethanca formal, nem suficientemente diferente para se tornar contras- tante. As linhas eram um misto entre retas e curvas, as vezes ligeiramente. diagonais, outras vezes horizontais e verticais, sem jamais serem retoma- das num sentido ou no outro, para sabermos em que diregao o artista as quis elaborar. Do mesmo modo, nas indicagdes de superficies e sobretudo nas cores, apesar do colorido vivo do quadro, a obra era totalmente vaga. © artista se contentou em ilustrar determinados objetos: casas com jane- las e portas, figuras humanas com cabeca, corpo, bracos e pernas, mas sem traduzi-los para termos visuais e, menos ainda, relacionamentos formais. Portanto, se ndo conseguimos descobrir nada, é porque nao havia o que descobrir. Entao nao havia o que entender. Conseguimos apenas iden- tificar os objetos representados. Entretanto, nao basta que num retangulo. se possam reconhecer os contornos de uma janela. O retangulo ainda teria 132 ser visto “fazer” alguma coisa, teria que ser relacionado formalmente outras superficies ou outros elementos visuais na imagem, Embora sam representar objetos, as formas se tornam linguagem. Devemos ppreendé-lo como um critério basico de expressdo e também critério de lidade artistica:® quanto mais clara a linguagem formal, tanto melhor bra. © quadro mostrado era tao vago e mediocre que do ponto de vista istico nfo se sustentava. O exemplo tinha sido bastante elogiiente. Mas senti que era dificil para pessoas avaliarem a extensao do problema e transporem as conclusdes tum plano mais geral da criagao artistica e expressividade.® Resolvi romper a exposicio da matéria. Disse a0 grupo que agora conversa- 105 sobre um outro assunto, Sugeri que todos imaginassem ser artistas, ores. Todos teriam nao s6 os meios e o tempo disponivel para se dedi- 0 trabalho artistico, como também jé teriam uma certa experiéncia de sss08 técnicos, saberiam como preparar uma tela, misturar tintas, 1 pincéis ¢ espatulas, Enfim, imaginassem que todos poderiam e sabe- pintar, O que pintariam? Que assunto? E como o pintariam? Fui dirigindo esta pergunta de um a um, a todos os participantes do 10, na ordem em que naquele dia estavam sentados em volta da mesa. ida um me respondeu com a maior espontaneidade. Eles néo podiam sr como eu interpretaria suas respostas ¢, muito menos ainda, como vi a deduzir das respostas individuais um sentido coletivo. Nem eu sabia. endi muito nessa aula. O primeiro a ser indagado foi um rapaz bastante jovem, Ele respondeu gostaria de pintar um acidente de rua. Que tipo de acidente? Tiros, € fusio, e gente caindo. © rapaz no quis definir mais do que isso. — Como pintaria a cena? ~ perguntei ~Teria que ter muita gente — respondeu. ~ Gente correndo, chorando, srrando as criangas; alguns feridos, outros ajudando as pessoas a se le- tarem. Mas tinham que estar todos nervosos, ninguém calmo. De fato, a cena imaginada (ou talvez ja presenciada) era dramatica. A a pergunta minha, de como ele pintaria a imagem, o rapaz respondeu poria as pessoas correndo pelos cantos, em linhas de ziguezague, es- \dendo-se atras das arvores ou entrando pelas portas das casas. Devia st muita agitagao. —E quanto as cores? ~ perguntei. —Tudo acontece & noitinha — disse ele j4 meio escuro. As pessoas de- ser iluminadas de perfil. As cores nao podem ser vivas, mas deve strar contrastes fortes de claro-escuro. O segundo operirio era jovem também. Imaginou outra cena dramé- . dessa vez no mar. Ondas altas, relampagos no céu, nuvens pesadas, ‘Como mencionei no preficio: podem haveroutras abordagens @ outros citéris diante de uma de ate, abordagens psicologcas, antropolégicas,sociolégicas, poitcas, dacumentaras etc s deve fcar claro que suas interpretagOes nao pertencem a area artstce, nem distinguem 3 ifestacdo expresiva no que ela tem de essencial para ser considerada uma obra de art Jinguagem visual, to simples quando éramos criangas, parece dificil parao adulto de hoje. De sua compreensio independe do nivel de instrucéo, exigindo uma educacéo da seniblidade 133 um barco jogado a deriva. Perguntei se havia pessoas no barco e ele res pondeu que nao. = Por qué? — indaguei. ~ Porque ninguém agiienta estar fora com um temporal desses. As pes soas esto esperando na praia, mas nao da para ver. ~ Haverd cores no quadro? ~ indaguei. ~ Sim ~ disse ele - provavelmente pintaria tudo em roxo. - Roxo? ~ per= guntei. ~ $6 roxo? ~Talvez nao sé em roxo, alguns detalhes em azul-escuro e também 0 céu cinza-escuro. E uma luz esverdeada nos relimpagos - respondeu o rapaz. Penso que o quadro de EI Greco Ihe deixou forte impressio. A outra pessoa a falar, um operario ja de mais idade, imaginou pintar homens cortando cana-de-agticar. Desta vez, a cor dominante seria o ver- de, verdes-escuros, azulados, cinzentos nas hastes, com pequenos tracos claros nos nés; em cima, quase brancas, curvas bem transparentes. Era bo- nita a imagem da cana alta, encobrindo o céu e vergada em largas ondas. Em fendas escuras seriam vistas as figuras de alguns homens, de tamanho. pequeno ¢ abaixando-se no corte. Nao eram os homens que cle tinha em mente, era aquele “mar de mato”, Seguiu-se uma cena de fundo de quintal: a mae, com os bragos estendi- dos, chamando os meninos trepados numa mangueira, mais alta do que a casa. Bichos em profusio: cachorros, gatos, galinhas, e até um cavalo. Muito sol e muito céu. E tudo em cores vivas: azuldes, verdes, laranjas, amarelos. Outro rapaz queria pintar um homem passeando na rua com um ca- chorro. ~Por que 0 cachorro? ~ perguntei ~Porque gosto dele. As vezes vou passear com ele, s6 nés dois na estrada ~explicou. proximo, um operdrio também de meia-idade, apresentou uma ima- gem das mais poéticas: uma arvore espelhando-se nas aguas correntes de um riacho, As cores: tons muito claros de rosa e laranja, e a 4gua quase branca, 56 0s troncos ¢ os galhos seriam em marrom-escuro. E especificou: ~F uma drvore carregada de frutos, Por varias vezes surgiu o motivo de um jogo de futebol, s6 uma vez num estadio e, no mais, peladas de rua ou num campinho, com 0 povo olhan- do. Varias vezes também o circo, com acrobatas nos trapézios e principal- mente palhagos. Uma festa de Sao Joao, com bandeirinhas e fitas coloridas, as pessoas dangando. Uma noite de Sao Joo, com balées no céu quase escuro. Uma procissio saindo da igrejinha branca, um séquito de padres, os homens de terno preto ¢ as mulheres e criangas em azul ¢ rosa. $6 uma cena de carnaval, com um bloco fantasiado de indio, Algu- ‘mas poucas paisagens, vistas montanhosas, com casinhas tipicas do inte- rior, um homem ou criancas montados num burrinho ow a cavalo, na es- trada. E interessante assinalar algumas omissdes. Ninguém pensou em pintar um simples retrato, um auto-retrato ou de outra pessoa, como se as pes- soas nao fossem suficientemente importantes. Nenhuma natureza-morta. 134 Naturalmente, ndo havia composigdes abstratas, e seria surpreendente se as houvesse (como proposta de obra de “arte”, bem entendido, pois quan- doa proposta € feita em outros termos, por exemplo, como decoragao de azulejos ou padrao de tecidos, as inibigdes - e os preconceitos ~ desapare- ‘cem como por encanto). Por mais ilustrativas que fossem, nao havia nenhum tipo de imagem visionéria, de sonhos ou fantasias, nem mesmo envolvendo tradigées culturais ou folcléricas, como o Bumba-meu-Boi ‘ou Iemanjé ou outras. Nenhum tema religioso. Nenhuma cena hist6rica. ‘Nenhuma cena patristica. Tampouco imagens que contivessem uma ex- pressio de protesto (a nao ser, talvez, na primeira, da cena de rua). Por outro lado, faltou qualquer referéncia ao trabalho na fébrica. Nas ocu- pagdes imagindrias, ilustradas nos quadros, ndo existia o ambiente in- dustrial da fébrica e, na verdade, pouco se sentia do ambiente urbano. A maioria das imagens dos operérios parecia projetar reminiscéncias de uma infancia rural. Entretanto, na avaliago das respostas, cabe colocar ainda outras con- sideracdes. Em praticamente todas as imagens havia figuras humanas ati- vas. As pessoas estavam juntas e faziam alguma coisa que se relacionava com os outros. Quer dizer, as imagens mostravam o ser humano em cenas, de convivio afetivo e em situacées produtivas (também a natureza, com a frvore carregada de frutos). Por mais dramético que por vezes fosse 0 evento imaginado, nao correspondia a situagdes de isolamento. E se nao havia questionamentos politicos ou sociais, tampouco se detectava algum, depoimento sobre 0 “banal” da vida, ou 0 téo decantado mal de nosso sé- culo, 0 tédio, ov a incomunicabilidade das pessoas. Provavelmente os ope- ririos estavam ocupados demais, procurando ganhat 0 pio de cada dia, para sentirem suas frustragdes em termos de tédio ou de banalidade da vida (esta é uma situagdo de estomago cheio).” Seus problemas tém outra dimensao. Nao hé diivida de que, além da pobreza, os operdrios também devem ter problemas individuais serissimos, angistias ¢ dificuldades de ordem afetiva - talvez pela frustragao continua da nao-realizacdo de suas potencialidades, talvez por um trabalho quase sempre mecanico ¢ repetiti- ‘yo, de poucas exigéncias intelectuais e de menos envolvimento emocional ainda (alids, é 0 caso da maioria das pessoas que trabalham, nao s6 dos ‘operdrios). Mas também nao hé diivida de que, nessas imagens, as pessoas ‘estavam conscientes da presenga de outros e queriam se comunicar. Havia ‘a aspiragio valida de querer dar de si e de participar, um sentimento de grande pureza diante da vida, uma certa inocéncia até, que me tocou. Euestava quase terminando as perguntas, quando me dirigi a um ope- tatio de uns 30 anos. Até ento, esse homem tinha se mantido muito cala- do. Quase nao falava, mas era 0 tinico do grupo que vinha com um cadernoe fazia anotagdes de algumas coisas que eu dizia em aula. A minha pergunta, ele respondeu: 7 Como, no fundo, era “Pop Art", tendéncia artstca norte-americana que suraiu na década de 60 (ver capitulo XVI, Arte Contemporanea). Agora, na Europ, encontramis a chamada “arte de recila~ gem", mostrando latas de leo “recicladac” em canecas, ¢sacos de sementes em roupa, tudo is como obra de arte, No Brasil, nao seriam obras de arte, seriam canecas e roupas. 135, —Eu pintaria uma orquestra. = Uma orquestra? ~ repeti surpreendida. - Vocé também gostaria de ‘mostrar uma imagem com muita gente, muito movimento, muitas cores, é isto? : ~E, talvez — respondeu ~ mas na verdade é mais do que isso. ~ Por que a orquestra? — insist ~ Porque gosto de miisica — Otimo - falei - de que tipo de miisica? Ele olhou para mim, inseguro se devia falar e meio envergonhado. De- pois disse: ~ Gosto principalmente de misica classica: de Haydn, Mozart, Beetho- ven; gosto também de Schubert. Eu nao sabia o que dizer. Fiquei s6 olhando para ele, que continuou: = Entio, pintando a orquestra, eu procuraria marcar bem os diversos instrumentos, com movimentos diferentes. Por exemplo, os violinos com arcos curtos tém sons mais agudos e doces, os violoncelos e contrabaixos, com arcos longos, tém sons mais graves. Depois os instrumentos de sopro, as flautas, os clarinetes, os fagotes, os oboés, as trompas, os trombones. E foi por af citando e descrevendo instrumentos com a maior desenvol- tura. Devia conhecé-los bastante bem. Continuou: ~O que eu gostaria mesmo seria poder dar uma idéia da grande beleza da miisica, da sensagio de harmonia que ela me dé, de estar bem comigo. Ela entra em mim ¢ af eu penso saber das coisas. ‘Mal pude esconder o meu espanto. Como era possivel?, pensei. A fabri- ca onde eu dava as aulas estava localizada na periferia de um subtirbio. O que isso significa em termos de triste abandono, pobreza, poeira, todos bem o sabem, Mas esse subiirbio nem representaria as condigdes de vida do operario, que devia morar num fim-de-mundo, mais longe e mais aban- donado ainda, sem recursos de égua, esgoto, luz, numa promiscuidade im- posta pela miséria, sem possibilidade de resguardar para sia intimidade de um tempo de siléncio e privacidade. Cansado de um trabalho magante e de longas horas de viagem, de madrugada e A noite, devia voltar para casa exaurido pela tarefa diria de sobreviver. Eventualmente teria mulher e fi- thos pequenos. Como era capaz de falar em harmonia? = Vocé toca algum instrumento? ~ perguntei. — No ~ disse ele, no da. Mas sempre procuro ouvir. Continuei olhando para ele. Pedi que me desse seu nome. - R. - Era um ome composto que nunca ouvira antes. Mas n&o quis me deter mais, pata nio Ihe dar a impressio de que, na minha admiracdo, eu 0 estivesse considerando uma espécie de “monstro”. Por outro lado, também nio queria destacé-lo demais do grupo. Passei a formular minhas perguntas aos restantes membros da turma. Depois, continuando a aula, reapresentei o iiltimo quadro de Vermeer ¢ ‘mostrei novamente as semelhancas e os contrastes formais, as claras se- qiéncias ritmicas que deles resultam, juntamente com pausas e énfases de tensio na imagem. Mais uma vez dirigi-me ao operdrio e lhe disse: = Vocé, especialmente, vai entender por que se pode comparar Vermeer a Mozart, Estes artistas conseguem tnir, por um milagre que nao sei expli- 136 car, as experigncias mais contraditorias da vida humana, a alegria de ser € uma profunda tristeza, Eles so capazes de, chorando, sorrit. Sio momen- tos que eles formulam, em que a nossa consciéncia parece aleangar uma amplidao extraordinéria para poder sentir a vida e refletir sobre ela. Mo- mentos raros, em que sentimos como que nos compreendendo melhor em nosso destino humano, e em que, de um modo misterioso, nds nos torna- mos melhores. Saimos reconfortados, mais fortes para enfrentar a luta do dia-a-dia. Crescemos, com esses artistas, Quando Ihe falei, 0 rosto do operério se iluminou de uma maneita in- descritivel. E cle, que até entdio nao dissera nada nas aulas, dai por diante tornou-se um dos participantes mais ativos, 75 ‘Johannes Vermeer (1632-1675), Mulher em azul lendo uma carta, pintura, Rijksmuseum, Amsterdl. 76 Johannes Vermeer A licdo de misica, pintura, Buckingham Pal

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