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CAPITULO 1: ARTE OU ARTEFATO? AGENCIA E SIGNIFICADO NAS ARTES INDIGENAS Um texto que busca esbogar 0 quadro da arte indigena brasi- leira nao pode senéo comegar com um paradoxo: trata-se de po- Vos que nao partilham nossa nogao de arte. Nao somente nao tem palavra ou conceito equivalente aos de arte e estética de nossa tradigado ocidental, como parecem representar, no que fazem e va- lorizam, 0 polo contrario do fazer e pensar do Ocidente neste cam- po. Dois problemas centrais e interligados ressaltam desde o co- mego da discussao: a tradicional distingao entre arte e artefato e o papel da inovacao na produgao selecionada como “artistica”. Estas questoes, no entanto,dizem muitodnais respeito a discuss6es internas a recente historia, filosofia e critica da arte e da estética de tradicgao,acidental do que‘a' uma hipotética ausén- cia de sensibilidadepém outras sociedades, para a possibilidade de a percepgao sensorial proddzir apréciagoes qualitativas pare- cidas coméo que vem_aser chamado de “frui¢do.estética” entre nos. Ou seja, nao é\porque‘inexistem oconceito de-estética e os valores que o-campo das artes agrega na tradi¢ao ocidental que outros povos naoteriam formuladoSeus proprids termos e cri- térios\para distinguir e produzir, beleza~Nossa'selegao de produ- ¢0es artisticas indigénas brasileiras nag deixara duvidas quanto a vontade de bélezadestes,povos, Por ouitrodado, importante frisar que toda sociedade pro- duz um estilo de“ser.qtie vem acompanhado de um estilo de gostar, e pelo fato dé o ser humano se realizar enquanto ser so- cial através de objetos, imagens, palavras e gestos, os mesmos se tornam vetores da sua agao e pensamento sobre seu mundo. [p. 10} Menina ashaninka com pintura facial de urucum com 0 motivo de kempiro {foto Sonja Ferson) Desta maneira, a importancia dada a busca da beleza pode va- riar enormemente e pode nao adquirir a aura de “veneragao quase religiosa” que adquiriu no Ocidente pos-iluminista.'Visto que as razdes que levaram a tal culto sao historicamente especi- ficas, fica dificil saber onde esta 0 perigo do etno- ou eurocen- trismo: na posigao que defende a universalidade da sensibilida- de estética como apanagio da humanidade, ou na posigao contraria que denuncia o “esteticismo” como atitude etnocéntri- ca por ser essencialmente valorativa, apreciadora e, portanto, discriminatoria; é impossivel gostar sem desgostar.? E também sabido que, ha varias décadas, a parcela mais sig- nificativa da producao artistica nos centros metropolitanos e legiti- madores do mercado de arte erudita pouco tem a ver com a procu- ta e apreciagao do “Belo” que marcou a origem da filosofia moderna sobre arte e estética no século XVIII. Muito do que é pro- duzido na vertente, hoje em dia dominante, da arte conceitual tem mais a ver com o questionamento de tal definigao do que com sua afirmacao. O que estes artistas amare sua obra é provocar um processo cognitivo no espectadorq se torna, desta maneira, par- ticipante ativo na construgao-da‘ebra, a proestira de possiveis cha- ves de leitura. Quanto mais omplexasee Menos evidentes as alu- soes presentes na obs, mais esta.séa.cfinceituada.o° , A obra dedarte, portantd, nadServe sombnite. naa’ ser con- templada na’pura belaza ehdrmonia das Suasformas, ela age sobre as pessoas Piagantido reagaes Gognitivas diversas. Se fossemos cgofparar S ortes, pS ugsae gobs dgiiuenas com CO AW, VC JOP OO", Co?” I GO ve oxo oO @ we » GELL, 1998; BOURDIEG, 75795 RING? 99101958 ? Com relagao a detinicao décarte eriaern icos, Gell afirma: “Acredito que o de sejo de ver a arte de yutras tas eabhcare te nos diz mais sobre nossa propria ideologia e sua vene acaoghiive, xaiigiosa de objetos de arte como talismas estéticos, do que diz sobre estas outras citdras. O projeto de ‘estética indigena’ é essencialmente equipado para refinar e expandir as sensibilidades estéticas do publico de arte ocidental produzindo um contexto cultural no qual artes de outras culturas podem ser incorpora das” (GELL, 1998, p. 3). Severi, por outro lado, considera etnocéntrica a atribuigao res: tritiva do conceito ao mundo ocidental moderno: “O ponto de vista etnocéntrico reserva 0 termo ‘arte’ somente para a tradigao ocide as producoes plasticas e figurativas das chamadas sociedades primitivas possam refletir uma atitude compara vel a do artista europeu” (SEVERI, 1992: 82); e Murphy afirma: “Assim como arte podia ros’ povos dos Europeus civilizados, tu ser usada no século dezenove para distanciar ela pode hoje também ser usada como instrumento retorico para inclui-los numa c ra mundial de povos igualmente civilizados” (MURPHY, 1997, p. 648). 12+ Ets Lacrou as obras conceituais dos artistas contempordneos, encontraria- mos muito mais semelhangas do que a primeira vista suspeita- riamos.° Pois muitos artefatos e grafismos que marcam 0 estilo de diferentes grupos indigenas sao materializagoes densas de complexas redes de interagdes que supdem conjuntos de sig- nificados, ou, como diria Gell, que levam a abdugoes, inferén- cias com relagao a intengdes e agdes de outros agentes.’ Sao objetos que condensam agoes, relagdes, emogoes e sentidos, porque é através dos artefatos que as pessoas agem, se rela- cionam, se produzem e existem no mundo.® Se objetos indigenas cristalizam agoes, valores e ideias, como na arte conceitual, ou provocam apreciagées valorativas da categoria dos tradicionais conceitos de beleza e perfei¢ao for- mal como entre nés, por que sustentar que conceitualmente es- ses povos desconhecem 0 que nds conhecemos como “arte”? E preciso enfatizar este ponto para melhor entender 0 que exata- mente as produgoes artisticas provindas de contextos original- mente auténomos de produgao'tém a nos‘oferecer e por que sua tradugdo para o coritexto metropolitano tem provocado 5 GELL, 1996 *GELL, 1998, p. 13.16% © A inferéncia abduictiva-Ae-Gell, ou, em outtas palavras, a abdtiedo-da agéncia de al- guém a partir'de um indice, refere a.rmuitos tipos de progessos coghitivos que podem fazergdn que 0 objeto aja sobre@ pessoa. Os indices sao arfefatos, objetos, ou obras de arte que estao inseridas,nuiva cadeta interativa’ que.alférha a posicao de agente-p. ciente. O art nexus, 0 ndveandnico de relagdes na yieinhanga de objetos de arte, prevé quatro posigées:a-dOartistaca do indice, a de\prototipo e a do recipiente. Cada um destes pode se@ncontranem posigao de-agente ou paciente. Da combinagao destas relagdes sorgem todas as sityaeOes possiveis de se pensar relacdes em que coisas me- deiam relacoeséntie pessoas. A’semiotica de Peirce (1977) prevé trés tipos de relages entre 0 signo e 0 obfetd, ag-qual o signo se refere: a relagao entre o referente @ o sim- bolo é da ordem da corivengao; assim, a relacao entre o simbolo linguistico e o objeto significado é totalmente arbitrario. A relacao entre o referente e 0 icone supoe alguma relacao de semelhanga; ja a relacao entre o objeto e seu indice é uma relagao de conti guidade, em que o indice participa da natureza do objeto ao qual se refere. Gell decide a sua abordagem agentiva eliminar os dois outros termos do sistema, o icone e o simbolo, para ficar somente com 0 indice. Na verdade, 0 que 0 autor quer enfatizar 6 que na relagao pragmatica e interacionista do seu modelo, nao é preciso distinguir indi- ce de icone. Todo icone ja é na verdade um indice. Tendo em vista que a imagem age sobre a pessoa, ela partilha nas qualidades daquilo de que é imagem. Aqui Gell segue Taussig em Mimesis and Alterity (1993), que mostra como 0 envolvimento sensorial com 0 percebido estabelece um contato entre o percepto e aquele que percebe, uma copresenga; por esta razdo ver e tocar a0 experiéncias muito proximas. Arte Indigena no Brasil - 13 tanta discussaéo entre connaisseurs e criticos de arte, de um lado, e antropdlogos, de outro. Como salientado acima, a grande diferenga reside na inexis- téncia entre os povos indigenas de uma distingao entre artefato e arte, ou seja, entre objetos produzidos para serem usados e outros para serem somente contemplados, distingao esta que nem a arte conceitual chegou a questionar entre nos, por ser tao crucial a de- finigao do proprio campo. Somente quando o design vier a suplan- tar as “artes puras” ou “belas artes” teremos nas metropoles um quadro similar ao das sociedades indigenas.° A inexisténcia da figura do artista enquanto individuo criador ~cujo compromisso com a invengao do novo é maior que sua von- tade de dar continuidade a uma tradigao ou estilo artistico conside- rado ancestral — é outra diferenga crucial. Nao que artistas contem- poraneos metropolitanos nao trabalhem dentro de tradigoes estilisticas bem definidas. Vale lembrar que o fundador da Arte Conceitual, Marcel Duchamp, instalou seu urinol ha praticamente um século, em 1917, e desde entéo,a;paradigma do fazer artistico nao mudou, mas, ideologicamente, a figura dO-artista se projeta como inventor do seu proprio-estilo, com@inovador incessante, ao modo de um Picasso.emblema do,Modernismo na arte. A fonte de inspiracao e legitimacao se encontra no génio dovartista, que é visto como agénte principal no,processo de relagoes@ interagdes que envolvem a produgao desua obra, uma Obra produzida com o Unico fim de ser ima obra de arte. Por mais que a arte modernaysempre sexconstitua como lugar de reflexdo sobrea Sociédadepela.tem sido enfatica na defesa de sua independénc¢ia de Gutros\dominios da vida social. “A arte pela arté” é uri credo tanto-de artistas quanto dos que pretendem levar'é arte sério, € reflete, segundo Overing,’ nos- sa dificuldade ocidéntal Acervo do Museu do Indi VAN VELTHEM, 2003, p. 130. Arte Indigena no Brasil - CAPITULO 4: DESENHO E PINTURA CORPORAL No universo amerindio res- Salta a onipresenca da figura da anaconda ou jiboia primordial ou Sobrenatural como dono/a origi- nal de todos os motivos decorati- vos usados na pintura corporal, Na pintura das panelas, no tran- cado dos cestos e na tecelagem de tecidos. Os diferentes mitos de origem do desenho, relatam de modo diferente as estratégias de obtengao desta riquezasusa- das pelos primeiros humanos.',O. fato de existir, em todas estas cul- turas, uma associagao entre de- Senho e a sucuri, mostra que Se, trata de algo mais do quewuma pode idiossinératica de ae i, col ha ie » ” lares asha- wot nica Oe a onja Ferson) Co, um simbolo-chave da regiao. yalai (VAN VELTHEM, 1998, na (Tukano) 1988), etc Wayana-Af SELOS, 1999, p. 61); D ILLIUS, 1987); Piro (GOW Kaxinay xinawa (LAGROU, 1991, 1996, 1997, 1998, 2007); nee Waiapi (GALLOIS, 1988, 2002); Waura (BARC (REICHEL-DOLMATOFF, 1978); Shipibo (ROE, 1982 Ip eee Desenho do cosmos: 0s caminhos sao rios que rodeiam e ligam mun: 5 ou ilhas diferentes (Arlindo Daureano Kaxinawa, 10/06) 1991), Figura 57 Barcelos). Panela wauja com motivos de sucuri e dente de piranha (foto Aristoteles Podemos contar, como exemplo, 0 mito de Tu/upe- ré dos Wayana.’ Para os Wayana, Tuluperé - a co- bra-grande — é o paradigma da predagao. Em tempos primordiais este “bicho” sobrenatural impedia que os Wayana fossem visitar seus parentes, os Aparai, que moravam do outro lado do rio. Cada vez que uma canoa ia visitar 0 pes- soal do outro lado, a cobra-grande vinha para virar a canoa. Quan- do mataram o inimigo tiveram tempo para observar os belos moti- vos em sua pele, que imitaram na manufatura do trangado em aruma. O Tuluperé, na verdade, tem uma dupla identidade, uma aquatica, onde é a cobra-grande, e outra terrestre, onde é a larva de porboleta, animal voraz que estraga os rogados.e que representa a 2sséncia predatoria com igual viruléncia-que a da cobra\{veja figu- igura 58 - Cesto wayana com motivo da erpente sobrenatural de duas cabecas foto Marcio Ferreira). Fonte - Acervo do useu do Indio VAN VELTHEM, 1998, p. 119-127. 8 Ets Lacrot tas 15 e 23). Devoradores, predadores, depois . da transformagao, essas larvas assumem belas cores e voam. Beleza esperigo-an- dam juintos,para-os Waya- Na, e quanto Mais.monstru- Qso°o..seér, mais este sera decoradove belo. A arte é a teprodugao controlada da imagem desses seres, cujo poder de transformacao se captura através da sua ima- gem. Entre os Wauja, por sua vez, a cobra-grande

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