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Sobre o tempo / Andtéa Bomfim Per- digao; um livro de entrevistas com varios autores. — Sio José dos Campos, SP: Pulso, 2010. 288p. ISBN 978-85-89892-72-8 1. Entrevistas 2. Psicologia 3. Tempo CDD - 0080 1. Entrevistas sobre o tempo 080 2.'Tempo : entrevistas 080 Os Tempos que se Sucedem BENILTON BEZERRA JUNIOR Psicanalista e psiquiatra — Tem gente que diz que o verdadeiro tempo é o presente, e hd quem diga que o presente, na verdade, é so a interface — muito efémera — entre o passado e o futuro, ou seja, que ele é o mais volatil dos tempos. Qual seria o tempo “real”, aquele ao qual nds deveriamos nos entregar ou nos dedicar? — Como toda pergunta, a resposta depende do que é que vocé quer obter como resposta. Santo Agostinho dizia que 0 tempo do presente é aquele onde “n&o mais, nado ainda”; ndo mais o passado, nao ainda o futuro e, por isso, ele é, na verdade, um ponto mével. A gente pode, com isso, entender que, numa certa direcdo e para muitas questées, o tempo real é aquilo que me constituiu e me fez ser como eu sou ~a vida que eu ja vivi, os encontros, os acasos, as herancas simbo- licas, ideoldgicas, os contextos, as coisas que eu deixei de viver, ou seja, aquilo que me precede até este ponto agora —, assim como também é o meu horizonte, que tem a ver com minhas expectativas projetadas, coisas almejadas, desejos a serem realizados. Quando se tenta entender quem é uma pessoa, como ela é, que tipo de coisa Ihe entusiasma ou Ihe sensibiliza, é fundamental olhar para aquilo que ja foi a vida dela e para aquilo que ela imagina que seré a sua vida no futuro. Porém, se vocé quiser mais do que conhecer a identidade ou a organizacao subjetiva dessa pessoa, se a sua questio for “como viver bem” —é outra questo, mais de natureza ética —, vocé entende a importancia daqueles que dizem que o tempo que vocé tem de viver é 0 presente. Por qué? Porque quando vivemos os tempos presentes somente empurrados pelo passado ou puxados pelas expectativas do futuro, esta- mos, de alguma maneira, muito mais condenados a repeticao, as determinacgdes 155 Andréa Bomfim Perdigéo que ja lhe fizeram ir para ld e para cd, e ainda muito governados pelas expectativas que est&o ja organizadas. Todas as teorias e praticas subjetivas que insistem na im- portancia do momento presente querem resgatar a possibilidade de a gente poder se surpreender e perceber o mundo ea si proprio de maneira diferente. Portanto, estar presente neste instante é uma das formas mais importantes de vocé poder abrir um caminho realmente novo, de abrir um horizonte de possibilidades que nio seja determinado, conduzido ou influenciado pelo que jd esta presente na sua meméria. E abrir as portas da percep¢ao para o que nos pode surpreender. — Essa ideia de se fixar no presente, embora abra a possibilidade de frui¢ao e maior liberdade, ndo pode trazer certa inconsequéncia, como se vocé ndo preci- sasse impregnar nada na sua a¢éo, nenhuma forma de responsabilidade, porque “a momento é s6 agora”? — Todas as praticas meditativas, orientais e ocidentais, colocam 0 foco na ideia da presenca no momento presente. Ha praticas que vocé faz, por exemplo, comendo uma pera. Normalmente, a gente come uma pera e acabou. Porém, uma das maneiras de vocé estar presente é justamente poder fazer o que normalmente vocé no faz: usufruir todos os sabores e associagdes que uma mordida na pera pode evocar; sua fragrancia, os gostos, enfim, tudo aquilo que normalmente passa batido porque, no desespero de usufruir 0 presente, vocé acaba no estando ali, alocado na fruigdo daquele instante, Cada segundo tem um universo de coisas, se estivermos prestando atenc&o. Se vocé parar para pensar, este momento atual, nosso, tem uma complexidade infinita que nds podemos explorar se estivermos atentos a ele; sendo, é sé um ponto que, rapidamente, um segundo depois, jé vira passado e se perde. — Oque sera que nés depositamos sobre a palavra “tempo” quando falamos “o tempo cura todas as feridas”, “nada como um dia apés 0 outro” ou “o tempo resolve tudo”? O tempo realmente pode curar feridas, trazer oportunidades para preencher lacunas? O tempo é um espago de esperanga? — Frases como essas — “nada como um dia apés 0 outro” ou “o tempo é osenhor da razdo” — podem ter varios significados, dependendo da disposic¢ao em relacdo ao tempo que um sujeito tem. Isso pode significar desde uma espécie de manobra evitativa, ao estilo de Scarlet O’ Hara em Eo Vento Levou, ou seja, “amanha eu penso nisso”, “amanhé eu resolvo”, quando se posterga o enfrentamento com 0 conflito e com a angustia que subjaz a qualquer dificuldade. No‘entanto, pode também ser o contrario: uma maneira de vocé reconhecer que nem sempre, no exato instante em que algo lhe acontece, vocé tem a elaboracdo necesséria para extrair o significado daquilo, para imaginar quais s&o os melhores roteiros de acao. Nesse sentido, esperar um tempo de matura¢ao, de recepcdo mais complexa do impacto do instante, lhe permite mais liberdade, porque vocé tenderé a agir menos 156 Os Tempos que se Sucedem automaticamente, menos sintomatica e estereotipadamente. Vocé abre o leque de possibilidades para agir de uma maneira mais diferenciada em relacdo aquilo. Pode ser um momento de sofrimento, mas também de alegria. Vocé se desapega um pouco daquele conjunto de efeitos que esto muito imediatamente colados com aquela experiéncia. Entao, essa visdo tanto pode significar uma espécie de apropria-~ do da experiéncia de uma maneira mais rica, como uma evitago do desafio que aquilo traz. Na verdade, o que esta sempre em jogo é a posigao do sujeito frente a questao. — Pensando na questéio do acaso, eu gostaria de falar sobre o “acidente”. Uma pessoa sai do trabalho e, ao atravessar a rua, é atropelada e fica com a per- na toda quebrada. O infeliz esta todo machucado e ainda tem de escutar que isso aconteceu para ele aprender alguma coisa ou que isso sé vai melhorar quando ele aprender o que tiver de aprender. Vocé ndo sente que essa visdio estd conectada a uma visdo de tempo especifica: uma viséio causal, em que as coisas que lhe acon- tecem sGo para lhe levar a certo lugar? Olhar o acidente como algo que pode se tornar uma oportunidade —e ndo um objetivo superior pré-existente — ndo expressa uma concep¢Go de tempo totalmente diferente? Como vocé vé o acidente? — Ha pessoas que tendem, pela concep¢do que tém do que é vida mental, vida psiquica, ou do que é a exist€ncia humana, a diminuir o papel do acidente em nome de alguma forma de determinacdo: nada acontece por acaso porque tudo tem uma determinacao inconsciente, ou transcendente ao ser individual, que pode sera lei da natureza, vontade divina, forcas césmicas, destino ou seja lé o que for. E como se a vivéncia de alguém fosse mais ou menos a experiéncia de Edipo, que ja estava pré-determinada. Eu tendo a pensar um pouco diferente. De um lado, é reconhecer que nds nao somos seres de liberdade total e absoluta, mas determi- nados por diferentes propriedades bioldgicas, tracos psicolégicos que vao sendo montados pelas trajetorias singulares de cada um, assim como determinados pelo contexto em que emergimos como sujeitos, pela cultura, pela familia, pelo momento histdrico. Todas essas coisas configuram cada pessoa de uma forma muito singular, dentro de um contexto que é particular e, ao mesmo tempo, comum a varios indivi- duos. Porém, isso é apenas um aspecto. O outro—e isso, em Psicandlise, é uma das ideias fundamentais — é a constatagZo de que o que ha, talvez, de essencialmente humano na nossa experiéncia é justamente o fato de que nds nos defrontamos com coisas que ultrapassam qualquer capacidade nossa de controle, previsdo, ou entendimento. Ser humano é se defrontar com o abismo, com o assombro, com 0 impensével, com aquilo que esta para além da capacidade de compreensiio e que, embora esteja além da capacidade de entendimento, nos afeta. Primeiro, 0 acaso existe. Existem coisas que acontecem sem que tenham sido causadas por qualquer rede com alguma teleologia, com algum sentido, com alguma direcdo. Aqui, a maneira mais interessante de pensar é, para mim, como é que vocé lida com essa experiéncia. Vocé sai, e cai uma jaca na sua cabega. Tudo vai depender, em parte, 157 Andréa Bomfim Perdigaéo de como vocé se sente e se posiciona em relac3o a isso. Vocé pode encontrar em cada coisa fortuita que Ihe acontece algum sentido que aplaque o assombro, a surpresa, a interrogacao. Vocé da uma explicacdo—uma determinagao inconsciente individual, uma explicacdo mitoldgica, a vontade divina, as leis da natureza—ou vocé pode acolher o acaso como evidéncia desse aspecto fundamental da experiéncia humana. E que, as vezes, de fato, como diz o Paulinho da Viola: “A vida nao é sé isso que se vé, 6 um pouco mais / Que os olhos nado conseguem perceber / E as maos nao ousam tocar / Os pés recusam pisar.” Ele esta falando do assombro com a Mangueira, a escola de samba que ele homenageia com os versos, mas a gente tem assombro com muitas outras coisas, que vao muito além da nossa capacidade de entendimento. Entdo, acolher isso significa que 0 acaso possibilita e, as vezes, exige, precipita, empurra para vocé a necessidade de reconstruir muitas coisas, como a visdo de si mesmo. Se vocé 6 um campedo olimpico de iatismo e, de re- pente, perde uma perna, imagine o impacto subjetivo, a exigéncia de subjetivar de forma diferente a sua propria existéncia, o seu proprio sentimento de identidade pessoal, de integridade corporal, de horizonte vital! E um acaso que, de uma hora para outra, vira tudo de cabega para baixo e exige uma experiéncia de criatividade que permita ao sujeito se recompor num outro padrao normativo — com outras normas de funcionamento —, mas que podem ser até mais criativas do que eram antes, na vida agitada e bem organizada. — Pensando num acaso que vira tudo de cabeca para baixo, vocé acha que o luto pela morte de alguém que the era significativo um dia acaba? E um grande amor, termina? Lembro-me de algum escritor que disse que o amor nado acaba nunca; ele pode, no maximo, se transformar. — Em relacao a paixao, eu penso um pouco diferente. Assim como em tudo, é dificil fazer formulagdes genéricas quanto a esse ponto. Hé paixdes e pai- x6es. Hd algumas que néo acabam e se transformam num amor; ha outras que se transformam numa espécie de amizade diferente, que é um amor de outra qualidade. Agora, ha paixdes que acabam, que simplesmente se cumprem — 0 que nao quer dizer que foram destruidas, nem implica, necessariamente, em esquecimento. Tudo que comega algum dia acaba. Houve o dia em que 0 Hima- laia n&o existia e, algum dia, ele n&o existird mais. Para a nossa vida temporal, ele esta 14 parado; mas tudo que existe um dia comecou a existir e um dia vai deixar de existir. Isso acontece com tudo. Na vida de uma pessoa singular, pode ser que ela seja agraciada com essa dadiva do destino de viver uma paixdo que no cesse nunca ou se transforme numa coisa amorosa tao boa quanto. Porém, ha outras pessoas que nao, que vivem experiéncias amorosas, varias, que se cumprem, mas que tém ciclos menores. Isso néo quer dizer que umas sejam melhores ou superiores; simplesmente sao diferentes. A mesma coisa se passa com o luto. A elaboracdo da perda de um ente querido é um processo natural de sofrimento que permite que aquela perda seja re-significada e que, de algum 158 Os Tempos que se Sucedem modo, a auséncia daquela pessoa seja nuancada por outra forma de presenca. Na nossa cultura muito individualista, geralmente isso se da pela incorporacg3o de alguns tracos ou certas maneiras de ver o mundo, por exemplo, de um mestre ou professor. Enfim, pegamos certos valores daquele ser que se foi e o preservamos de alguma maneira na nossa experiéncia intuitiva. Isso se torna uma espécie de patrimGnio pessoal para nds, uma presenca como que simbdlica. Um luto bem sucedido é mais ou menos assim. As vezes, nao se consegue fazer isso, e a dor da perda perturba de maneira nao superavel aquele individuo. Ai, a gente pode estar falando de outra experiéncia que nao o luto, mas de uma melancolia ou de uma depressdo. Se uma pessoa nio é capaz de elaborar essa perda de forma a cumprir um ciclo e inventar outra maneira de se relacionar com aquele que se foi, a gente tende a pensar que ela tem uma normatividade psiquica diminuida, ou seja, que ela tem alguma forma de adoecimento psiquico, e que a gente precisa, de alguma maneira tratar, isto é, oferecer a ela outras formas de lidar com aquilo, para que ela saia daquele estado congelado que é a patologia. — Talvez um dos piores lutos seja o de perder um filho. Vocé acha que esse também teria um ciclo? Embora se diga muito que essa é uma dor que néo passa nunca, vocé cré que ela pode passar ou ser transformada? — “Passar” talvez seja um verbo excessivo, mas que ela se transforma, a gente vé isso 0 tempo todo. Eu espero nunca viver isso, mas ha pessoas que sucum- bem, que nunca mais sao capazes de se reerguer ao perder uma pessoa ou um filho. Outras pessoas perdem filhos em circunstancias tragicas, absurdas, e fazem daquilo uma catapulta para re-significar a prépria vida. Hd alguns cujos filhos morreram em estupidos acidentes de transito e passam a fazer daquilo uma motivac3o para impedir que outros jovens tenham o mesmo destino, conscientizando pessoas de como 0 alcool tem de ser evitado. Enfim, vocé tem varios exemplos de pessoas que fazem de uma dor extrema uma alavanca para reorganizar a vida, de forma a dar um sentido para aquilo. Na verdade, é um absurdo um jovem de 15 anos morrer num acidente porque o motorista estava b€bado; isso nao tem nenhum sentido, no obedece a nenhuma razo de ser, mas a gente tem essa capacidade fantastica de injetar sentido numa coisa que é sem sentido em si prépria, é absurda, Isso é um sinal de poténcia psiquica, de capacidade de criar novas normas de funcionamento sempre que as injun¢des da vida assim nos exigem. — A Maria Rita Kehl diz, em seu livro Sobre Etica e Psicandlise (Editora Companhia das Letras], que 0 homem moderno desaprendeu a sofrer e que isso empobrece a subjetividade das pessoas. Pelo que vocé observa em sua experiéncia de consultério, como anda a subjetividade do homem contempordneo? — Aprimeira observagao a fazer é, de novo, sobre o sentido que estamos dando a certas palavras. Essa ideia de que os sujeitos contemporaneos desapren- 159 Andréa Bomfim Perdigtio deram a sofrer é verdade quando se pensa no modo de sofrer que foi, de certa maneira, caracteristico da cultura moderna até algumas gerag6es atras— que girava em torno da existéncia individual, que convocava 0 sujeito a pensar sobre o seu sofrimento e sobre sua implicacdo na constituicdo desse sofrimento. Nesse caso, vivia-se a dor como expressao de um conflito — seja entre um desejo e a impos- sibilidade de realiza-lo, seja entre impulsos internos e exigéncias sociais que se confrontam com isso ou, ainda, um conflito entre valores que ele reconhece como seus e um contexto ao seu redor que esmaga esses valores, Em outras palavras, 0 individuo moderno, constituido nos ultimos 300 anos, criou uma maneira de sofrer na qual 0 conflito interno é o pivé. Isso ndo é verdade em culturas pré- individualistas. Pense na figura do Edipo ou dos herdis gregos da Mitologia Classica. Muitos deles sofrem, mas 0 sofrimento ao qual esto submetidos ultrapassa muito a dimensdo pessoal; seus conflitos sdo, na verdade, conflitos entre vontades di- vinas, de deuses que brigam. Eles sao como que joguetes de um jogo do destino, do qual eles nao sao os roteiristas; no maximo, sdo os atores: encenam enredos que nao sdo determinados por eles. Nés, os modernos, criamos a consciéncia de uma sociedade em que nos sentimos criadores dos nossos enredos individuais e coletivos. O individuo moderno aprendeu tanto como Iluminismo—“o individuo é um ser da Razao; ele pode compreender racionalmente quais sao os sentidos e os desatinos da sua existéncia pessoal e coletiva” — quanto com o Romantismo—“o homem também é um ser movido por paixées que ultrapassam em muito a sua capacidade racional; é tomado, as vezes, por imperativos, paixdes de todo tipo, nao so amorosas, que o arrastam para Id e para cd.” O homem moderno criou, como falava Foucault, um “modo de subjetivacao” que fez com que as pessoas passassem a sofrer de uma maneira singular, que levava os sujeitos a olharem para dentro de si, a fim de entender o que estava se passando. Essa modalidade de sofrimento @ a que Maria Rita Kehl diz que nds estamos desaprendendo, porque nds estamos passando do modelo do conflito para explicar o sofrimento, para o modelo da disfungao. Realmente é verdade que cada vez mais sao encontrados individuos — e vocé tem toda uma cultura que estimula isso — que ndo deixam de sentir dor, mas a maneira como eles a experimentam é menos sob o modo de um conflito que os convoca, do que um sentimento de uma performance contrariada ou insuficiente. Cada vez mais, um sofrimento psiquico como a depressio, por exemplo, é entendido como efeito de uma disfuncdo cerebral. Essa chamada cultura do sujeito cerebral faz com que a gente identifique, de modo crescente, 0 “eu”, o sujeito, o self com o cérebro funcionante, e o sofrimento, a angustia, a depressdo, o desanimo, ou seja ld 0 que for, com uma disfunco cerebral. Nesse modelo de entendimento, a percep¢3o subjetiva da dor remete muito'mais a ideia de que 60 meu cérebro, e nao exatamente eu, que esté com problemas. Torna-se mais facil tomar um remédio, ao invés de se perguntar a respeito do que esta se passando com a propria vida. Por um Angulo, tem todo o sentido dizer que nés estamos desaprendendo a sofrer; porém, se nds olharmos por um Angulo mais histérico, poderiamos dizer que nés estamos aprendendo uma nova maneira de 160 Os Tempos que se Sucedem sofrer, menos subjetivante, mais objetivadora. Esse tipo de visdo faz com que, diante de uma experiéncia dolorosa, a gente tente encontrar correcdo, mas néo decifragao, entendimento ou interpretacao. — Sinceramente, vocé vé vantagem nisso? — Olha, como tudo na vida, ha vantagens e desvantagens. A grande des- vantagem é que esse modelo de subjetivacdo no estimula em nadaa experiéncia de sujeito no sentido forte da palavra — a experiéncia de ser alguém capaz de construir um sentido para a prdpria vida, de se sentir autor de si préprio e cons- trutor de um mundo coletivo. Esse tipo de subjetivagao mais contemporanea ndo estimula isso; estimula outras coisas, como a fruicao da vida e a otimizacdo das performances mentais e corporais, daf toda a cultura do corpo, o culto a imagem de perfeicéo, beleza e juventude a qualquer custo. Ser bem sucedido em tudo e dar provas disso é o lema principal de nossa cultura. Hoje em dia, o uso de tecnologias biolégicas para aprimoramento da vida mental vem se tornando cada vez mais difundido, e um exemplo disso sao as drogas consumidas para estimular a atencdo ea performance cognitiva, como € o caso, por exemplo, da Ritalina. Uma grande desvantagem dos modelos de subjetivacéo hegemGnicos atualmente é, portanto, esse estimulo a adesdo a identidades prét-a-porter — para usar a expressdo da Suely Rolnik. Essas identidades esto referidas a modelos ideais veiculados pela midia, a padres de consumo estereotipados e vendidos pela publicidade, assim como a um grande desestimulo em relaco a politica, a acdo pessoal, a reflexdo e 4 reinvengdo do mundo. Tanto é que hoje, praticamente, nao se vé nenhum movimento que mereca 0 adjetivo de “subversivo”. O qué, hoje em dia, subverte o mundo em fun¢&o de novos valores? Muito pouca coisa. Esse é um dos lados negativos da cerebralizacado da vida subjetiva; porém, como em tudo, as vezes, aparecem algumas coisas positivas. No campo da Psiquiatria, existem alguns exemplos interessantes, como a mudanga na maneira de diagnosticar certas pa- tologias, gerando uma transformacao de certos rétulos terriveis em diagndésticos perfeitamente manejaveis. Um dos casos mais eloquentes é o da antiga psicose maniaco-depressiva. Um diagndstico de psicdtico maniaco-depressivo tinha sobre 0 sujeito um efeito social terrivel, de marginalizacdo e estigmatizacdo. Hoje, essa mesma condi¢do é chamada de transtorno bipolar e, por tras dessa mudanga, existe muito daquilo a respeito do que estamos falando: eliminagao da influéncia da Psicandlise na classificago psiquidtrica e hegemonia de uma concepcio fisicalista das patologias, o que fez com que o transtorno bipolar fosse visto, predominantemente, pelo viés neuroquimico, e nao mais em suas dimen- s6es psiquicas e intersubjetivas. No entanto, embora haja todos esses aspectos discutiveis, é inegavel o efeito positivo da desessencializacgdo. Até pouco tempo atras alguém podia ser um psicotico maniaco-depressivo. Agora, esse sujeito é portador de um transtorno. O impacto subjetivo do diagndstico ainda é grande, mas é imensamente menos dilacerador e incapacitante que antes. 161 Andréa Bomfim Perdigtio — Falando um pouco mais sobre a questéio do corpo, vocé acha que todos esses avancos na Grea da medicina estética, da nutri¢éio, estéio nos ajudando a nos relacionarmos melhor com 0 nosso corpo? Estamos evoluindo para uma maior liberdade ou para uma escravidéo? — Ha um fato: nas Ultimas décadas, vivemos um aumento fantastico da importancia do corpo na cultura, seja na vida subjetiva ou social. Isso gera, no plano académico, uma discuss3o sobre a corporeidade e a emergéncia do sujeito, sobre a corporeidadeea constituicao das patologias graves. Ha toda uma fenome- nologia que gira em torno dessa questdo, e 0 corpo que, durante algum tempo, foi assunto de médicos e bidlogos se transformou, nas tiltimas décadas, num tema que atravessa o discurso de varias 4reas como a Etica, a Sociologia, a Filosofia e por af vai. Em boa parte, isso se deve ao fato de que temos visto um crescimento espetacular dos métodos de investigacao do corpo. Basta vocé lembrar que, até 9s anos 1960, mais ou menos, quando comegaram a surgir as técnicas de visuali- zag&o cerebral, o cérebro era um 6rgio invisivel; no entanto, hoje, nao ha érgao talvez mais vasculhado visualmente do que ele, nem érgdo cujas imagens sejam mais veiculadas socialmente. O impacto disso, na cultura, é impressionante. Basta sair daqui e, em qualquer banca de Jornal, vocé encontrard varias publicagdes tratando do cérebro e toda uma discuss30 sobre a importancia dele e do corpo para explicar tudo, nao sé patologias mentais, mas processos cognitivos, sociais, interpessoais. Na realidade, na mesma proporcao em que diminuia importancia social da interioridade psicolégica, aumenta a importancia da exterioridade soma- tica. O valor da imagem corporal nas relacdes interpessoais 6 hoje fundamental. Isso aparece, inclusive, nessa espécie de moralizacdo dos predicados fisicos, que se expressa, por exemplo, na critica de forte colorido moral que atualmente se faz aos gordos. Hoje, um gordo é considerado uma pessoa que ndo tem forca de vontade, que é descuidada, relaxada. So categorias de acusacdo moral em fun¢ao de um atributo corporal. Do mesmo modo, é possivel perceber certa valorizagao moral da pessoa que exibe um corpo sarado e magro. Esta condicdo fisica parece demonstrar que se trata de um sujeito dedicado, disciplinado, que se cuida e esté atento a prdpria satide. Sao aspectos éticos e politicos bastante discutiveis. O que seré que saiu de cena para que 0 corpo se tornasse tao importante e cultuado? E curioso, porém, observar que, ao lado de uma extrema valorizagdo do corpo ideal, também se vé uma cultura da abjecdo ao corpo real— porque o corpo que é exaltado, querido e desejado é 0 das imagens midiaticas; 0 normal, com as suas Caracteristicas nao to perfeitas de beleza ou juventude, é quase que fobica- mente escondido. Nés temos dificuldade de conviver naturalmente com 0 corpo que envelhece e comegamos a fazer de tudo para impedir que cheguemos a um tempo que é uma parte do ciclo natural da vida — pelo menos até hoje. Ent3o, por um lado, é verdade que ha mais investimentos, que nos preocupamos mais com 0 corpo, que tendemos cada vez mais a evitar coisas que so prejudiciais a satide, que damos importancia a corporeidade nas praticas espirituais — varios 162 Os Tempos que se Sucedem sinais que indicam que nés estamos nos apropriando do corpo e aprendendo a viver melhor. Por outro lado, no entanto, é também verdade que essa cultura somiatica levada ao exagero escraviza as pessoas a uma imagem idealizada que nao 6 a do corpo natural, mas a do corpo otimizado. A gente tenta otimizar nao s6 0 musculo, que precisa ser sarado, a pele que nao pode ser flacida, ndo pode ter ruga, os hemisférios cerebrais direito e esquerdo, como também a memoria, o humor ea aténcao que precisam estar sempre em ponto de bala ea disposicao das performances a que somos incessantemente convidados. — Nos estamos tirando o tempo da vivéncia corporal? — Acho que se pode dizer isso. — Esse conceito corporal estd fazendo o qué com o encontro sexual, com a vivéncia da intimidade? — Na perspectiva dessa cultura somatica, de fato, a ideia de intimidade sexual, de comunhdo corporal, de exploracio da singularidade de um encontro vai dando lugar a exibicao do gozo, da poténcia orgastica performatica — tudo isso a servico do consumo de um cardapio estereotipado de praticas sexuais, mais do que da fruic&o de uma experiéncia erética — que encerra uma infinidade de possibilidades. No entanto, vocé mencionou uma coisa importante: um dos ideais que sorrateiramente vai se insinuando na nossa cultura 6, de fato, o apagamento do tempo, ou das marcas do tempo no corpo. Eu me lembro de ter visto um filme chamado A Montanha da Lua, sobre a descoberta das fontes do Rio Nilo em meados do século XIX, quando nem mapas da Africa existiam. Havia uma espécie de disputa entre dois grandes pesquisadores. Um deles, inclusive, acabou vindo para o Brasil como diplomata britanico — Richard Burton, o mesmo nome do ator, um grande expediciondrio, cientista e homem de cultura. Nesse filme, hd uma cena muito interessante em que Burton eo outro explorador se encontram em Londres, numa antessala da Real Sociedade de Geografia, e comecam a conversar. De repente, um Mostra uma cicatriz, o outro mostra a sua, e ai comegam uma espécie de exibico mutua das marcas: “Isso aqui foi um jacaré”; “Isso foi uma flecha.” Esto ambos marcados, cheios de cicatrizes, mas aquilo é a gléria deles, sio os troféus de uma vida vivida de maneira plena. Nés perdemos um pouco isso, porque hoje o velho ideal nao é o velho que se orgulha de uma vida que foi bem vivida, mas sim o que € capaz de ostentar uma imagem de alguém para quem o tempo n&o passou; é 0 velho jovem que bota o calcanhar na orelha. — Envelhecer, aceitar as marcas do tempo no corpo, virou um trauma! — Envelhecer esta sendo percebido como uma doenga. Alias, a Medicina tem propagado um pouco isso: uma espécie de defeito bioldgico, que ela um dia 163 Andréa Bomfim Perdigaéo vai resolver. Pode ser que resolva mesmo. Se vamos ganhar ou perder com isso, 0 tempo dira. — De uma forma bem pessoal, o que a palavra “tempo” evoca em vocé? — Se vocé me pedisse para pensar, ndo me ocorreria isso; porém, como vocé falou desse jeito, abruptamente, a primeira coisa que me ocorreu foi a ideia do tempo na musica. Talvez nao seja uma associacao desinteressante, nao, porque a ideia do tempo na musica tem a ver com a organizacao da experiéncia musical. Os tempos que se sucedem durante uma sinfonia ou uma sonata sao diferentes. Seria dtimo se a gente pudesse viver os momentos da nossa experiéncia de vida pessoal do mesmo jeito que a gente usufrui dos tempos ao longo de uma sinfonia. Em toda vida individual, ha tempos diversos: tempos que séo muito condensados, outros que sao mais diluidos, tempos que sao alegres, outros que sao reflexivos. Esse tempo vivido nao é 0 tempo objetivo, inexoravel, do reldgio. E o tempo fenome- noldgico; é o tempo da experiéncia. £ um tempo qualitativo que colore a existéncia de indmeras maneiras, singularizando os momentos e marcando-os com afetos, emogées é sensibilidades distintos. Essa é a dimensdo do tempo que me interessa mais, porque é essa que vai dar a qualidade da vida que vocé viveu. 164

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