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ualdadeJe[eatue TODA FEITA: © CORPO E O GENERO DAS TRAVESTIS ENTRE CURVAS E SINUOSIDADES: ‘A FABRICAGAO DO FEMININO NO CORPO DAS TRAVESTIS © homem existe em fungio do seu corpo (Le Breton, 1996). As tra: vests, quando decidem se transforma, isica ¢ socialmente, io, com certeza, umn exemplo dessa assertiva, E no corpo que elas localizam os principais simbolos do masculino e do feminino; ¢ investem conhe- cimento, tempo € dinheiro para que possam ostentar, sentir ¢ exibir ‘um corpo diferente, um novo corpo. Mas como pensam e concebem esse novo corpo? Com que formas, com quis contornos, que text Este capitulo descreve os diferentes recursos que as travestis em: pregam para transformar seus corpos de forma a se consteuir cons- tituindo uma imagem ¢ uma identidade ‘femininas’. Para iniciar, julgo importante situar as principais elaboragoes teéricas acerca do corpo na antropologia, esclarecendo alguns conceitos ¢ interpreta ‘Gbes pertinentes a essa area de estudos. Longe de querer oferecer uma revisio teérico-conceitual do corpo, esta segio procuraré ape- nas ressaltar alguns pontos fortes do debate atual sobre 0 corpo no campo antropolégico. (© CORPO: DE MAUSS AOS ANOS 90 Hi muito que 0 corpo tem sido objeco de acengio ¢ investigagio da antropologia. A primeira vista, 0 corpo pode parecer desprovido das oh ddimensoes simbolicas ¢ culcurais que a antropologia se dedica a com- preender. No entanto, desde Marcel Mauss (1974a), que foi um dos primeiros estudiosos a ressaltar 0 papel da cultura na conformagio do . com 0 franco objetivo de validar 0 corpo enquanto objeto de estudo, desvinculan- do-o das determinagées fisico-biolégicas emprestadas pela medicina € cigncias correlatas, quase sempre soberanas no que diz respeito as explicagées acerca desse objeto. corpo, a antropologia tem trazido & tona essa ques Mauss procurou explicitar que as priticas e usos do corpo sao diferentes segundo 0 meio cultural, antecipando, de certa forma, aquilo que se revelaria como uma das principais preocupagdes da Escola Culturalista Americana, como mostram os trabalhos de Ruth Benedict e de Margaret Mead, por exemplo (Lévi-Strauss, 1974: 2). Desde entio, o corpo tem merecido atengéo dos antro- Pélogos no que tange aos mais diversos aspectos, da sua apresenta- «40 a0 seu funcionamento. Ademais, é no corpo que podemos lo- calizat 05 acontecimentos sociais mais elementares, como 0 nasci- mento, a reproducio a morte, os quais, sabemos, estio pautados em significados culturais (Augé, 1986) ‘Além de sugerir um proficuo campo de investigagio, 0 corpo vem se tornando objeto de interesse teérico na antropologia. A partir das andlises que tém 0 corpo como objeto, passaram a ser desenvolvidos conceitos ¢ nogdes, de forma a oferecer uma com- preensio avangada do fendmeno. Desenvolveu-se também uma rea especifica destinada as preacupagées com 0 corpo, conhecida ‘como antropologia do corpo € da satide ou antropologia médica, para a qual os antropélogos brasileiros, em que pesem as diferentes (in)definigdes epistemolégicas, tém contribuido de forma sistemé- tica e original.’ Na atualidade, um dos principais impasses nas anslises desse fe- ‘némeno encontra-se na polaridade estabelecida entre corpo € alma/mente, que caracteriza nossa tradigao cartesiana. A erenga na Fae ernment mo asa Miao og.) (1996): Le og (1995) en ou eoAFEs0 como to abnanooxs mares independéncia da mente nos fiz ver no corpo apenas um suporte inerte para 0s feitos pessoais e culturais, os verdadeiros sentidos re sidindo nos niveis racional € mental, Nesse quadro, que atualmen. te parece superado na antropologia, pelo menos no Ambito concei- tual, a mente/alma ocuparia um lugar mais proximo da cultura, porque inventiva, criativa, artificial, em contraposigao 20 corpo, identificado com as qualidades navurais e imutaveis da biologia. Mauss faz essa distingZo, 20 analisar a temética, em artigos sepa- rados: “As téenicas corporais” (Mauss, 1974a) e “A nogio de pes 80a, a nogio do eu” (Mauss, 1974b), ambos jé classicos na literatu ra antropoldgica. Desde entéo, muitos autores tém produzido obras € conceitos que se propdem a superar a dicotomia ¢ a de- ‘monstrar 4 artificialidade dessa cisio, coerente apenas com os valo- res da cultura ocidental moderna. Alguns conceitos que procuram superar essa divisio podem set ‘encontrados, por exemplo, na obra de Pierre Bourdieu ¢ de Tho- mas Csordas. Bourdieu (1994, 1995, 1980), em sua teoria da pr tica, afirma que 0 corpo € 0 espago onde esté a cultura, onde se si- twam os principais esquemas de percepsio ¢ apreciagio do mundo, formados a partir das estruturas fundamentais de cada grupo, como as oposigdes entre alto/baixo, masculino/feminino, forte/fra co ete. A cultura é incorporada por meio de um mecanismo basico que cle denomina habitus. Assim, o habitus € a propria naturaliza- Gao da cultura, porque é 0 operador légico que promove a ligasio entre um nivel propriamente simbilico (cultural) € espago cor poral (natural). Assim, segundo Bourdieu, néo haveria um estrato puramente biolégico do corpo, governado por leis naturais, como quetem as cigncias médicas e biolégicas. O corpo, mesmo no seu nivel mais “natural”, é um produto social, porque esta (de que hi uum nivel pur © corpo ¢ formado, para Bourdieu, segundo alguns esquemas cognitivos de oposigbes bésicas que produzem sentidos para prit cas, crengas, atitudes e relagbes. Assim, as experiéncias préticas do ‘corpo estariam informadas e formadas pelos esquemas de pereeP- fo e apreciagio que sustentam as estruturas fundamentais do uni rence natural) a nossa representagao sobre ele. verso social de cada grupo. As representagées, para Bourdieu, sio incorporadas, estio presentes no corpo como um todo, porque a cultura esté incorporada, e nao € vivida como uma decerminagio de uma esteutura superior ¢ externa ou como um esquema simbéli- co depositado sobre 0 corpo. Essas formulagées pretendem superar aquclas interpretagées que localizavam a cultura em um nivel “mental” ou mesmo “racional”, no estilo positvista durkheimiano € também maussiano. ‘Thomas Csordas (1988, 1994), a partir do conccito de habitus de Bourdieu ¢ dos desenvolvimentos da teoria da percepsio de Merleau-Ponty, pretende emprestar a0 corpo uma qualidade maior: pata ele 0 corpo ndo ¢ apenas um tema de estudo da antropologia, mas, antes, um paradigma, um método para a disciplina; o corpo € “a base existencial da cultura” (1988: 5). Csordas desenvolve 0 conceito de embodiment para dar significado a essa participagio do corpo na produgdo dos sentidos e simbolos atribuidos ’s mais va- Fiadas préticas sociais, Para este autor, 0 corpo nio é um suporte de significados, mas um elemento produtor ¢ 0 cendtio primeiro des ses significados. E no corpo e por meio dele, segundo a teoria do embodiment, que os sentidos atribuidos a0 masculino € ao femini- tno pelas cravestis, por exemplo, se coneretizam. Numa ditegio semelhante, Scheper-Hughes & Lock (1987) apre- sentam o conceito de mindful body, que pretende superar as divisoes tradicionais entre corpo e mente, uma vez que as autoras acreditam que as concepgdes sobre o corpo slo fundamentais para os pressupos- (0s epistemolégicos que orientam os desenvolvimentos tedricos na antropologia. Assim, o corpo deve ser concebido para além das tradi- cionais divisdes entre fisico/mental,espirtolmatéria, racionallirracio- nal. Para superar essas oposigdes tipicas da cultura ocidental moder- ‘na, apresentam o corpo como um artefato produzido simultaneamen- te pela cultura e pela natureza, concomitantemente fisico e simbélico, tripartido entre um nivel individual (0 corpo individual), um nivel social (0 corpo social) ¢ um nivel politico (0 corpo politico). Nao cabe alongar a apresentagio das miniicias tedricas contidas fem cada formulagio, mas ressaltar a importancia que exsas nogdes assumem neste trabalho. Os dados e as informagies sobre as modi- ficagdes ¢ intervengdes corporais levadas a cabo pelas travestis aqui descritas foram recolhidos e observados pelo prisma da nio-separa- ‘20 dos niveis fisico ¢ simbélico. As travestis, ao investir tempo, di- heiro © emocdo nos processos de alteracio corporal, nao esti concebendo © corpo como um mero suporte de significados. O corpo das travesti é, sobrecudo, uma linguagem; € no corpo ¢ por mio dele que os significados do feminino e do masculino se con- cretizam € conferem & pessoa suas qualidades sociais. E no corpo ‘que as travesti se produzem enquanto sujcitos. 'AS TRANSFORMACOES NO E DO CORPO; TORNAR-SE UMA TRAVESTI [Nas prdximas segdes deste capiculo apresento uma desctigdo dos prin-

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