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REVISTA ESTUDOS Os orixds e a natureza Dr. Reginaldo Prandi! [Texto de trabalho] I N. aurora de sua civilizagao, 0 povo africano mais tar- de conhecido pelo nome de iorubé, chamado de nagé no Brasil ¢ lucumi em Cuba, acreditava que forcas sobrenatu- 1, Reginaldo Prandi é professor emérito da Universidade de Sao Paulo (USP), professor titular sénior do Departamento de Sociologia da mesma universidade, pesquisador 1-A do CNPq ¢ membro do grupo de pesquisa “Diversidade religiosa na sociedade secularizada” do CNPg. Revista Estudos Afro-Brasiletros, Itanhaém, ¥. 3. n. 1, p. 285-530, jan./jun. 2022. REVISTA ESTUDOS AFRO-BRASILEILROS Dr. Reginaldo Prandi rais impessoais, espiritos, ou entidades estavam presentes ou corporificados em objetos ¢ forcas da natureza. Tementes dos perigos da natureza que punham em risco constante a vida humana, perigos que eles nao podiam controlar, esses antigos africanos ofereciam sacrificios para aplacar a firia dessas forgas, doando sua prépria comida como tributo que selava um pacto de submissao e protegio e que sedimenta as relagoes de lealdade e filiagdo entre os homens e os espiritos da natureza. Muitos desses espiritos da natureza passaram a ser cul- tuados como divindades, mais tarde designadas orixds, de- tentoras do poder de governar aspectos do mundo natural, como 0 trovio, 0 raio e a fertilidade da terra, enquanto ou- tros foram cultuados como guardides de montanhas, cursos PAgua, drvores ¢ florestas. Cada rio, assim, tinha seu espirito préprio, com 0 qual se confundia, construindo-se em suas margens os locais de adoracéo, nada mais que o sitio onde eram deixadas as oferendas. Um rio pode correr calmamente pelas planicies ou precipita-se em quedas ¢ corredeiras, ofe- recer calma travessia a vau, mas também se mostra pleno de traigoeiras armadilhas, ser uma benfazeja fonte de alimenta- 40 piscosa, mas igualmente afogar em suas 4guas os que ne- Revista Estudos Afro-Brastleiros, Kanhaém, ¥. 3, n. 1, p. 286-530, jan./jun. 2022. PVISTA ESTUDOS AFRO-BRASILELTROS Os orixds e a natureza las se banham. Esses atributos do rio, que o torna ao mesmo tempo provedor e destruidor, passaram a ser também o de sua divindade guardia. Como cada rio é diferente, seu espiri- to, sua alma, também tem caracteristicas especificas. Muitos dos espiritos dos rios sio homenageados até hoje, tanto na Africa, em territério iorubé, como nas Américas, para onde o culto foi trazido pelos negros durante a escravidaéo e num curto periodo apés a abolicdo, embora tenham, com o pas- sar do tempo, se tornado independentes de sua base original na natureza. Sao eles Iemanja, divindade do rio Ogum, Oia ou lansa, deusa do rio Niger, assim como Oxum, Ob4, Eud, Logum Edé, Erinlé e Orim, cujos trios conservam ainda hoje o mesmo nome de sua divindade. No Brasil, assim como em Cuba, lemanjé ganhou o patronato do mar, que na Africa pertencia a Olocum, enquanto os demais orixés de tio deixa- ram de estar referidos a scus cursos d’4gua originais, ganhan- do novos dominios, cabendo a Oxum o governo dos rios em geral ¢ de todas as 4guas doces. A economia desses povos desenvolveu-se com base na agricultura, caga, pesca ¢ artesanato, com intensa e importan- te atividade comercial concentrada nos mercados das cidades, para onde acorria a produgao das diferentes aldeias e cidades. Revista Estudos Afro-Brasiletros, Itanhaém, ¥. 3. n. 1, p. 287-530. jan./jun. 2022. REVISTA ESTUDOS AFRO-BRASILEILROS Dr. Reginaldo Prandi Podemos ver nessa sociedade em formagio um deslocamento dos orixas do plano dos fendmenos da natureza para o plano da divisao social do trabalho, assumindo os orixas a caracteris- tica de guardides de atividades essenciais para a vida em socie- dade. O culto as divindades continuou sendo local, podendo a mesma atividade ser guardada por deuses locais distintos. $6 muito mais tarde alguns orixas foram elevados & catego- tia de orixds nacionais. Assim, na agriculrura encontramos 0 culto a Ogum e Orixé-Océ, enquanto as atividades de caca estavam guardadas por Oxéssi, Logum Edé, Erinlé, e muitos outros orixds cagadores conhecidos genericamente pelo nome de Odé, que significa Cacador. No Brasil, onde a geografia africana deixou de ter sentido, alguns orixas de rio, como Lo- gum ¢ Erinlé, ficaram restritos 4 caga, embora se faga referén- cia também a seus atributos de pescadores, especialmente no caso de Logum Edé. No caso de Ogum, hé uma relacao direta entre a agri- cultura ¢ 0 artesanato do ferro, que permitiu a produgao das ferramentas agricolas, o mesmo ferro com que se fazem as ar- mas de guerra, faca, facao, espada, e que transformou Ogum no deus da metalurgia ¢ da guerra, numa emblematica ex- pansao de um culto que se iniciou em referéncia ao plano Revista Estudos Afvo-Brastleiros, Kanhaém, v. 3, n. 1, p. 288-530, jan./jun. 2022. PVISTA ESTUDOS AFRO-BRASILELTROS Os orixds e a natureza da natureza (o ferro) para depois se fixar no dominio das atividades humanas (agricultura, metalurgia, guerra). A im- portancia do minério extraido da natureza define-se por sua aplicagao na cultura e leva 4 constituigéo de um culto que ao mesmo tempo deseja propiciar as forgas sobrenaturais para garantir 0 acesso ao minério € 0 sucesso nas atividades que usam artefatos com ele produzidos. Quanto mais 0 trabalho se especializava, mais o orixa se liberava do mundo natural e mais préximo se situava do mundo do trabalho, isto é, do mundo da cultura, das atividades sociais, do mundo do ho- mem, enfim. A antiga religido de cardter animista, ou seja, de crenca de que cada objeto do mundo em que vivemos é dorado de um espirito, em algum momento primordial fundiu-se com 0 culto dos antepassados. Podemos definir o culto dos antepas- sados como 0 conjunto de crengas, mitos ¢ ritos que regulam os vinculos de uma comunidade com um numero grande de mortos que viveram nessa comunidade ¢ que estao ligados a ela por parentesco, segundo linhagens familiares, acreditan- do-se que os mortos tém o poder de interferir na vida huma- na, devendo entao ser propiciados, aplacados por meio das praticas sacrificiais para o bem-estar da comunidade. Através Revista Estudos Afro-Brasiletros, Itanhaém, ¥. 3. n. 1, p. 289-530, jan./jun. 2022. REVISTA ESTUDOS AFRO-BRASILEILROS Dr. Reginaldo Prandi do sacrificio, 0 antepassado participa da vida dos viventes, compartilhando com eles o fruto do sucesso das colheitas, das cagadas, da guerra e assim por diante. Embora todo morto merega respeito ¢ sacrificio, sio os mortos ilustres os que se colocam no centro do culto. Sao os fundadores das antigas linhagens familiares, os herdis conquistadores, fundadores de cidades, 0 que inclui os falecidos pertencentes a familia real, especialmente o rei. Alguns antepassados, sobretudo os de familias e cidades que lograram expandir seu poder e seu dominio além de seus muros, acabaram sendo hevemerizados, isto 6, deificados, ocupando no universo religioso 0 mesmo status de um orixd da natureza, muitas vezes confundindo-se com eles. Assim, Xangé é a0 mesmo tempo 0 orixd do trovio, que rege as intempéries, ¢ 0 antepassado mitico hevemeri- zado que um dia teria sido 0 quarto rei da cidade de Oié. Como rei, é 0 regulador das atividades ligadas ao governo do mundo profano, do qual é o magistrado maximo, assumindo assim, 0 patronato da justica. Muitos reis, miticos ou nao, foram algados & dignidade de orixa. Por outro lado, muitos orixds que ja mereciam culto ganharam também a conotagao de antepassado, especialmente como reis. Como ocorreu com Ogum, lembrado como rei de Iré, ¢ Oxaguia, rei de Ejibs, Revista Estudos Afvo-Brastleiros, Kanhaém, ¥. 3, n. 1, p. 290-530, jan./jun. 2022. PVISTA ESTUDOS AFRO-BRASILELTROS Os orixds e a natureza entre outros, Ainda hoje no Brasil essas cidades sito lembradas nas cantigas que falam de Ogun Oniré, 0 rei de Iré, ¢ Oxaguia Elejibd, o rei de Ejibd. Confrarias de sacerdotes especializados também se orga- hizaram em fungio de divindades relacionadas a atividades mégico-religiosas especificas, como os adivinhadores ou ba- balaés, reunidos no culto de Orunmilé ou Ifé, o deus do oré- culo, ¢ os curadores herbalistas, ou olossains, dedicados a Os- saim, 0 orixé que detém o poder curativo das plantas. Tanto Orunmild como Ossaim tiveram culto nacional em territério iorubs, uma vez que seus sacerdotes ofereciam seus servigos a todos os que deles precisassem, nao estando suas atividades circunscritas aos cultos familiares ou de cidades. Exu, orixd do mercado ¢ da comunicacao entre os deuses ¢ entre estes ¢ os humanes, também ganhou culto sem frontciras familiares ou citadinas. Com a expansio politica de algumas cidades ¢ a incorporagio de outros territérios, deuses locais passaram a ter um culto mais generalizado, o que transformou Xango num deus cultuado em todo o tertitério controlado por Oid, que teve o maior dos impérios iorubés. Iemanja, original- mente uma divindade ebgé de rio, cultuada em tertitério de Abeocuta, transformou-se em objeto do culto as ancestrais fe- Revista Estudos Afro-Brasiletros, Itanhaém, v. 3. n. 1, p. 291-530, jan./jun, 2022. REVISTA ESTUDOS AFRO-BRASILEILROS Dr. Reginaldo Prandi mininas, sendo homenageada no inicio dos festejos dedicados as grandes mies ancestrais no festival Geledé, cuja celebragéo enyolye varias cidades. Através da instituigéo do culto aos antepassados, os anti- gos iorubés estabeleceram as bases miticas de sua prépria ori gem como povo, deificando seus mais antigos herdis, funda- dores de cidades e impérios, aos quais se atribuiu a criagéo nao somente do povo ioruba como de toda a humanidade. Da-se assim a génese do orixa Odudua, rei e guerreito, considerado criador da Terra, e de Obatala, também chamado Orixan- l4 e Oxald, 0 criador da humanidade, além de muitos outros deuses que com eles fazem parte do panteso da criagéo, como Ajala c Oxaguia. O contato entre os povos africanos, ranto em razio de intercimbio comercial como por causa das guerras ¢ domi- nio de uns sobre outros, propiciou a incorporacao pelos io- rubas de divindades de povos vizinhos, como os voduns dos povos fons, chamados jejes no Brasil, entre os quais se destaca Nana, antiga divindade da terra, e Oxumaré, divindade do arco-itis. O deus da peste, que recebe os nomes de Omulu, Olu Odo, Obaluaé, Ainon, Sakpaté ¢ Xampona ou Xapana, resultou da fusao da devogao a intimeros deuses cultuados em Revista Estudos Afvo-Brastleiros, Kanhaém, ¥. 3, n. 1, p. 292-530, jan./jun. 2022. PVISTA ESTUDOS AFRO-BRASILELTROS Os orixds e a natureza territérios ioruba, fon e nupe. As transformagoes sofridas pelo deus da varfola, descritas por Claude Lépine (1998), até sua incorporagio ao panteio contemporaneo dos orixas, mostra a importancia das migrag6es e das guerras de dominago na vida desses povos africanos e seu papel na constituigao de cultos e conformagao de divindades. Quanto mais os orixds foram se afastando da natureza, mais foram ganhando forma antropomérfica. Os mitos falam de deuses que pensam e agem como os humanos, com os quais partilham sentimentos, propésitos, comportamentos e emo- ges. Seus patronatos especializaram-se em aspectos da cultura e da vida em sociedade que melhor atendiam As necessidades individuais dos seus devotos, embora possam manter referén- cias ao original mundo natural (PRANDI, 2001). Il Com a vinda para as Américas, a0 processo de antropo- morfizacao ¢ mudanga ou diversificacao do patronato adicio- nou-se a unificagio do pantedo, pasando orixis de diferentes localidades a ser cultuados juntos nos mesmos locais de culto, Revista Estudos Afro-Brasiletros, Itanhaém, v. 3. n. 1, p. 293-530. jan./jun, 2022. REVISTA ESTUDOS AFRO-BRASILEILROS Dr. Reginaldo Prandi no caso do Brasil, os terreiros de candomblé, ocorrendo mais forte especializagao na divisio do trabalho dos deuses guar- dies. Assim, Iemanja, agora rainha do mar, é a protetora da maternidade e do equilibrio mental; Oxum ganha as aguas doces e a prerrogativa de governar a fertilidade humana e 0 amor; Ogum governa o ferro e a guerra, mas também é aque- le que abre todos os caminhos e oportunidades sociais; Xan- g6, orixé do trovao, é 0 dono da justica. E assim por diante. Como a religifo dos ori 4s foi refeita no Brasil por africanos ou descendentes que, no século XIX, viviam nas grandes ci dades costeiras, ocupando-se em arividades urbanas, fossem eles escravos ou livres, a preocupacao com atividades agricolas era muito secundaria, de sorte que os orixés do campo foram esquecidos ou tiveram seus governos reorganizados. O culto a Orixé-Océ se perdeu ¢ hoje raramente alguém se lembra de Ogum como orixé do campo. Também os orixds da caga perderam com a nova sociedade. Oxéssi ganhou a responsa- bilidade de zelar pela fartura de alimentos, mas nao ha mais cagadores para cultué-lo ¢ muitos Odés foram reagrupados no culto de Oxéssi, como ocorreu com Erinlé ¢ Otim. O grande papel de Oxdssi no Brasil na verdade decorre de sua condigao de patrono da nagao queto, instituida com a fundagao dos Revista Estudos Afvo-Brastleiros, Kanhaém, v. 3, n. 1, p. 294-530, jan./jun. 2022. PVISTA ESTUDOS AFRO-BRASILELTROS Os orixds e a natureza candombles baianos Casa Branca do Engenho Velho, Gantois e Axé Opé Afonja, ¢ que é uma referencia a cidade africana de Queto, hoje situada no Benin, da qual Oxdssi era o orixa da casa real e onde atualmente esta praticamente esquecido. Mudangas recentes nas condigdes de vida, inclusive em ter- mos de satide ptiblica, fizeram de Omulu 0 médico dos pobres brasileiros, mas hoje ele esta longe de ser cultuado por causa da variola, seu dominio original, praticamente eliminada em nossa sociedade. No Brasil, com a concentragéo do culto aos orixds nos terteitos, sob a autoridade suprema do pai ou mie de santo, antigas confrarias africanas especializadas desapareceram, uma vez que 0 pai de santo passou a controlar toda e qualquer ati- jade religiosa desenvolvida nos limites de sua comunidade de culto. Os orixds dessas confrarias foram esquecidos ou se transformaram. Assim, com a extincao dos babalaés, os sacer- dotes do ordculo, o culto a Orunmilé praticamente desapa- receu, subsistindo marginalmente em alguns poucos terreiros pernambucanos. O ordculo, agora prerrogativa do chefe de cada terreiro passou a ser guardado por Exu e Oxum, que na Africa jd eram estreitamente ligados as atividades de adivinha- gao. A confraria dos curadores herbalistas, os olossains, tam- Revista Estudos Afro-Brasiletros, Itanhaém, v. 3. n. 1, p. 295-530, jan./jun. 2022. REVISTA ESTUDOS AFRO-BRASILEILROS Dr. Reginaldo Prandi bém nao se manteve nos moldes africanos, ficando os olossains restritos as atribuigées de colher folhas ¢ cantar para sua sa- cralizagio, tendo perdido para o pai de santo as prerrogativas do curador. Em decorréncia, 0 culto de Ossaim ganhou novas feigdes, ficando mais assemelhado ao culto dos outros orixas celebrados nos terreiros, podendo inclusive ser recebido em transe como os demais, 0 que nao acontecia na Africa. Espi- ritos das velhas arvores foram antropomorfizados e iroco, que na Africa é simplesmente o nome de uma grande arvore, aqui se transformou no orixd Iroco, que recebe oferendas na came- leira branca e desce em transe, ganhando, cada vez mais, inde- pendéncia em relacao A Arvore, situando-se, por conseguinte, mais longe da natureza. O desenvolvimento cientifico ¢ tecnoldgico, a0 promover a expansio do controle da natureza pelo homem, controle que vai desde a previsdo das intempéries ¢ catdstrofes naturais até a obtencao da fecundagio jn vitro, passando pela cura da maio- ria das moléstias, garantindo a redu¢ao das taxas de mortali- dade infantil, afastando as endemias ¢ epidemias, aumentando a esperanga de vida, tudo isso foi desviando cada vez mais o olhar do homem religioso da natureza, uma vez que esta jd 0 preocupa menos, representando menos riscos, menos perigo. Revista Estudos Afro-Brastleiros, Kanhaém, v. 3, n. 1, p. 296-530, jan./jun. 2022. PVISTA ESTUDOS AFRO-BRASILELTROS Os orixds e a natureza Diferentes povos tiveram diferentes preocupagoes com a natu- reza. Os iorubas, como povo da floresta, pouco se interessaram pelos astros, que ocuparam posi¢’o importante nos sistemas religiosos de povos que viviam em lugares abertos ¢ altos. Para os iorubds, as florestas ¢ os rios eram mais importantes que a lua ou as estrelas. Sua semana de quatro dias nao tem relagio com as fases da lua, que em muitos povos originou a semana de sete dias. Habitando o interior, longe do mar, lhes faltou certamente a observagio da maré associada as fases da lua para estabelecer um calendario lunar. A morada dos deuses e dos espiritos dos iorubas, emblematicamente, nao fica no céu, mas sob a superficie da terra. No Brasil, as referéncias A natureza foram, contudo, simbolicamente mantidas nos altares sacrificiais, que sao os assentamentos dos orixas ¢ em muitos outros elementos ri- tuais. Desse modo, como a Africa, seixos provenientes de algum curso d’4gua nao podem faltar no assentamento dos orixds de rio, confundindo-se as pedras com os préprios ori- xs. Pedagos de meteoritos, as pedras de raio do assento de Xangé, lembram a identificagdo deste orixd com 0 raio ¢ 0 trovao. Objetos de ferro sao usados para o assentamento de Ogum. E assim por diante. O candomblé também conserva Revista Estudos Afro-Brasiletros, Itanhaém, v. 3. n. 1, p. 297-530, jan./jun. 2022. REVISTA ESTUDOS AFRO-BRASILEILROS Dr. Reginaldo Prandi a ideia de que as plantas sao fonte de axé, a forga vital sem a qual nao existe vida ou movimento ¢ sem a qual o culto nao pode ser realizado. A maxima iorubé “kosi ewé kosi orixa”, que pode ser traduzida por “nao se pode cultuar orixds sem usar as folhas”, define bem o papel das plantas nos ritos. As plantas séo usadas para lavar e sacralizar os objetos rituais, para purificar a cabecga e 0 corpo dos sacerdotes nas etapas iniciaticas, para curar as doengas e afastar males de todas as origens. Mas a folha ritual nao é simplesmenre a que esta na natureza, mas aquela que sofre o poder transformador operado pela intervencio de Ossaim, cujas rezas ¢ encanta- mentos proferidos pelo devoto propiciam a liberacéo do axé nelas contido. Hé algumas décadas a floresta fazia parte do cendrio do terreiro de candomblé ¢ as folhas estavam todas disponiveis para colheita ¢ sacralizacio. Com a urbanizacio, © mato rarcou nas cidades, obrigando os devotos a manter pequenos jardins ¢ hortas para o cultivo das ervas sagradas ou entao se deslocar para sitios afastados, onde as plantas podem crescer livremente. Com o passar do tempo, novas especializages foram surgindo no ambito da religiao ¢ hoje as plantas rituais podem ser adquiridas em feiras comuns de abastecimento ¢ nos estabelecimentos que comercializam Revista Estudos Afro-Brastleiros, Kanhaém, ¥. 3, n. 1, p. 298-530, jan./jun. 2022. PVISTA ESTUDOS AFRO-BRASILELTROS Os orixds e a natureza material de culto. Exemplo maior, no Mercadao de Madu- reira, no suburbio do Rio de Janeiro, prodigo na oferta de objetos rituais, vestimentas e ingredientes para o culto dos orixds, mais de vinte estabelecimentos vendem, exclusiva- mente, toda e qualquer folha necesséria aos ritos de Ossaim. Bem longe da natureza. Embora a concepgao de orixd esteja hoje bem distance da natureza, muitas celebragées se fazem em locais que lem- bram as antigas ligacées, como as festas de emanja junto ao mar, como os despachos feitos na agua corrente, na la- goa, no mato, na pedreira, na estrada etc., de acordo com 0 orixd a que se destinam. Com a recente preocupago com o meio ambiente, 0 candomblé tem sido muito lembrado como religiao da natureza, apontando-se muitos terreiros como modelares na preservacgéo ambiental. Alguns lideres, de fato, tém procurado se engajar em movimentos preser- vacionistas, alertando os seguidores dos orixds da necessida- de de se defender da poluicao ambiental locais usados pela religiao, como cachoeiras ¢ fontes, lagos ¢ bosques. Alguns defendem a necessidade do préprio candomblé deixar de usar nas oferendas feitas fora do terreiro e nos despachos material nao biodegradavel. Revista Estudos Afro-Brasiletros, Itanhaém, v. 3. n. 1, p. 299-530. jan./jun. 2022. REVISTA ESTUDO APRO-BRASILEI Dr. Reginaldo Prandi Il Nesse clima de “retorno ao mundo natural”, de preocu- pacdo com a ecologia, um orix4 quase inteiramente esquecido no Brasil vem sendo aos poucos recuperado. Trata-se de Onilé, a Dona da Terra, o orixd que representa nosso planeta como um todo, o mundo em que vivemos. O mito de Onilé pode ser encontrado em varios poemas do ordculo de Ifa, estando vivo ainda hoje, no Brasil, na meméria de seguidores do candom- blé iniciados hd muitas décadas. Assim a mitologia dos orixas hos conta como Onilé ganhou o governo do planeta Terra: Onilé era a filha mais recatada e¢ discreta de Olodumare. Vivia trancada em casa do pai e quase nin- guém a via. Quase nem se sabia de sua existéncia. Quando 0s orixés seus irmios se reuniam no palécio do grande pai para as grandes audi- éncias em que Olodumare comunicava suas decis6es, Onilé fazia um buraco no chao e se escondia, pois sabia que as reunides sempre terminavam em festa, com muita misica e danga ao ritmo dos atabaques. Onilé nao se sentia bem no meio dos outros. Revista Estudos Afvo-Brastleiros, Kanhaém, v. 3, n. 1, p. 300-530, jan./jun. 2022. PVISTA ESTUDOS AFRO-BRASILELTROS Os orixds e a natureza Um dia o grande deus mandou 0s seus arautos avisarem: haveria uma grande reuniao no pa- licio e os orixas deviam comparecer ricamente vestidos, pois ele iria distribuir entre os filhos as riquezas do mundo e depois haveria muita comida, musica e danga. Por todo os lugares os mensageiros gritaram, esta ordem e todos se prepararam com esmero para o grande acontecimento. Quando chegou por fim o grande dia, cada orix4 dirigiu-se ao palécio na maior ostenta- do, cada um mais belamente vestido que 0 outro, pois este era o desejo de Olodumare. Temanjé chegou vestida com a espuma do mar, os bracos ornados de pulseiras de algas marinhas, a cabega cingida por um diadema de corais e pérolas, 0 pescogo emoldurado por uma cascata de madrepérola. Oxéssi escolheu uma tinica de ramos macios, en- feitada de peles ¢ plumas dos mais exéticos animais. Ossaim vestiu-se com um manto de folhas perfumadas. Ogum preferiu uma cou- raca de ago brilhante, enfeitada com tenras folhas de palmeira. Oxum escolheu cobrir-se de ouro, trazendo nos cabelos as éguas verdes dos rios. As roupas de Oxumaré mostravam todas as co- res, trazendo nas mios os pingos frescos da chu- va, Tansa escolheu para vestir-sc um sibilante vento ¢ adornou os cabelos com raios que co- Iheu da tempestade. Xang6 nao fez por menos e cobriu-se com o trovao. Oxali trazia 0 corpo envolto em fibras alvissi- mas de algodio e a testa ostentando uma no- Revista Estudos Afro-Brasiletros, Itanhaém, v. 3. n. 1, p. 301-530, jan./jun, 2022. REVISTA ESTUDOS APRO-BRASILEI Dr. Reginaldo Prandi bre pena vermelha de papagaio. E assim por diante. Nao houve quem néo usasse toda a criativi- dade para apresentar-se a0 grande pai com a roupa mais bonita. Nunca se vira antes tanta ostentacao, tanta beleza, tanto luxo. Cada orixd que chegava ao palicio de Olodu- mare provocava um clamor de admiragao, que se ouvia por todas as terras existentes. Os orixds encantaram 0 mundo com suas ves- tes. Menos Onilé. Onilé nao se preocupou em vestir-se bem. Onilé nao se interessou por nada. Onilé nao se mostrou para ninguém. Onilé recolheu-se a uma funda cova que ca- vou no chao. Quando todos 0s orixés haviam chegado, Olodumare mandou que fossem acomodados confortavelmente, sentados em esteiras dis- postas ao redor do ono. Ele disse entao a assembleia que todos eram bem-vindos. Que todos os filhos haviam cumprido seu de- sejo ¢ que estavam tao bonitos que ele nao sa- beria escolher entre cles qual seria 0 mais vis-~ oso e belo. Tinha todas as riquezas do mundo para dar a eles, mas nem sabia como comecar a distribuicio. Entio disse Olodumare que os préprios filhos, ao escolherem o que achavam o melhor da na- tureza, para com aquela riqueza se apresentar perante 0 pai, cles mesmos ja tinham feito a Revista Estudos Afro-Brastleiros, Kanhaém, ¥. 3, n. 1, p. 302-530, jan./jun. 2022. PVISTA ESTUDOS AFRO-BRASILETROS Os orixds e a natureza divisio do mundo. Entao lemanjé ficava com 0 mar, Oxum com 0 ouro € os rios. ‘A Oxéssi deu as matas ¢ todos os seus bichos, reservando as folhas para Ossaim. Deu a Jansi o raio ea Xangé 0 trovio. Fez Oxald dono de tudo que é branco ¢ puro, de tudo que € 0 principio, deu-lhe a criagao. Destinou a Oxumaré o arco- ‘is e a chuva. ‘A Ogum deu o ferro ¢ tudo 0 que se faz com cle, inclusive a guerra. E assim por diante. Deu a cada orix um pedago do mundo, uma parte da natureza, um governo particular. Di- vidiu de acordo com o gosto de cada um. E disse que a partir de entao cada um seria © dono ¢ governador daquela parte da natu- reza. Assim, sempre que um humano tivesse al- guma necessidade relacionada com uma da- quelas partes da natureza, deveria pagar uma prenda ao orixd que a possuisse. Pagaria em oferendas de comida, bebida ou outra coisa que fosse da predilecao do orixé Os orixis, que tudo ouviram em siléncio, co- mecaram a gritar ea dancar de alegria, fazen- do um grande alarido na corte. Olodumare pediu siléncio, ainda nao havia terminado. Disse que faltava ainda a mais importante das atribuicdes. Que era preciso dar a um dos fi- Revista Estudos Afro-Brasiletros, Itanhaém, v. 3. n. 1, p. 303-530, jan./jun. 2022. REVISTA ESTUDOS AFRO-BRASILEILROS Dr. Reginaldo Prandi Ihos 0 governo da ‘Terra, o mundo no qual os humanos viviam ¢ onde produziam as comi- das, bebidas ¢ tudo 0 mais que deveriam ofer- tar aos orixds. Disse que dava a Terra a quem se vestia da propria ‘Terra. Quem seria? perguntavam-se todos? “Onile”, respondeu Olodumare. “Onile” to- dos se espantaram. Como, se cla nem sequer viera & grande reu- nido? Nenhum dos presentes a vira até entéo. Nenhum sequer notara sua auséncia. “Pois Onilé esta entre nés”, disse Olodumare e mandou que todos olhassem no fundo da cova, onde se abrigava, vestida de terra, a discreta e recatada fill. Ali estava Onilé, em sua roupa de terra. Onilé, a que também foi chamada de Tlé, a casa, 0 planeta. Olodumare disse que cada um que habitava a Terra pagasse tributo a Onilé, pois ela era a mae de todos, 0 abrigo, a casa. A humanidade no sobreviveria sem Onilé. Afinal, onde ficava cada uma das 1i- quezas que Olodumare partilhara com filhos orixés? “Tudo esté na Terra”, disse Olodu- mare. “O mar e os rios, o ferro e 0 ouro, Os animais eas plantas, tudo”, continuou. “Até mesmo o ar ¢ o vento, a chuva ¢ 0 ar co-itis, tudo cxiste porque a Terra existe, as- sim como as coisas criadas para controlar os homens ¢ os outros seres vivos que habitam o planeta, como a vida, a satide, a doenga e mesmo a morte”. Pois entao, que cada um pa- Revista Estudos Afvo-Brastleiros, Kanhaém, v. 3, n. 1, p. 304-530, jan./jun. 2022. PVISTA ESTUDOS AFRO-BRASILELTROS Os orixds e a natureza gasse tributo a Onilé, foi a sentenga final de Olodumare. Onilg, orixd da Terra, receberia mais presen- tes que os outros, pois deveria ter oferendas dos vivos e dos mortos, pois na ‘Terra também repousam os corpos dos que j4 nao vivem. Onilé, também chamada Aié, a Terra, deveria ser propiciada sempre, para que 0 mundo dos humanos nunca fosse destruido. Todos os presentes aplaudiram as palavras de Olodumare. Todos 0s orixés aclamaram Onilé. Todos os humanos propiciaram a mae Terra. E entao Olodumare retirou-se do mundo para sempre e deixou o governo de tudo por conta de seus filhos orixis.? Cultuada discretamente em terreiros antigos da Bahia ¢ em candomblés africanizados, a Mae Terra desperta curiosida- de ¢ interesse entre os seguidores dos orixds, sobretudo entre aqueles que compéem os seguimentos mais intelectualizados 2. Narrado pelo olué Agenor Miranda Rocha, em pesquisa de campo no Rio de Jancito, em 1999. Fragmentos em Wande Abimbola (1977, p. 111; 1997, p. 67- 68). Versio apresentada em Prandi (2001, p. 410-415). Revista Estudos Afro- Brasileiros, tanhaém, v. 3, n. 1, p. 305-530, jan./jun. 2022. REVISTA ESTUDOS AFRO-BRASILEILROS Dr. Reginaldo Prandi da religiéo. Onilé ¢ assentada num monticulo de terra ver- melha e acredita-se que guarda o planeta ¢ tudo que ha sobre ele, protegendo o mundo em que vivemos e possibilitando a propria vida. Na Africa, também é chamada Aié e Ile, receben- do em sacrificio galinhas, caracéis e tartarugas (ABIMBOLA, 1977, p. 111). Onilé, isto é, a Terra, tem muitos inimigos que a exploram e podem destrui-la. Para muitos seguidores da religido dos orixds, interessados em recuperar a relagio orixd- natureza, o culto de Onilé representaria, assim, a preocupagao com a preservacio da propria humanidade e de tudo que ha em seu mundo. Referéncias bibliograficas ABIMBOLA, Wande. /fé Divination Poetry. Nova York, Londres e Ibadan: Nok Publishers, 1977. ABIMBOLA, Wande. ifd Will Mend our Broken World: Thoughts on Yoru- ba Religion and Culture in Africa and the Diaspora. Roxbury, Massa- chusetts: Aim Books, 1997. LEPINE, Claude. As metamorfoses de Sakpata, deus da variola. Jn: MOU- RA, Carlos Eugenio Marcondes de (org.). Leopardo dos olhos de fago. Sao Paulo: Atelié Editorial, 1998. Revista Estudos Afvo-Brastleiros, Kanhaém, v. 3, n. 1, p. 306-530, jan./jun. 2022. REVISTA ESTUDOS AFRO-BRASILETROS Os orixds e a natureza PRANDI, Reginaldo. Mizologia dos orixds. S40 Paulo: Companhia das Le- tras, 2001. Revista Estudos Afro-Brasiletros, Itanhaém, v. 3. n. 1, p. 307-530. jan./jun, 2022.

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