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Ciéncias: facil ou dificil? Nelio Bizzo i i Cg 4O i elavwe de jtopesset CIENCIAS: FACIL OU DIFICIL? NELIO BIZzO 2" edigao 7 impressao Editor Miriam Goldfeder Editor-assistente Claudemir D, de Andrade Preparacio de texto Fatima Mendonca Cowto Revisao Fatima de Carvalho M de Souza (coord,} Isnias ili Marcia da Cruz Leme Edi¢io de arte (:miolo) Estadio O.L.M. Tiustragao de capa Liicia Brandao Capa Marcello Araujo SIMnISSAO ACARAMENTO. (Giaemey Grin w Eeatovn Las, ISBN 85 08 O7 192 2 0t Todos 0s Aictitos reservados pels Ruiter Atkea Rua farie de Fguape. L10- CEP 9107-900 Coin Pool 7 CEP 085-099 ule SP 1 SG-M0O0 + Fae INK HL IFT bnp:forwu.anicaeacn bbe cornell, edbonaie Agradecimentos ‘Mesino sendo impossivel agradecer a tadas as pessoas que contribuiram de alguma forma para este livro, gostaria de destacar alguns nomes. Diversos professores s4o0 modelos e fonte constante de estimulos. Dentre eles, gostaria de des~ tacar Myriam Krasilchik, Oswaldo Frota-Pessoa, Hercilia ‘Tavares de Miranda ¢ Bernardo Beiguelman. Agradecimentos especiais devo a Edgar Jenkins, Wynne Harlen, Peter Kelly e Bill Cobern. O professor Roberto Boczko cedeu o software “Gnémon", de sua autoria, para a confeccao das figuras com a trajetoria aparente do Sol. Sou muito grato a Cecilia Yoshida Freire, que prestou grande auxilio nas entrevistas dos estu- dantes, ea Maria Inés Scabin, que realizou trabalho cuida- doso de revisado no texto, incorporando criticas e sugestées. Tenho aprendido muito com todas as pessoas que me dao a honra de participar comigo de equipes de trabalho. Gostaria de destacar meus companheiros em equipes da Faculdade de Educacao, da Escola do Futuro da USP da Fundagdo Roberto Marinho, TVN, Arquimagem e das Secretarias de Educacdo Fundamental (SEF) ede Educacgaoa Distancia (SEED) doMEC, FDE (SEE-SF) e Secretaria do Estado da Cultura, Diversos grupos de professores tém interagido de perto comigo, trazen- do-me inestimavel fonte de conhecimento da intimidade da sala de aula. Gostaria de agradecer aos professores e a dire- cao. da EEPSG Dona Idalina Macedo Sodré, Colégio Bandei- rantes e Colégio Santa Cruz. Devo agradecer também a meus alunos, uma vez que este livro resultou de apostilas e guias de aula que desenvolvi para os cursos de metodologia de ensino da ciéncia ministrados na USP Sou muito grato a eles, que sempre me estimularam com suas criticas e sugestées. Esse soa conjunto de fragmentos jamais teria tomado a forma de livro Sumario nao fosse o trabalho estimulante, critico, atento e competente de Ana Rosa Abreu, a quem devo agradecimentos especiais. Séric Palavra de Professor ......... WRREOQUENG:.... eee tana dee eee GOR) Lak as 9 Capitulo 1. Conhecimento: cientifico e cotidiano .......... 17 Sobrevivéncia nem sempre cientifica .... 2.2.0.0 5. . LB Especificidades do conhecimento cotidiane ¢ do conhecimento cientifico ........5..5.- 2 Capitulo 2, Ensinar ciéncias na escola Antigas represeniagdes sobre o ensing eaprendizagem de ciémcias ......--..---.45 Pesquisa em ensino de ciéneias .-....... cee Capitulo 3. Perspectivas para a atuacao do professor ...... 47 Entender a pratica cotidiana como objeto de pesquisa... i.e cc cess erect ee tee A? Conhecer estudos ¢ pesquisas sobre oensino de cidncias .. 2... 6-244. -ecee eee steal Encaminhar atividades sem se apresentar vome uma fonte inesgotavel de conhecimento --- do Proporcionar oportunidades de trava de idéias entre os alunos ..... sditieiataadh Puen REE 51 Procurar explicagdes e sua comprovagao ..........-. 52 Procurar principios e¢ aplicagdes em contextes diversos . Progredir conceitualmente Utilizar terminolegia clentifica, de forma COITeTA - 5... 56ers Pesquisar e implementar formas inovadoras de avaliagaa , . Capitulo 4. Orientacdes gerais para a pratica do professor . Utilizar livros didaticos de forma critica .......5..... 65 Selecionar uma variedade de textos Hise SRT ANI 67 CEPI E eae wT e imagens adequadas aos alunos Realizar experimentos com os alunos Desenvolver “projetos de ciéncias” A utilizagao de computadores © planejamento curricular ¢ programiatico ... . ‘Capitulo 5. A teoria na pratica ...... Grgaos dos sentidos , . O planeta global ........ Energia para plantas e animals Oar e suas propriedades Resumindo... .a3 eee 56 60 65 wide acetate a3 .. 87 135 139 » 141 144 Série Palavra de Professor Vivemos um momento de revisio da educagio escolar, de seu papel e seu alcance. Juntamente com isso, vem 0 desafio da construgdo de um perfil profissional para o professor com base no seu trabalho em sala de aula, mas que se amplia para o desenvolvimento do projeto educativo da escola, para a producio, sistematizagao e socializagao de conhecimentos pedagégicos e para a participagao em discussées da comunidade educacional. Diante desta complexidade, fica evidente que nao ha regras para organizar ¢ descrever a atuagao deste profissio- nal que precisa, ao mesmo tempo, ter clareza de objetivos e de sua intervencao pedagégica, mas também flexibilidade e sensibilidade. Por isso, a formagado docente é hoje com- preendida como um processo permanente de desenvolvi- mento profissional: estudos, atualizagdes, discusses e trocas de experiéncias. A Série Palavra de Professor foi organizada para atender a essas necessidades e concebida com duas preocupagoes centrais. A primeira: a escolha de autores que atuam na formacao de professores com contribuigées significativas As discussdes mais recentes. A segunda: a selecaode assun- tos tratados de forma a estabelecer um didlogo com as inquietacdes do professor e apresentar a fundamentagao necessdria para subsidid-lo nas reflexdes e na busca de ages criativas. Qs livros podem ser utilizados para orientagao peda- pégica, para avaliacio e planejamento do ensino ¢ em 7 reunides de professores e coordenadores, Alérn disso, sao instrumentos de trabalho em escolas de formacio, grupos de estudo, programas das secretarias ¢ tantas outras ins tancias que estéo sendo constituidas para o desenvol- vimento de uma nova educacao para o pais. Esta colecdo se destina principalmente a profissionais de educa¢ao de 1’ a4* séries do Ensino Fundamental. Porém, muitas tematicas poderao ser pertinentes para profissionais de Educacao Infantil e de todo o Ensino Fundamental. E certo também que muitos temas serio interessantes para 08 pais, auxiliando-os na educagao de seus filhos, Ana Rosa Abrev Estuaar metodologia e pratica de ensino de ciéncias nos dias atuais nao é tarefa facil, tanto nos cursos de ensino mé- dio como nos de pedagogia ou mesmo formacdo de professo-~ res de ciéncias. A nova Lei de Diretrizes e Bases (artigo 82) facultou aos sistemas de ensino o estabelecimento de nor- mas para a realizacao de estagios dos cursos de formacdo de professores, tanto no ensino médio como em nivel superior. A amplitude da fungao docente foi estendida pela nova lei, que especifica componentes importantes dos estagios, que deverio abranger “elaboragao, execucao e avaliagao das pro- postas pedagégicas das escolas da rede publica ou particu- Jar”. Em Sao Paulo, o Conselho Estadual de Educagao orien- la, nos cursos de formagao de professores, que “a expressdo ‘pratica de ensino’ abrange a aprendizagem de nocdes tebri- cas, experiéncias de regéncia de classe e realizacao de esta- gios” (Indicagao CEE 11/97). Este livro nasceu de preocupagées muito parecidas com essas, Durante cerca de dez anos procurou-se levar ao pro- fessor em formagao, ou mesmo ao ja formade, alternativas de formacio teérica organicamente ligadas a uma pratica. Em vez de simplesmente levar o futuro professor a uma sala de aula, pretendia-se proporcionar-he elementos teéricos so- bre a pratica, um verdadeiro exercicio dialogico. Esse exerci- cio vinha sendo tentado sem conferir a importancia devida aos contetidos escolares, de modo que a metodologia passa- va a ter importancia quase que exclusivamente retérica. 0 resultado aparece na forma deste livro, que contém uma dis- cussao na medida do possivel profunda, se bem que despre- tensiosa e descomplicada, ao lado de contetidos escolares pro- priamente ditos. Trata-se de uma tentativa inovadora, que pretende enfrentar uma realidade que nos é velha conheci- da, em especial na area de ensino de ciéncias. 9 Introducao Tia cerca de quarenta anos, o cientista e professor Oswaldo Frota-Pessoa escrevia um livro discutindo as dificuldades do ensino de ciéncias nas escolas brasileiras!, no qual é possi- vel perceber, desde as primeiras linhas, um quadro seme- lhante ao que encontramos hoje em dia. Essas dificuldades configuram até mesmo uma verdadeira “cultura” do fracasso escolar na area de ciéncias. Ecomum que, diante da falta de compreensao de certa de- fini¢de, por exemplo, tanto o professor quanto os alunos pas- sem a acreditar que estejam diante de uma verdade absoluta © que sao incapazes, intelectualmente, de entender algo que parece ser ébvio para os cientistas. No entanto, como vere- mos adiante neste livro, muitas vezes professor e alunos ndo entendem afirmacSes, mesmo algumas que aparecem impres- Sas em seus livros didaticos, pela simples raz4o de que elas 840 uma sintese de varias explicagdes e conceitos e que nao podem mesmo fazer sentido sozinhas, como afirmacies iso- ladas. Algumas vezes, para tentar simplificd-las, os materiais didaticos acabam por distorcer os conceitos cientificos, dan- do algumas vezes a impressdo de que podem ser facilmente compreensiveis ¢ outras aumentando as dificuldades de pro- fessores e alunos. Por exemplo, durante décadas muitos li- vros didaticos afirmaram que o verao ocorria porque a Terra Se aproximava do Sol. Mas ao ligar a televisdo e ver o noti- ciario, professor e alunos se deparam com as praias lotadas do nosso litoral e nevascas terriveis no hemisfério norte, Onde estaria a Terra: perto ou longe do Sol? Sem poder encontrar a resposta facilmente, a tendéncia era atribuir a si mesmos a culpa pelo fracasso de qualquer expii- cacao que tentassem elaborar. Sentiam-se incapazes, desmo- tivados, abatidos em sua auto-estima. “Ciéncias é dificil”, cos- tumava-se dizer nesses momentos. Pessoa, O. Biulogie ag escola secundaria. $0 Paulo, Nucional, 1961, 10 Para escapar dessa situagdo, uma alternativa era a de sim- plesmente aceitar a explicacio a que tinham acesso. Nesse ca- 80, costumava-se dizer que “ciéncias é facil”. pois bastava que og alunos memorizassem algumas afirmagoes e explicagdes e aS apresentassem ao professor nos rituais de avaliagao. Mas, outras vezes, os professores procuravam pela expli- cacio correta ¢ a apresentavam a seus alunos: "O eixo de in- clinacio da Terra é de 23° em relagao a perpendicular do plano da ecliptica. Disso decorre distribuigdo desigual de irradiagao solar ao Jonge do ano nos dois hemisférios, com excegao dos dois equindcios”, Este modelo é correto, ao contrario daquele que falava da proximidade da Terra em relagao ao Sol, No en- tanto, dificilmente os estudantes das séries iniciais do ensino fundamental poderio compreender a afirmacdo e relaciona- la com 0 noticidrio da TV, por exemplo, Também nesses casos, costumava-se dizer que “ciéncias é dificil”. Este livro tenta mostrar que o ensino de ciéncias pode pa- recer facil em certos momentos, mas isso nao significa neces- sariamente que esteja atingindo seus objetivos. Por outro la~ do, ele pode parecer dificil em outras situagdes, mas mesmo assim, proporcionar grande envolvimento de alunos ¢ pro- fessor, ainda que apresente algumas dificuldades e desafios para ambos. O ponto principal é reconhecer a real possibilidade de en- tender o conhecimento cientifico ¢ a sua importancia na for~- macao dos nossos alunos, uma vez que ele contribui efetiva- mente para a ampliacdo da capacidade de compreensao e atuagaéo no mundo em que vivemos, Parte-se do principio de que ensinar ciéncias no mundo atual deve constituir uma das prioridades para todas as escolas, que devem investir na edi- ficagio de uma populagdo consciente e critica diante das es- colhas e decisies a serem tomadas’. KRASILCHTK, je ersianae binlogia. 3, cd. Sho Paulo, Harbra. 106, 11 Reconhece-se que o papel do ensino de ciéncias deixou de ser apenas o de preparar futuros cientistas, ao procurar re- velar uma pequena minoria no meio de uma multidao de alu- nos. No passado, ensinava-se ciéncias para todos esperanda que uns poucos futuros cientistas pudessem ser identifica- dos precocemente. Os ensinamentos teriam utilidade futura apenas para eles. Para os demais, a grande maioria, o ensino de ciéncias era uma espécie de placebo pedagdégico que tinha de ser ingerido durante alguns anos seguidos sem qualquer utilidade_A idéia de “placebo pedagdégico” esta baseada em comparagao com os experimentos da drea médica. Para sa- ber se um determinado remédio traz efeitos contra uma doen- qa. por exemplo, a gripe, ele é administrado a um grupo de voluntarios que apresentam os mesmos sintomas. Uma parte deles recebe o remédio em teste, e outra parte recebe cdépsu- jas sem qualquer medicamento. Esse “remédio” é chamado de placebo, Desta forma, um placebo pedagdgico poderia ser definide como wna série de conhecimentos que nao tém ri- forosamente nenhuma utilidade para o aprendiz.“A Terra se aproxima do Sol no verdo".um modelo errado, e mesmo um modelo correto, mas fora do aleance de compreensdo dos alu- nos, sio exemplos de placebos pedagdégicos. Eles dio a im- pressao de que algo foi aprendido, mas nao passam de frases (corretas ou ndo) que nao fazem a menor diferenca para o aprendiz. Odominio dos fundamentos cientificos hoje em dia é in- dispensavel para que se possa realizar tarefas tio triviais co- mo ler um jornal ou assistir 4 televisdo. Da mesma forma, de- cisbes a respeito de questGes ambientais, por exemplo, nao podem prescindir da informacao cientifica, que deve estar ao alcance de todos. Um exemple, tragico e extremo, pode ser lo- calizado no acidente ocorrido em setembro de 1987, em Goidnia (GO). Um apareiho de radioterapia abandonado foi levado por dois catadores de papel e revendido a um ferro- 12 velho. 0 cilindro, que continha césio-137", com 3,6 centime- tros de didmetro e 3 centimetros de altura, foi violado, e 0 bri- tho azulado do pé de cloreto de césio chamou a atengao do done do ferro-velho, Ele olevou para casa, distribuiu o pé pa- ra parentes ¢ amigos e o guardou em um armirio. Nove dias depois, a esposa do dono do ferro-velho colocou o cilindro radioativo violado dentro de um saco plastico e o levou, de Onibus, a um Centro de Vigilancia Sanitaria, suspeitando que ele pudesse ser a causa do mal-estar dos familiares. 0 aci- dente causou quatro mortes no espago de trinta dias, inclusi- ve de uma crianca de seis anos, que espalhou o pé pelo cor- poe oingeriu, contaminou cerca de 250 pessoas e uma dezena de localidades. Essas pessoas foram vitimas da falta de res- ponsabilidade de quem permitiu que este material ficasse ex- posto, mas também pela falta de informacdo e de conheci- mentos cientificos necessarios para viver em um mundo que reune avangos tecnologicos notaveis. Essas informagies e co- nhecimentos passam cada vez mais a ter importincia, e a es- cola nado pode deixar de assumir a responsabilidade de tor- nd-las acessiveis aos cidadaos. Ademocratizacao do ensino de ciéncias, objetivo declara- do de muitos governos e autoridades, aguarda ainda solugdes de diversos problemas nas relagdes ensino-aprendizagem, uma vez que é forcoso admitir que os resultados educacio- nais nao tém sido promissores. Muitos estudos tém demons- trado que os estudantes nao atingem os objetivos planejados. Fazer 9 estudante memorizar uma longa lista de fatos, mui- tas vezes nomes exdticos e pomposos, parece ser a umica fa- canha que o modelo tradicional tem conseguido alcangar. ‘Trata-s¢ de um elemento radigative, que emite particulas-beta, A desintegra- qae de parte de sew niche origina particul ha Energia. Essas as nits Células que em. destruindo pare vida de césio- 137 é de trinta anos 13 Nao se admite mais que o ensino de ciéncias deva limitar- se a transmitir aos alunos noticias sobre os produtos da cién- cia, A ciéncia é muito mais uma postura, uma forma de pla- nejar e coordenar pensamento e acdo diante do desconhecido. © ensino de ci€ncias deve proporcionar a todos os estudan- tes a oportunidade de desenvolver capacidades que neles des- pertem a inquietagao diante do desconhecido, buscando expli- cagdes logicas e razoiveis, amparadas em elementos tangiveis. Assim, os estudantes poderdo desenvolver posturas criticas, realizar julgamentos e tomar decisdes fundadas em critérios tanto quanto possivel objetivos, defensaveis, baseados em co- nhecimentos compartilhados por uma comunidade escolari- zada definida de forma ampla, Portanto, os contetidos sele- cionados pela escola tém grande importdncia e devem ser ressignificados e percebidos em seu contexto educacional es- pecifica, Deve-se reconhecer que a ciéncia é diferente da disciplina escolar ciéncias. A ciéncia realizada no laboratério requer um conjunto de normas e posiuras. Seu objetivo é encontrar re- sullados inéditos, que possam explicar o desconhecido. No entanto, quando é ministrada na sala de aula, requer outro conjunto de procedimentos, cujo objetivo é alcancar resulta- dos esperados, alias planejados, para que o estudante possa entender o que é conhecido. A ciéncia sabe como procurar, thas ndo conhece resultados de antemdo, O ensino, ao contra- rio, conhece muito bem quais siio os objetivos a encontrar, mas as discussdes de como proceder para alcanca-los apontam pa- ra diferentes caminhos. Existe portanto uma diferenga fun- damental entre a comunicacdo de conhecimento em congres- $08 cientificos, entre cientistas, e a selecdo e adaptagio de parcelas desse conhecimento para ser utilizade na escola por professores e alunos. Muitos professores se convenceram de que os problemas enfrentados para ensinar ciéncias ocorriam apenas com eles, Ensinar ciéncias era, para eles, “dificil”, presumindo que, pa- 14 ra os outros, fosse “facil”. f hora de reconhecer que existem muitas duvidas sobre como ensinar ciéncias ¢ que o numero de perguntas é muito maior do que o de respostas, Os dile- imas encontrados nao sao problemas restritos a um tipo de profissional ou ao Brasil, uma vez que se repetem em dife- rentes contextos, em diferentes paises Muitas perguntas antigas comecam agora a ser enuncia- das de maneira que possamos procurar respostas. Perguntas dn tipo “Por que a crianga n@o aprende ciéncias?” passaram muito tempo esperando por respostas de diferentes profis- sionais até que se permitissem reformula-las, transforman- ilo-as em outras do tipo: “Quais sdo as explicagdes das crian- vos para a existéncia do dia e da noite?”, ou entao: “Como as ‘riangas explicam a reproducdo de animais e de plantas?" . amos a entender que as criangas tém idéias ldgicas ¢ coe- rentes, ¢ que elas podem modificar essas idéias contando com contribuicdes da cultura acumulada pela humanidade, cons- imuinde modelos validos no contexto cientifico da atualidade, Este livro ¢ dirigido aos professores que lidam com os es- ludantes no inicio de sua escolaridade formal. Nao se deve esperar por formulas magicas de como ensinar este ou aque- lv contetido; nado se deve esperar por tentativas de demons- Irar erudi¢aéo em todas as diferentes especialidades; nao se ileye esperar por normas rigidas ¢ infaliveis de como proce- ier em qualquer situagao. Este livro procura sistematizar algumas certezas e algu- nas perspectivas, para que possam ser formuladas de ma- \wira a incentivar os professores a procurar novas respostas a velhas perguntas. Ao mesmo tempo apresentamos alpumas wiilises de situagdes didaticas ¢ sugestoes de trabalho que |mucrao orientar o professor a repensar sua pratica cotidia- na, tormando-a mais rica ¢ estimulante, mesmo para aqueles iu: Possuam come unica credencial profissional sua dedica- (10 a0 ensino. Ao final do livro ficaré evidente que ensinar e aprender ciéncias talvez nao seja tao facil quanto alguns pou- vos afirmavam, mas certamente se vera que nao ¢ tao dificil yiniite muitos pensavam. 15 Conhecimento: cientifico e cotidiano Nio ha divida de que os conhecimentos produzidos pela ciéncia $40 verdadeiros. Esta frase simples precisa, no entan- to, ser entendida em sua profundidade, A ciéncia nao esta am- parada na verdade religiosa nem na verdade filosdéfica, mas em um certo tipo de verdade que é diferente dessas outras. Nao é correta a imagem de que os conhecimentos cientificos, por serem comumente frato de experimentagao e por terem uma base légica, sejam “melhores” do que os demais conhe- cimentos. Tampouco se pode pensar que o conhecimento cien- tifica possa gerar verdades etermas ¢ perenes, Muitas pessoas que viveram na década de 1960 perderam tonsilas, antigamente chamadas de amigdalas, através de ci- rurgias que passatiam a ser condenadas poucos anos depois. Naquela época, a ciéncia via aqueles 6rgdos como intteis, tes- temunhas do processo de evolucao bioldgica, Em espécies an- cestrais aqueles érgdos teriam tido alguma fungao, perdendo qualquer utilidade nas etapas subseqientes. Com as tonsilas era utilizado o mesmo raciocinio aplicado para outros Grgdos, como o apéndice vermiforme, 0 conhecido drgao responsavel pelas "apendicites”. Mamiferos herbivoros, por exemplo, tem apéndices enormes e intestines jongos, J4 mamiferos carni- voros tém apéndices pequenos e intestinos curtos. Assim, co- mo a especie humana nao é herbivora (mesmo que macro- biéticos ¢ vegetarianos em geral discordem desta afirmagao), ela ndo precisaria daquele érgdo. Este raciocinio, aplicado as tonsilas ¢ coincidindo com interesses comerciais de clinicas médicas privadas, resultou em cirurgias realizadas em boa parte da populagao que podia pagar por elas, Além daquele argumento logico dos drgaos vestigiais, exis- tiam evidéncias experimentais. Pessoas sem as tonsilas tinham vida normai. Pessoas sem baco também. No entanto, passado Vv algum tempo, percebeu-se que pessoas sem baco e sem ton- silas apresentavam resisténcia imunolégica comprometida em alguns cases. Faringites freqientes sdo 0 resultado mais comum entre aqueles que perderam suas tonsilas. Depois de se reconhe- cer que as tonsilas exercem uma importante funcdo de defe- Sana porta de entrada do organismo, que é 0 trato digestivo, a recomendacdo da operacao é muito mais restrita hoje em dia, sendo realizada apenas em ultimo caso, depois de tenta- dos outros meios possiveis de tratamento. Este ¢ um exemplo de que a experimentacao e a base 1é- gica da ciéncia nao lhe garantem a possibilidade de produzir conhecimentos inquestiondveis e validos eternamente, Mas a grande questao é se outras formas de producdo de conhe- cimento, sem a base experimental e légica da ciéncia, podem produzir conhecimentos validos ¢ igualmente verdadeiras. Para tanto, examinaremos dois exemplos. Sobrevivéncia nem sempre cientifica Dificilmente existe uma forma mais rigorosa para saber se um conhecimento é verdadeire do que testé-lo para saber se ele auxilia ou atrapalha a sobrevivéncia das pessoas que o detém. E um teste muite duro! Podermos imaginar duas situagées ficticias. Um grupo de pessoas esta perdido em alto-mar, apés um naufragio. Uma balsa com sobreviventes encontra frutos boianda na Agua, provavelmente uma carga de mangas transportada pelo pré- prio navio que se espalhou pelo mar depois que ele afundou. Como estao famintos, os ndufragos se alimentam com as man- gas até nao agiientarem mais. No mesmo dia, é encontrado um compartimento secreto na balsa contendo leite esterilizado. Todos estao sedentos e sabem que o Leite é um timo alimento. Mas uma discussao se inicla no bote, uma vez que alguns argumentam que o con- sumo de leite podera levar a problemas digestivos, talvez até 18 4 morte, para aqueles que acabaram de comer grande quan- tidade de mangas. Haverd algum funde de verdade na afirmagio de que comer manga e iette jaz muito mal? O que os ndufragos deveriam fazer? Esta questao costuma ensejar uma boa discussao. Decidem que os mais velhos do bote irdo tomar o leite e, se nada lhes ocorrer, as criancas 0 tomarao algumas horas depois. Os ve- lhos tomam 6 leite e nada sofrem, o que libera o consumo aos demais. Mas, com um pouco de sorte, nossos ndufragos conseguem chegar a uma pequena ilha deserta depois de mais alguns dias sem ter nada o que comer. Apesar do frio e da chuva, fi- cam contentes ao encontrar muitos pés de mandioca nativa na ilha. Famintos, resolvem comegar a comer imediatamente a mandioca, sem cozinhd-la, quando alguém diz que esse ti- po de mandioca é venenosa e que deverao cozinha-la antes de comé-la. Seré que é verdade que este tipo de mardioca crva é verenasa? O que os néufragns devem fazer? Tivesse sido feito 0 teste com a mandioca crua, da mesma forma como com a manga, certamente teriam ocorride alguns casos de envenenamento, Esses sao dois exemplos de conhecimento cotidiano, afir- maces nas quais um grande grupo de pessoas acredita por uma razao muito simples: elas funcionam em condigdes es- pecificas. Ha algum tempo, alguns escravos devem ter salvado a vi- da por nao terem bebido o leite da ordenha apdés terem co- mido mangas e outras frutas, nao pelo fato de que a mistura 19 faz realmente mal, mas porque os fazendeiros os proibiam de fazé-lo. Fala-se que essa histéria foi inventada por fazen- deiros na época da escraviddo, para evilar que os escravos bebessem © leite que retiravam das vacas. Da mesma forma, muitos indios devem ter evitade proble- mas graves de sauce, até mesmo a morte, deixando de comer mandioca crua, O que é interessante neste ultimo caso é que os Indios con- seguiram estabelecer uma série de verdades sobre a mandio- ca, seu carater venenoso por exemplo, e conseguiram ainda propor métodos para eliminar a toxicidade da planta através do processamento de suas raizes. Embora a ciéncia nao re- conhega (e hem mesmo conhega) os métodos empregados pe- los Indios para produzir essas verdades, ela reconhece seus resultados. Os cientistas puderam comprovar que as mandio- cas Nativas so plantas risticas, que ndo sdo atacadas por quase nenhuma praga ou inseto, porque estao naturalmente protegidas pela acdo de venenos poderosissimos, do grupo dos cianogénicos. Além disso, os métodos inventados pelos indios para processar a mandioca, como rald-la, exp6-la ao 301 € torra-la, S40 suficientes para destruir as substancias ve- nenosas nela presentes. Estes exemplos procuraram mostrar que nao se pode di- ger que entre conhecimento cotidiano e cientifico exista con- qradigao, ou Mesmo que um seja correto ¢ o outro errado em sermos absolutos. Um fildsofo' certa vez escreveu que o co- nhecimento cotidiano normalmente ¢ analisado a luz do co- nhecimento cientifico, o que resulta em uma imagem negati- yae deficiente. O caso da manga com leite, por exemplo, do ponte de vista cientifico é um desastre, ndo passa de uma ver- dadeira anedota. A prépria designacdo do conhecimente co- Bde S.faitadagde a uma eitacia pis moderna. Rio de Jancito, Graal, 1989. 20 tidiano como”senso comum’ 6, em si, questionavel, uma vez que existe uma cerla conotagdo depreciativa na expressao*. No conhecimento cotidiano, ha coincidéncia entre causa e intengao; nada ocorre por mero acaso, Tudo é pratico, aplicd- vel, resulta em beneficio individual imediato; as relagdes sao perceptiveis ¢ explicaveis, e ndo resultam da aplicagao de qualquer método universalmente reconhecido:e ele nado cons- titui disciplina académica. Mas é visto como uma especie de “denominador comum daquilo que um grupo ou um povo co- letivamente acredita, ele tem, por isso, uma vocacao solida- rista 6 transclassista’. Nao se trata, portanto, de hostiliza-lo na escola, O que essa instituig¢do deve fazer ¢ proporcionar acesso a outras formas de conhecimento que, muitas vezes, constituem explicagées alternativas — quando nao frontal- mente opostas — as crencas da coletividade®. Qs alunos té¢m o direito de saber que a manga e o leite ndo reagem quimi- camente produzindo um veneno mortal, que isso esta literal- mente errado. Com a mandioca ocorre 0 contrario, e os alu- nos podem compreender nao apenas a razdo de evitar o consumo da mandioca crua como também a razdo de as plan- tas de mandioca nao serem devoradas por formigas e outros insetos. Contudo, a tarefa de estabelecer a distingdo entre co- nhecimento cotidiano e conhecimento cientifico nao é facil, pois isso deve ser feito sem desfazer 0 am4lgama social re- presentado pelas crencas de um pove. Especificidades do conhecimento cotidiano e do conhecimento cientifico Ao evitar a expressdo “senso comum’” procura-se sedimen- tar a concepcdo ampla de conhecimento que emana de dife- rentes fontes. Os alunos tém facil acesso Aquilo que denomi- namos “conhecimento cotidiano” ¢ nao deixardo de té-lo ao * Awwes, R. Filosofia da ciéneia: intredugdo ao Joga ¢ swas regres. Slo Paulo, Brastlicnse, 1981 artigo de Daisy Lara de Oliveira, “Consideragdes sobre o ensino de cién- -18, in __. ot Citncins mas alas de ava, Porto Alegre, MediacSa, 1997. 21 ingressarem na escola. Mas essa instituicgao é uma das pou- cas que tem por obrigagdo, constitucional inclusive, propor- clonar © acesso a outras formas de conhecimento, como 0 ar- tistico, cultural e cientifico. O conhecimento cientifico tem especificidades que o transformam em ferramenta poderosa no mundo moderno. Essas especificidades podem ser eviden- cladas pelo contraste com o conhecimento cotidiano em cin- co caracteristicas principais. Contradigées Oconhecimento cientifico nao convive pacificamente com as contradicdes. Toda vez que aparecem explicagées diferen- tes para o mesmo fato, pademos dizer que estamos diante de hipdteses rivais. O objetivo de uma sera destruir a outra.Com otempo, uma delas sera esquecida. deixada de lado. Se wm cientista procurar explicar os casos de anencefalia‘ registra- dos em Cubatdo (SP) como devidos 4 poluigao, cic estard criando uma hipétese rival aquela que é aceita pela comuni- dade cientifica da atualidade. Nao se conseguiu provar ne- nhuma relacdo entre poluicgado e anencefalia em Cubatdo. Oconhecimento cotidiano, por outro lado, é muito permis- sivo com as contradigées, chegando mesmo a ser sincrético. Ao afirmar que o conhecimento cotidiano é sinerético, pre- tende-se reconhecer que ele admite como validas diferentes fontes de informacdo, como a religiao, a cultura e até mesmo a ciéncia, o que geralmente conduz a situagdes contradité- nas. Um exemplo bem conhecido pode ser localizado em si- tuagao corriqueira. Ninguém duvida de que a heranga determine as feigées dos bebés. No entanto, quando a mulher gravida passa por vontades, ¢ elas ndo sao satisfeitas, muitos falam e acreditam que o bebé possa nascer com “marcas” dessa vontade 0 de- terminismo da heranga é reconhecido, mas ao mesmo tempo Té 4 deened ma qual a criamea nasee sem o cérebro e nde ndigtes de sobreviver. 22 procura-se compatibiliza-lo com outras formas de influén- clas. Essa contradicao nao incomoda a coletividade, que tem nesse conhecimento uma forma de abrandar restricées, so- bretudo alimentares, as gestantes. Além disso, trata-se de uma maneira de cercar de maior atengaéo a mulher durante a gra- videz, que se sente mais amparada pela familia e pela coleti- vidade. & evidente que a ciéncia nao diz palavra alguma so- bre essas crendices, As contradicées s4o normalmente enfrentadas pelo conhe- cimento cientifico de maneira a produzir embates de idéias. O conhecimento cotidiano procura, muito mais, interagdes entre as partes conflitantes, procurando compatibilizd-las. ‘Terminologia Os detentores de conhecimento cientifico tém muito orgu- lho da terminologia que utilizam e fazem questdo que ela se- jaentendida por todos os que dele fazem uso. Uma vez que o conhecimento cientifico se apresenta articulado em um con- junto de verdades e cresce em complexidade continuamente (com alguns momentos de ruptura — lembre-se das tonsi- Jas), faz-se necessario abreviar o tempo que se despende pa- va alcangar seu limite. Para isso séo0 criados termos que sinte- tizam idéias complexas, conhecidas por aqueles que dominam aquele ramo da ciéncia. Por exemplo, “vertebrado” ¢ um ani- mal que apresenta caracteristicas bem definidas, além da pre- senca de vértebras. O sistema nervosa de todos os vertebra- dos é dorsal (ou seja, esta localizado nas “costas”), Uma mosca, que ndo apresenta vértebras, tem sistema nervoso ventral. A terminologia cientifica nao deveria ser vista simples- mente como wma maneira diferente de namear fendmenos, por duas razGes. Em primeiro lugar, s¢ ela é vista como wm cddigo, trata-se de um cédiga de compactagéo e nao de um cédigo criptogrdfi- co. 0 codigo de compactacao tenta juntar informacao, agre- Bando significados. O cédigo criptografico, por outro lado, pro- cura esconder significados. Muitas vezes os dois codigos sio 23 confundidos, mas a diferenga entre eles é profunda. Se al- guém perguntar o ano em que este livro foi escrito e tiver co- mo resposta /((*. podemos concluir que estamos diante de um cédigo criptografico. Neste caso, a chave do codigo é, no computador, apertar a tecla de letras maitisculas ao mesmo tempo que se acionam aquelas teclas. 0 codigo traduzido se- ria entdo 1998. Por outro lado, se se perguntar qual a ciferen- ga entre homem e chimpanzé ea resposta obtida for “fami- lia", seria ingénuo pensar que existem diferentes familias, como os Silva, os Pereira e outras como a dos chimpanzés. Estamos diante de outra forma de cédigo, que compacta a in- formagao. Aqui “familia” tem uma definicio muito precisa.O chimpanzé pertence a familia Pungidae, e o homem, a fami- lia Hominidae, que tem caracteristicas bem definidas, Aterminologia cientifica nado é apenas uma formalidade, mas uma maneira de compactar informacao, de maneira pre- cisa, que nao se modifique com o tempo ou sofra influéncias regionais ou da moda de cada época, O termo “familia”, como outilizamos ha pouco, ¢ entendido desta forma ha cerca de 250 anos em todo o planeta. O conhecimento cotidiano é mais flexivel com relagao aos termos que utiliza. Existem variacées regionais na forma de nomear como “mandioca”,“macaxeira” e “aipim”. que desig- nam a mesma coisa em algumas regides, Além disso, existe também superposigde de significados de diferentes nomes. 0 significado literal de “bicho”, por exemplo, pode ser tanto um dinossauro como uma pulga, mas nao um ser humano. Muitos “bichos” sao animais, mas ndo se pode dizer que as duas pa- lavras sejam sindénimas, Na vida cotidiana, “animal” ¢ uma palavra utilizada de forma muito ampla; pode-se encontrar uma placa na porta de uma loja com os dizeres “Nao é per- mitida a entrada de animais”. Isto nfo quer diver que apenas vegetais possam entrar na loja! (A rigor, nem os proprios clien- tes poderiam entrar.) Portanto, existe profunda diferenga semantica entre a ter- minologia utilizada no contexto cientifico e na vida cotidiana, 24 Independéncia de contexte O conhecimento cientifico busca afirmagoes generaliza- veis, que possam ser aplicadas a diferentes situacées. Quando um fisico descreve a trajetéria de um mével, ele pode tanto ser um tatuzinho de jardim como uma sonda interplanetiria. O conhecimento cotidiano, por outro lado, esta fortemente apegado aos contextos nos quais é produzido. Métodos para tratar a mandioca nao podem ser aplicados a cogumelos, por exemplo. Por outro lado, todos os alimentos que apresentam o mesmo grupo de substancias venenosas (os cianogénicos) tém recomendacao similar da ciéncia para consumo alimen- tar (aquecimento, exposicdo ao ar, etc.). As folhas da mandio- ca, por exemplo, sao descartadas como fonte de alimento pe- lo saber cotidiano, mas a ciéncia garante que sao excelente alimento, tomadas as mesmas precaucgées daquelas em rela- cdo as raizes. O conhecimento cientifico tem uma clara preferéncia pelo abstrato ¢ pelo simbdélico. Desta forma, os significados sao ar- bitrarios e estabelecidos por convencdes. Por exemplo, a qui- mica organica é regida por uma nomenclatura definida por um congresso de quimicos, que estabeleceram que cada dto- mo de carbone a mais em uma molécula corresponderia a um determinado prefixo na denominagao da substincia. Assim, mesmo que alguém nio conhega em detalhe a estrutura da molécula do metano, pode ter uma boa idéia apenas perce- bendo que existe o prefixo “met” naquele nome. 0 conhecimento cotidiano, por outro lado, tem forte apego ao concreto e ao real, Isto implica significados menos arbi- trarios e mais auto-evidentes a luz de determinada cultura e convencées sociais. E licito pensar que o métode encontrado pelos indios parva comer mandioca tenha sido reconhecido come vdlido apenas para a mandioca. Interdependéncia conceitual Oconhecimento cientifico poderia talvez ser comparado a um castelo de cartas, nado com referéncia a sua solidez, mas 25 sim pela interdependéncia entre suas diversas partes. Isto sig- nifica que, se wma teoria cair por terra, muitas outras serdo afetadas. Por outro lado, existem vantagens. Basear-se em teo- rias anteriores faz que a teoria posterior nao deva testar to- dos os fatos nos quais esta baseada a teoria que lhe da suporte, Poucas pessoas duvidam da afirmacdo de que os seres vi- vos precisam de oxigénio para respirar. Ela reflete o resulta- do de milhées de experiéncias realizadas por milhares de cientistas com todos os seres vivos existentes no planeta? Sera que, dentre as mais de 15 milhées de espécies diferen- tes existentes no planeta, algumas fogem da regra? Por que serd que algumas dezenas delas nao podem utilizar nitrogé- nio, por exemplo, um gas muito mais abundante na atmosfe- ra do que o oxigénio? Obviamente os cientistas nao puderam testar todas as es- pécies do planeta quanto 4s suas necessidades de gases res- Piratérios, mas eles aceitam duas teovias importantes. Uma delas diz que todos os seres vivos esto organizados da mes- ma forma, constituides por células. A outra diz que uma es- pécie descende de outra, tendo recebido, assim, a mesma in- fra-estrutura. Os componentes das células de dinossauros, pulgas, Samambaias ¢ orquideas devem ser semelhantes por esta razdo, o que nos leva a supor que tenham uma mesma “maquinaria” basica, que exige os mesmos insumos basicos para funcionar adequadamente. Existe ainda uma razdo adi- cional para descartar o nitrogénio como gas importante na respiracdo de qualquer célula, uma vez que sua combinacao com o hidrogénio e carbone produz substancias toxicas, O conhecimento cotidiano, contrariamente, por ser extre- mamente dependente de contexto, ndo pode utilizar um co- nhecimento como base para outro, Nesse sentido é tanto ver- dade que “quanto mais melhor” quanto que “um é pouco, dois ébom e trés é demais”, Seria incabivel realizar um concurso para saber qual dessas duas afirmacées é cabivel. Suben- tende-se que o contexto dira qual das duas frases é a corre- ta. O contexto ¢ visto como igualmente importante no exem- 26 plo da tecnologia de purificagdo da mandioca. Ninguém pen- saria em utilizar o método de purificagdo da mandioca para preparar para consumo alimentar sementes tratadas com in- seticida, por exemplo, O fato de o método funcionar num de- terminado contexto nao permite aplicar as mesmas idéias em situagoes diferentes. ‘octalizagdo Existe uma marcante diferen¢a entre a maneira pela qual a Maioria das pessoas trava contato com os conhecimentas cotidianos e com os conhecimentos cientificos, Desde os pri- meiros meses de vida, as crian¢as tém acesso ao conhecimen- to cotidiano e aprendem a nomear objetos, observar e inter- pretar fenémenos de maneira particular. Por exemplo, existem roupas “quentes” ¢ roupas “frias", ea crianga assim as reco- nhece e nomeia. Quando a crianga tera a oportunidade de re- fletir sobre os pontos de vista da ciéncia a respeito do que é calor e temperatura? Certamente apenas mais tarde, possi- velmente apenas na adolescéncia. Diversas pesquisas tém demonstrado que aquilo que se poderia chamar de “ensino de ciéncias bem-sucedido” no sentido de que os alunos aican- cem uma compreensao adequada dos conhecimentos cien- lificos sé pode acontecer na adolescéncia, ao final da escola- ridade pré-universitaria, ou mesmo nos primeiros anes da universidade. Em sintese, deve-se reconhecer que existe uma acentuada diferenga na socializagao dos conhecimentos. O conhecimento cotidiano 6 socializado precocemente na vida de todas as pessoas, enquanto o conhecimento cientifico é socializado tardiamente, bem mais tarde, na vida escolar dos jovens. Esta é uma constatagao, nao uma descricao do que se- ja certo ou errado. Reconhece-se atualmente que a socializacao do conheci- mento cientifico deve ser acelerada, tornando-se mais efi- ciente. Isso nio significa que as escolas devam apresentar conhecimentos cientificos 4 maneira como ocorre em con- pressos de cientistas, A escola proporciona aproximagoes 27

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