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0 tradutor agradece & prof Jeanne-Marie Gagnebin de Bons pelo inestimvel audio na realizacio dest trabalho. CORNELIUS CASTORIADIS AS ENCRUZILHADAS 1 DO LABIRINTO II Os dominios do homem ‘Tradusao: JOSE OSCAR DE ALMEIDA MARQUES Revisto técnica: RENATO JANINE 2edisio PAZ E TERRA KAIROS “monoteismos’,infinitamente mais que as outras crengas, ém sido fon- tes de guerras santas ¢ de exterminios de alodoxos, caimplices dos pode- res mais opressivos, e que eles, em cada dois casos e meio sobre trés, explicitamente reivindicaram ou tentaram impor a fusio do religioso € do politico. Se a critica persistir em abdicar de sua funcdo, os outros intelec- ‘uals eescritores terdo 0 dever de assumir o lugar dela, Essa tarefa torna- se hoje uma tarefa ética e politica. Que esta bugiganga ird sair da moda, isto € certo: como todos os produtos contemporaneos, ela jé incorpora sua obsolescéncia, Mas é o sistema no e pelo qual surgem essas bugigan- gas que deve ser combatido, sob cada uma de stias manifestagoes. Temos que lutar pela preservasao de um auténtico esparo pitblico de pensa- ‘mento, contra os poderes do Estado, mas também contra o blefe, a de- magogia € a prostituicao do esptrito. 36 Psicandlise e sociedade 1* DONALD MOSS: Fale-nos um pouco sobre a maneira pela qual a pré- tica psicanalitica o ajudow, como voce disse, a “ver mais claro’, € sobre 0 ‘modo pelo qual sua visdo foi esclarecida CORNELIUS CASTORIADIS: Trabalhar com conceitos abstratos, ler simplesmente os livros de Freud, etc., é uma coisa completamente dife- rente de estar no processo psicanalitico efetivo, vendo como o incons- ciente trabalha, como as pulsdes das pessoas se manifestam € como se estabelecem ndo os mecanismos (nao podemos chamé-los genuina- mente de “mecanismos”) mas, digamos, os processos mais ou menos es- tilizados através dos quais este ou aquele tipo de alienagao psiquica ou de heteronomia vém a existir. Este é 0 aspecto concreto. O aspecto mais abstrato é que ainda hé muito a ser feito no nivel tedrico, tanto para explorar a psique inconsciente como para compreender a relacio, a pon te sobre o abismo, que é a relagdo entre a psique inconsciente ¢ o indi- viduo socialmente fabricado (este tiltimo depende, € claro, da institui- sao da sociedade e de cada sociedade dada). Como pode ocorrer que 4. Discussao com dois psicanalistas nova-iorquinos realizada em Nova ‘York, em 4 de outubro de 1981, e publicada no n® 2 de Psych-critique (Nova York, 1982). Traduzido do inglés para o francés por Zoé Castoriadis, a quem mais uma vez desejo agradecer. 37 Aes KAIROS “esta entidade totalmente a-social, a psique, este centro absolutamente egocéntrico, a-real, ou anti-real, seja transformado pelas aces e pelas instiftiigbes da-sociédtade — comecando, evidentemente, pelo primero ambiente da crianga, que ¢a familia — em um individuo social que fala, pensa, pode renunciar a satisfagao imediata de suas puls6es, etc.? Trata se de um problema extraordindrio, com um enorme peso politico que se pode ver quase que imediatamente. DM: Voce poderia explicitar um pouco mais o que acaba de dizer? CC; Falavamos ha pouco da Russia, do stalinismo, do nazismo, e dizfamos que esses fendmenos dificilmente poderiam ser compreendi dos sem levar em consideragao a enorme atragdo que a forga exerce so- bre o homem, isto é, sobre a psique. ~ DM: Sim, CC: E por que é assim? Devemos tentar entender isto. Devemos tentar compreender essa tendéncia das pessoas (0 obstéculo principal ‘com que nos deparamos sempre que nos engajamos em uma politica re- volucionsria ow radical) a abandonar a iniciativa, a encontrar um abri- 0 protetor seja sob a figura do lider, seja no esquema de uma organiza- fo, rede anénima mas que funciona bem e garante a linha, a verdade, a pertinéncia, etc. Todos esses fatores desempenham um papel enorme —eé, enfim, contra tudo isso que estamos lutando. DAVID LICHTENSTEIN: Isso me faz pensar na sua maneira de empre- gar a palavra “autonomia” Vocd disse algumas coisas sobre a autonomia individual e sobre a autonomia enquanto resposta coletiva. Voc# poderia elaborar um pouco mais esse paralelo? C.CO que €a autonomia coletiva? E qual € 0 seu contrario? O con- twirio é a sociedade heteronoma. Quais sio as raizes da sociedade hete- ronoma? Aqui estamos diante de algo que tem sido, segundo creio, uma idéia central falaciosa da maior parte dos movimentos politicos de esquerda, em primeito lugar ¢ sobretudo do marxismo. A heteronomia foi confundida, isto é,identificada, com a dominacao e a exploragao por 38 PSICANALISE E SOCIEDADE I ‘uma camada social particular. Mas a dominagio e a exploracao por par- te de uma camada social particular nao passa de wma das manifestagdes (ou concretizagdes) da heteronomia. A esséncia da heteronomia é mais ‘que isso. A heteronomia é encontrada em sociedades primitivas, na ver- dade, em todas as sociedades primitivas, embora nao se possa falar pro- priamente de uma divisio entre camadas dominantes e camadas domi- nadas nesse tipo de sociedade, Em que consiste, entdo, a heteronomia de ‘uma sociedade primitiva? Ela consiste no fato de que as pessoas acredi- tam firmemente (e nao podem nao acreditar) que a lei as instituigées de sua sociedade nao sao (nem poderiam ser) sua propria obra, mas Ihes foram outorgadas, de uma ver para sempre, por outrem: os espiti- 0S, 08 ancestrais, os deuses, ou seja 14 quem for. Isto vale tanto para as sociedades histéricas (“hist6ricas” no sentido estrito) como para as s0- ciedades religiosas. Moisés recebeu a lei de Deus; portanto, se voce & hebrew, voce nao pode por a lei em questao, Pois isso seria pér em ques- tao 0 préprio Deus, ¢ equivaleria a dizer “Deus se engana” ou “Deus nio € justo”, 0 que é inconcebivel enquanto se permanece no interior da estrutura de crengas de uma sociedade religiosa. © mesmo vale para 0 mundo cristio e para o Isla Assim, a heteronomia consiste no fato de que a instituigao da socie- dade, criagao da propria sociedade, é apresentada pela sociedade como sendo obra de alguém mais, de uma fonte “transcendente”: os ances- trais, os deuses, o Deus, a natureza, ou — como em Marx — as “leis da historia’, DM: Nao “alguém mais mas “alguma outra coisa’ CC: Justamente, alguma outra coisa.\E, segundo Marx, seremos capazes de instituir uma sociedade socialista no momento e no lugar em que as leis hist6ricas ditarem uma organizagao socialista da sociedade. Ea mesma idéia, Desse modo, a sociedade se aliena, ela mesma, de seu proprio pro- duto, que slo as instituig6es. A autonomia nao consiste apenas na auto- instituicao da sociedade, porque sempre hé auto-instituigdo da socieda- dle: Deus nio exist, e tampouco existem as “leis da histori’, no sentido ‘marxiano, As instituigoes sao criagdo do homem, mas criaglo cega, por assim dizer. As pessoas nao sabem que criam e que séo livres, num cer- 39 KAIROS to sentido, para criar suas instituigdes. Elas confundem o fato de que no pode haver sociedade (nem vida humana) sem instituicao e sem leis com a idéia de que deve haver uma fonte transcendente garantindo as instituicées, Avancemos tm pouico mais. Como deveria ser uma sociedade au- noma? Uma sociedade autonoma deveria ser uma sociedade que e3%4 ciente de que suas instituicdes, suas leis so sua obra propria e seu pro- prio produto. Por conseguinte, ela pode questioné-las e modificé-las. Ao ‘mesmo tempo, uma sociedade autonoma deveria reconhecer que nao podemos viver sem leis Passemos, agora, & autonomia do individuo: eu diria que um indi- viduo é autonomo quando ele (oit ela) esta efetivamente em condiao de modificar lucidamente sua prépria vida. [sto nao quer dizer que ele controle sua vida: jamais controlamos nossa vida, pois nao podemos eli- ‘minar 0 inconsciente, eliminar o fato de que fazemos parte da socieda~ de, ¢ assim por diante, Mas nés podemos mudar nossa relago com 0 inconsciente; podemos criar uma relagdo com nosso inconsciente qua: litativamente distinta do estado no qual meramente somos dominados ‘por ele, sem nada saber sobre isso. Podemos estar dominados por nosso inconsciente, isto é, por nosso passado. Alienamo-nos, sem o saber, a nosso préprio pasado, pelo fato de nao admitirmos que, num certo sentido, nds temos que ser a fonte das normas e valores que so propos- tos por nos a rds mesmos. Evidentemente, nao somos a origem absolu- ta deles,e hd, certamente, a lei social. Mas eu obedeco [voluntariamen- te] lei social —se e quando a obedego — ou porque actedito que a lei € tal como deveria ser, ou porque reconheco, talvez, que ela nao é tal como deveria ser, mas, neste contexto particular, estando dada, diga- mos, a vontade da maioria, eu devo obedecer & lei, a medida que sou memibro da coletividade, mesmo considerando que ela deveria mudar. DM: Voce estabeleceu um tipo de equasao entre o inconsciente e nosso ppassado, Voce disse: “dominados por nosso inconsciente, dominados por nosso pasado” Fico de um certo modo surpreendido com o otimismo dessa idéia acerca do inconsciente, porque ela implica que ele éacessivel através de uma pperlaboractio— pode-se lembrar— numa certa medida, e quanto mais se embra menos se é dominado, até que enfim.. 40 PSICANALISE & SOCIEDADE | C.C: Nao... ndo quanto mais se lembra: quai de perlaborar a lembranga, Certo? - mais se torna capaz DM: Sim. Quais sao, em sua concepgio, os limites dessa lembranca e dessa perlaboragio? Quando é que ela se torna problemética? Onde estto ‘as arestas? CC: Permita-me, em primeiro lugar, esclarecer uma coisa: eu no identifico 0 inconsciente ao passado. E claro que o inconsciente nao é apenas 0 passado. Eis af um ponto em relagao ao qual certos psicanalis- tas contemporaneos véem as coisas de maneira mais clara que Freud, Existia um ideal freudiano, que se poderia chamar um plano modelo da cura: levar 0 paciente a lembrar-se teria um efeito catértico, um efeito dissolvente sobre o complexo ou a rede de complexos. Na verdade, con- tudo, pode-se em grande medida trabalhar a partir do material atual, € no necessariamente sempre através da lembranga, pois a estrutura é algo presente. Quero dizer que 0 passado est presente no presente. DM: Hm, hm. C.C: Concorda? Isto fica claro no sonho. A identidade, em todo ca- so inacessivel, entre a significacdo deste sonho é alguma configuragao da- tando da infincia nao é em si, nem muito significativa nem muito imperiosa. O que importa é que o paciente possa realmente ver através dessa significacao e, esperamos, mudar seu comportamento em fungao déssa significacdo, assim como toda a complexa estrutura de pulsées, afetos, emogbes e desejos que Ihe esto ligados. Portanto, o passado e 0 inconsciente s4o ¢ nao sdo a mesma coisa, tanto no nivel tedrico como no nivel da pratica do tratamento psicanalitico. Vocé pergunta, agora: “Quais sto 0s limites”? Essa € uma questo muito importante. Quero dizer, por que, afinal, um tratamento psicanalitico de fato nem sempre funciona. DM: Sim. E outro aspecto seria essa idéia da atragao pela forca. E deveras impressionante que a forca exerga uma tal atragao. Creio que, na psicandlise ideal, a forca deveria perder sew atrativo atévico, ela poderia exercer uma atragio de caréter diverso, mas nito atévico. Estow interes- 4a KAIROS sado na convergéncia dessa ambigo tal como ela aparece na psicandlise, 4 saber, a eliminagio do atrativo da forca, ¢ essa mesma ambicao tal como é vivida na vida politica, onde se busca criar organizacdes sociais que se opdem a essa atragao atévica pela forca. Gostaria de conbsecer suas idéias sobre a maneira pela qual esses dois projetos podem influenciar-se ‘mutuamente. CC; Esse é um problema bastante dificil, cuja solugao eu nao creio conhecer. Antes de mais nada, o tratamento psicanalitico busca ajudar as pessoas a se tornarem auténomas no sentido que acabamos de mencio- nar, ¢ conseqitentemente procura destruir também, nelas mesmas, a atra- fo cega pela forca. De fato, creio que essa é a tinica contribuigao politi- ca televante da pritica psicanalitica. Nao creio no emprego politico da sicandlise, a ndo ser para ajudar os individuos a tornarem-se lticidos € auténomos e, em conseqdéncia, suponho, mais ativos e mais responsé- veis diante da sociedade. Isso implica também: nao considerar a institui- fo da sociedade ow a lei dada como algo em que nao se pode tocar, Quanto as atitudes coletivas, por outro lado, creio que © que buscamos fazer & tentar dissolver as ilusGes que esto quase sempre contidas nesse atrativo da forca. E isso envolve tanto a critica da ideologia como a cri- tica do funcionamento e da consisténcia efetivos dos aparelhos de do- minacao existentes, por exemplo. Ao mesmo tempo, sempre julguei que ‘uma auténtica organizagao revoluciondria (ou organizagao de revolucio- ndrios) deveria ser também uma espécie de escola exemplar de autogo- verno coletivo, Ela deveria ensinar as pessoas a dispensarem lideres estruturas organizacionais rigidas, sem cair na anomia, ou na microano- iia, Esta é, penso eu, @ relagdo entre as duas facetas do problema. Dit: Surge aqui uma questao, outra questito complicada, relativa as origens da autonomia e as relagdes sociais que se estabelecem a partir da Infancia, e relativa também és relagoes de objeto pré-edipianas como uma espécie de modelo ou de terreno de aproximagio, que depois se repete na coletividade, Isso, em oposigao ao ponto de vista um pouco mais igado a osicio “Sreudiana ortodoxa’, segundo a qual de fato o infans esté radical- ‘mente isolado, o processo de socalizagao é inteiramente uma dialética com a sociedade, e nao ha, de inicio, qualidade social inerente ao infans. 2 PSICANALISE E SOCIBDADE 1 CC: Voce sabe, minhas préprias concepeves, que nao sio exata- ‘mente freudianas, teriam levado, quanto a esse aspecto, a conclusbes mui- to similares as concepcdes freudianas, Creio que o que se tem inicial- mente ¢ uma espécie de ménada psfquica a-social ¢ anti-social. Quero dizer que a espécie humana é uma espécle monstruosa, inapta a vida, tanto do ponto de vista psicolégico como do ponto de vista biolégico. ‘S Que ela seja biologicamente inapta a vida, isto é claro. Somos o tinico \) animal que nao conhece por instinto o que ¢ alimento e 0 que é vene- 8 3 no, Nenbum animal que se alimente de cogumelos jamais comeria co) x gumelos venenosos, Mas nds temos que aprender isso! Nunca vium cio ou cavalo tropecandos na verdade, os cavalos raramente tropecam, ¢ isso somente nas condigdes artficiais em que os colocamos. Mas nés trope- samos 0 tempo todo, Esse € 0 aspecto biolégico, ‘Quanto ao aspecto psicol6gico, isso é ainda mais verdadeiro. Creio ‘que hé uma psique embriondria em todo ser vivo, especialmente entre |g cba pertencem is chamads spies superoes. Mas também um &. mundo separando essa psique “funcional” dos animais da psique huma- & ~ na: esta tiltima corresponde a um imenso e monstruoso desenvolvimen- X_ to dessa “faculdade” da psicologia tradicional, totalmente negligenciada 2 ¢ ignorada pela filosofia, que é a imaginagao. A imaginasao é a capaci- s “3 dade de apresentar como reahaquilo que niio 0 é, Ela rompe com a regu- ON. agao da “psique” pré-humana Estamos, portanto, as voltas com um ser que, como sabemos a partir de Freud, da pratica psicanalitca e da vida cotidiana, é capaz de ‘pformar suas representacoes em funcio de seus desejos — 0 que o torna psiquicamente inapto a sobrevivencia, Sob essa enorme proliferagio da imaginacao sobreviveit fragmentos truncados da auto-regulagao, bio- Jogica e psicol6gica, animal. Esse animal, o homo sapiens, teria deixado de existir se ele nao tivesse criado ao mesmo tempo, através de nao sei qual processo, provavelmente um tipo de processo de selegdo neodarwi- niana, alguma coisa de radicalmente nova em todo o dominio natural ¢ biol6gico, a saber, a sociedade e as instituigdes. E a instituigao-impoe a _ | psique o reconhecimento de uma realidade comuin @ todos, regulada, | ‘que nao obedece simplesmente aos desejos da psique. _ DMz Isso que vocé acaba de dizer & muito interessante, pois é uma forma de afirmar que o atrativo da forca esté ligado a sobrevivencia, jd 8 KAIROS ue, como voce diz, essa coletividade, essa sociedade, impoe a realidade @ wma entidade produtora de imagens, a qual sem: essa imposigao mor- c. .ou se tornaria hiperpsicética, DM: Hiperpsicética, sim. Mas essa imposigao, de uma certa maneira, se faz pela forca, CO: Pela violencia. DM: Pela violencia, CC: Nao ha problema quanto a esse aspecto. E, sem essa violencia, a espécie humana nao pode sobreviver. £ por isso que me oponho tio fortemente a certos sonhos bucélicos e idilicos de pessoas bem-inten- cionadas e que nos sio préximas, segundo as quais poderia haver um ingresso na vida social feliz ¢ ditoso, com gosto de chocolate. Tal coisa simplesmente nao pode existir. Se voce ja teve um filho, independente- ‘mente da maneira pela qual vocé o cria, em um certo momento, no decorrer do primeiro més, ele comegaré a chorar e gritar de modo in- fernal. Néo porque ele tenha fome, ou esteja doente, mas simplesmente Porque ele descobre um mundo que nao se dobra a sua vontade. Fale- ‘mos sério: ndo apenas inconscientemente, mas mesmo conscientemen- te, todos nds desejariamos um mundo que se moldasse & nossa vonta- de, nao é mesmo? DM. € DL: Certamente. .C:E quem o negaria? Dizemos que isso nao é possivel, renuncia- ‘mos a um desejo, mas o desejo continua I. Como psicanalista, eu diria {que uma pessoa incapaz de formar uma fantasia referente & onipotén- cia € uma pessoa seriamente enferma, entendem o que quero dizer? A capacidade de formar fantasias de onipoténcia é um componente neces- sario no apenas da vida inconsciente, mas também da vida consciente. Se voce nao consegue entreter um devaneio, pensando: “A garota viré a0 encontro’, ou “hei de escrever meu livro’, ou “as coisas vo se passar tal a“ PSICANALISE B SOCIEDADE | como desejo’, entio vocé esta realmente muito enfermo. E, evidente- ‘mente, vocé também estaré doente se for incapaz de corrigir essa fanta- sia dizendo: “nao, eu nao a agradei, é claro’, ou “ela jé tem um amante, a0 qual esté muito ligada’, Assim, existe essa psique, com sua imaginacao e suas fantasias de onipoténcia, ¢ existe um primeiro representante da sociedade para a crianga, que é, evidentemente, a mae. F a fungao da mae é, simultanea ‘mente, limitar a crianga— ela se torna o instrumento pelo qual a crian- «a comeca a descobrir que nem tudo obedece aos seus desejos de oni- poténcia — e ajudar a crianga a dar um sentido ao mundo. O papel dessa primeira pessoa é essencial e imperativo; pouco importa aqui se se trata da mae ou da pessoa que desempenha o seu papel, pode ser 0 pai, pode ser a ama-de-leite, pode ser ainda, como no Admirdvel mundo znovo, uma méquina falante (caso em que, é evidente, os efeitos seriam distintos e visivelmente piores)..A mae ajuda a crianga a dar sentido ao mundo ea si mesma de maneira muito diversa da maneira inicial pré- pria da mOnada psiquica. Para a monada psiquica, existe sentido a me- dida que tudo depende de seus desejos e representagdes (e que tudo a eles se conforma). A mae destréi isso, e ¢ obrigada a destrui-lo, Esta éa violencia necessériae inevitivel. Se ela nao o despruir, estaré conduzin- f erfet de Saye poe do a crianga a psicose. DM: Voce supde, entao, que essa atragio pela forga 8) de uma certa ‘maneira muito estranha, uma espécie de desejo de retorno a essa mae? CC. E um residuo muito poderoso da ligacio a uma primeira figu- ra que foi, segundo minha terminologia, o senhor da significagao. E ha sempre em alguma parte alguém que desempenha esse papel de senhor da significacao, ¢ que provavelmente pode vir a ser Adolf Hitler ou Jo- seph Stalin, ou Ronald Reagan, pouco importa. Creio que a raiz psiqui- ca da alienagao politica e social esté contida nessa relacao primordial € muito fértil. Mas hé ainda as etapas seguintes. Entendendo-o correta- mente, ¢ entre aspas: 0 “desenvolvimento normal”, ‘A mie deve abandonar esse papel de senhor da significacao. Ela deve dizer a crianca que, se tal palavra significa tal coisa, ou se tal ato & proibido, nao € porque esse & 0 desejo dela mas porque hi esta ou aque- larazao, ou porque é assim que todo mundo entende aquela palavra, ou 5 ‘7 8 jd sabia muito bem Freud, o momento dé KAIROS porque essa é a convencao social. Ela se desinveste, portanto, da onipo- tencia que a crianga, usando precisamente seus préprios esquemas pro- jetivos, Ihe havia atribuido. A crianga projeta sobre alguém — neste ca- so a mie — sua prépria fantasia de onipoténcia, que deve numa certa etapa abandonar. Quando ela erroneamente pensa: “Mas Mamie € oni- potente’, mamae deve responder: “Nao, ndo sou”. “Words do not mean what I want them to mean’, contrariamente a0 que Humpty Dumpty disse a Alice, “as palavras significam aquilo que as pessoas entendem por cessas palavras’,e assim por diante. D.Li Como voce responde, entao, a proposta desenvolvida por Win- nicott, que sustenta que a primeira condigao da mae nao é condigo de senhora da significacao mas, antes, de co-participante dessa significa- s40? Ou seja, que 0 momento social original é um momento comparti~ Ihado pela mae e pela crianga, ou seja, ainda, que o infans percebe a mile como fazendo parte do mundo imagindrio? O infans imagina 0 seio, ¢, a0 imaginar o seio, ao chamar por ele, ao gritar, durante 0 mo- mento da imaginacao, 0 seio miraculosamente aparece, estabelecen- do-se, asim, uma espécie de relacao fundamental entre fantasia e socia bilidade. CC: Nao é verdade, durante todo 0 tempo em que isso ocorre, que se trate de uma partilha ou de uma co-participacéo. Quero dizer que, » durante todo o tempo em que estamos nessa etapa, a crianga imagina que o seio.aparecen porque ele ov-ela queria que ele aparecesse. Como sivo € este em que a crianga se apercebe de que ela quer ver o seio aparecer, ¢ 0 seio nao aparece. E sempre hé um tal momento, qué corresponde, como Klein diria, com toda razio, ao Yéeio mau")Isto esté, igualmente, na raiz da ambivaléncia fundamental de oda Telacdo humana. Quero dizer que o outro sempre herdou esses dois aspectos, do seio bom e do seio mau, da boa figura ¢ da mé figura, Na maior parte do tempo, um desses dois aspectos co- bre ¢ domina totalmente 0 outro. Assim, amamos as pessoas, ou as odiamos. Com referéncia as pessoas com quem mantemos relagées, um ou outro desses elementos predomina, Mas todos nés sabemos que mes- ‘mo no maior amor se oculta sempre o elemento negativo, o que néo 0 impede de ser um amor. PSICANALISE E SOCIEDADE 1 ‘A verdadeira mudanga ocorre em primeiro lugar quando a crianga tem que admitir que é a mae (e nao ela prépria) que é a senhor E outro ponto de ruptiira tem Tugar qua do a crianga descobre que nao existe nenhuma senhora da significagao. Ora, na maior parte das sociedades, até os dias de hoje, isso s6 vem a acontecer para um mimero bastante limitado de pessoas. Pois Jeova € 0 senhor da significacao, ou o secretério do Partido, ow talvez o cientista. DM: Assim, quando 0 Grande Inquisidor declara que 0 povo tem ne- ceessidade da Igreja como senhora da significagio (ele nao utiliza, éeviden- te, estes termos), e acusa o Cristo de crueldade por recusar-se a assumir 0 papel do senhor da significaglo, 0 que pensa vocé disso? O que vocé pensa do designio do Inquisidor? CC: Actedito que a formulagao do problema € correta. Ela corres- ponde ao que dissemos. A tinica objecdo € que o Inquisidor assume uma posicéo normativa: ele diz.que esse fato & trans-histérico e produz uma situagao que é como deveria ser. Nos dizemos que existe um outro estagio. nomia nas etapas posteriores, onde se descobre que ii@0 hi nificagio, mais do que em um retorno a uma espécie de estado infantil de significagao compartihada, CC: Mas quais seriam as implicagdes da “significagao comparti- Inada”? A menos que se tena a idéia de uma certa sociabilidade biolé: gica do animal humano — o que é, na minha opiniao, insustentavel — a significagao compartilhada somente pode provir da postulagso de digas pessoas separadas e independentes, como entidades em si mesmas. Existe A e existe B, e existe ele ou ela e eu. Fle ot ela pensa, ou deseja, ‘ou denomina as coisas de tal maneira, e eu as denomino de outra ma- neira, e pode-se encontrar um certo terreno comum. Mas esse € um ¢s- tgio ja bastante avancado. ‘Alguns elementos embrionérios disso — e tudo isso diz respeito a t6picos difices j4 que, afinal, jamais podemos penetrar na psique de um infans de seis ou mesmo de dezoito meses —, alguns elementos embrio- ” KAIROS nérios disso, eu dizia, podem estar presentes jé de inicio. Penso, todavia, que essa situacio s6 existe qualitativamente a partir do momento em {que a crianga se tornou capaz de reconhecer sua mae como uma entida- de ao mesmo tempo independente e limitada, DL: Voce estd falando da resolugao do complexo de Edipo? Ci Nao, essa é outra discussdo especifica. O que nao foi reconhe- | cido pelas criticas de esquetda a construcao edipiana de Freud — res- | salvando-se que esta contém uma boa parcela de ideologia patriarcal € que, para Freud, 0 centro do problema edipiano é o problema da | qvilizagao, Nao é tanto 0 desejo de fazer amor com a mae e matar 0 ai; € que, durante todo 0 tempo em que s6 houver dois, néo haveré sociedade. E preciso que haja um terceiro termo para quebrar esse face a Face. O fate a face ¢ fusdo, dominagao total do outro ou dominagao total pelo outro. Ou bem 0 outro é o objeto total, ou bem eu sou o objeto total do outro. E, a fim de que essa espécie de condicéo absolu- ta, quase psicética, seja rompida, € preciso haver um terceiro termo. Pouco importa se é 0 pai ot o tio materno. Entendo com isso que todas as discuss6es entre Malinowski e Roheim acerca desse ponto tém pouca relevancia. E 0 pai, ou é 0 tio materno, ¢ assim por diante — o proble- ma nio esté af. O ponto principal é que nao pode haver s6 dois; deve- se ter um terceiro elemento, Evidentemente, isso ndo conduz a conclu- sdo de que 0 pai deve ser 0 senhor — o que é um total non sequitur. E deve-se ter até mesmo um quarto elemento, O que quero dizer € que 0 casal deve comportar-se de forma a tornar a crianga consciente de que © pai nao é a fonte ou origem da lei, que ele proprio nao passa de um ente entre muitos, muitos outros pais, que existe uma coletividade hu- ‘mana, nao € assim? E isso foi algo que Freud viu, As pessoas que citam 0 mito de To- fem e tabu sempre se detém no assassinato do pai e na ceriménia da re- feigdo ritual, Elas se esquecem do juramento coletivo dos irmaos, que é a verdadeira pedra angular da sociedade. Cada um dos irmaos renun- cia & onipoténcia do pai arcaico: nao possuirei todas as mulheres e ndo ‘matarei ninguém. Esta é a autolimitagdo, através da instauragao coleti- va da lei 8 PSICANALISE E SOCIEDADE I DM: Este €9 momento apropriado para pensar sobre o que vocé dicia hd pouco, a propésito dessa uniao de militantes radicais, ou agrupamento de militantes radicais, exemplar em sua capacidade de autogoverno ¢ em sua capacidade de evitar a atragao pela forga e pela dominacao. Quando ‘voce dizia isso, eu pensava ha horda de 9s em Totem Julga voce de metafora mitica para o grupo de revo- {que eles constituems uma espé lucionérios que voce descreveu? CC: Eu nao apresentaria as coisas dessa forma. S6 quero dizer que, quando Freud escrevia Totem e tabu, ele se defrontava com 0 problema da instituigao inicial da sociedade. E evidente que Totem e tabu € um mito, ¢ seria esttipido criticé-lo mesmo que Freud o considerasse como ‘uma espécie de historia de cuja exatidao jamais poderiamos nos assegu rar, mas que representa mais ou menos a maneira pela qual as coisas se passaram — isso no tem a menor relevancia. Quero dizer que nisso ele estava enganado. Mas 0 que o preocupava eram as condigoes ontologi- ‘de uma sociedade na qual ninguém poderia exercer um poder sem limites, como o pai arcaico. Sob este aspecto, nao o mito em si mesmo, mas as significages de que ele é portador sio muito impor- tantes. A sociedade se instala precisamente no momento em que nin- guém é onipotente, e no qual existe autolimitagdo de todos os irmaos, de todas 05 trios ¢ irmas, — DM: Contudo, mesmo nesse mito, eles criam um totem ¢ 0 totem estd semipre presente como senhor da significagao, Ele esté permanentemente I como um chamade. CC: Sim, ¢ com a relagéo ambivalente do totem. Penso exatamen- te que o totem é a encarnacao da heteronomia nas sociedades até agora existentes. E ai que Freud atinge um nivel muito profundo, embora provavelmente de forma inconsciente, mas assim sdo os grandes pen- sadores. O que é 0 totem? Depois de algum tempo, ele se torna um Pan- tedo de deuses, ou o Deus tinico, ou a instituigdo, ou o Partido. E isso é ‘0 que 0s lacanianos, e outros, chamariam o “simbélico”, Podemos per- ceber aqui as fraquezas dessa concepcao: na tentativa de extrair disso tudo um conceito normativo, Pois totem nada mais € que 0 2” KAIROS lico’, tornado totalmente independente e investide de um poder mé- gico. Ele é uma criacdo imaginéria institufda e investida de um poder magico. ~ D.Ls Mas, como vocé diz, a existéncia de instituicoes & sempre neces- séria, CC: Sim, por certo, mas ndo como totens. D.Li Elas seriam, entao, criadas e destitutdas.. CC: Justamente, DL: Emt continua construgao, C:E exato, Com esta relagao particular, certamente bem dificil de atingir: eu sei que as leis sio criagao nossa, que nés podemos mudé-las. ‘Mas, enquanto ndo as tivermos mudado, em uma sociedade que eu re- conhego como efetivamente governada de maneira democratica, estou ainda obrigado a observé-las, porque sei que, de outro modo, a comu- nidade humana seria impossivel As pessoas habitualmente se esquecem de que as leis da lingua- gem sio, anal, convengdes compartilhadas. E houve pessoas como Ro- land Barthes para dizer esta enorme asneira: que o fascismo e a hete- ronomia estéo na linguagem, porque ninguém pode mudar suas regras a seu bel-prazet. Mas isto nada tem a ver com o fascismo e a hetero- nomia. £ reconhecimento do fato de que nao pode haver coletivida- de humana sem regras, de um certo modo arbitrérias e convencionais E € preciso dizer, ao contrario, que a linguagem nao me sujeita, mas me liberta. DM: No entanto, quando essas regras comecam a ostentar uma aura, ‘uma aura totémsica, entao elas se tornam probleméticas. CC: E verdade. Elas se tornam alienantes. so PSICANALISE E SOCIEDADE 1 DL: Voltando a outro ponto, os irmios de fato ndo renunciaram & onipoténcia, mas retiraram uma parte de sua onipoténcia e a preservaram no totem. CC: Eles renunciam a onipoténcia e atribuem uma onipoténcia imagindria ao totem. E este é o fator compensador nessa economia psi- quica alienada; alienada, mais uma vez, dos préprios irmaos do mito. A ‘questi politica é: sera verdadeiramente necessério para a coletividade humana esse fator compensador alienante? Afirmo que ndo hé resposta te6rica para essa questao, Isto quer dizer que € a partir dos fatos que @ julgaremos, eé disso que se trata na acao radical ou revolucionsia, Pro- pore tentar demonstrat, ns fatos, que ndo temos necessidade de totens, € que podemos limitar nossos poderes sem investi-los em uma entida- de mitica. DLs Seguir-se-ia, assim, que hd um paralelo entre a coletividade e 0 individuo, no que concerne a “perlaboragdo’: A saber, que existe uma espécie de incerteza com relagao a histéria, uma perspectiva de indetermi- nidade na qual nao se soluciona i questao da hist6ria e na qual nao se pode explicar 0 passado e aprender, com ele, 0 que fazer. Uma coletivida- de é capaz de assumir uma posigiio no seio da qual o futuro pode ser ela borado. CC: Perfeitamente. Penso que essa ¢ a formulagao correta. De fato, eu penso que verdadeira atitude humana é asswmir: aceitar, tomar asi a indeterminidade, 0 risco, sabendo-se que nao hé nem protecdo nem ga- rantia, Ou seja, que as protegdes e garantias existentes sao triviais e nao vale a pena consideré-las. No momento verdadeiramente decisivo, nao hi protecao nem garantia. Devemos assumit 0s riscos, ¢ assumir 08 ris- cos quer dizer que nds somos responsiveis por nossas ages. Evidente- mente, um pleno conceito de responsabilidade pressuporia a conscién- cia, Sempre existe o “eu nao sabia’, Esse € um argumento que sempre pode ser utilizado diante do tribunal, mas, a seus préprios olhos, mes- ‘mo que se saiba que nao se ¢ onisciente, nao se pode dizer simplesmen- te: “eu nio sabia”, Devemos prover uma norma, ante a qual sejamos ver- dadeiramente responséveis. st KAIROS DM: Existem, na Franca, pessoas que tenham entabulado com vocé um didlogo como este que acabamos de realizar? Quer dizer, no agui ¢ ‘cold, mas haveria alguma espécie de... Cc: Bu néo seria capaz de dar uma resposta. Esse & 0 género de dilogo que eu busco promover. DM. Voce tem tido sucesso — tem sido bem-sucedido? GC: Nao posso avaliar. Nao até o presente momento, pelo menos. Nao guardar ilusdes* Que o golpe de Vars6via no era e no podia ser um “assunto inter- no dos poloneses’, nem no plano politico moral nem no plano dos fatos, sabia-se —a menos que se fosse débil mental — antes mesmo que ele tivesse ocorrido (ver 0 quadro). O fato de que agora se sabe que 0 Gauleiter Jaruzelski agiu ¢ continua a agir conforme instrugées e sob @ supervisio da Kommandatura de Kulikov nao traz.nada além de uma banal verificagao a posteriori 5. Logo que se tomava conhecimento do golpe de Estado de Jaruzelski — manhi de domingo, 13 de dezembro de 1981 — o entao ministro das Relagdes Exteriores, Claude Cheysson, apressou-se em declarar a uma rédio periférice que “esses eram assuntos internos dos poloneses” que a Franca “nada podie fazer e nao iria fazer nada’. Redigi, entdo, o protesto reproduzido no quadro @ seguit, que foi assinado pela vintena de amigos que consegui contactar durante esse dia agitado, e remetido, como carta expressa, t3o logo o Correio abriu na segunda-feira, dia 14,2 Jacques Fauvet, entdo diretor de Le Monde. (Jacques Fau- vet tinha-me escrito algum tempo antes, querendo saber se eu estariainteresse- do-em escrever um ou mais artigos para Le Monde, comentando a politica dos socialistas no poder.) Le Monde no publicou o protesto e, em contrapartida, {mprimia no dia seguinte um editorial de Favret inttulado “Raison garder”, 0 texto que se segue foi publicado em Libération no dia 21 de dezembro de 1981. E desnecessirio sublinhar quanto a recente visita oficial de Jaruzeskia Paris (em dezembro de 1985) ilustra de maneira edificante est texto. 53

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