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PRESSAO Pierre Fédida phe} da a feeb ND) | 16.89-008.454 Pierre eet . Manat ELOGIO DA ea tsen is ela yl escuta” Fédida levanta a idéia de que a Col Teonsol MMT aa irel iro hed] eheeeitcion teristica seria a alteragao do tem- po, a perda da comunicacao in- tersubjetiva e, correlativamente, um extraordindrio empobrecimen- to da subjetividade. E verdade que, em geral, a tristeza acompa- nha o estado deprimido, mas, num certo sentido, ela ja represen- ta uma volia ao movimento, uma reanimagéo da vida. Assim, nao € possivel considerd-la como o afeto da depressao. Ao conirario, © estado deprimido poderia ser visto, assim como a angUstia, como um estado de afeto arcaico no qual o corpo desempenha um papel determinante na vivéncia. Rei ts eit anteine (116 humano ela seria, por definicéo, a depressGo. Ese no humano essa doenga se constitui numa. desa- propriagdo da aparéncia de hu- mano, entdo pode-se considerar como vital esse afeto de aniquila- mento do psiquico. Falar de de- pressdo vital retoma a idéia, an- tes de tudo aristotélica, de que a depressGo é uma doenca da for- ma —o psiquico sendo aquilo que dé forma ao vivente. A atengdo clinica voltada aos pacientes deprimicos exige tempo, porque os tempos prdprios 4 vida psiquica —lembrar, representar, de- sejar, projetar - parecem ter sido congelados na imobilidade do cor- po, E, muitas vezes, € somente apdés um tempo bem longo que a fala reencontra um inicio de livre confianga associativa e deixa vir novamente 4 tona sentimentos e Scanned with CamScanner | ~ & 8 YN ANNA 9, (1859-1936) PO oat Gea \ SICOPATOLOGI DAMEN COLECAO DIRIGIDA POR MANOEL TOSTA BERLINCK D TA aa A PEPOPOLC PEPE EP OSE Cee eseeeeee Scanned with CamScanner PrerreE Fépia’™ Dos beneficios da depressao Elogio da psicoterapia Tradugdo de Martha Gambini escuta Scanned with CamSeanner G1G. 84 -YV0. 13.5 3b dle Noha © by Editoraffscuta para edigo em lingua portuguesa Titulo original: Des bienfaits de la dépression. Eloge de la psychothérapie © Editions Odile Jacob I" edigdo: maio de 2002 __ EDITORES Manoel Tosta Berlinck Maria Cristina Rios Magalhaes CAPA Ediara Rios, a partir de Mulher na janela, de Caspar D. Friedrich PRODUCAO EDITORIAL Araide Sanches Catalogagao na Fonte do Departamento Nacional do Livro F293b _Fédida, Pierre Dos beneficios da depressio: elogio da psicoterapia / Pierre Fédida; tradugiio de Martha Gambini. - Sao Paulo: Escuta, 2002. 232p.: 14x21em ISBN: 85-7137-197-0 1. Depressio mental. Psicoterapia. 1. Gambini, Martha. II. Titulo. CDD: 157.3 Editora Escuta Ltda. Rua Dr. Homem de Mello, 351 05007-001 Sao Paulo, SP Telefax: (11) 3865-8950 / 3675-1190 / 3672-8345 e-mail: escuta@uol.com.br ‘Scanned with CamScanner INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE BIBLIOTECA: MADRE CRISTINA 08 JUN 2004 Tomso we 94.06 “O que busco é uma renovagdo continua, realmente continua, e isto nao é facil. Sei que minha pintura encontra-se sob suas aparéncias, sua violéncia, seus perpétuos jogos de forga, e que é algo fragil, no sentido do bom, do sublime. E fragil como 0 amor. Acredito estar sempre procurando ~ na medida em que tenho controle sobre as coisas — transformar minhas possibilidades de pintar numa agdo decisiva, e quando me lango numa grande tela, quando ela fica boa, sinto sempre, cruelmente, que nisso ha uma excessiva parte de acaso, como uma vertigem, um golpe de sorte na forga que, apesar de tudo, conserva seu semblante de sorte, seu lado de virtuosidade pelo avesso, 0 que inevitavelmente me deixa num lamentével estado de desdnimo. Nao consigo suportar [...]. Sei que minha soliddo é inumana.” Nicolas de Staél. A Jacques Dubourg, Antibes, final de dezembro, 1954. (In: Frangoise de Stel, Nicolas de Stéel, Catalogue cartonné de Uoeuvre peinte, Ides et Calendes, 1997). ‘Scanned with CamScanner Sumério Prefacio .... 9 Capitulo I UMA DOENGA DO HUMANO sc oeatalaetaerat bet Capitulo IT UM AFETO GLACIAL E SUAS CURAS CRITICAS «..++-+++0+++ 33 Capitulo IIT DepRESSIVIDADE DO FANTASMA ae LUTO E DEPRESSAO .....-ssssessessasensesenseete 53 Capitulo TV SOBRE A PRESUNCAO DEPRESSIVA ...- 77 Capitulo V' _ Morros DESAPERCEBIDOS........ 87 Capitulo VIO SONHO E A OBRA DE SEPULTURA . 99 Capitulo VII E PRECISO SER DOIS PARA CURAR 111 Capitulo VIII A PSICOTERAPIA NA PSICANALISE HOJE Capitulo IX ~ UMA CONJUNTURA SEM PRECEDENTE Hl Capitulo X MODERNIDADE DA DEPRESSAO .. Capftulo XI SoBRE A IMPORTANCIA DA PSICOPATOLOGIA PARA A PSICOTERAPIA ...-0++++ rerendesamseaseentea Referéncias bibliograficas ....+..-++.0--0- Scanned with CamSeanner Prefacio A experiéncia comum do estado deprimido poderia caber numa Unica sensagao: aquela, quase fisica, de aniquilamento. Essa sensa- ¢a0 quase nem chega a ser um afeto que se experimenta e parece muito distante da percepcao de um sofrimento vivido pelo sujeito. Ela se aparenta mais a uma imobilizago, um impedimento de se sen- tir os menores movimentos da vida interna e externa, 4 aboligao de qualquer devaneio ou desejo. O pensamento, a acgao e a linguagem parecem ter sido totalmente dominados por uma violéncia do vazio. Além disso,.a queixa do deprimido € pobre ¢ repetitiva: ainda é fala, mas como que afastada da fala. A vida est4 vazia; nao existe gosto ou interesse por nada, e predomina a incapacidade de se fazer © que quer que seja. Essa queixa é triste, mas de uma tristeza quase desapegada, sem afeto. Nao € um lamento que manifeste ou anime uma interioridade: € uma voz que constata um processo de desaparecimento. J4 h4 muito, os tratados de medicina, ¢ depois os de psiquia- tria, descreveram cuidadosamente esta dor moral, mais ou menos aguda, critica ou crénica, imputavel aos 6rgaos, as substancias do corpo ou aos acidentes da vida. O mal de que o deprimido sofria chamava-se humor e, desde entao, nao € surpreendente que durante muitos séculos as recomendagGes terapéuticas tenham estado sem- pre de acordo com os conselhos e regras da higiene e da moral. De fato, cuidar do humor triste, que anula o gosto de viver, que enfra- quece os homens e faz com que corram riscos mortais, nao seria tentar, em primeiro lugar, que eles tomassem conta de si préprios ITITKECRREKERRRRRREReRRReeeeReeRees Scanned with CamScanner 10 Dos beneficios da depressiio . em seus modos de se alimentar, de beber, de dormir, em seus conta- tos privados ou ptiblicos com os outros? Antes mesmo que se falasse de depressao, as descrigdes dos doentes prescreviam uma verdadei- ra ética de condutas cuja inobservancia poderia irremediavelmente provocar um enfraquecimento da vida. Isto nao deveria surpreender, pois nas expressdes mais anédi- nas da humanidade cotidiana, 0 estado deprimido €, em suma, comum e familiar: € 0 estado do desumano. Ele nao se resume a um isolamento em relacdo aos outros ou, ainda, ao retraimento com res- peito 4 mais simples comunicagao. E a propria aparéncia humana que se apaga — simples gesto ou rosto, tonalidade da voz nas pala- vras, simples impressao de um sentimento ou lembranga. A depressao toma 0 aspecto violento do aniquilamento do vivente humano. Em contraste, 0 que denominamos vida psiquica nao seria pre- cisamente esta aparéncia humana essencial, a partir da qual é possfvel se reconhecer a humanidade de todos os dias e que garante ao vi- vente inanimado uma subjetividade? O estado deprimido revelaria em negativo esta vida psfquica, exatamente na sua auséncia. Mas como pensé-la, jé que ela nao poderia ser objetivada? Os signos da depressao entram facilmente em “escalas”; sao facilmen- te reconheciveis e nomeados quando se visa um diagndstico. Mas nao € de modo algum seguro que 0 clinico que reconhece os signos também possa se questionar sobre 0 que eles significam. Hoje esta- mos confrontados a um estranho paradoxo: os éstados de depressaio sao banalizados e generalizados, no momento em que a psiquiatria nao tem mais tempo para se dedicar 4 observagao € escuta dos doen- tes. E verdade que aprendemos a identificar uma depressaio sob a hiperatividade ou, ainda, por tr4s de certos comportamentos instd- veis. Nao se recusa mais a idéia de que os doentes somaticos emprestam formas sintomaticas de dores corporais que podem ser a expressdo de um estado deprimido. Mas também podemos dizer que © depressivo é um pouco como um corpo impedido de realizar e de agir, quer se refugie numa imobilidade inerte, quer se arraste na sen- sacao de prostracao de cansago. Se, atualmente, estamos bem menos propensos a distinguir varios tipos de depressao (reacionais, neuréticas, endégenas, evolutivas, de exaustao, etc.) isso se deve, sem divida, a um outro avango diagnéstico — a prescrigao de anti- depressivos, cujo resultado terapéutico atestaria que a depressio possui certamente componentes neuroquimicos. Scanned with CamScanner Prefécio MW : A pesquisa clinica e terapéutica de Roland Kuhn foi durante muito tempo guiada por certa intuicg&o: a de que a depressdo seria similar em todos os quadros nosogréficos, sem por isso se consti- tuir numa entidade transnosogréfica. Essa unicidade exprime-se em Kuhn pela nogao de “depressao vital”, que da conta do cardter par- ticular de um fenémeno unitério do ponto de vista ontolégico, mas cujas manifestagGes sintomaticas — tanto psicolégicas quanto soma- ticas — impediriam a transformacdo da depresséo numa categoria procedente da nosografia psiquidtrica. Depressdo vital: isto nao sig- hifica apenas que o ser-deprimido encontra-se diminuido em sua vitalidade. E tampouco significa rejeitar os avangos da psicandlise freudiana afirmar que a depressao talvez represente uma doenga da vida humana — a doenga prépria a um afeto congelando a vida de um individuo, Seria preciso se interrogar novamente sobre a vida e 0 vital em termos biolégicos e psicanaliticos? Roland Kuhn evita claramente 0 retorno a um bergsonismo do ela vital ou a um junguia- nismo da energia. Para ele, “depressao vital” designa, ao contrario, uma unidade fenomenal do humano na experiéncia da existéncia (ser- no-mundo e ser-com).' A expressao “depressdo vital” conota ao mesmo tempo uma dimensao do psiquico, naquilo que ele tem de vital e articula-o ao que € depressivo em um sujeito que nao mais dispde de sua capacidade de ressonancia. Esse conceito nao pres- supde componentes neurdticos. Em um nivel fenomenolégico, a unidade semiética da depressao vital coloca a clinica terapéutica na maior proximidade da depresséo enquanto afeto modificado. E as expressGes sintomiticas tais como 0 cansa¢o, opressao psiquico-cor- poral, restrigdo interior, diminuigao da velocidade, sentimento de viscosidade do pensamento e da acao, e finalmente incapacidade de decisio, sio acompanhados de um sofrimento vital. Podemos levantar a idéia de que'a depresso € um afeto cuja caracteristica seria a altera¢ao do tempo, a perda da comunicagao intersubjetiva e, correlativamente, um extraordindrio empobrecimento da subjetividade. E verdade que, em geral, a tristeza acompanha o estado deprimido, mas, num certo sentido, ela j4 representa uma volta 1. Desde 1957, no II Congresso internacional de psiquiatria de Zurique, Roland Kuhn falava dessa vitale depressive Verstimmung que pode ser traduzida por “desacordo vital depressivo”, ¢ cujo tratamento ele especificava pela imipramina. ‘Scanned with CamScanner 12 Dos beneficios da depressdo ao movimento, uma reanimagao da vida. Assim, nao podemos consider4-la como o afeto da depressao. Ao contrério, 0 estado de- primido poderia ser visto, assim como a angustia, como um estado de afeto arcaico no qual o corpo desempenha um papel determinan- te na vivéncia. Se existe uma doenga do vivente humano ela seria, por definigao, a depressao. E se no:humano essa doenga se constitui numa desapropriagéo da aparéncia de humano, ent&o pode-se consi- derar como vital esse afeto de aniquilamento do psfquico. Falar de depressao vital retoma a idéia, antes de tudo aristotélica, de que a depresséo € uma doenga da forma — 0 psfquico sendo aquilo que dé forma ao vivente. “Sinto-me desfeita em minha aparéncia humana, informe”, diz uma mulher no momento em que comega a se descrever. Como ja disse, a atengao clinica voltada aos pacientes depri- midos exige tempo, porque os tempos proprios a vida psiquica — lembrar, representar, desejar, projetar — parecem ter sido congela- dos na imobilidade do corpo. E, muitas vezes, € somente apés um tempo bem longo que a fala reencontra um inicio de livre confianga associativa e deixa vir novamente a tona sentimentos e emocgdes com as lembrangas. “Quando alguém esta deprimido” — diz um homem comecando a falar — “nao consegue saber se nao esté no ponto fi- nal da vida”. Durante muitos meses, 0 Unico pensamento que se impunha a ele era de que “a doenca mortal esté incubando sob a depressio”. Esta doenca mortal imaginada poderia ter sido um cancer, e irrompido estrondosamente, caso o estado deprimido desaparecesse de repente. Sem diivida, os sujeitos deprimidos exprimem muitas vezes pensamentos hipocondriacos. Por isso, em vez de tratar esses pensamentos como simples efeitos de fixagao de anguistia, seria preferivel perguntar se eles nao indicam a tinica Tepresentacdo possfvel — a da morte, por um 6rgao vital ter sido atingido. Este livro trata da psicoterapia da depressao. Hoje, a psiquiatria tenta reunir a queixa do doente e.0 estado corporal das manifesta- g6es de uma doenga (nao € o préprio deprimido que reforca a idéia de que a depressio seria de natureza inteiramente biol6gica?). As- sim, pareceu-me primordial lembrar a prevaléncia da Psicoterapia Psicanalitica na abordagem da vida psiquica — que na depressao transformou-se em vivente inanimada. Quando uma queixa abre fi- nalmente o caminho para uma fala que pede tempo para ser escutada, isso nao € sinal de esperanga de retorno em diregio a subjetividade f ‘Scanned with CamScanner Prefiicio 13 viva, ou seja, capaz de experimentar os desejos e sentimentos mais simples e de acolher a ressonancia do mundo? Portanto, iremos aqui nos referir ao “tratamento psiquico” dos estados deprimidos. A expressio “tratamento psiquico” € aquela que Freud empregou em 1890 para falar dos progressos realizados pela sugesto hipnética, “arrancando” o paciente deprimido do dominio onipotente que ele exerce sobre si proprio quando quer se curar so- zinho dos sofrimentos ocasionados por seu estado. A psicoterapia — aqui na origem da psicanélise — avaliou em toda sua extensdo esse “autocratismo” e acabou se impondo pela idéia de que sdo necessd- rios dois para se curar do isolamento e do vazio interior. Ser-dois — pode-se dizer, € colocar-se a dois para sair do fechamento de uma interioridade vazia, por ser privada de exterioridade. “Tratamento psiquico” significa que o terapeuta tenta agir sobre o psfquico por seus préprios meios psiquicos. O estado deprimido mostra em primeiro lugar a peculiaridade de nos ser estranhamente familiar? Certamente, podemos conceber gradagGes entre as “(passagens depressivas” que todos conhecem em sua vida cotidiana, devido a contrariedades, decepgies ¢ lutos, até esses estados de imobilizagao, de massificagio, acompanhados da experiéncia da vida morta. A ponto de a intui¢ao de um aniquila- mento de qualquer vida psiquica vir legitimar a crenga de que a depressao seria apenas uma espécie de “doenga”? de natureza bio- l6gica ou neurobioldégica que solicitaria apenas 0 recurso ao medicamento “‘antidepressivo”. Certamente, a psicofarmacologia da 2. Cf. A. Triandafillidis, La dépression et son inquiétante familiarité. Esquisse d'une théorie de la dépression dans le négatif de l’oeuvre freudienne. Paris: Editions universitaires, 1991. : 3. E. Zarifian lembra a distingo de que dispée a lingua inglesa: “Doenga” tem um Gnico sentido na lingua francesa: o de uma entidade patolégica descrita pela medicina. O inglés € mais rico. De fato, existem nessa lfngua trés palavras que abrem largamente o leque de representagGes que se podem ter da doenga, se- gundo sua real diversidade. Disease € a doenga da medicina, aquela que se encontra exposta nos livros € que corresponde ao saber do médico. Sickness & a doenga do doente e remete ao saber deste tiltimo a partir daquilo que ele ex- perimenta em sua propria afecgio. Finalmente, illness € a representaco que os outros, os préximos, a sociedade, podem ter de uma certa Patologia e corres- ponde a idéia que eles fazem dela.” E. Zarifian, La force de guérir. Paris: Odile Jacob, 1999, p. 29-30. 4 7 7 FASO eeeeeeeeeeeeeeeegeggceneoce Scanned with CamScanner 14 Dos beneficios da depressdo ‘depressdo desenvolveu com sucesso os tratamentos farmacoterdpicos, € muitos pacientes deprimidos véem seu sofrimento diminuir gra- gas a moléculas quimicas altamente performaticas. Mas a psiquiatria nao poderia ignorar que o “acompanhamento psicoter4pico” €€ per- Manece sendo indispensdvel ao tratamento farmacoterépico. Sem diivida, 0 estado deprimido é uma doenga humana. A ex- Pressdo deve ser ouvida em sua acepcao mais precisa e extensa: doenga de ser humano submetido, desde o nascimento, & necessida- de de se dotar de uma vida psiquica gragas as interagdes com a mae € 0 ambiente; e, por esta razdo, doenca de ser humano capaz de ser, Psiquica € corporalmente, afetada pelo excesso de violéncia vinda do interior ou exterior. E bastante notdvel que a psicoterapia anali- tica disponha da capacidade de esclarecer a importancia primordial do tato e do contato, dos ritmos corporais, das metéforas da voz, do Tosto e dos gestos na constituigio da subjetividade. Aqui, vamos le- vantar uma hipotese: a da diferenca que deve ser estabelecida entre a depressividade inerente & vida psiquica (a vida psfquica é ‘depres- siva no sentido em que garante Prote¢ao, equilibrio e regulacio a vida) e 0 estado deprimido, que representa uma espécie de identifi- ca¢ao com a morte ou com um morto. Se hoje decidi dedicar um livro a Psicoterapia da depressio é Porque nos encontramos no cruzamento de dois eixos maiores. A nogao de depressado impés-se Progressivamente (desde 1850) e aca- bou diluindo qualquer diferenciagao Psicopatoldgica, fazendo desaparecer 0 conhecimento Psicopatolégico em PSiquiatria, assim como seu projeto clinico: desse ponto de vista, a temedicalizacao atual da depressio (em concordancia com o USO excessivo de anti- depressivos prescritos pelos clinicos gerais)'€ 0 resultado de uma lenta abrasdo do trégico da experiéncia humana. Nesse sentido, a psi- Canilise freudiana constitui, com sua Psicopatologia e sua clinica, a tinica tentativa para manter no centro da experiéncia humana a fungao de uma negatividade (pulsio de morte, destrutividade, culpabilidade, masoquismo origindrio) entrando na compreensdo da subjetividade da vida psiquica. Ora — segundo eixo maior —, € no momento em que presenciamos uma banalizag’o médica da depressao* (as neu- 4. Por que seria preciso se ocupar do “psiqui ico”, quando os medicament to rapidamente e tio bem? fos curam ‘Scanned with CamScanner Prefiicio 15 rociéncias sendo convocadas em auxilio) que os proprios psicana- listas sentem-se tentados a abandonar o paradigma freudiano da vida psiquica ¢ a promover uma psicoterapia intersubjetiva regulada por critérios de eficdcia da readaptagao do individuo. Uma concep¢ao “cognitivista” dos sintomas permitiria que estes desaparecessem di- retamente? A inflagdo da qual se beneficia atualmente a idéia de psicoterapia (definigo de sua prdtica, estatuto, formagao profissio- nal, etc.) indica uma mudanga sociocultural nas representagoes da vida psiquica e de seu tratamento. A cura da depressaéo por uma psi- coterapia vincula-se a aco direta sobre os sintomas com o objetivo de fazé-los desaparecer? A conjungio desses dois eixos nao € fortuita. Ela inclui muitos aspectos que, na aceleragao que vivemos hoje, vao no sentido de uma pauperizagao da “vida psiquica”, de um reforgo da banalidade da depressdo como falha de adaptagao e de criatividade, de uma espé- cie de desaparigao normalizada do tempo da comunica¢ao humana. Portanto, era tempo de escrever este livro. De lembrar que, quando se trata ‘da vida psiquica do humano, nao se pode poupar tempo para escutar. Ele permite, pela fala a um outro, que se desdo- brem os tempos internos da vida. Esses tempos ¢ essa fala foram congelados pela depressao, que os conservou vivos, mas inanimados. Ainda estamos longe de compreender a circularidade dos pro- cessos do vivente em seus aspectos neurobiolégicos e psicolégicos. Se constatamos justamente 0 fracasso das causalidades lineares vi- sando isolar os fatores bioldgicos e os fatores psicolégicos, € se tendemos a privilegiar a compreensao dos fendmenos refinados e complexos do vivente em sua individuagao singular, a depressao as- sume certamente o valor de um verdadeiro paradigma terapéutico. De um lado, possufmos hoje os meios de retirar do paciente os sin- tomas de sua depressio. A melhora farmacoterépica nao pode ser negada em muitos casos tratados pelos medicamentos. De outro lado, temos de reconhecer que a cura da depressao nao foi conquistada apenas pelo fato de termos controlado seus sintomas incapacitantes. As hip6teses levantadas pela psicandlise sobre as condigdes de ocorréncia de um estado deprimido permanecem modestas, por mais trabalhos que a elas tenham sido dedicados. Entretanto, a pré- fica Psicoterpica que subentende ¢ alimenta tais hipdteses é a nica via clinica capaz de esclarecer o que representa, para a vida psiquica, © aparecimento do estado deprimido. Scanned with CamScanner 16 Das beneficios da depressdo Quando caracterizo a vida psiquica pela capacidade depressi- va, tenho em vista uma modalidade “econémica” da vida fantasmética na origem daquilo que denominamos psiquico. Essa modalidade é a da emergéncia do sentido — por meio do desenvol- vimento da sensorialidade e da motricidade, assim como da linguagem. Desde 0 inicio, o bebé adquire a capacidade depressiva de abertura/fechamento ao contato, de ritmo, de ressonancia ¢ tam- bém de regulag&o interna das excitagdes. O psiquico indica a neotinea humana: de fato, a vida nao € ameacada pelas cargas ex- cessivamente fortes das excitagdes e, principalmente, pela brutalidade das mudangas provocadas pelo mundo exterior? A necessidade si- multanea do psiquico e de sua depressividade corresponde, assim, & descoberta da subjetividade e de seus tempos implicados. A maior par- te dos trabalhos que hoje se referem ao “bebé e as interagdes precoces”’ ressaltam o papel das percep¢des pré-conscientes 'e do circulo da forma sens6rio-motora na comunicagao dos primeiros meses de vida. Desse ponto de vista, dizer que a depressividade € necesséria 4 vida psiquica é sustentar a idéia de que a criatividade do sentido pelos sentidos e pelo movimento € concebida como um desdobramento corporal dos tempos na linguagem, muito antes de a crianga comegar a falar. Em termos freudianos, essa criatividade nao €é nada além da auto-erética do fantasma. Ela é inerente ao gesto de troca da comunicagao humana, desde que o outro evite qualquer in- trusio pelo excesso de sua presenga. Compreende-se melhor, entao, que o estado deprimido ocorra nesta zona tao essencial, e no entanto tao fragil, que sao a comuni- cago e o sentido. Portanto, € preciso conceber o estado deprimido como uma derrocada da capacidade depressiva. Entretanto, também é conveniente pensar esse estado nao somente como uma brutali- zag, mas como a colocagio do vivente num estado de conservagao, sob uma forma inanimada. Pelo processo que ela desencadeia e pela situagZo que instaura, a psicoterapia analftica constitui exatamente uma reanimagao desse vivente psiquico inanimado. Ela consiste em restituir ao sujeito deprimido sua capacidade depressiva e, assim, sua 5, Besse o titulo do volume coletivo das Monographies de psychopathologie [Mo- nografias de psicopatologia] publicado sob a dirego de A_ Braconnier e de J. Sipos, Paris: Presses universitaires de France, 1998, Scanned with CamScanner Prefécio 17 criatividade psfquica. Como se ela viesse atuar exatamente ali onde se congelaram as potencialidades das quais dispunha a vida psiqui- ca que, para permanecer viva, teve de se tornar “como morta”, ou seja, inanimada. Devolver & psicoterapia analftica todo seu lugar nao significa exatamente atribuir & fala e sua escuta os tempos implicados no acon- tecimento do sentido e nas suas ressonncias? Pois € do interior que se abre o processo de cura. E é preciso ser dois para que esse pro- oe @ o- o oo oo - o- o- ccesso OcoITa. o- Scanned with CamScanner Capitulo I UMA DOENCA DO HUMANO Quando essa mulher — Louise — expressa inicialmente 0 esgo- tamento que sente em sua atividade intensa de todos os dias, ela diz que aqui, pela primeira vez, d4-se a liberdade de se queixar de sua vida que, hd anos, consiste em cuidar de seus trés filhos e em traba- Ihar sozinha para crid-los. Sempre angustiada, a ponto de nunca permanecer quieta ¢ de prestar atengéo nos menores detalhes, ela sabe que parar de “cor- rer” significaria para ela desabar. “Eu ajo para nao sentir o tempo, de uma agao a outra e, se possfvel, duas ao mesmo tempo”. Os ou- tros a consideram “dinamica”, mas ela sabe que nao faz questao de nada, que a vida nao lhe interessa e que 0 esgotamento a esvazia cada vez mais rapidamente de seus recursos para pensar, desejar ¢ amar. Por vezes, acontece-lhe de chorar e sentir-se aliviada. Mas es- ses choros a dispensam de sentir-se triste por ter sido abandonada pelo marido, cinco anos antes. A hiperatividade emagrece-a, deforma-a — ela que se sentia bastante sedutora. O isolamento com seus filhos convém a seu esta- do onde 0 tempo nao conta. Nem o tempo, nem a fala. Em sua primeira entrevista, Louise havia falado de modo en- trecortado e ansioso, atropelando toda sua vida numa espécie de recapitulagao desenfreada. Quando voltou, para um segundo encon- tro, diz sentir-se um pouco mais apaziguada, mas extremamente cansada. E ent’o que comega a contar sobre a agitagao na qual se encontrou, pouco apés a morte do pai, aos nove anos de idade. “E desde ento que sou assim, sem descanso. Eu. precisei pisotear meu Scanned with CamScanner 20 Dos beneficios da depressdo pai que teve, ao morrer, a covardia de me deixar sozinha com meu irmio menor e minha mie.” E mais tarde ir acrescentar: “Penso que fiz realmente tudo para que meu marido fosse embora e me deixas- se sozinha com as criangas — sem dtivida para reencontrar meu pai em meu sofrimento.” Esta hist6ria poderia ser bastante banal, se ela nao permitisse se dizer, bem cedo, de uma angiistia louca de ser capturada pela mor- te do pai e de imobilizar-se num estado do qual Louise nao se recuperaria. No entanto, quando comegou a falar, Louise também comega a lembrar: da morte acidental do pai tao amado, do enterto em que se sentiu anestesiada, da violéncia de suas reagdes as meno-. Tes tentativas dos outros para se comunicar com ela. Hoje, o estado deprimido encontra-se claramente ali, em toda sua massa ffsica. Ela queria nao mais falar, para poder finalmente falar do que lhe acon- tecera. “O tempo destruiu-se, ou melhor, coagulou-se numa dor permanente na qual eu vivo.” Foi considerada manfaco-depressiva, tendo-lhe sido prescrito um tratamento que a abatia e a fazia perder a dor. “Ser que se, ao falar, eu me lembrar, isso poder4 me dar no- vamente a vida?” Somos sem diivida inevitavelmente influenciados por uma con- cepgao do humor — ou da timia — depressivo. No minimo tentamos, com 0 uso desses termos, fazer coincidir 0 principio de uma expli- cag&o — mesmo enunciada segundo 0 modelo da virtude dormitiva do 6pio! — com a acep¢ao comum do humor experimentado como o dado psicobiolégico de um verdadeiro destino da depressao. Difi- cilmente escapamos do modelo das patologias bipolares (no caso, a psicose manfaco-depressiva) e daquele dos reguladores biolégicos € quimicos do humor. A nogao de “timica” remete — como mostrou Binswanger — a determinagGes existenciais daquilo que € vital. Thymos designa em Platao a alma afetiva e emocional que se desregula facilmente sob a influéncia dos acontecimentos da vida. E nos sonhos que melhor se pode conhecer, por seu aspecto estilistico, as orientagdes desses afetos (0 alto, o baixo...). A depres- sio € uma alteragdo da esfera timica, e sem diivida foi muito pouco explorada, até aqui, a dimens&o timica da depressao, tal como ela se deixa apreender nos sonhos. Os sonhos de queda e de despenhamento comportam a percepcao interior do decaimento e do despenhamento em si-mesmo, como se faltasse 0 apoio da altura. Mas a capacidade de sonhar, nesses afetos, encarrega-se de esbogar Scanned with CamScanner Uma doenga do humano 2 uma mudanga possfvel, no momento em que as imagens da catéstofre solicitam a linguagem e uma fala junto a um outro. ; Esse predominio diagnéstico atribuido ao humor depressivo teve como efeito velar os aspectos temporais implicados nos esta- dos deprimidos. No entanto, nao € justamente isso que revela a observagao refinada do fendmeno da depressao, quando a clfnica concede a fala dos pacientes o tempo de falar para ser escutado? De fato, € notdvel que essa clinica, quando reduzida a alguns minutos de consulta, seja incapaz de prestar a refinada aten¢ao exigida para se perceber os aspectos do tempo: ela se contenta em registrar ex- pressdes semiolégicas do comportamento, que supostamente induzem de forma sistemética a decisio da prescrigéo medicamentosa. Pois+ hé uma equivaléncia total entre negligenciar os tempos pelos quais se expressa o paciente deprimido e privd-lo da capacidade psiqui- ca de redescobrir, falando, 0 recurso das modulagées ritmicas temporais. O paciente deprimido pede tempo. E podemos mesmo nos interrogar sobre as brutalizagdes sofridas em sua vida, a ponto de ele nado mais sentir a percep¢do interna do tempo. Desde as primeiras entrevistas, Bernard se queixa de uma pe- nosa sensagao de cansago que nunca o deixa. Até esse momento, ele multiplicara as consultas médicas, que nao lhe trouxeram qual- quer explicagAo satisfat6ria e tampouco, é claro, nenhum tratamento que o aliviasse. E a partir do conselho de um clinico geral que ele me solicita uma entrevista. = Noto que a sensacao de cansaco é descrita por Bernard com extrema precisao. A tal ponto que nao consigo mais dissocia-la do discurso introspectivo ao qual ela da lugar. Ele tem o sentimento de “ficar o dia todo num estado de amortecimento, com vontade de dor- mir e sem poder fazé-lo”. Experimenta assim um estado de mal-estar ffsico que diz nao afetar sua personalidade, mas que aguca sua irri- tabilidade na presenga dos outros. Ele, um homem ativo, descreve-se como se, aos cingiienta ahos, tivesse se tornado um aposentado. Nao tolera que as pessoas de seu ambiente préximo o solicitem para nada. Nao suporta qualquer rufdo e movimento ao seu redor. Enquanto no passado estava sempre cheio de novas idéias desde que acordava, hoje s6 experimenta 0 vazio, com uma sensa¢do de peso quando pen- saem qualquer coisa. E embora os outros ainda nao paregam ter percebido, ele se sente como um aposentado doente, e constan- temente cansado, s6 de pensar nd menor agao. A imagem do Seeeeeeeeroeddodoereceeerececreeces Scanned with CamScanner 22 Dos beneficios da depressdo “velhinho aposentado” insiste: nao ter nada mais para fazer, pregar um prego num dia, um outro no dia seguinte, lavar-se de vez em quando e cada vez menos, s6 se trocar raramente, cansar-se rapida- mente das conversas. Afirma que nada disso pode ainda ser visto, mas que vai inevitavelmente acabar acontecendo. Por enquanto, sabe apenas que esté naufragando, mesmo que, exteriormente, tenha uma boa postura. A descrigao de Bernard de sua vivéncia sintomdtica ocupa, nesse inicio de entrevista, o primeiro plano. Como se essa descri- ¢ao visasse dirigir-se unicamente 4 minha aten¢4o consciente e inscrever-se ou escrever-se em mim, enquanto escuto: “O senhor me vé vestido de modo correto e parego um homem normal, mas sinto- me doente de exaustdo”. Os pacientes deprimidos expressam sua queixa da seguinte maneira: solicitam contato, mas mostram ao mes- mo tempo o sentimento dissuasivo de que esse contato nao serve para nada € que nao pertence a ordem da fala, buscando assim imprimir no analista uma representagao de si em negativo, que asseguraria a obrigagao de nao se nutrir qualquer ilusao.' O recinto fechado do estado deprimido nfo existe somente no sentimento de isolamento: ele € constitufdo pela despossessio da imagem de si (nenhum espelho pode devolver sua prépria imagem e, no limite, ndo ha mais espe- lho). Poderfamos mesmo perguntar se, na presenca do analista, a cis’o nao se acentua, e se a fala da queixa nao procederia de uma inst4ncia interna produzindo um discurso psicolégico de comentério. Bernard diz que perdeu qualquer capacidade para o prazer: “Com certeza vou ficar sexualmente impotente”. Esta ameaca de im- poténcia sexual, que confirmaria seu envelhecimento psfquico sentido fisicamente, € evocada de modo bastante interessante. O ho- mem que petde sua poténcia sexual nao possui mais apetite pelas mulheres, mas, principalmente, nao mais dispde de sua libido sexual para agir, pensar, falar, ver, escutar, sonhar. A incapacidade de ere- Ao significa que o homem, por inteiro, nao consegue mais se erigir. E o sentimento de autodesvalorizagao — 0 pénis tendo se tornado o eu — reforca a idéia de que nao € mais possfvel qualquer empreen- dimento. Conhecemos, no deprimido, a acentuacao dos sofrimentos —_— 1. As rupturas de “apresentago intersubjetiva” so acompanhadas — diz Binswan- ger - de uma amplificagio da presentagdo na representagao do outro, ‘Scanned with CamScanner Uma doenga do humano 23 hipocondriacos (geralmente acompanhados de angitistia de impotén- cia), mas € preciso atribuir aqui o lugar justo, no homem, ao valor concedido a eregao em seu sentido literal e metaférico. O estado de- primido é muitas vezes descrito nas queixas como perda de desejo ¢ de desejabilidade — uma verdadeira detumescéncia afetando fisi- camente toda a vida psiquica. Bernard nao saberia dizer como € que isso lhe aconteceu. Foi Pouco a pouco e, ao mesmo tempo, muito subitamente. Ele nao que- tia mais ter filhos, e a concepgao e o nascimento desse menino, acelerou, ele diz, a representagao de seu envelhecimento ¢ de sua morte. Hoje, nesse instante em que fala, ele sente saudade do tem- po feliz de seus quarenta anos: “Tudo andava por si s6, eu era ativo € estava em harmonia comigo. Falava com facilidade ¢ ativamente, a sem deixar que meu pensamento se arrastasse. Por vezes, dizia que me sentia tio bem que a depressdo devia ser 0 contrério”. Vivendo com moderagao, ele se sentia a altura do que acontecia em sua casa € com os outros. Retirava daf recursos para agir. Durante as entre- vistas, ele iré descrever precisamente o que perdeu. Agir é deixare aparecer novos horizontes temporais, novas potencialidades. Agin- do, o corpo descobre que cada agao evoca outras, sempre renovadas. A menor das agoes realizadas nos dispde a outras agdes, por vezes simultaneas, ¢ a aco efetuada modifica, por sua execugo, 0 corpo todo. A depressfo atinge esse engendramento temporal da ag&o que se desenvolve normalmente de maneira auto-erética: uma certa agao proporciona prazer € esse prazer forma uma nova ago. O estado de- primido nao pode ser simplesmente definido por uma inibi¢ao da aco, pois essa interpretagéo provoca uma concepgao medicamen- tosa de eliminacao da inibigao da a¢ao. E ela comporta, além disso, 0 risco de justificar impulsdes de agao onde de fato o sujeito é ati- vo, mas nao dispde deste engendramento auto-erdtico de uma agao a partir de outra, no horizonte temporal e espacial do projeto. Ber- nard nao compreende porque, hoje, Ihe € tao pesada e dificil a representagao do fazer: andar, carregar, falar. As vezes, por exem- plo, fica muito tempo sentado sozinho, na cozinha, numa completa irresolugao sobre se deve comer usando uma faca ou um garfo que se encontram apenas a alguns centimetros dele. Ele sente esta restri¢do de sua esfera de vida como a prova de sua diminuigao: € 0 sentimento de que o tempo se modificou com- pletamente. O modo pelo qual se impée a representagdo de que ha ‘Scanned with CamScanner 24 Dos beneficios da depresséo algo a ser feito o arrasta, quando se encontra s6, a um discurso sem fim — espécie de solil6quio acompanhado de uma curiosidade por “um homem que se desloca inelutavelmente”. Se ele comegasse uma andlise, nao ficaria ainda mais completamente submetido a esse dis- curso que agrava sua imobilizagio? Mas como se livrar desse discurso que — ele diz — se assemelha ao de apaixonados apés sua ruptura? Ruminagao, sem diivida, mas nao apenas isso, pois 0 que ép misterioso € esse excesso de pensamento que esvazia o pensamento e anula qualquer desejo. J4 se ressaltou freqiientemente 0 compo- nente obsessivo e f6bico da depress&o. Mas formular as coisas assim nao esclarece esse uso que 0 tempo doente faz da linguagem. A de- a pressio € com certeza uma doenca humana do tempo que afeta a Tepresentacao e a aco, as potencialidades da linguagem, assim como a comunicagao com os outros. Se a psicopatologia fenomenolégica encontrou na depfesséo um terreno privilegiado para pensar a articulagao das relagdes com © tempo, foi em razao da fungao desempenhada pelas potencialida- des da representagio e da agéo na comunicacio intersubjetiva. Bernard pode descrever precisamente, vivendo-a no cotidiano, essa perdicao da temporalidade pela perda da antecipagao. A perda das antecipagdes no menor dos pensamentos, das ages e das palavras provoca o sentimento de confusao. Por nao querer nada esquecer do que deve ser feito, Bernard se esgota, nao somente tentando memo- rizar, mas buscando compreender como poderé agir, caso Ihe seja pedido que faga uma ou outra coisa extremamente simples.” « A psicopatologia do tempo nos estados deprimidos refere-se, portanto, tanto ao corpo da aco quanto 4 comunicacao intersubjeti- va. Mas como designar a unidade de uma estrutura depressiva em sua perturbagao? Bernard expressa a nostalgia de sua “normalida- de”, quando ele vivia numa capacidade de agir que se renovava agindo e em uma mobilidade fisico-psiquica que lhe iduya.o pra- 2. Nao vou voltar aqui 4 exposi¢ao que desenvolvi em um livro antigo, & luz da quinta das Meditagdes cartesianas de Husserl. P. Fédida, “Le corps et les fondements de I’intersubjectivité [O corpo e os fundamentos da intersubje- tividade]”. In: Corps du vide et espace de séance (Corpo do vazio e espaco de segio]. Paris: Jean-Pierre Delarge, 1977. Essa exposigao era entio dirigida por uma tentativa de compreensdo da ruptura da apresentago na depressio ¢ da perturbacao do tempo na comunicacio intersubjetiva. Scanned with CamScanner Uma doenga do humano 25 zer da iniciativa de descobrir, desde 0 momento em que despertava, novas idéias. Feliz em sua vida conjugal, ele diz que sentia “o pra- zer de ser homem em todos os sentidos”. A percepgdo dos outros e a comunicacao com eles Ihe proporcionavam um enriquecimento de sua personalidade e um verdadeiro estfmulo naquilo que empreen- dia. Ele no sabe como é que Ihe sobreveio a “depressao” (as crises e choros de sua mulher e o nascimento de um outro filho foram uma “provagio”), mas o que ele descobriu desde ento é que “nada mais anda sozinho”. Continua dando a seus colegas de trabalho, ¢ até a seus amigos préximos, a mesma impressao de eficiéncia, e € apre- ciado por suas qualidades humanas, mas — ele diz — “em mim, sei que meu tempo interior se alterou”. Para ele, € a mesma coisa sen- tir-se velho e impotente, numa terrivel lentidio de pensamento interior que “cola” e se demora inutilmente, cozinhando-o “em fogo lento” e uma tolerancia bem menor com os outros, mesmo isso sen- do imperceptfvel. Dando uma indicagao precisa sobre o sentimento de que a lentificagao de seu pensamento poderia ser devida a uma intrusdo interna dos outros, quando pensa e fala, ele designa tal in- trusao como uma maneira infantil de se agarrar 4 presenga deles, que perde sua “virtualidade”. A antecipagdo prépria 4 experiéncia inter-¢ nado tempo parece se encontrar na comunicagao com Os outros: nos estados deprimidos, 0 outro nado é mais o suporte de uma figurabi- lidade que conferiria mobilidade as identificagdes. Em certas sessdes do infcio de sua psicoterapia, Louise parecia-me dotada de uma in- tensa sensitividade: seu rosto e seu olhar parecem querer se colar de maneira adesiva a mim e vigiar os menores movimentos subjeti- vos de meu pensamento. “Entrar no interior”, ela dir4. Ira expressar sua “necessidade” de nao permanecer encerrada na morte de seu pai, pela qual se sentiu aspirada. Ela queria reencontrar a voz, os gestos de seu pai vivo, com os quais pode se identificar. Tenta descrever lembrangas de sua vida de crianga, mas para que isso ocorra é pre- ciso, antes, que se sinta confundida com minha prépria presenga. Se a capacidade de antecipar significa dispor dos horizontes temporais e espaciais nas iniciativas de acao, de linguagem e de pensamento, dirfamos entao que ela tem a mesma estrutura que a intersubjetivi- dade humana. A perda ou alteragao dessa capacidade corresponde a uma falha das potencialidades do figurével e, conseqiientemente, das identificagGes. Scanned with CamScanner 26 Dos beneficios da depressdo No decorrer de nossos encontros face-a-face, durante quase um ano, permaneci inicialmente silencioso, mas 0 mais préximo possivel da queixa expressa. Para mim, era evidente que se houvesse transfe- réncia (e nao se pode duvidar que isso aconteceu), 0 mais importante era a tentativa de Bernard de ter sempre a garantia de que eu poderia acolher seu discurso depressivo, deixar-me modificar por sua impressao € representar a ele uma identidade estdvel podendo, em contraparti- da, tornar-se 0 suporte de suas préprias modificagdes. Nao era possivel para ele, nesse momento — 0 que aconteceu mais tarde —, deitar-se no diva. Durante esse perfodo era como se eu tivesse que aprender o dialeto estrangeiro de uma lingua familiar e, muito lenta- mente, em fungao de certas palavras pronunciadas por ele, fazer com que esse dialeto entrasse em nossa lingua comum. E claro que a pre- "- senga do rosto tem, nesse caso, uma importancia decisiva. No curso das sess6es que ocorreram durante esse ano, percebi que muito pro- gressivamente eu ia me tornando seu interlocutor fntimo e que, assim, 0. soliléquio depressivo foi sendo substitufdo por um esbogo de did- logo acompanhado, para ele, da espera de sua préxima sessao. Mas foi principalmente a volta a um sono mais satisfatério e a um sentimento de poder sonhar e lembrar-se de seus sonhos que provocou sensiveis modificagdes. No primeiro sonho que ele con- tou, seu pai, extremamente idealizado (era um notavel politico que morreu, jovem, de infarto) expressava num discurso muito longo ex- plicagdes e recomendagoes que o deixavam mudo e submisso, com 0 sentimento de no conseguir pronunciar a menor palavra: “Eu me sentia esmagado pela sua fala, com a cabega vazia. O que acontecia muitas vezes na realidade”. Ainda nesse sonho, ele vivia para si mes- mo, num isolamento absoluto. Pensou mais tarde que seu pai idealizado permanecia como fechado em si préprio, e assim se dei- xou ameacar pela doenga cardfaca. E seu proprio discurso interior deprimido — discurso de desaparecimento progressivo — tinha o po- der obstinado e arrasador de uma fala contida por seu pai, subsistindo nas auto-recriminagGes, ao passo que a idealizagao permitia-lhe, ape- Sar de tudo, consérvar esse pai como bom e atencioso. Antes da depressao, a identificagdo com o pai, representado como inteligente e ativo, tinha prevalecido por muitos anos com a intuigao, entretan- to, de que o curso das coisas poderia um dia se inverter. Nesse sentido, Bernard perguntava se a depressio no seria uma “punigao” por ter querido se apossar da poténcia de seu pai e — identificando-se mimeticamente com ele, inteligente, ativo e decidido — se a depressaio ‘Scanned with CamScanner | | Uma doenga do humana 21 nio indicaria uma sua facilidade em “ter sucesso por empréstimo” e nao por si proprio. Interroga-se sobre a ilusdo de viver com seus pré- Prios recursos psiquicos, dos quais anteriormente desfrutava: “Talvez nao fosse verdade. Talvez tudo fosse usurpado”. Em um dos sonhos seguintes, ele dirige sem qualquer cuidado um carro, numa veloci- dade louca. A seu lado, seu jovem filho, que ele nfo reconhece e que est4 aterrorizado. Uma outra crianga atravessa a estrada e € atro- pelada pelo carro que bate num muro. Nas associagdes que vém espontaneamente, ele diz que pediu a sua mulher que abortasse quan- do ela esperava o segundo filho, e que esse pensamento o deixara (Go mal que muitas vezes, no momento de adormecer, tinha uma es- pécie de visio hipnagégica de estar “esmagando selvagemente uma crianga pequena”. O ser-deprimido é uma crianga esmagada por um pai onipotente. Ele retoma ento esse aniquilamento depressivo e in- terpreta seu discurso interior — mais raro atualmente — como um tipo de comentério sem fim comportando “um olhar que o observa morrer em fogo lento. E uma espécie de suplicio que eu me infligiria no lugar de meu pai”. A seguir, ir4 acrescentar que essa maneira in- terior de se remoer em sua lamentagao intima e de se sentir cada vez mais paralisado poderia ser semelhante a uma espécie de prote- ¢ao paradoxal contra seu proprio aniquilamento. Muitas vezes, as angustias de morte na depressio podem ser tamanhas que a parali- sia da vida psiquica e sua massificagdo corporal equivalem a “ser morto imortal na angustia de morte”. Bernard experimenta alivio e até prazer quando descobre que pode sonhar, mesmo que seus sonhos sejam designados como so- nhos de angtistia. Pouco tempo antes de ele expressar 0 desejo de continuar suas sessdes deitado no diva, sentiu repentinamente di- ficuldade para relatar um sonho cujo contetido fora claro antes de vir 4 sess4o, mas que tinha se dissipado quando ele estava sentado diante dé mim. De imediato, ele no soube dizer nada sobre si, € somente na sessdo seguinte — exatamente antes das férias de verao — conseguiu se lembrar. Quando exprimiu seu embarago por ter “per- dido” seu sonho, disse-me que fora meu rosto diante dele que o tinha “embaralhado” e tinha feito com que 0 contetido de seu sonho se apagasse, ou, mais exatamente, que tinha tornado impossfvel a fala de seu sonho: “Acho que se eu estivesse deitado no diva, 0 sonho teria permanecido para mim, ¢-eu teria podido cont4-lo ao senhor”. Pensei que se tratasse daquilo que chamamos de sonho transferencial “tipico” — 0 que foi confirmado, quando ele me contou: “Estou numa N ‘Scanned with CamScanner 28 Dos beneficios da depressito espécie de quarto em que o senhor esté presente. Mas nao era aqui. O cémodo é muito claro e a luz entra generosamente ¢ ilumina um buqué de flores do campo. O diva € uma pequena cama — como uma cama de crianga, com estampas simples na coberta. Num canto do quarto, um pequeno monte de coisas calcinadas depois de um in- céndio. Fico surpreso, pois a peca est4 bem-arrumada e tudo arranjado de maneira agrad4vel. Quando me viro, eu 0 vejo de pé, muito emagrecido e com o rosto cinzento. Parece que de repente o senhor tinha virado um velho. Penso que o senhor deve estar muito doente e que iré morrer logo. O senhor continua sorridente, mas eu 0 vejo muito cansado, deprimido”. Lembrando de seu sonho na safda da sessio em que nao conseguiu cont4-lo, sentiu vontade de chorar. Ele pode deixar minha presenca visivel, pois nao precisa mais dela: 0 incéndio calcinou o que tinha se tornado inttil e estorvante e pou- pou 0 quarto da crianga. Ele lembra dos terrores vividos na casa de sua infancia, quando era deixado sozinho: acontecia-lhe de brincar com fogo (os fésforos € 0 isqueiro de seu pai) e, tentando adorme- cer, sentir medo de ter corrido o risco de‘ provocar um incéndio. Ele me fez notar que a doenga e morte de seu av6 paterno, que vivia com eles, tinham-no impressionado muito, na idade de cinco anos. Pois é essa.imagem do avé falecido — avé afetuoso e protetor para com ele — que se impée hoje, quando me vé transformado num ve- Tho doente que pode morrer logo. A volta desse luto de antigamente € ainda mais sensivel a esse momento em que a psicoterapia vai pros- seguir enquanto andlise. Pois— como eu soube a seguir — foi na Epoca de seus cinco ou seis anos que. Bernard desenvolveu sua capacida- de de brincar sozinho, de aprender a ler, de criar objetos. A criatividade na crianga pequena se desenvolve, de fato, com uma real fecundidade da “vida interior”, em ligacao estreita com um luto, de um genitor, ou um avé amado. Provavelmente, foi assim que acon- teceu com Bernard, em sua depressividade que lhe deu por muito tempo um sentimento de contato consigo mesmo e de autonomia ati- va. O que estou chamando aqui de depressividade ou de capacidade depressiva pode se aparentar & “capacidade depressiva” segundo Melanie Klein, mas refere-se em primeiro lugar A constituigao da ex- periéncia da perda e da transformagao da vivéncia interior por ela. O famoso jogo da bobina (fort-da) consiste, como sabemos, em fazer desaparecer e Teaparecer © objeto, a fim de interiorizar a auséncia do outro. E Winnicott ressaltou quanto a capacidade de- pressiva (que reencontramos na experiéncia Psiquica do retraimento) ‘Scanned with CamScanner Uma doenga do humano 29 € geradora de uma atividade criativa de pensamento e ilusao: a des- coberta da auséncia como volta da presenga é, de fato, a modalidade Primordial da existéncia do outro como liberdade de si E verossimil que a Ocorréncia excessivamente brutal do estado deprimido nao seja alheia ao nascimento do filho menor (0 segundo filho). Mas esse acon- tecimento funciona mais como interpretagao simbélica do que como Causalidade: a interpretagao simbélica que esse acontecimento re- presenta faz trabalhar a morte do pai que, também simbélica em suas SignificagGes, revela a transformagao da depressividade em estado deprimido. O que me interessa € compreender como 0 equilfbrio que se dé na vida psiquica na depressividade plena de recursos, € rompido sob 0 efeito de certos fatores internos e externos, e como se imp6e essa lentificagio do tempo, esse discurso de ruminagao e essa massifi- cago da vida psiquica num corpo incapaz de projeto de agao. Recapitulemos algumas das proposices esclarecidas pelo tra- tamento psicoter4pico do qual apresentei certas seqiiéncias: 1) Antes de vir me consultar, Bernard tinha tomado uma re- ceita de antidepressivos sem efeitos durdveis. Sob tratamento, ele constatou uma melhora relativa de sua inibig&o de agir, mas o desapa- recimento desta inibigao traduziu-se principalmente pelo sentimento que o medicamento o ajudava a produzir agdes isoladas (cuidar de seus negécios bancérios, depois preparar a viagem de férias, depois executar tal ou tal tarefa...). Nessa mesma €poca, ele se encontra menos submetido ao discurso interior e ao peso do tempo subjetivo, mas sente-se bastante estranho a si mesmo e ao que vive. Nao ape- nas nao sente qualquer prazer verdadeiro ao agir, mas a “rapsédia da vida” nao existe. O que lhe falta € poder se comunicar com todo 0 resto de sua vida psiquica. Depois de um certo tempo — quando ele comegou a vir falar comigo — pediu ao psiquiatra para suspender a receita de antidepressivos, pois teme se deixar “consumir” pelas agdes produzidas nesse estado e nessas condigdes. Concordei inte- tiormente (e sem comunicar-lhe minha opiniao) com essa idéia de que a supressio das inibi¢des de agir por um antidepressivo — se ela pro- voca simultaneamente a perda do pensamento associativo e da vida fantasmatica — pode precipitar o paciente numa evolugao melancélica. 3. Retomo e desenvolvo neste trabalho, em diferentes capitulos, a nogio de capa- cidade depressiva. : Scanned with CamScanner 30 q Dos beneficios da depressits Nao devemos esquecer que a prescrigao de um antidepressivo exige do psiquiatra um conhecimento muito apurado e exato de suas mo- dalidades de ago. Se o antidepressivo for utilizado numa época nao conveniente, ele pode, de fato, favorecer a supressao de uma inibi- ¢ao a agdo, mas essa agdo (talvez de natureza alucinatéria) realizada com facilidade, nao deixa de ter efeitos sobre a vida psfquica prote- gida pela depressividade. Nao seria de modo algum aberrante pensar que a depressao tem uma fungio de regulagao do cérebro que nao deixa, constantemente, de se construir. O tratamento por antide- Pressivo tem, ainda hoje, muito a aprender sobre os tempos préprios asta doenga do tempo que é a depressao. 2) As temporalidades inerentes a grande plasticidade ¢ mobili- dade da vida psiquica encontram-se bloqueadas no estado deprimido. E extremamente importante fazer uma avaliagao — por assim dizer fenomenolégica — desse bloqueio, que afeta nao somente o eixo pas- sado-presente-futuro, mas também os movimentos temporais associados aos acontecimentos da vida cotidiana. Os aspectos do tempo geralmente acompanhados de tonalidades das vivéncias ¢ de ressonancias dessas vivéncias, tornam-se impossiveis. Esse € um pro- blema essencial, revelado pela psicoterapia dos estados deprimidos. E por isso que a reanimagao da vida psiquica por meio do processo transferencial vem do interior: 0 sonho ¢ o fantasma s46 modalidades de reanimacao do interior. . 3) O tratamento psicoterapico de Bernard deu-nos uma bela ocasiao de perceber o refinamento de sua percepcio endopsiquica. O que chamo aqui de “percep¢ao endopsiquica” é uma particulari- dade da depressividade sobre a qual pode-se dizer que aumenta a metéfora psicolégica da atengao a.si. Durante uma andlise,.vemos essa capacidade se desenvolver ao mesmo tempo em que permanece recolhida, ¢ nao se impondo, assim, como discurso interior. O pano de fundo dessa percep¢ao — de funcionamento pré-consciente — faz. parte da mobilidade da vida psiquica. E nesse sentido, aliés, que podemos dizer que uma das tarefas da anélise é constituir, ou reconstituir, com a linguagem, uma depressividade, de natureza auto-erdtica. Ter acesso a sua prépria depressividade — e assim aos tempos de sua vida psiqui- ca — é absolutamente essencial como interiorizagéo de uma duragao. No caso de Bernard, 0 que vemos é que a perda da depressividade psiquica leva-o a produzir esse discurso interior doloroso e lentificado, que € aqui considerado um substituto da agilidade depressiva e uma salvaguarda contra o risco da precipitagao melancélica. Estamos aqui ‘Scanned with CamScanner Uma doenga do humano 31 bem préximos da auto-observacao melancélica com sua culpabili- dade, suas auto-acusagoes e, principalmente, essa fascinagao pelo eu sob o olhar do destino. O paciente queixa-se do que nao vai bem, mas essa queixa inclui o pressentimento terrivel de uma catéstofre prestes a ocorrer. Esse discurso de autofascinagao do eu faz-com que ele se veja ¢ assista 4 lenta atenuagao de sua vida ¢ seu processo de desaparigao. Nesse momento, € absolutamente exclufda a realizagio de um trabalho num enquadre analftico, pois a depressio com evo- lugio melancélica inevitavelmente tiraria partido de uma situagao simbolizada como sacrificial e passfvel de um desfecho inevitalmente suicidério. Evidentemente, a psicoterapia de um paciente deprimido nao poderia ser concebida como se se tratasse de uma psicandlise apli- cada a uma psicoterapia especializada. Nao somente cada estado deprimido dispde de sua prépria singularidade, mas as modalidades varidveis sob as quais a depress&o se apresenta proibem, como j4 ressaltei, que se fixe um procedimento técnico de ordem sistematica. Seria melhor dizer que a experiéncia clinica nos torna aten- tos, na maioria dos casos — para nao dizer em todos os casos em que a depressdo se manifesta claramente —, para a importancia deci- siva da posigao atribuida a duragao das sessdes e & sua regularidade. Essa importancia deve-se a uma relacao direta com a problemdtica do tempo em sua propria dimensdo intersubjetiva. Ferenczi j4 cha- mara atengdo precisamente para essa caracteristica do traumatismo, consistindo no ataque a vida psfquica naquilo que ela tem de vivo, ou seja, nessa capacidade de desdobramento e de transformagao dos tempos implicados na fala que conta, que evoca, que deseja, que la- menta, etc. A modulaco tonal dos afetos sentidos — restitufda pela transferéncia na andlise — passa por uma fala que dispde do tempo para falar. E nao € raro que os pacientes déem mostras de ter sofrido brutalizagdo por um dos genitores, ou por um outro adulto, no mo- mento em que queriam falar, explicar-se, colocar questOes, expressar © que estavam vivendo ou que tinham vivido. E por isso que Fe- tenczi recomendava que se oferecesse essa paciéncia receptiva que da tempo. Alias, o paciente nunca se engana nesse ponto, mesmo que faga o analista sofrer a mesma invasao que sofreu antigamente. Esse desdobramento da fala na duragao permite que ele descubra 0 que nao conhecia: o sentimento de ser escutado na liberdade de seu proprio ritmo de pensamento e expressio. ‘Scanned with CamScanner 32 Dos beneficios da depressdo E verdade - como Winnicott notou para justificar as sessoes longas (por vezes de uma hora e meia) — que o que est4 em jogo no tratamento € 0 tempo de regressdo‘ na situago analftica e o arranjo do tempo de retraimento, distintos dos tempos da regressio, pois eles pressupdem a descoberta de pensamentos e de fantasmas constituti- vos da vida interior e que supostamente nao devem ser comunicados, ao menos diretamente. O que aqui conta, antes de tudo, é a descober- ta de uma experiéncia humana, compreendida de modo extremamente simples, sob a forma de reconhecimento de sentimentos humanos e de ressonancia intima. O esmagamento da vida psiquica nao provoca a impossibilidade de ressentir aquilo que se sente de nao mais dis- por das palavras que, por si s6, trazem ressonancia? Lembremos que a metéfora musical empregada por Ferenczi em “Elasticidade da téc- nica psicanalitica”> € a do tato e do contato. Essa metéfora remete Aquela usada por Plato quando ele faz falar o médico Anaximandro invocando a necessidade de uma harménica feita de agudos e gra- ves, de cheio e vazio. ‘Temos aqui, dentre as dificuldades, aquelas que exigem do ana- lista a percepcao de sua prépria membrana de resson4ncia. O endurecimento dessa membrana acarreta imediatamente um endure- cimento e um fechamento do paciente e, correlativamente, uma parada €m seu movimento regressivo. E, ao mesmo tempo, a ameaga que o faz sofrer a queixa depressiva — com freqiiéncia obsessiva — 6 de atacar sua disponibilidade de linguagem ou, ainda, de arrast4-lo para 0 tédio. Em outros termos, nada estd imediatamente conquistado de- vido 4 violéncia produzida pela depressio do paciente sobre 4 vida psiquica do analista. Por essa razdo, a comunicagao ao paciente de afetos contratransferenciais com fungao de interpretagao — desde que sejam evocados de forma comedida e no momento oportuno —'vai no sentido da restituigao de um ambiente humano que indica assim a busca de reconhecimento de experiéncias compartilhadas. 4. Entendo aqui, por tempo de Tegressdo, o tempo de um retorno das experiéncias Ps{quicas e corporais anteriores, especialmente dos primeiros anos de vida, O enquandre da psicoterapia serve para tornar possivel a redescoberta dessas experiéncias, 5. S. Ferenczi, “Blasticité de la technique Psychanalytique” (1928). In: Psycha- nalyse 4, Oeuvres complates. Paris: Payot, 1982. t. LV. ‘Scanned with CamScanner Capitulo I UM AFETO GLACIAL E SUAS CURAS CRITICAS As metéforas produzidas para se imaginar a depressao inevi- tavelmente remetem ao frio, ao siléncio gelado, ao desaparecimento aparente de qualquer vida. E embora freqiientemente faltem meté- foras na queixa depressiva, devido a uma espécie de exaustao da linguagem, no é raro escutar os pacientes deprimidos descreverem uma solidio absoluta, de onde teriam desaparecido emogoes, dese- jos e sentimentos, como se a vida tivesse parado. Essa espécie de desumanizagao & qual o estado deprimido conduz € aterrorizante. E a paisagem glacial poderia servir para descrever uma terra privada de seres vivos. No entanto, 0 conhecimento clinico desse estado — suscitando as imagens da glaciagao — deveria abrir-nos a outros pontos de vista: aqueles que Ferenczi:e Freud enunciaram em sua fantasia e especulacao metapsicoldgica a partir da imaginacio filo- genética. Nunca deverfamos esquecer que sao os “destinos geolégicos da terra’ que dao a verdadeira medida do devir psiquico da huma- nidade e, portanto, de sua civilizagdo. Entre esses destinos, 0 da glaciagao é certamente o mais poderoso: 0 extremo despojamento que ele impés 4 primitividade do homem — sua luxuriancia sexual de “animal-homem-primitivo” (Freud) — traduziu-se pela produgao de formas conservadoras de vida. A partir desse modelo das formas ani- mais e vegetais, 0 “psfquico” pode, da mesma maneira, ser concebido como uma forma fixa de conservacao da vida que é, no entanto, su- ficientemente plastica para dispor de uma capacidade de regressio. Assim, entre 0 inicio e o fim do perfodo glacial, a neurose utiliza “ eo oe e os os o oo - os - o - - - - ‘Scanned with CamScanner c \ 34 Dos beneficios da depressdo extraordinérios meios para manter o humano em vida, ao passo que nada deve expor essa vida a desgastes exigidos do exterior. No que diz respeito & evolugdo, a neurose obsessiva € totalmente exemplar, pois representa nao s6 a influéncia determinante do glacial como for- magio do psiquico, como também um modelo de progresso regressivo em diregao ao pensamento. Como diz Ferenczi, a impor- tancia das “marcas profundas deixadas pela era glacial” no psiquico da humanidade no sao resultantes de uma simples ficgo especula- tiva, mas seria, por assim dizer, diretamente observavel nessas manifestagdes que sao os sintomas da vida inanimada, geralmente imputadas a imobilidade depressiva tao préxima, em certos sentidos, da neurose obsessiva. Com o risco de passar por aquilo que ela nao é — ou seja, re- dutora e biologizante - a fantasia especulativa permite imaginar formas sintomaticas simples de uma neurose glacial protegendo a vida contra o que ela teria de vivo. Nesse sentido, a depressao seria 0 estado correlativo de uma neurose glacial (neurose obsessiva), da qual ele seria também a protegao. Aquilo que chamamos de “psi- quico” nao seria exatamente o processo de uma espécie de evolugdo fixa concedendo os meios necessdrios de defesa contra 0 que 0 vivo da vida tem de traumatico? Os termos nao sao contraditérios. Ima- ginar a evolugdo das espécies também significa admitir que nada muda aparentemente para uma dada forma biolégica que, no entan- to, comporta um processo de transformagao. A fixagao a certas formas — e também de certas formas — acontece conjuntamente com a regressao, que € 0 tinico processo possivel de mobiliza¢ao do vivo. Apoiando-se em sua clinica, Ferenczi nunca deixa de mencionar a fungao desempenhada pela depressao como o equivalente de um sono de hibernagio, e que deve ser respeitada e tratada com tato, para que a excitacao viva nao violente a vida assim preservada. Em estreita relago com a psicoterapia de pacientes deprimidos, a compreensao dos processos de regressao refinou-se — especialmente com M. Ba- lint e D. W. Winnicott -, pois se a depressao pode ser vista como um estado de regressao, é a situacao analitica que dé a este ultimo as condigdes técnicas de tratamento, de atengao, assim como de re- animagao da vida psiquica. A importancia concedida ao enquadre (regularidade e duragao das sessGes, lugar protegido, siléncio) con- firma essa conjuntura entre acolhida do estado deprimido e aceitagio. ‘Scanned with CamScanner Um afeto glacial e suas curas criticas 35 Quando Freud — em “Visio de conjunto das neuroses de trans- feréncia” (1915) — invoca os destinos geolégicos da terra, ele nao deixa de solicitar as intuigdes de Ferenczi. Mas ele também reco- nhece a dfvida para com a sua leitura de Origem das espécies, onde Darwin desenvolve, em algumas péginas do capitulo XI, a “hipéte- se” de uma durago geoclimética de dispersao das formas vegetais € animais, cuja identidade morfolégica é compardvel em lugares afas- tados uns dos outros, e que indicam assim a forga heuristica da analogia no dominio dos seres vivos. Ferenczi utilizaré também a analogia, em Thalassa, como um forte recurso de interpretacao filo- ontogenética, em oposi¢ao ao “psicomorfismo”: o sintoma neurético possui assim a particularidade de solicitar no analista a imagina¢ao das mais longinquas formas animais e, da analogia assim desperta- da, fica ressaltado que as formas psfquicas sintomdticas de duragéo estavel comportam regressivamente sua expresso viva nos 6rgdos e nas fungGes da animalidade elementar.' Em resumo, os psicanalis- tas tenderiam excessivamente a tentar compreender os estados deprimidos com referéncia 4 separagao, ao abandono, ou ainda a ca- réncias afetivas elementares. Mas sera que a depressao nao exigiria uma outra imaginacao alimentada pela observacao simples das for- mas animais e pela sua extraordindria capacidade de adaptagao aos mais violentos perigos? O interesse de tais visdes “clinicas” na escala dos grandes periodos é, em primeifo lugar, metodolégico. Nossa observagao psi- canalitica dos pacientes em tratamento nos ensina a interiorizar a duragao e nos preserva dos engodos da histéria individual 4 qual se atribui facilmente uma dialética das crises. Estas sio geralmente con- cebidas em termos de potencialidades de mudangas. Essa prudéncia psicanalftica também oferece a vantagem de tornar o analista atento a quaisquer excessos de pensamento, expressos ou nao, que sempre ameagam produzir no paciente uma acelerag4o do tempo, assim como actings de melhora ou cura. E nao é exatamente a depressividade do analista — sua propria percep¢ao-dos ritmos-e tempos interiores — que regula seu pensamento, evitando assim uma safda excessivamen- te brutal do paciente do estado deprimido? E verdade que a depressao Lf. P. Fédida, Par oit commence le corps humanin ~ Retour sur la régression. Paris: Presses unversitaires de France,"2000. ‘Scanned with CamScanner 36 Dos beneficios da depresséia pode, em muitos sentidos, ser considerada uma crise ocorrendo numa vida. Nao é isso que acontece apéds certos eventos como rupturas, separagGes ou lutos? Mas a prote¢do que a depressao proporciona — por mais dolorosa que seja — nao deveria ser subestimada. Por essa razio € possivel, em certa medida — atribuir ao estado deprimido uma fungao de regulagao das mudangas — como se fosse preciso ter a ousadia de levantar a hipétese segundo a qual nao se deveria exi- - gir curas rdpidas demais, que submetem o individuo a falsas adaptagGes. Nesse sentido, o evolucionismo freudiano — como lembrou Patrick Lacoste? — inscreve no trajeto psicanalitico a consideragao de uma temporalidade da nao-mudanga. Sem diivida, a dificuldade de se pensar a progressividade do trabalho analitico no tratamento € constatar remanejamentos do material psiquico no decorrer da re- gressao transferencial, e nao se deixar enganar pela normatividade de um tempo de progresso em direcao & cura. A a-temporalidade (Zeitlosigkeit) deve ser entendida nao tanto como uma qualidade do inconsciente, mas como a condi¢ao de qualificagao da observacio dos processos psfquicos. E a exigéncia de se considerar como per- sistente uma estabilidade da repetigao, assim como de se garantir uma negatividade da construco, deveria restringir 0 uso do termo “pro- cesso” apenas para 0 progresso da regressao. O arquiteto nao constréi em primeiro lugar por meio de desenhos em negativo? E portanto pela medida dos destinos geoldgicos da terra que se forma essa visao psicanalitica sobre 0 psiquico humano. Apenas tal visdo — nesse'sentido Ubersicht; visio para além ao mesmo tempo que visdo de perto* — pode imaginar o primitivo do humano e, no trata- mento, constituir 0 ponto de fuga da regress&o transferencial. Parece que a atengao consegue perceber os mais refinados movimentos da 2. P. Lacoste, “Destins de la transmission”. In: S. Freud, Vue d’ensemble des névroses de transfert (trad. de P. Lacoste) novas tradugdes. Paris: Gallimard, 1986. V. também L. B. Rivto, L’ascendant de Darwin sur Freud (prefécio de P. Lacoste, “Les deux humilations”). Paris: Gallimard, col. “Connaissance de l'inconscient”, 1992, assim como P. Lacoste, “Sur les théories freudiennes de évolution”, Les évolutions, phylogenese de l'individuation. Colloque de la Revue internationale de psychopathologie. Paris: Presses universitaires de France, 1994. 3. Segundo J.-M. Rey, Des mots 4 l’oeuvre. Paris: Aubier- Montaigne, 1979, ‘Scanned with CamScanner

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