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arquivo_vilém_flusser_sao_paulo “ADD forte, — {0/as ARTIFICIO, ARTEFATO, ARTIMANHA *la. Palestra:0 Homem enquanto Artificio. © titulo das tres palestras que me proponho a fazer no quadro desta Bienal foi escolhido por diversas razdes que se devem tornar evidentes no curso das palestras. Mas preciso confes sar uma das razdes logo. Os tres termos do titulo contém a pala— e conferem a tal palavra significando "nao-aureatico", des-sacralizam a palavra. Pois isto justifica que eu profira mi- nhas paletras no quadro de um evento de arte, e que o faca no qua dro da atualidade. © termo "artiffcio", (o qual faz parte do titulo desta primeira palestra), @ definido, por meu_dicionario, da seguin te maneira: "arte,jeito, destreza, astticia, maquina, obra. Tal de-_ finigao nao pode ser considerada triunfo da distingao e clareza. Por qué ser4 meu dicionario tao inepto? Ja que a etimologia permi: te definir 9 termo satisfatoriamente: "artiiicio"= “artem facere" fazer com técnica? Sugiro que a explicagao da ineptidao do meu di-~ cionario est& na ambiguidade da nossa atitude face ao fazer tec- nico, isto é, ao fazer humano. Somos ambiguos com relagao 4 cultu ra, seja ela tomada enguanto conjunto de artificios, seja tomada enquanto artificio, cujo propésito é o de encobrir o fato da morte. Eis a razdo porque a definigao de "artiffcio" oscila entre o belo e 0 feio, o bome o mau, 0 verdadeiro e o falso. Pois proponho que perambulemos, nestas tres palestras, em tal terreno movedigo. Para tanto, oporei a "artificio" o termo “artefato", (de significado po sitivo), e 0 termo “artimanha", (de significado negativo), para de vlimitar'o terreno. Nao nutro a esperanga de poder “dest-arte" supe rar a ambiguidade de todo fazer humano. Mas espero, isto sim, po-T der inserir tal ambiguidade no contexto da revolugao cultural pe- la qual estamos passando. “artiffcio" 6 0 jeito pelo qual homens fazem. £ isto que distingue o homem de provavelmente todos os demais bichos. Por exemplo da aranha. Ao tecer sua teia, a aranha segue método que‘ nao se modificou no decorrer dos iiltimos milhées de anos. Segue e- la método geneticamente determinado. Quanto a nds, nossos métodos i mudam. Sao técnicas. Fazer, no nosso caso, 6 agir sobre o mundo | objetivo para altera-lo. Ir contra o mundo, ser sujeito dos obje-' tos. Pois os objetos resistem. Obrigam-nos a procurarmos sempre no vos caminhos, (meta-odds= seguindo caminho) , mundo_adentro. A nos sa técnica nao é determinada geneticamente, mas o @ pela resistén- | cia que o mundo objetivo nos oferece. Somos bichos artifices, homi, nes fabri. Bichos a mudar de técnica, a fazer artif{cios. Mas isto nao basta para construirmos uma antropologi a, Nao basta dizer que somos aranhas que mudam constantemente de método ao tecermos teias. Nao basta, porque ha um complexo feet back ente o nosso método de alterar objetos, (nossa tecnica) , objetos alterados, (nossas obras), e nos mesmos, (o artificty o se I jeito). Cada qual destes tres fatores determina os demais, e é por } eles determinado. A técnica altera o objeto, o objeto alterado al- tera a técnica, a técnica alterada altera o sujeito, e o sujeito alterado altera a técnica. Para construirmos uma antropologia, é preciso dizer que j& eramos aranhas, agora somos outra coisa, para virar outra coisa ainda. 7 arquivo_vilém_flusser_sao_paulo Ser homem, (artifice), @ alterar os objetos com técni-~ cas sempre outras, afim_de_altera: a 8i_préprio. Por certo: ‘nos- Sa meta primeira, ao avangarmos contra o mundo, é a de fazer com que o mundo seja como deve ser, e deixe de ser como era. Mas tal me ta primeira rebate contra nés, e isto torna evidente a nossa meta — derradeira: avangamos contra 0 mundo, afi fazermos com gue seja mos como devemos ser, e deixemos de ser cofo eramos. O propdsito de “todas as nossas técnicas, de todos os nossos ‘artificios, o propési- to de todas ag nossas obras, é o da auto-alteracao, o de mudarmos. © derradeiro artiffcio do homem € o proprio homem. Por isto, a his Cae ee re are ie oe eee aecPoe ‘técnicas, e a historia dashobres, nao passam de excrescén clas, de epiciclos que assentam sobre a histdria do homem. Segundo a tradi¢io judeo-crist&, a qual fundamenta di- reta ou indiretamente todas as nossas antropologias, a histéria hu- mana, tal transformagio permanente do homem por si préprio, esta co mo que ancorada sobre um niicleo duro e permanente, inalterado pelo processo da alteracao permanente. Haveria, no homem, um ponto cen- tral, (alma, espirito, identidade, eu), o qual transcenderia todos os artificios, e a partir do qual todos os artificios seriam execu- tadas. Tal ponto transcendental, (a subjetividade pura), seria pre- ‘cisamente a especifidade humana. Por varias razGes convergentes a tradi¢io judeo-crista nado mais pode ser mantida. Falarei em algumas de tais raz6es convergentes, (por exemplo das fornecidas pela teoria das decisdes, da dos atos, da dos jogos, e pela cibernética), um pouco mais tarde. E mencionarei, de Passagem, es razoes provindas da psicanalise e da neurofisiologia. © que importa aqui é discutir as razées pelas quais a tradi¢ao ju- deo-crista deve ser abandonada sob a luz da analise existencial e fenomenolégica da subjetividade. "Ser sujeito" nao designa posigao qualquer, nao designa ponto duro qualquer que esteja posicionado no tempo ou no espago. Designa, isto sim, a negagao de todas as _posi- GSes, a negacao de todos os objetos. Subjetividade é a negagao da Objetividade. Ser sujeito é nao ser objeto, 6 um nao-ser. Se sou su wjeito, 0 sou em reiagao a um objeto qile € negado, se sou "eu", & que Bou chamado de "tu", se sou espirito, que algo em mim se reflete. A tradicado judeo-crista procura objetivar u subjetividade, transfor- mar em posigao a negagao, e destarde encobrir a vacuidade abismal da “ck-sistencia", do estar fora. Abandonada a reificagao do "eu", o processo progressi- vo de auto-alteracao_do homem por si préprio adquire o seu pleno impacto. Impoe a visdo de um campo relacional, egpécie de rede, cu jos fios, quais fibras éticas, carregam a intensao subjetiva de ne- gar o mundo dos objetos, intengao esta que rebate sobre os cruzamen tos dos fios para ata-los e desaté-los. 0 eu, (espirito, alma, iden tidade) , seria, em tal modelo, um no na rede relacional, o qual constantemente muda. Pois tal modelo,(tal metafora), permite que o processo permanente de auto-alteragao nao € processo infinito. Que @ processo que necessariamente se esgota. Na medida em que as técni- cas do fazer se aperfeicoam, na medida em que os objetos alterados, as obras, rebatem sobre a rede com intensidade crescente, esta vai se tornando mais rigida, menos alteravel. Até que se alcance situa- “qual o homem enquanto derradeiro artificio do homem passa..a obra_perfeita". Tal situ: seria’6 fim da histdria humana, a fagao, (xealizagao, artificializagao), total do sujeito. N3o estou afirmando que a robotizacao e as influéncias artificiais sejam desde ja sintomas de termos alcancado tal ponto. Mas estou afirmando, isto sim, que técnicas avangadas como robdtica e a informatica permitem vislumbrar, desde ja, a derradeira artifi- Gializagao do homem. A robética repousa sobre determinada teoria dos atos. Abandonando o mito de um niicleo duro no sujeito ativo, os atos humanos podem ser decompostos em elementos claros e distintos, em “actomas". E tais elementos destarde calculados podem ser recom- putados para construirem atos. Os robés sao artificios que agem gra gas_a tal técnica calculadora ¢¢ Or. = arquivo_vilém_flusser_sao_paulo E _rebatem sobre © sujeito.que.elaborou tal técnica, e fazem com ‘que este aja 0 um robd, isto €: nao mais empiricaménte, mas Bagunde—a-teoria dos atos. A informatica, por sua vez, repousa Sobre dctexrminada teorla das decisdes, segundo a qual as deci- sdes humanas podem ser decompostas em "bits", em elementos cla- ros e distintos. Abandonado o mito de um niicleo duro no sujeito decididor, as decisdes podem ser calculadas em elementos, e re- computadas. As inteligéncias artificiais sao artificioas que de cidem gragas a técnica, e rebatem o sujeit qué-etaborou~ teoria. Fazem tom que este decida como uma inteligencia artifi- Sat, sto Sh aao bate enpfrtcamenter mae sequado s teoreee ie ‘tarte o ato € a décisao, tomados Outrora por “manifestagoes do nicleo duro", passam a artificios, a artificializacao do homem Por certo: ainda é possivel distinguirmos vagamen te entre robé e agente humano, e, mais vagamente ainda, entre o ‘bra de robé e obra humana. Por certo: ainda & possivel distin guirmos vagamente entre inteligéncia artificial e humana, e, mais vagamente ainda, entre decisdes tomadas por inteligéncias artificiais e humanas. Mas podemos vislumbrar situacao na qual afirmar dos robés e das inteligéncias artificiais que sao obje- tos, e dos homens que sao sujeitos, passara_a ser tolice, BE — quando a teoria dos jogos tiver elaborado técnica comparavel robdtica, (isto é: quando as relacoes inter-humanas se tiverem tecnicalizado) , e quando a cibernética tiver evoluido a ponto de substituir o pensamento e o engajamento politico por pensa- mento e comportamento relacional, (isto é: quando o governo da sociedade tiver sido relegado a aparelhos, tal teimosia de que rer distinguir entre objetos e sujeitos tera sossegado. A der- radeira realizagao do sujeito, a derradeira artificializacao do homem por si proprio, prevista por numerosas utopias, e an- tecipada nas experiencias misticas da fusao do sujeito como objeto, esta se tornando técnicamente viavel. O que nao nos inspira, necessariamente, euforia. A nossa pouca satisfagao como fim da histéria humana que se aproxima, (endgame), a nossa decep¢ao com o ho~ mem enquanto artificio aperfeicoads, tem a ver, ‘creio, com a ‘Gontradigao entre “deliberacao" e "espontaneidade", (ou, como se dizia nao h4 muito tempo: entre “inautenticidade" e “auten- ticidade"). A vida artificial do futuro pést-histérico, os a~ ~ tos artificiais, e a fortiori os sentimentos, OS desejos e os sonhos artificiais, nos repugna. Por ser tudo isto tao anti-es pontaneo, tao delibe}.ado, (tao calculado e computado). E Tal- _Fepugnancia nossa revela a nossa_ambiguidade com relacio “ao “fazer -De. Um. lado queremos_*arte", da qual sabemog ser ‘ela oposta A espontaneidade, mas de outro lado querenos “inspi- Fagao espontanea" como fonte do £ €. Oscilamos entre ‘classitismo e romantismo. No entanto: se interpretarmos o termo "deliberagao" como significando decisao fundada em conhecimento te6rico, € 0 termo "espontaneidade" como significando empirismo, @ nossa’ decep¢ao com o homem enquanto artificio aperfeicoado po dera ser superada. ~ Se traduzirmos "vida artificial" por vida que se tornou conciente da sua prépria estrutura, (vida fundada em co- nhecimento tedricos), perderemos a repugnancia que nos causa a artificialidade. Se “atos artificiais" forem interpretados como atos auto-concientes, “decisces artificiais" como decisées toma das em plena conciéncia da causa, "sentimentos artificiais" co- mo sentimentos passados pelo crivo da auto-critica, "desejos ar tificiais" como desejos orientados pelo conhecimento, e "Ssonhos artificiais" como sonhos despertos, todo romantismo nos aparece ra como primitivismo. E no cairemos no erro de acreditar que a vida artificial seria vida de um racionalismo seco. Porque em tal situagdo a prépria razao teria se artificializado, isto é tornado Conciente da estrutura pré e transracional sobre a qual repousa. Em suma: basta refletir um pouco sobre a contradi~ arquivo_vilém_flusser_sao_paulo gio entre "deliberagio" e “espontaneidade", para constatar que a vida_espontanea, (a da inspiragao, a do palpite genial, a da in- tuigio © do impulso), nao passa dé vida imperfeitanenté delibera a. - © que nos permite, finalmente, definirmos “arti f{- cio" um pouco melhor que meu dicionario: o fermo significa ae zor técnico", no sentido de um fazer nao espontaneo, mas. = E o termo "homem enquanto artificio" significa agora hoe mem que vive deliberadamente. A histdria humana seria, vista des te Gngulo, processo gracas ao qual o homem vai gradualmente subs tituindo intuigao empirica por conhecimento teérico, ao elaborar sempre técnicas novas em sua luta contra o mundo objetivo. E o estagio final de tal processo, (estagio este atualmente previs{- vel, por tecnicamente viavel), seria homem inteiramente artifici alizado, liberado de toda espontaneidade, e livre para delibe~ rar sua vida. Em iltima analise pois "homem enquanto artificio" significa homem livre. iy, A palavra "deliberagao" @ derivada da palavra "1li- berdade", tanto quanto a palavra “artificio" é derivada da pala~ vra "arte". Se a nossa reflexao | nos levou a estabelecermos ponte entre artificio e deliberacao, é que nos levou a esbarrarmos con tra a intima relagao entre arte e liberdade. A arte e a técnica, (os déis termos sao sinénimos), sao reveladas enquanto os jeitos ou tois termes 880 sindninos)_ 340 reveladas enquanto osieitos tura:de-que-o-homense-Iibera ao fazer arte? e com que finalida | de, (para fazer o que), o homem se libera? Sao estas as questoes que pairam por cima do estagio final da histéria humana, por ci- | ma do homem enquanto artificio realizado. facil responder 4 primeira pergunta. A arte, (téc nica), libera (contra os quais avan¢ga), no mundo ambiente, quan- to dos objetos da sua prépria condi¢ao humana, (das suas intui- goes, dos seus palpites, dos seus impulsos). A arte, (técnica), libera o homem da necessidade de alterar os objetos afim de alte- rar-se. Libera o homem da necessidade do trabalho. Tal resposta @ £&cil, porque as novas técnicas, (a robotica e a informatica) , a fornecem. O homem enquanto artificio realizado sera "desemprega do", livre da pra trabalho sobre objetos exteriores so> bee’ 05 cbyetes extorieres © aebie i maior Fors-tete tuptice ave nao Mais sera gujeito dos objetos. Nem sujeita a objetos. O homen enquanto artificio realizado tera se liberado de sua subjetivida- de. N3o mais ser& ele homem no significado histérico do termo, se ra outro. Muito mais diffcil € a resposta 4 segunda pergunta: para que seré livre o homem? Que tipo de "ek-sisténcia" sera esta, quando a negagao dos objetos, a subjetividade, nao mais sera o ca Que tipo de conciéncia sera esta, quando a dialéctica da con ciéncta, ("se encontro o mundo perco-ne, © se me encontro perco o mundo"), tera sido superada? Sera a vida artificial ainda vida hu mana, _mais_radicalmente: sera ainda a Fido ne aveneneareiee Fesponder a tais perguntas. Porque, para podermos responder, deve riamos desde j4 possuir a conciéncia do homem enquanto artificio realizado, e nao a possuimos. No entanto: creio que podemos, desde 34, vislumbrar vagamente alguns dos seus aspectos. Abandonado o mito do "eu", (abandonada a tentativa de reificar a subjetividade), torna-se dbvio o que sempre foi in- tuido: sou sujeito, nao apenas por negar objetos, mas.igualmente por_fazé-lo juato com outros. Sou sujeito, nao apenas por contra- digo, mas igualmente por dialogo. Sou sujeito, nao apenas por discorrer sobre objetos, mas igualmente, e sobretudo, porque sou chamado de "tu" por outros. Sou "eu" em relagao a um "tu", o qual @ um "eu" em relagao comigo. Abandonado o mito do "eu", sera a re lagao intersubjetiva que passara a ser vivenciada como sendo con- creta. Superada a subjetividade, a existéncia passara a ser inter subjetiva. Seremos liberados da negagao, do estar aqui contra, e arquivo_vilém_flusser_sao_paulo iberados para o dialogo, o estar aqui com os outros. Estamos elaborando desde (nada técnica, (a telematica), que visa a deliberacao de tal existéncia intersub- jetiva. A telematica € técnica fundada sobre conhecimentos forneci dos pela psicanalise e pela neuro-fisiologia. A psicanalise, (e em geral, a_psicologia da profundidade) , revela_o_fundo_transsubie tivo, intersubjetivo do "eu". A neuro-fisiologia revela ser o cére bro-sistema cibernético, no qual informagoes provindas de fora, so bretudo provindas de outros cérebros), e algumas poucas informagoes geneticamente, (trans-subjectivamente) , herdadas S40 armazenadas e processadas, para serem efitidas..A telematicas visa, em Gltima a- nalise, tranSformar a sociedade em Super=cérebro-intersubjetivo. Assune ela o desnascaranento do eu", perpetrado pela psieanalis e pela neuro-fisiologia, para deliberar vida intersubjetiva. © que permite, vagamente, respondermos 4 pergunta: para que seremos livres? Para, em dialogo com os outros, elaborar- mos informagoes sempre novas, e infermacoes imateriais, nao negado Fase _objetos, As imagens “dialogi' nte sintétizadas em terminais 580 disto exemplo precoce. 0 homem enquanto artificio realizado se ra elo em didlogo produtor de arte pura. Pois tais informagoes ima teriais sintetizadas, tal arte pura criada deliberadamente por didlogo, nao s_sera_técnica_que_visa_alterar_o_mundo_objetivo afim de alterar.o homem. Sera técnica-que—visa_dar—sentid intersubjetiva. 0 homem enquanto artificio nao mais sera artifice, mas artista puro, porque estara_engajado,—junto_com_geus outros, a dar-significado sempre novo ao ab: do da vida. Para que seremos* livres? Para darmos significado sempre novo as noss: 5 - Procurarei elaborar, um pouco mais detalhadamente , esta minha resposta pouco satisfatéria 4 pergunta fundamental: pa- xa que a liberdade? Mas nao posso encerrar esta primeira palestra, ao Simplesmente relegar o argumento as palestras seguintes. Permi- tam, pois, que avance um argumento pseudo-religioso. Afirmei nao mais ser sustentavel a tradi¢ao judeo-crista na sua tentativa mis tificadora de reificar a subjetividade. 0 homem enquanto artificio que se construiu a si préprio e destarte superou sua subjetividade a desmente. No entanto: & j.rfeitamente poss{vel cue tal desmisti- ficagao do judeo-cristianismo nos leve a descobrirmos o que pode ser a mensagem fundamental das religides que fundamentam a nossa cultura. © abandono da reificagao da subjetividade, (pela ro- bética, pela informafica, pela telematica, por outras técnicas a surgirem), revela que eu sou o outro do outro. Que "eu" e “tu" so fungoes de relagad concreta da intersubjetividade. Pois sera isto precisamente o ensinamento do judeo-cristianismo? Que eu_sou 0 ou- tro do Inteiramente Outro, e que meus outros nao sao senado "ima~ gens" do Inteiramente Outro? Que_nao ha outro meio para eu vislun- brar o Inteiramente Qutro, que nao ha _ outro meio para eu realizar che._a nao ser_através o “anor ao proximo” 4,0 aialogo cons meus. Outros? Possivelmente, a deliberagao da intersubjetividade pelas “técnicas da telematizacao, afim de dar sempre novo sentido a vida, nao passe de formulagao profana dos Mandamentos? E o didlogo produ tor de arte pura nao passa de formulacao profana de prece? Solto este farrapo de pensamento pseudo ou para-religioso para que seja ruminado. Sugeri, nesta palestra, ser a histéria processo de artificializagao da vida, processo este que esta se aproximando de sua meta. Que a atual revolugao informatica nao passa de sintoma precoce do fim da histéria que est4 se aproximando. Em suma: que o homem enquanto artificio esta prestes a realizar-se. Tuba mirum spargit sonum, e seremos todos mudados. Tal profecia apocaliptica merece ser elaborada, antes de ser falsificada, como o & toda pro- arquivo_vilém_flusser_sao_paulo fecia, £ o que procurarei fazer nas palestras seguintes, e espero que os senhores me ajudem a elaborar e a falsificar a profecia. Espero que dialogaremos. arquivo_vilém_flusser_sao_paulo ARTIFICIO, ARTEFATO, ARTIMANHA (18a, Bienal de S.Paulo) vilém Flusser Palestra: A vida enquanto artefato. A ontologia tradicional procura distinguir entre o "dado" e o "fato", (ou 0 "feito"). Ou. como se dizia outrora, entre "natureza" e "cultura". Com efeito, quando o homem moderno, isto &: o burgués que saiu vitorioso da revolugao do Renascimento, olhava em torno de si para orientar-se entre os objetos que o cercavam, parecia-lhe que havia dois tipos de objeto 14 fora. Objetos como o sao os astros, as montanhas, os mares, os rios, as plantas, os animais, objetos estes que lhe eram dados, (doados), nao se sabe bem por quem, como, e com que finalidade. E objetos como o sao casas, portos do mar, navios, livros, quadros, objetos estes que foram feitos por seus predecessores, os artifices do passado, o foram com determinadas técnicas, e cuja finalidade era a de abrigar os homens contra o primeiro tipo de objetos. 0 conjunto do primeiro tipo de objetos, © conjunto dos dados, er: a "naturez aos propésitos hi 105). O Conjunto do segundo tipo de objetos, o conjunto dos feitos, era chamado a "cultura", e era possivel habité- rlo.e utiliza-lo. x tizar? Tal ontologia burguesa tem o artesdo burgues por centro. £ ele quer. estuda os dados, e os transforma em feitos, (em artefatos). E ele para quem a natureza foi dada com a finalidade de ser transformada em cultura. As ciéncias da natureza, com suas descobertas de dados previamente ignorados, (América, luas de Jipiter), e das relagdes entre os dados previamente ignorados), (leis astronémicas e mecd— nicas), tém por finalidade permitir ao artesdo burgués elaborar técnicas para a transformagio de regides sempre mais vastas e sempre mais profundas da natureza em artefatos. 0 artesdo burgués enquanto ponto central do mundo objetivo esta engajado contra a natureza e em favor da cultura, e sua meta, (a meta do progresso), 6 a trans- formagao progressiva, linear, de dados em artefatos. arquivo_vilém_flusser_sao_paulo A Idade Média, para a qual todos os objetos eram feitos, (creaturas), divinos, nao compartilhava tal ontologia, nem a compartilhava a Idade classica, muito embora o burgués artesao renascentista ter acreditado ser continuador do artes&o grego, articulado por Aristé- teles e os alexandrinos.Muito menos compartilham tal ontologia as sociedades ditas primitivas, para as quais os objetos todos sao seres animados, (por esp{ritos, por deuses), tanto quanto 0 sao os homens. Por mais que isto possa nos surpreender, a distingao dado e feito, entre natureza e cultura, é distincao ideolégica’ tre cente, Distingao que nao mais pode ser mantida. M@ltiplas sdo as razdes que nos obrigam a abandona-la. Enumerarei algumas entre elas. Ha vasta zona cinzenta entre os dados e os feitos que nZo permite distinguirmos entre ambos: vaca leiteira, floresta plantada, rio canalizado, a Lua enquanto plataforma da NASA, seria dado ou feito? E tal zona cinzenta tem uma contrapartida: sapato gasto, rufna de casa, livro queimado, ainda é feito ou ja é dado? E que o otimismo burgués com seu pensamento linearmente progressivo esquece ou esconde, que todo feito vai surgindo gradualmente do dado para decompor-se em dado novamente, que a cultura vai gradual- mente da natureza para ser decomposta e esquecida. Que se trata, na produgao de artefatos, nao de linha que parte da natureza er. demanda de cultura sempre crescente, mas de circulo que se inicia na natureza, passa pela regido dos semi-manufaturados, da cultura e do lixo, para voltar para a natureza novamente. A ontologia bur- ‘Gaesa, con seu engajamento otimista em cultur 7 deve ser abandonaéa, por ignorar o segundo principio da termodinamica, por ignorar o esquecimento, por ignorar a morte. A segunda raz&o que nos obriga a abandonar a ontologia burguesa ten a ver com 0 otimismo burgués quanto 4 cultura. 0 conjunto dos arte- fatos nao é habitavel e utiliz4vel, no sentido no qual os burgueses © acreditavam. Pelo contrrio: os feitos determinam e oprimem o homent mais que os dados, a condigao cultural @ mais constrangedora gue a8~condigées impostas pela hatureza. 0 imposto de Fenda é mais ‘Yerrivel que o tigre, e as cAmaras de gis mais mortiferas que enchentes. £ que os feitos por uns sao os dados dos outros. 0 auto- rdvel € © feito de certos homens, mas virou um dos dados da vida atual, espécie de segunda natureza. Con efeit a natureza de pri- meira ordem, (a tal natureza da ontologia burguesa), recuou atual- mente para 0 horizonte do interesse existencial, (ndo a encontramos arquivo_vilém_flusser_sao_paulo em parte nenhuma, nem sequer na floresta amazonica ou nas profun- ga cultura virada natureza de segunda ordem, Nao é mais possivel enga- | didades do espago), e o que nos cerca, oprime e condiciona | jarmo-nos contra a natureza e em favor da cultura: agora é preciso que nos engajemos contra a cultura para modi fica-la. a A terceira razdo, (e a ltima a ser discutida neste ponto), que nos obriga a abandonar a ontologia burguesa tem a ver com o conceito burgués do "dado". Tal conceito comega, ha varios decénios, a reve- lar-se tao problematico que nao mais funciona. Serdo as particulas nucleares por nés descobertas efetivamente “dados", ou serao elas "feitos" dos nossos instrumentos observadores e das teorias que sustentam tais instrumentos? Serdo as leis da natureza que vamos descobrindo efetivamente aescobertas que fazemos por entre os "dados", ou serdo elas projegdes nossas? Sera por exemplo a matemacidade da natureza um "dado" ou um "feito"? Em suma: sera a natureza da on- tologia burguesa em Gltima andlise um feito da ideologia burguesa? Sera a natureza das cigncias naturais projecio ideolégica, tanto quanto era a Criag&o projegao da ideologia mondstica, o Cosmos pro- jeg&o da ideologia helenistica, e o Mundo cheio de deuses projegao de ideologias ditas primitivas? Simples justificagao ideolégica, (racionalizagao), do fazer burgués, do fazer artefatos? Nova ontologia comega a ser construida, penosamente, sobre os escor bros da burguesa. E um dos terrenos no qual podemos observar de maneira mais surpreendente tal construg3o revolucionaria é 0 chamadc lo "Gentech" na América, e "génie génétique" na Franga. Para diz prosaicamente: trata-se de manipular as moléculas de determinados Acidos, com a finalidade de produzir organismos. E futuramente, (e parcialmente desde j4), sintetizar tais moléculas complexas a par- tir de moléculas mais simples. Mas tal formulagao prosdica perde o impacto do evento. Trata-se, no fundo, de técnica que visa artefa- tos vivos, e, em altima andlise, seres animados artificiais, inclusiv. super-homens. No estagio atual e incipiente de tal técnica, (produ- tora de virus e bactérias artificiais), o que empolga nao € tanto o seu aspecto pratico, quanto o seu aspecto filoséfico e prenhe de desenvolvimentos futuros. arquivo_vilém_flusser_sao_paulo 4. Fazer vida artificial é atividade gue se passa em nivel de conscién liferente do nivel que leva a fazer artefatos s_inanimados. Nao se trata mais, como no caso dos artefatos precedentes, dé impor sua propria subjetividade sobre objetos que cercam o sujeito, (atitude esta que discuti na primeira palestra). Trata-se agora de interferir naguele terreno cinzento entre o mundo objetivo eo mundo oposto aos cla objetos que é o terreno dos organismos anim: 98+ Uma das caracteris ticas da ontologia burguesa acima discutida é seu desinteresse por tal terreno cinzento. Burgueses sao gente que nao tem experiéncia vital com animais e plantas. A nova técnica, e as teorias que a tentam, leva tal terreno para o centro de interesse futuro Por certo: para as ontologias anteriores 4 moderna o mundo animaéc era o verdadeiro problema. A diferenga fundamental entre a ontolocie moderna e a classica é, precisamente, que para os modernos o mundo objetivo € conjunto inanimado, e para os classicos é ele animado, “espécie de animal gigantesco. E para as ontologias ditas primitivas todos osobjetos. so-animados. No entanto: para a nova ontologia que esta surgindo da técnica genética o problema do mundo animado se pode de maneira radicalmente nova. Para agarrarmos tal diferenga, © termo "informagao" pode servir de chave. & uma ontologia infor- Gtica que est& emergindo. © universo dos organismos, (inclusive do organismo humano), nao rai: & visto enquantc conjunto de objetos individuais, (de plantas e ce animais), que se relacionam entre si, nao como objetos inertes, nes como intencionalidades em conflito. Tal visdo darwiniana @ agora relegada para o fundo da cena. 0 universo dos organismos passa a se visto enquanto correnteza de informagées—genéticas, enquanto rio composto de gotas informativas, rio este que se originou ha 2.000, milndes de anos no planeta Terra, envolve o planeta na forma da biosfera, rio este que vai secar em futuro distante mas previsivel, e do qual emergem os organismos para remergulharem nele nismos individuais, (o aspecto objetivo da vida), so agora vistos enquanto “fenotipos", enquanto emergéncias fenomenais da correntéza da vida, e 0 interesse vai estrutura mesma da correnteza vital, sobre os que vai _sendo manipulado técnicamente. Sov tal visdo trans-individual, (trans-objetiva e trans-subjetiva), vida se apresenta enquanto jogo com pedrinhas, (moléculas comple- xasl., dopoyeste ong ohedece 5 estratéoia da acasa s da_necessi dade. ere arquivo_vilém_flusser_sao_paulo As moléculas complexas, (o repertério do jogo da vida), surgiram por um acaso extremamente pouco provavel, mas necessariamente ocor- ido, dado © nimero colossal das moléculas simples das quais surgiren, € dado o tempo colossal durante o qual tais moléculas simples se combinavam e recombinavam ao acaso. Uma vez estabelecidas tais mo: culas, estas passaram a se combinarem e recombinarem entre si ao acaso, acaso este melhor chamado de erro, de acidente. A tendéncia fundamental da correnteza da vida é a de preservar a combinagao ori- gindria, a copiar tal combinagao de gota em gota. Tal tendéncia & explicdvel quimicamente e fisicamente, e nao diverge da observavel no mundo inanimado, por exemplo no dos cristais, que se copiam ao se multiplicaren. Mas ocorren erros no process copiador, acidentes que Jado o niimero de gotas que se combinam, e dado o ombinagoes, tais acidentes levam a combi- S complexas ainda, a “espécies novas" como se dizia outrora. © que impressiona sobretudo em tal visdo da vida sao dois aspectos. © primeiro é a estipida automaticidade do processo vital, e sua liri tagdo no tempo e no espago. Estamos longe do otimismo burgues, cuja Gltima articulagao é o darwinismo. 0 segundo aspecto que impressiona é a emergéncia de acidentes extremamente pouco provaveis, (embora__ necessarios), que levam a informagdes tao complexas quanto o é o for “migueiro, os octépoda, ou o cérebro humano. ambos estes aspectos for fam um curioso desafio: substituir a estupidez automatica por delibe ragao inteligente, e provocar deliberadamente os acidentes informativ Esta a meta da técnica genética, a qual portanto nao manipula objetcs a fim de transforma-los em artefatos, mas manipula um jogo a fim de provockr situagéas pouco provaveis. No se trata mais, na técnica genética, de um "Homo faber", mas de um "Homo ludens", E a ontologie _que sustenta tal atividade nao mais é.a.que distingue entre "dado" "feito", (entre natureza e cultura), (ndo se trata mais de discutir se um virus aritificial é natural ou cultural), mas agora se trata de ontologia que distingue entre o espontaneo e o deliberado. Tratarei na terceira palestra da base informatica de tal nova ontolc gia. 0 que se impde no presente contexto é refletirmos sobre a mute gGo do significado de "arte" e de "técnica" que esta surgindo 4 tone. "arte" nao mais significa agora significa a técnica de manipularmos técnica de manipularmos objetos, mas arquivo_vilém_flusser_sao_paulo +6. fica "estratégia". (Tal significado novo de "arte" j4 foi tocado de leve Wa primeira palestra, quando falet em imagens aialogicamente sintetizadas em terminais de computadores). Em outros termo: "artista" nao mais € artesao que imprime informagdes sobre objetos, (pedras), telas, palavras, sons musicais ou odores). "Artista" do- ravante & jogador que visa situacdes improvaveis no jogo no qual_ esta engajado. 0 que mostra o quanto a disting&o moderna entre “arte’ e "técnica", e mais geralmente entre "arte" e “ciéncia", alias des sConhecida antes da Idade Moderna, nao mais & sustentével. Indubita velmente, em futuro nao muito distante, as artes passarao a ser consideradas ciéncias, e a ciéncia uma das artes. Formularei o aqui pretendido de um Angulo diferente. 0 neolitico, esta revolugao cultural fundamental que nos marcou até um passado recente, se deve 4s técnicas que transformam seres animados, (plan- tas, animais e homens), em artefatos, (em trigo, em vaca leiteira, em escravo). Trata-se de técnicas que salientam o aspecto objetiva do ser animado, e alteram'tal aspecto. A nova revolugao cultural se deve a técnicas que manipulam, (entre outras coisas), as regras do jogo do qual os seres animados, (plantas, animais e homens), sao situagdes fenomenalizadas. Sao técnicas que ultrapassam o aspecto fenorenal do outrora chamado "real", para penetrarem o campo rela~ “cional concreto sobre o qual os fendmenos repousam. Por isto “arte” ‘e “ciéncia" deixar de ser atividades que estudam e manipulam fend- menos, e passam a ser atividades que mergulham deliberadamente no campo relacional para brincarem com suas virtualidades. Arte, téc- nica e ciéncia em geral se “imaterializam", (veja-se a recente exposigao do Centre Pompidou com este nome), nfo apenas porque o termo "matéria" comega a evaporar-se. "Imaterializam-se" sobretudo, porgue “artefato" nJo mais significa "obra", e passa a significar "estratégia Ge jogo". "A vida enquanto artefato" nao significa pois "objetos animados artificiais", mas significa "vida. deliberadamente jogada". © seu paralelo mais préximo no passado classico nao é pois” Pygmalion, mas "ars vivendi et ars morriendi". - Aparentemente, a vida, tal qual foi discutida nesta palestra, a saber: no seu significado biolégico, nada tem a ver como seu significado pretendido no tema desta Bienal, "O homem e a vida". arquivo_vilém_flusser_sao_paulo No entanto, sugiro que artefatos animados contribuirdo ainda mais fortemente para a artificializacao da vida humana futura que os artificios inaminados discutidos na primeira palestra, como 0 sio as inteligéncias artificiais e os robés. Pela razio seguinte: 0s artificios inaminados sio resultado de cAlculos e computagdes da suposta subjetividade, (por exemplo de atos, de decisdes, de jui- zos), e os artefatos animados sao resultado de cAlculos e computa gSes da organizag&o biolégica que supostamente sustenta tal subje tividade, (por exemplo da informagao genética da espécie humana). De modo que a nova conciéncia calculadora e computadora, a qual transcende tanto as categorias "dado" e "feito", quando as catego rias "objeto" e "sujeito", vai transformando a vida humana técnie camente de dois lados outrora tidos por opostos. Pelos artifficios jai ela artificializando, (transformando em berada), a subjetividade humana, e pelos artefato: ‘Siw artificializando, (transformando em arte), a vida biolégica. do homen- Sustentei, na primeira palestra, que a artificilaizagSo dos pro- cessos mentais equivale 4 liberagao do homem para elaboracao in- tersubjetiva de sempre novos significados da vida. Procurarei sus tentar outro quanto a artificializagao dos processos bildgicos hu manos. Podemos observar desde ja, e muito antes do desenvolvimento pratico do "génie genétique", como tal liberagao se efetua. Os mé- todos da contracepgio, a inseminagao artificial, e um pouco mais tarde a incubag&o “in vitro", sio técnicas que estao, desde j4 , libertando a mulher para 0 gozo da sua sexualidade. 0 ato sexual estA se aproximando, desde j4, de um estAgio, no qual passaraé a ser ele arte, técnica pura, jogo puro. Jogo este no qual os parcei, ros se realizam intersubjetivamente. A fantasia se recusa a imagi- nar © jogo amoroso, ("ars amatoria"), quando o "génie génétique" , estiver apto a produzir artefatos libidinosos. 0 "amor" tera entéo adquirido significado novo, e, conforme sugeri na Gltima palestra, significado para-religioso. © outro lado do amor, no entanto, é a morte. A visao anterior do universo dos seres animados assumia a morte dos organismos indivi- duais como um dado. A nova visao vislumbra correnteza biolégica relativamente imortal: Relativamente 4 duragZo da vida humana. A duragao da correnteza vital @ mesuravel em milhares de milhdes de an anos, ( © sperma e os Svulos por exemplo sao imortais relativamen- te ao corpo humano). A 1 tal vis&o, como acidente nao implica que a técnica genética promete a imortalidade eterna, arquivo_vilém_flusser_sao_paulo 28. (no significado no qual tal termo vai sendo utilizado nos discur- sos m{ticos do passado). Mesmo se tal técnica conseguir transferir mem6rias de corpos envelhecidos para corpos récem-nascidos, isto nao ser& a imortalidade em tal significado. Por duas razdes distin tas: Uma & que a correnteza da vida, tomada como um todo, & tempo- xalmente limitada, a segunda é que a imortalidade nao é necessaria mente desejavel. No entanto: Isto implica que a técnica genética promete transformar a morte,(e no apenas o morrer), em arte deli- berada. Promete ela a artificializagio da morte, ("ars morriendi") . © que acabo de dizer nao é fantasia desvairada. A manutengZo arti- ficial de vidas degradadas ao est&gio vegetativo, e a conciéncia crescente do problema da eutanasia, sao desde j4 sintomas da ten- déncia da qual falo. Pois se as técnicas biolégicas, (e sobretudo as genéticas), vao libertar-nos da necessidade da morte, e para de- liberagio da morte, a vida humana toda vai ser modificada. A anali se existencial revela ser a morte o dinico motivo da vida, ("wir sind zum tode da"), e isto de duas maneiras. A conciéncia da morte in- jeta urgéncia em todo momento vital, (o nosso tempo é limitado), e a conciéncia do absurdo da morte injeta meta em todo momento vital, (queremos superar a morte, buscamos imortalidade). Pois se a morte passar a ser deliberada, (o que nao é sindnimo de suicfdio), se a decisao de morrer passar a ser decisdo intersubjetiva, o clima vi- tal todo sera modificado em cada instante vital, porque a cada ins tante vital seremos concientes que a nossa imortalidade sao os ou- tros. Nao mais viveremos para e contra a morte, mas para e com os outros. © que estou procurando dizer, 4 minha maneira, € o que os Antigos pretendiam ao dizer que “ars vivendi", “ars morriendi", e "ars ama- toria" se confundem para constituirem a suprema arte. Os artefatos animados, ainda mais que os artiffcios inanimados, (os virus artifi ciais ainda mais que os robés nas fabricas de automéveis), apontam tal futuro no qual todas as artes e todas as ciéncias formarao par te integrante de tal arte suprema de viver, de morrer, de amar, tal jogo supremo, no qual todos darao significado ao absurdo em dialo~ go com todos. Isto, a meu ver, & o verdadeiro significado de "Avi da enquanto artefato". A primeira palestra falou em artificios, a segunda em artefatos. aAmbas falaram, partido de dois horizontes diferentes, da atual re~ volugao cultural que est& modificando a nossa conciéncia, e portanto © nosso conceito de “arte”. Ambas defendiam a hipétese que estamos arquivo_vilém_flusser_sao_paulo nos aproximando da artificializagio total da vida. 0 propésito da terceira e Gltima palestra sera o de reunir os fios do argumento sob o tema geral "informagao", e o de sugerir uma visdo da arte futura. arquivo_vilém_flusser_sao_paulo vilém Flusser ARTIFICIO, ARTEFATO, ARTIMANHA (18a. ‘Bienal Internacional de’ Sao Paulo) *3a. Palestra: A artimanha da vida humana.* Defini, na primeira palestra, o termo "artificio" como "fazer deli berado". E, na segunda palestra, defini-implicitamente "“artefato" como "feito deliberado". Resta definir “artimanha", que meu dicio- nario considera sinénimo de "dolo, ardil, fraude". 0 meu propésito, ao definir tais trés termos, é o de circunscrever o terreno da ar- te. Nao me satisfarei com a definigao de “artimanha", sugerida por meu dicionario, e tomarei a sério o seu sufixo "manha". E defini-' rei pois “artimanha" como “artificio manhoso", ou “fazer delibera- damente manhoso". Dou portanto por circunscrito o terreno da arte: @ o terreno da deliberagao que resulta em feitos, deliberacao esta que pode ser considerada manhosa. Considerarei a sentenca preceden te definicao aproximada de “arte”. De modo que esta Bienal passa a ser um dos lugares piblicos, nos quais sao expostos feitos que fo- ram deliberados por alguns, deliberagdes estas que so considera das manhas por alguns outros. Pois se conseguirmos elucidar o ter- mo "manha", teremos elucidado os criterios da critica artistica que pode vir a considerar esta Bienal, (e a arte tout court), em- presa fraudulenta. Nao consigo traduzir "manha" para as demais linguas que domino, salvo para o grego: “metis". Segundo o mito, Metis a manhosa administrou a Cronos um veneno que o fez vomitar os filhos que tinha devorado, em seguida casou com Zeus récem-vomitado, 0 qual por sua vez devorou Metis, temendo um filho possivel que Me-' tis poderia dar-lhe, mas Metis penetrou o cranio de Zeus, e 0 a~ briu de dentro para dar 4 luz sua filha Athene, a sabedoria. Sugi- ro que este mito supercomplicado e um tanto nojento pode servir de modelo do fazer arte. Metis, a manha, procura, por caminhos fraudu lentos, dar 4 luz a sabedoria. Certa critica enfoca os caminhos fraudulentos, outra enfoca a meta almejada. E quando Nietzsche diz ser a arte melhor que a verdade, toma ele perversamente os cami- nhos fraudulentos por meta da arte. 0 problema, por certo, € o da “yerdade" enquanto oposto de "mentira", nao de “erro”. arquivo_vilém_flusser_sao_paulo . ~2- Demoremos um instante com os gregos. 0 heréi de Metis @ Ulysses, o manhoso, o ardiloso. E o animal de Metis & o Polvo, o qual emite ardilosamente nuvem de tinta para enganar os inimigos. Ulysses, o artista da vida que engana o destino, e © polvo, o produtor de artificios enganadores. Pois a nuvem de tinta emitida pelo polvo é o que os gregos chamam um "stratage- ma", palavra esta que reconhecemos na nossa humilde palavra "es trada". Ambas palavras derivam da raiz "str", que implica "dis- tribui¢ao", "espalhar algo". "Stratagema", @ o ato de distri- buir algo sobre um campo, (geralmente soldados de um exército sobre o campo de batalha), dai o comandante de exército ser cha mado "strategos", e a arte da guerra ser chamada “stratégia". 0 polvo, no entanto, nao distribui soldados, mas tinta, e Ulysses distribui-se a si préprio, viaja. Ambos recorrem a estratégias para enganar inimigos. Sugiro que os criticos que consideram a arte coisa fraudulenta, falsa, mentirosa, que a consideram arti dos pelas estraté manha, sdo precisamente tais inimigos eng as da arte. Para determinada critica, para aquela que diz buscar a verdade por caminhos retos, fazer arte é efetivamente manha. Mas para quem acreditar ser a verdade meta jamais alcan- gavel, e apenas apro%imivel asintdticamente, todos os caminhos 8&0 tortuosos, caminhos de Metis. £ preciso mentir deliberada-' mente, para ser desmentido, e destarte aproximar-se da verdade, (Popper). Para tais criticos, nao apenas se justificam as menti, ras, os trompe-l'oeuil, as manhas da arte, como a prépria cién- cia nao passa de arte neste sentido. Para tais crfticos, todo pensanento e todo ato humano em busca da verdade segue estraté- gias, & pois pensamento e ato deliberadamente mentiroso. A arte mente ao buscar a verdade, e tudo que © homem faz & arte. A vi- da humana @ uma dnica artimanha composta de artimanhas. £& um fa zer como se, para ver como &. & arte. No entanto, para ouvidos atuais o termo "estra- tégia", e a raiz “str" nele contida, evocam toda uma série de conotagdes novas. A fisica atual, e sobretudo a astronomia, su- gere cosmovisdo segundo a qual o universo consistiria de parti- culas dispersas. No est@gio atual do universo tais particulas formam amontoados, (supergalaxias, galaxias e estrelas), que se vio afastando uns dos outros. Mas tal expansdo do universo se arquivo_vilém_flusser_sao_paulo deve @ tendéncia para distribuigao uniforme das part{culas em to- da parte do universo, tendéncia esta que o segundo princ{pio da termodinamica articula. De maneira que o estagio atual do univer- so nao seria senado situagao passageira de um processo que se ini- ciou, ha 15 bilhdes de anos, por explosdo de part{iculas acumula-' das sobre um Gnico ponto, (Big Bang), e que se terminar por dis- tribuigao uniforme das particulas sobre o campo universal todo , (Morte térmica). Tal processo césmico pode ser articulado também por outros termos: o universo tende para distribuigao sempre mais provavel das particulas das quais € composto. Se definirmos "in- formagao" por "situago pouco provavel", o universo tende para a ‘perda de todas as informagSes, para a uniformidade. A raiz "str", contida na palavra “estratégia", e igualmente contida na palavra "distribui¢ao", toca portanto dire- tamente a tendéncia fundamental do universo. E se "estratégia" for definida como “arte de distribuir elementos sobre um campo a~ fim de enganar um inimigo, arte de guerra", comegaremos a intuir de que arte, de que guerra se trata. Tratacsedaarte, da guerre que o homem trava, desde que homem é home contra a tendér tipida e absurda do universo para a uniformidade, para a perda das informagdes, para o esquecimento, para a morte. "Estratégia" € 0 grito de guerra que o homem langa na cara do universo, @ ela a arte que o homem manhoso, (o homem verdadeiro, humano), emprega ara -ensanar_o_mundn...A arte tada.toda_tazet_del iherada mi, ce -- sulta em feitos deliberados, @ articulagao da manha humana de opor-sé @ tendéncia universal para o esquecimento. Esta, a artima nha da vida humana. : A estratégia humana face ao mundo que tende para a entropia consiste em provocar situagdes pouco provaveis, (Informa goes"), e a preservar tais informagdes contra a entropia. Indubi- tavelmente, isto é manha, (termo que provavelmente deriva de "ma~ nia"). © homem & manfaco ao querer deliberadamente opor informa-' gdes & tendéncia entrépica do universo. (Alias, que o homem é bi- cho louco, e que a cultura é neurose, j4 foi demonstrado). Todas as informagdes jamais criadas pelo homem, ou j4 foram esquecidas, ou serao esquecidas. Todos os nossos ediffcios cairao em ruina , todos os nossos livros, quadros e composigSes musicais esto con- denados ao esquecimento, e provavelmente numerosas culturas intei, ras do passado desapareceram sem deixar traco. A tendéncia entré pica do mundo é obviamente mais poderosa que a deliberago negati, vamente entrépica humana. No entanto: declarar a guerra ao absur- do do mundo é a dignidade humana. arquivo_vilém_flusser_sao_paulo Estou sugerindo, nestas trés palestras, que esta~ mos assistindo a mudangas de estratégias. Sobretudo no que tange a preservagao das informagdes criadas. Simplificarei o problema: Até a atual revolugdo informatica todas as informagdes produzidas foram armazenadas em objetos, ou sobre superficies de objetos, e doravante sao elas produzidas no campo eletro-magnético, e arma> zenadas em memérias artificiais praticamente indestrut{veis: Mas tal simplificagao exige reflexdo mais atenta. Primetro porque as memérias artificiais implicam novo tipo de pensamento. E segundo Porque produzir informagSes em campo eletro-magnético implica novo tipo de fazer humano, novo conceito de arte. © problema anterior @ atual revolugio foi o de es colher objetos que resistem a decomposi¢ao natural o mais tempo possivel, e de gravar as informagdes produzidas em tais objetos. Em bronze por exemplo, ou em algo ainda mais resistente que 0 bronze, ("aere perennius" diziam os antigos)..0 problema era di- ficil, porque quando mais resistentes os objetos, tanto mais re- Sistentes ao esforgo de serem informados. Vencer a resisténcia pérfida dos objetos passou portanto a ser a estratégia bisica do fazer humano. A tal dialéctica "objeto-técnica-sujeito", na qual svolugées em tal estratégia: a de queimar tijolos, e a maquina impressora. falei na primeira palestra. Podemos constatar duas Considerem tais revolugdes por um instante. Em qualquer lugar da Mesopotamia ha seis mil: anos inventou-se a técnica de gravar informagdes em barro mole gragas a um stylos, e de queimar tal barro informado. Destarte o objeto. a ser informado nao resistia muito 4 deliberagao informadora, mas, uma vez queimado, resistia bem 4 entropia. Pois tal artima~ nha, (da qual nos conta o mito da criag&o de Adam), iniciou a é- poca chamada “histéria no significado restrito". A tese segundo a qual o gesto de gravar em barro e depois q i gem da consciéncia histérica é tese poderosa. Gutenberg inventou técnica que permite imprimir informagdes sobre as superficies de objetos sucessivos, de modo que as informagSes podem ser guarda~ das em prototipos relativamente permanentes, e sobrevivem & de- composigao dos estereStipos impressos. 0 resultado foi a explo: so de informagées multiplicaveis, explosio esta que levou pri- meiro 4 elaboracao do discurso cient{ifico, e depois 4 Revolugao industrial com todas as suas consequéncias sobre a vida e o pen- arquivo_vilém_flusser_sao_paulo “Samento humanos. A tese segundo a qual todas as méquinas industri- ‘ais nao passam de impressoras modificadas, (imprimem informagoes em ferramentas), & tese poderosa. ~ Portanto: A pewolugao dos tijo los provocou a histéria, e a revolugao da impressao provocou o mun do moderno. No entanto: perto da revolugao atual as duas prece- dentes sio suaves. Nao basta dizer que as memérias artificiais, (sejam elas compostas de chips, sejam sistemas de espelhos), sao armazéns de informagdes muito mais resistentes 4 entropia que tijo los ou ferramentas. N3o basta dizer que a nova estratégia engana a entropia a ponto de a ter praticamente vencido. £ preciso acrescen tar que as novas memérias tornam redundantes as memérias humanas. Antes da revolugao atual todas as informagdes produzidas eram arma zenadas em objetos, afim de poderem ser recebidas por memdrias hu- manas e 18 armazenadas para serem processadas. Atualmente as infor magdes sao produzidas e armazenadas em memérias artificiais, para serem processadas 14 mesmo por inteligéncias artificiais e/ou huma nas. © que implica que esta se tornando inoperante quexer_acumular informagdes em memérias humanas, (querer aprender_dados)_,_e_que_do. ravante o que & preciso 6 aprender a processar os dados armazenados nas memérias novas. Sera preciso aprendermos a pensar de maneira nova. A vida em sociedade informatizada sera nao apenas diferente da vida moderna, e da vida histérica, sera diferente de todo tipo de vida até aqui imaginavel. Produzir informagéos em campo eletro-magnético é um fazer radicalmente diferente daquele que imprime informagdes den- tro ou sobre objetos. Nao esbarra contra resisténcia objetiva, nao @ trabalho. Tratei deste problema um pouco na primeira palestra, mas aqui pretendo enfocé-lo de angulo diferente. Para tanto convi- do os senhores a reconsiderarem as duas revolugdes precedentes. Gravar informagdes sobre barro gracas a um stylus levou 4 inven¢ao da escrita, a qual evoluiu de pictogramas para finalmente se trans formar no codigo alfa-numérico que utilisamos até hoje. Tal céddigo transformou profundamente a estrutura mesma do pensamento. Este se “femou conceitual, linear, progressivo, seguindo as linhas dos tex tos. A consciéncia histérica é, no fundo, precisamente esta estru tura do pensamento. Mas, até a invengio da imprensa, tal tipo de pensamento tinha constantemente que lutar contra o pensamento pré- -histérico, imaginativo, magico, mitico, bi-dimensional, idélatra. Os textos explicavam as imagens, por certo, mas as imagens, por sua arquivo_vilém_flusser_sao_paulo vez, ilustravam os textos. Com a invengao da imprensa 0 cédigo alfa-num&rico tornou-se vitorioso. Expulsou_as.imagens .da vida quo tidiana, para encerré-las em guetos glorific tipo_"museus". Tal glorificagio dos guetos é responsivel pela aura benjaminiana que cerca o conceito "arte" durante a época moderna. Pois produzir informagdes em campo eletro-magnético implica abandono do cédigo alfa-nunérico em proi de cédigos novos, audio-visuais, calculados e computados. Isto no € retorno para o pensamento, (e a ago), pré-histérico, imaginativo, idélatra, como pode parecer 4 primeira vista, (sobretudo se tormarmos a TV como modelo). Pelo contrario: isto é emergéncia para um tipo de fazer jamais préviamente executa vel, emergéncia para um tipo novo de arte. © abandono do cédigo alfa-nunérico é extremamente pe noso, sobretudo para quem, como eu, estiver engajado em textos, e na consciéncia histérica, cr{tica, que se articula por textos e ex clusivamente por textos. Mas nao ha como escapar a tal abandono, e que seja simplesmente em vista da inflacio dos textos impressos que desvaloriza todos os textos. No entanto: se refletirmos sobre as virtualidades dos novos cédigos,.o tal abandono se tornara mais su- portavel. Para tanto devemos considerar, nao tanto as informagoes eletro-magnéticas atualmente dominantes, tais como 0 rédio ov a TV, que efetivamente comegan a substituir-se pelos textos escritos. Tais informagdes irradiadas nfo sao senao fendmenos do estagio in- fantil da revolugao informatica em curso. Devemos, pelo contrario, considerar as informagdes eletro-magnéticas que recorrem a computa dores, a instrumentos ligados a computadores, (como o sao, por .e~ xemplo, os plotters), e a cabos. Tais aparelhos esto se tornando rapidamente acessiveis a todos, pelo menos nos pafses desenvolvis dos, e substituem-se, desde j4, aos livros escolares, aos cademos e &s canetas. E 0 que distingue este tipo de informagao da irradi- ada & 0 fato que nfo mais ha emissores de um lado, receptores do outro, mas que todo participante da comunicagao eletrénica é emis- sor, receptor e produtoras informagdes em causa. Trata-se, nas informagées destarte sintetizadas, de imagens sonoras em movimento. Mas toda comparagao com filme, (in- formagao quimica), e video, (informagao eletrénica nao sintetizada) , fletem os raios emitidos por objetos, embora o facam muito indiretamente, e portanto menos @ falha. Filmes e videos sao espelho: "“objetivamente", que espelhos de vidro. As imagens sintetizadas nao refletem raios, mas os compGem segundo programa. Nao significam © que estA 14 no mundo dos objetos, mas, pelo contrario, o que po- deria estar 14, deveria estar 14, nao deveria estar 14: Sio ima~ arquivo_vilém_flusser_sao_paulo wgens-projeto. Mas, uma vez projetadas, as imagens sintetizadas es- * t&o efetivamente 14, sa0 vivéncias concretas. 0 que deve ser, o que nio deve ser, 0 que pode ser, e inclusive o que nao pode ser , (por exemplo, formas geométricas ou movimentos imposs{veis no mun- do dos objetos), passa a ser concreto nas imagens e por elas. Tra- tase, em tais imagens, de feitos deliberados, (programados), tra~ ta-se de arte. Por certo: Nao se trata de obras. O artificio que os produz nao € trabalho, e as imagens nao sao objetos informados, sao artefatos imateriais, "puros". No entanto: Tais imagens sao mais “universais" que as obras universais imaginadas por exemplo por Wagner. Sao elas sintese das artes ditas plasticas, (sao “ima- gens), da misica, (sao sonoras), da literatura, (falam linguas) , do teatro, (movimentam-se), e dentro em breve da escultura, (holo- ‘gramas). Mas dizer isto & pouco. As imagens sintetizadas sao produ to de deliberago3 a qual, embora a servigo de uma imaginagio des- vairada, jajpela restri¢gao objetiva), se vé obrigada a passar pelo crivo da conceituagao clara e distinta, j4 que se vé obrigada a calcular e computar programas. De forma que tais imagens sao sintese de imaginagao poderosa e de conceituagap disciplinada. Sintese de ciéncia e arte. ye N3o estou afirmando que as imagens sintetizadas vio acabar, de vez, com toda atividade produtora de informagdes ante- rior a elas. Que vio acabar, de vez, com a pintura com leo, com a composig&o musical para instrumentos e vozes, com a literatura , com o teatro, com o filme, com a TV, com o Video, e sobretudo com os textos da jurisprudéncia, da ciéncia e da filosofia. 0 que es- tou afirmando, isto sim, é que todas estas atividades informadas precedentes serao lentamente sugadas pelas imagens sintetizadas , para serem absorvidas nelas. E darei a filosofia como exemplo. & ela discurso lingufstico notado em cédigo alfa-nunérico, discurso © seu préprio_ discurso. Por sua estrutura linguistica, e pelo cara ter do seu cédigo, a filosofia pensamento linear, e obedece a de terminadas regras, sobretudo as da légica, a qual, como diz o ter mo, @ regra da fala. As imagens sintetizadas se oferecem enquanto estratégia para um pensamento multi-dimensional, apto a pensar so- bre outros pensamentos, (apto a filogofar), o qual, muito embora possa ser estruturado logicamente, ou pode ser também por regras a diéionais igualmente rigorosas. Ouein doravante continuar a filoso far linguisticamente e alfabeticamente estara seen sobrecendo-y vo- luntariamente. E isto vale para todas as demais atividades informa arquivo_vilém_flusser_sao_paulo doras, (culturais), da tradigao da qual somos herdeiros. © que procurarei sugerir nestas reflexdes & que a re volugao informatica est4 pondo 4 nossa disposig&o estratégias no- vas para produzirmos e armazenarmos informagées, estratégias estas 5 cee vio sque-vau! tolnat F~rheraccavenent “es cracegzas ‘preceaente ; arcdicas e inoperantes. E que, mais cedo nés concientizarmos isto Bo melhor seria. Mas estou sugerindo igualmente que tal concientizag : € dificil, nao apenas por sermos inertes, e por tendermos a glori ficar por inércia as estratégias precedentes, (a arte, a ciéncia, . a jurisprudéncia, a filosofia), mas sobretudo porque as novas es tratégias exigem nivel de consciéncia novo, nivel este que aind no conquistamos. A prova disto @ o nivel infantil, para nfo dize cretino, das imagens sintetizadas atualmente prodizidas. de Estas trés palestras tratam, cada qual de um ponto | > vista diferente, da emergéncia lenta e penosa de tal conciéncia n Z va. A primeira teve por tema os novos artificios como o sao os ro - bés e as intéligéncias artificiais, e a consequente artificializa - ¢g&o do pensar e do agir humano. A segunda teve por tema os artefa 2 “tos animados, e a consequente artifializagio da vida, do amor e 4 5, morte. Esta terceira teve por tema a transformagao das estratégia’ 2 das artimanhas, empregadas na produgao, na transmissao e no armaz - namento de informagées, e a consequente sintese de todas as ativi - dades culturais para nivel novo. Mas, no fundo, todas as trés pa lestras tratavam de um nico tema: Da arte do futuro iminente. 2 Inteligéncias artificiais, bactérias artificiais : So resultado 4 cAlculo e de computagio de elementos claros e distintos, sejam_ e - les bts, genes ou electrons. E so, todos eles, combinagdes extre mamerite pouco provaveis de tais elementos, combinagdes informati- imagens artificiais tem, todas, estrutura comui vas. A deliberagao, da qual sao resultado, é dirigida contra a pr 2 babilidade. E contra a necessidade, tal horizonte do qual a proba “" bilidade se aproxima asintéticamente. Pois por serem resultados 4 deliberagao anti-probabilistica, (informativa), hd uma aura de as ficg&S, de fingimento em torno de tais artefatos. HA algo de fant - magdrico em torno de inteligéncias artificiais, de bactérias arti ficiais, de imagens sintetizadas. E em torno do homem futuro que indubitavelmente vivera com estes fantasmas. Pois é precisamente esta aura fantasmagérica, propria 4 deliberacao contra a necessid de, que caracteriza a arte. Ainda Newton acreditava ser precisamente esta a dif 2 renga entre a arte e a ciéncia: A ciéncia nao finge, ("hypotheses arquivo_vilém_flusser_sao_paulo hipdteses s&o ficcdes, modelos. Mas persistia, muito tempo ainda, a convicgao que ha, de um lado, algo objetivamente dado, e, do ou tro lado, algo subjetivamente para o qual o objetivo era dado. De modo que as ficcdes cientificas deviam ser adequadas ao objetiva- mente dado, ("adaequati intellectus ad rem"), enquanto as ficgdes artisticas podiam nao adequar-se. Tal convicgao esta sendo abando. nada. Estamos conyencidos, atualmente, que tanto o dado objetivo quanto 0 sujeito sao abstratos de relagao conéréta. E isto nao a~ ‘penasS gragas A anAlise fenomenolégica, (e outras comparaveis), mas sobretudo gragas as préprias ciéncias que analisam o dado. Es € caindo a barreira que separa fic¢ao cientifica da ficgao artis tica, e a aura fantasmagérica, propria da arte, vai doravante en- volvendo todo e qualquer fazer humano. Pois parece-me que dizer isto 6, desde ja, articu- lar, embora de forma apenas prenonitéria, a nova conciéncia que esta emergindo. A saber: A conciéncia que o "eu" e a “realidade o bjetiva" nio passam de mitos, que “natureza" e "cultura" nao pas- sam de articulagées ecolégicas, e que o concretamente_vivencié Pois tal conciéncia desenganada, (por ter si- do enganada em demasia no decorrer dos Gltimos seis mil anos), @ conciéncia intersubjetiva, para a qual viver um fazer como se, @ artimanha. Viver, para tal conciéncia, @ fazer o improvavel, 0 ‘praticamente imposs{vel, j4 que o provavel, o praticamente certo, & o nada 14 fora e c& dentro. A artimanha, a arte total, é a res- posta que tal conciéncia d4 ao absurdo. HA poucas semanas saiu livre na Suiga, de autoria de F. Ingold, cujo titulo é "Jeder Kein Kuenstler", (aproximada-- mente "todo mundo nao-artista"). Tal t{tulo procura articular de maneira aforfstica o que lhes estou propondo. A saber: A concién- cia que est emergindo, e as técnicas que tal conciéncia vai ela- borando, vai permitir estratégias gragas as quais todo mundo vai poder produzir, em conjunto com todos os demais, as aventuras mais inimaginaveis e mais inconcebiveis. Todo mundo sera artista em sentido t&o radical, tao fantasmagérico, que o termo atual “ar te" nao mais & adequado. E por ser inadequado o termo, podera di- zer-se que "todo mundo ser4 nao-artista". Permitam gue encerro esta minha intervengio com pro fissio de £8, (se "£8" for o termo adequado): Desde que homem 8 homem, informa ele deliberadamente. ciéncia e de novas estratégias que lhe permitem fazé-lo relativa- Agora diépde ele de nova con arquivo_vilém_flusser_sao_paulo -10- mente sem preconceitos mfticos, e relativamente independente do esquecimento. Pode ele agora ser artista relativamente desengana~ do, assumir relativamente melhor a carga pesada do saber ser sua vida artimanha. Minha fé € que isto o tornara relativamente mais humano. - a

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