Você está na página 1de 12
Haroldo de campos e Herberto Helder: a antropofagia como criagao poética Haroldo de Campos and Herberto Helder : the antropophagy as poetic creation Geovanna Marcela da Silva GUIMARAES' Universidade Federal do Para (UFPA) Izabela Guimaraes Guerra LEAL? Universidade Federal do Para (UFPA) RESUMO: O objetivo deste artigo € discutie 0 sentido que o conceito de Antropofagia, desenvolvido por Oswald de Andrade em 1928, possui nas obras poéticas de Haroldo de Campos (1939-2003) e de Herberto Helder (1930-). Para isso, a antropofagia seri coneebida, em termos poéticos, como uma ma de apropriacio violenta da tradicio, no sentido de que ela iri encenar uma desconstrugio do cinone universal. Haroldo de Campos ¢ Herberto Helder propéem uma releitura exitica ¢ criativa da tradicio, seado que © ponto principal de andlise € a demonstragio de como a antropofagia pode ser entendida como instrumento de eriacio poética. PALAVRAS-CHAVE: Haroldo de Campos. Herberto Helder. Antropofagia‘Tradicio. Poesia ABSTRACT: he objective of this article is to discuss which sense the concept of antropophagy, developed by Oswald de Andrade in 1928, bears at the poetics works of Harold de Campos (1939 2003) and Herberto Helder (1930-). For that, the antropophagy will be designed, in poetic terms, as a violent appropriation of tradition in the sense that it will stage a deconstruction of universal canon. Haroldo de Campos and Herberto Helder propose a critical and creative re-reading of tradition, being the main point of analysis the demonstration of how anteopophagy can be understood as an instrament of poetic creation. KEY-WORDS: Haroldo de Campos, Herberto Helder, Antropophagy. Tradition, Poetry Introdugao © principal objetivo deste trabalho é propor um didlogo entre dois poctas contemporineos, cajos trabalhos sto marcados pela criagao ¢ inovagao. Haroldo de Campos ¢ Herberto Helder possuem papéis importantes no panorama da poesia contemporines, pois dedicaram parte do seu trabalho criativo constante renovacio da poesia, ressaltando que a linguagem poética vai muito além do senso comum ¢ que a pocsia no é simplesmente a descri¢io de paisagens e sentimentos, mas € também uma reflexio sobre a propria escrita Ticenciada om Letras (Hablitagio em Lingua Portuguesa) pela Universidade Federal do Pari (UFPA). Mestranda em Eseudos Liteivios pelo Programa de Pés-graduagio em Letras da UFPA. Bolsista Capes, Ema geovanna_mareela@yahoo.com br. *Doutora em Letras (Letras Verniculas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora de Titerarura Porruguesa, Instnuto de Letras ¢ Cominicagio, da Universidade Federal do Pari (UFPA), Professora do Programa de Pés-graduagio em Letsas da UFPA, Email: izabelaleal@grnaileom © Revista Moara, 241, jan. jun 2014, Estudos Literivios. ISSN 2358-0658 (Impressc). Programa de Pés-Graduagio em Letras / Universidade Federal do Paré. Todas os direitos reservados, Harold de Campos ¢ Herberto Helder: a Antropofagia como eriagio poética comum vermos ensaios ¢ artigos de literatura, tais como o de Rui Torres, “Camées transformado e remontado: o caso de Herberto de Helder” (2006) que se valendo de outro ensaio, Outrora agora: relagiesdialégicas na poesia portuguesa de invencdo (1993) de Masia dos Prazeres Gomes, aproxima a proposta de tradugio como criagio ¢ releitura da tradi¢ao de Haroldo de Campos 4 traducio e releitura poética desenvolvida por Herberto Helder. Sendo que essa aproximagio entre os dois poetas feita por Torres tem como intuito explicar a poesia hherbertiana, mais especificamente, a poesia experimental portuguesa, a partic das teorias haroldianas, associando os conccitos de transcriagio ¢ plagiotropia ao trabalho poético herbertiano, numa forma de mostrar a desconstrugio da tradigio empreendida pelo poeta portugués. Entretanto, ainda nfo foi realizado um trabalho que estabelecesse uma ponte de convergéncia entre os dois autores como forma de mostrar que os projetos poéticos de Haroldo de Campos ¢ o de Herberto Helder sio semelhantes mo que tange a releitura/desconstrucio da tradigio. Nesse caso, € importante ressaltar que essa convergéncia, desde 0 inicio, implica numa diferenga, uma vez que cada poeta ao fazer sua releitura € renovacio da tradicao, 0 faz de modo particular e especifico que, na maioria das vezes, esta ligado a0 processo de traducao poética — muito importante para a compreensio do trabalho de criagio desenvolvido por ambos — pensada como didlogo entre linguas, culturas, literaturas e autores. F com vistas a este didlogo que Haroldo de Campos demonstrara um grande interesse pela releitura de classicos da literatura universal ¢ pela tradugao de obras que possuem um alto teor estético. Esta selecio minuciosa visa 4 transmissio de elementos poéticos presentes no original para a lingua materna do tradutor-transcriador, exemplo disso sio as traducdes/transcriacdes de poemas orientais, como os haicais ¢ os idcogramas chineses, que, segundo Claudio Daniel, sio “uma escrita para olho € para 0 pensamento, que registra o desenho da evita € nao © seu nome” (DANIEL, 2005, p. 183), buscando resgatar pela traducio 0 poético, a melodia, a visualidade © a musicalidade da poesia oriental. Ja Herberto Helder demonstra um consideravel interesse pela tradugio de poemas de tribos indigenas sul- americanas, comumente chamadas de linguas primitivas ou amerindias, sendo um exemplo disso 0 seu livro de tradugio Paemar Amertndios (1997) em que hé tradugdes de poemas dos caxinauds, dos maias ¢ dos astecas. Além disso, outra convergéncia que é possivel observar entre as obras poéticas de Haroldo de Campos ¢ Herberto Helder esta relacionada ao dislogo que ambos mantém com a obra poética de Luis Vaz. de Camées, pensado como um dos alvos privilegiados da releitura critica criativa da tradieao, ou seja, da visada antropofigica, eixo central da nossa discussao. © estabelecimento de um diélogo postico entre Haroldo de Campos ¢ Herberto Helder, a partir da discussio antropofigica, no poderi deixar de lado o papel que 2 tradi¢o representa para os projetos poéticos de ambos, pois a antropofagia, além de ser um proceso de devoragao violenta do outro, é também o didlogo do passado com o presente, representado pelo poeta e pela tradigio. Bo que veremos, no caso de Herberto Helder, em poemas como “O Poema”; “Amor em Visita”, “Elegia miltipla” e “Teoria Sentada” ¢ em alguns fragmentos de Os Selos (1979) ¢ de Os Seles, Outras, Midtpios (1990). Com essa observacio € possivel fazer ‘uma primeira constatagio: a antropofagia em Campos ¢ Helder possui um valor ideolégico diferente, que reside no fato de que em Campos a antropofagia assume também um carter politico, uma vez que ela seri uma ferramenta que proporcionara o didlogo entre o universal e © local, enquanto que em Herberto Helder ela possui uma configuracdo muito mais pessoal da cfiagio de uma poética propria ou de idioma poético proprio. A antropofagia como criagio poética em Haroldo de Campos esti intimamente ligada a discussio do lugar da literatura brasileira no cenério literirio universal ¢ na visio da Revista MOARA, ai, p.70-81, jan,/jun, 2014, Fstados Literirios 7 Geovanna Matcela da Silva GUIMARAES; Izabela Guimaties Guerts LEAL antropofagia como sendo a arma da “contraconquista”, Nesse sentido, 2 antropofagia haroldiana é coletiva, uma vez que ela questionard o lugar de uma nao, de um povo dentro do cenirio literitio universal, € nio no lugar do poeta dentro deste cenitio, ao contritio da antropofagia herbertiana, que por ser individual é muito mais radical e destruidora, evidenciando que a principal diferenga entre as obras poéticas dos dois poetas é a tomada da antropofagia nfio apenas como trabalho estético, mas também como trabalho politico. Se atentarmos bem, notaremos que essa diferenga nitidamente matcada pela nacionalidade dos dois poctas: Haroldo de Campos é brasileiro ¢ Herberto Helder, portugués. Segundo Haro\ldo de Campos, 2 antropofagia é essencialmente a instauragio de um cenitio literario onde as ditas nagGes periféticas nao serio mais sim, como “iguais” perante as nagdes ditas “superiors Zstas como “menores” ou “inferiores”, mas, ” ou “desenvolvidas”. 1 ANTROPOFAGIA EM HAROLDO DE CAMPOS Em “Da razo antropofiigica: didlogo ¢ diferenga na cultura brasileira” (2010) € “S6 a antropofagia nos unc” (2002), respectivamente, de Haroldo de Campos ¢ de Maria Candida Ferreira de Almeida, observamos o cariter politico da antropofagia quando, na sua revalorizacio nas décadas de 60 € 70, esta ideia € usada como instrumento cultural de combate A industrializagio ¢ 4 modernizacdo dos paises globais ou de primeiro mundo que viam os paises latino-americanos, despossuidos de todo © aparato tecnolégico © econémico, como atrasados ou, mais categoricamente, subdesenvolvidos. A discussio que se da em relacio a essa determinagio gira em torno do fato de que se tratando das nagées latino-americanas, 0 termo subdeseavolvimento saiu da esfera estritamente econémica ¢ tecnolégica para adentrar a esfera cultural ¢ literdria, Resumindo, o termo subdesenvolvimento, que se restringia apenas a0 meio econémico-tecnolégico, estendeu-se as produgdes culturais, tornando economia € caltura o reflexo uma da outra Segundo Octavio Paz. em “Tavencio, Subdesenvolvimento, Modernidade” (1996) ¢ “A revolta do futuro” (2013), essa jungio entre economia e cultura, a partir do termo subdesenvolvimento, ocorre por causa da ambiguidade que © termo comporta, pois ele no possui uma significagio exata nem na antropologia ¢ nem na histéria, sendo somente usado por economistas ¢ socidlogos, acabando por originar gencralizagdes indevidas, tais como: a determinagio de que existe apenas um parimetro de civilizagio em detrimento da existéncia de outros € a visio da progressividade retilinea da histéria, no sentido de que se nfo ha mudangas hist6ricas, ndo haveria 0 recomeco do ciclo da hist6ria, mas sim o seu fim. Para Paz, é preciso lembrar que nao existe uma winica civilizagio € que em nenhuma cultura o desenvolvimento é linear e progressivo, pois a “histéria desconhece a linha reta” (PAZ, 2013, 32). Nessa perspectiva, a busca incessante pelo desenvolvimento € uma “desenfreada carreira para chegar mais cedo que os outros ao inferno” (PAZ, 2013, p. 32.). Ao afirmar isso, 0 autor demonstra sua total descrenga no termo subdesenvolvimento, imputado aos paises latino- ameticanos, pois ele pressupde uma relacio de causa e efeito entre “prosperidade econdmica € exceléncia artistica” (PAZ, 1996, p. 135). A antropofagia representa uma possibilidade de desconstrugio dessa relagio de causa ¢ feito ao mostrar que os pafses latino-americanos, apesar de no possuirem o mesmo poder econdmico dos paises globalizados, sio capazes de produzir/eriar uma cultura forte e nova. A devoracio do legado cultural estrangeiro € um trago de ruptura, pois o estrangeiro & “transvalorado” e “‘transubstanciado” de maneira critica ¢ seletiva na estética latino-americana, ‘© que diz Haroldo de Campos (2010, p. 234-235): TTermo utlliado por José Lezama Lima em A expresso americana (1988) para designar 0 processo de mestigagem presente na formagio cultural latino-americana Revista MOAI CA, nl, p.70-B1, jan jun, 2014, Bstudos Literarios 2 Haroldo de Campos ¢ Herberto Helder: a Antropofagia como eriagko poética A“ Antropofagia” oswaldiana [..] nio envolve uma submissio (ama catequese), mas uuma “transculturagia”; melhor ainda, uma “transvaloracio"; uma visio eritiea da historia como fungio neyativa (ao sentido de Nietzsche), capaz tanto de apropriagio como de expropriagio, desierarquizagio, desconstragio, Para Ferreira de Almeida, a devoragio pressupée uma relagio com a alteridade, ¢ 0 proprio Oswald de Andrade jé destacava © papel do “outro” na constituicio do “eu”, 0 que acarreta a inclusio do “diferente” dentro do discurso hegeménico “que se propunha desde o século XIX a ser branqueador” (ALMEIDA, 2002, p. 123). O diferente, que antes era visto como “abominavel”, agora ganha status de produgio eriativa: 0 “eu” diferente latino- americano se apropria do “outro” curopeu para se constituir. FE. possivel ver em Haroldo de Campos toda essa delimitacio politico-estética, no momento em que cle afirma que a antropofagia nada mais € do que © “nacional em relacionamento dialégico € dialético com o universal” (CAMPOS, 2010, p. 234). Por esse motivo, podemos dizer que a antropofagia, tal como cle a encena, é muito menos radical do que a antropofagia proposta por Herberto Helder, uma vez que num projeto de construgio de ‘uma nacionalidade no ambito da universalidade, néo ha sentido nenhum a total desconstrugio € transformagio do outro, do legado cultural estrangeiro, que € componente primordial desse projeto. No caso da América Latina, 0 “cu”, latino-americano, ¢ o “outro”, curopeu, se unc. para formar um novo elemento que tera particularidades totalmente distintas daquelas que o originaram, A delimitagio politico-estético da antropofagia na obra poética haroldiana engendra uma discussio da formagio da literatura brasileira ¢ latino-americana no cenétio literario universal, Para exemplificar isso, tomemos como base o ensaio critico “Tradicio, ‘Transctiagio, Transculturagio: 0 ponto de vista do ex-céntrico” (2013) em que Haroldo de Campos afirma que a literatura brasileira, assim como toda a literatura latino-americana, nasceu sob signo do barroco. Entretanto, ele afirma que a concepcio de nascimento nio é aquela que determina a liga¢io “placentiria” e, muito menos, “sanguinea” que ligaria eternamente barroco ¢ literatura brasileira, Se assim fosse, estarfamos insinuando que a literatura brasileira teve sua origem no barroco, coisa que Haroldo de Campos descarta completamente ao enfatizar que a “literatura brasileira nio teve origem no sentimento genético, embriondrio-evolutivo do texto, pois mio teve infincia |...)” (CAMPOS, 2013, p. 198). © barroco jé chega as Américas trazendo cédigos universais rebuscados € evoluidos, fazendo com que a literatura brasileira ja nascesse adulta. E. por este motivo que Haroldo de Campos, ao tratar da questio do “nacionalismo” literério brasileiro, defende a ideia de que nto podemos considerar a nossa literatura como sendo fechada e monadoligica. Desde @ barroco, ou seja, desde sempre, nto nos podemos pensar como identidade fechada e conclusa, mas, sim, como diférena, como aberiura, como movimento ialogico da diferenga, contra © pano de fundo do universal. Nossa entrada no. paleo literiio é, desde logo, um salto vertginoso a cena do bartoco, ou seja, uma aniculagio diferencial com um cédigo universal extremamente sofisticado (CAMPOS, 2013, p. 198) Haroldo de Campos conelui que nfo podemos conceber nossa identidade cultural segundo os parimetros de unidade e pureza, mas sim como diferenga, uma vez que nascemos sob 0 signo do barroco. A questio do barroco como formacio da literatura latino-americana estard presente na seguinte afirmagio feita pelo autor em “Minha Relacio com a Tradigio é Musical” (2010), entrevista concedida em 1983 2 Rodrigo Navatres, “[..] 0 dispositivo barroquizante € algo que tem, para mim, uma importancia decisiva no modo latino-americano de apropriar-se criativamente do pasado” (CAMPOS, 2010, p. 261-262). F. com a tomada do barroco como fundagio e como diferenga que a conseiéncia nacional latino-americana terd inicio. Para Haroldo de Campos, “a incorporacio da tradigio, por um escritor latino- Revista MOARA, ai, p.70-81, jan, /jun, 2014, Fstados Literirios % Geovanna Marcela da Silva GUIMARAES; Teabela Guimaties Guetta LEAL ameticano, se faz [..] pela ‘légica do terceiro excluido’, ou seja, pela légica expropriatéria € devorativa do ex-eénirie, do descentrado” (CAMPOS, 2010, p. 261). Afirmagio esta que nos leva A questo do subdesenvolvimento jé discutido. Para compreendemos de maneira mais sucinta a questio da antropofagia como criagio poética na obra de Haroldo de Campos é imprescindivel que falemos sobre os seus trabalhos, como tradutor de poesia, pois é a partir de sua teoria da tradugio que itemos entender como antropofagia pode ser encarada como releitura ¢ inovagio da tradicio. E. por meio da tradugio de obras estrangeiras do cinone universal que o ideal antropofigico de apropriagdo do legado cultural estrangeiro ser concretizado. Segundo Inés Oseki-Dépré em “Make it New” (2008), € Licia Santaella em “Transcriar, Transluzir, Transluciferar: a teoria da tradugio de Haroldo de Campos” (2005), Haroldo associa antropofagia ¢ tradugio, partindo do principio do “make it new” poundiano, que consiste na mistura de arcafsmos ¢ de expressdes modernas, Porém, em. seu caso, 0 “make it new” se dari pela mistura do clissico com o cologuial Podemos dizer que a antropofagia, em consonancia com os trabalhos de tradugio € releitura, também opera no limiar entre o clissico, o moderno ¢ o coloquial, jé que 0 passado & relido ¢ atualizado no presente da poesia moderna, ocasionando um didlogo entre tradi¢io ¢ modernidade. Em Finismundo: a lima viagem (1990), a encenagio do “make it new” poundiano se dari com a poesia contemporinea assumindo o sentido de reescrita, a partir da representacio do desejo de Odisseu em ultrapassar o: Destino: 6 desatino o nzo mapeado Finismundo: alio nde eomega a infranqueada frontcira do exeracéu, (CAMPOS, 1990, s/p) Haroldo de Campos (1990), no posficio do referido livro, afirma que divide © poema ‘em duas partes: uma clissica, regida pela épica, e o outra pela ironia da poesia contemporinea de uma sociedade “abandonada pelos deuses” (CAMPOS, 1990, s/p), cujos ouvidos sto incapazes de ouvir o canto das sercias, “o ultrassom incaptado a ouvido humano” (CAMPOS, 1990, s/p). Eo estabelecimento de uma nova leitura da tradigao que vemos na obra poétiea de Haroldo de Campos e as tradugdes, pensadas como releituras, sero também encaradas como recriagies poéticas que levam em consideracdo “a dialética entre os elementos macroestéticos (ou semintico-ideolégicos) ¢ 0s microestéticos (estruturas significantes internas)” (GANTAELLA, 2005, p. 222). Esta colocagio de Santaella reafirma o que é dito por Oseki- Dépré (2005) quanto a recriagio poética entendida como uma relevante ferramenta de constituicZo ndo somente do poeta, sendo também “modo mais adequado pata formacio de uma cultura nacional” (OSEKI-DEPRE, 2005, p. 218). F. possivel observar a presenga do manifesto antropofigico de 1928 nos anos 60-70 € 2 teoria de tradugio/transeriagio desenvolvida por Haroldo de Campos como a encenacio do didlogo entre passado e presente, calturas, Iinguas ¢ literaturas. E como diz Santaella (2005, p. 231-232): A cradugio 6, portanto, uma “forma de leitura apropriadora ¢ transformadora da tradigio |..] Além disso, © empenho na “reinvengio da tradigio para propésitos produtivos (no meramente conservatives), no contexto da América Latina, abre-se [para uma perspectiva “transamanista” necessatiamente antropofigica” Revista MOARA, a, p.70-8, jan./jun, 2014, Estados Literirios 74 Haroldo de Campos ¢ Herberto Helder a Antropofagia como eriagio poética Estabelecendo uma ponte de convergéncia entre as priticas tradutérias de Haroldo de Campos e Herberto Helder, podemos dizer que ambas prezam o didlogo, a diferenca, 0 hibridismo, a mesticagem ¢ a pluralidade das linguas, abandonando a concepgio de traducio perfeita, aquela que visa 4 unidade ¢ universalidade entre as Iinguas, em favor da diferenga como origem, tal como é proposto por Paul Ricoeur em Sobre a Tradugio (2011). Ricoeur afirma que a felicidade da tradugio € a aceitagio da inexisténcia da chamada tradugio perfeita ou tradugdo absoluta, aquela que sé traria ganhos para a lingua materna, no sentido de que: E ease lito da tradusio absoluta que fz a felicidade de traduzt. A felcidade do tadator é um ginho quando ligada a perda do absoluto linguistco, ela accita 2 distinca ence a adequagio ea equivalent, equvalénca sem adoquasio, Nisso esti 4 felicdade. Admitinde resumindo a inedutibiidade do par do. proprio ¢ do Cstangeito, 0 teadutor cnconta a sia recompensa no reconbecimento do estatito incontornivel da disloicdade do ato de taduzit como o horizonte razodvel do descjo de tradurie RICOEUR, 2011, p. 29-30, As priticas tradutérias haroldiana herbertiana aceitam luto da tradueo absoluta em. favor da felicidade de se traduzir a diferenga, representando assim, segundo Ricoeur, a hospitalidade linguistica, que é a accitagio da lingua estrangcira dentro da lingua materna como forma de alargamento de estruturas € formas, tanto poéticas quanto estéticas. A. consciéncia dessa hospitalidade entre as Iinguas permite a compreensio do sentido nfo como algo imanente & obra, mas sim como algo que precisa ser construido e criado. A construgio do sentido se da por meio de metaforas ¢ semelhangas entre o que esta expresso ma lingua de partida e © que est expresso ma lingua de chegada. Eno contato entre linguas distintas que a lingua materna do tradutor ini se alargar para receber a lingua estrangeira e assim propor uma nova leitura, uma nova criacdo poética. Além disso, € possivel constatar que as priticas dos dois poetas possuem as mesmas particularidades presentes na tradugio de poesia, no sentido de que ambos valorizam a leitura eritica ¢ reflexiva das obras traduzidas, da mesma maneira que veem a traducéo como uma partitura musical, onde somente 0 som, o ritmo e o tom das palavras serio levados em consideragio, pois é deles que 0 sentido emergira. Ao fazerem isso, Haroldo de Campos ¢ Herberto Helder deixam “o abrigo confortivel das equivaléncias” (RICOEUR, 2011, p. 69) ¢ partem rumo ao mundo da linguagem e dos signos, onde somente © tradutor-transcriador pode adentrar. Com isso, vemos que as priticas tradutérias tanto de Haroldo de Campos quanto de Herberto Helder sio exemplos de aproximacio entre a lingua materna e a lingua estrangeira na expressio de uma traducio poética que prope a ruptura das ideologias dominantes. O resgate das linguas primitivas realizado por Herberto Helder, a partir da tradugio dos poemas indligenas, significa um ato de revolta contra a lingua materna, uma vez que da 2 elas o lugar que outrora — na época das Grandes Navegacdes e do Descobrimento ~ thes foi arrancado e renegado, o do poético. J4 em Haroldo de Campos nfo ha revolta com a lingua materna ¢, muito menos, com a Kingua estrangeira, em vez disso, ha 2 aceitagio do nosso passado como coldnia e a busca por uma identidade nacional no panorama globalizado como sendo a transpressio dos padrdes dominantes. A antropofagia, quando surge no Brasil em 1928 € na revalorizagio nos anos 60-70, nao propde a rejei¢ao do pasado, mas sim a aceitagao dele, valorizando © que ja foi criado, escrito € canonizado, pois é a partir da tradicao que 0 novo seri produzido. A antropofagia € o diilogo do pasado com o presente, do nacional com © estrangeiro, do clissico com 0 moderno, E foi esse cariter dialégico que Haroldo de ‘Campos valorizou em sua obra poética ¢ critica, encenando a diferenca como didlogo entre linguas ¢ culturas, ¢ nao como separacao ¢ distincia. Revista MOARA, a, p.70-8, jan,/jun, 2014, Fstados Literirios Geovanna Marcela di Silva GUIMARAES; Izabela Guimaries Guerra LEAL 2. Antropofagia em Herberto Helder Em Herberto Helder, a antropofagia pressupde uma relagio com a alteridade que envolve autor, texto e leitor, num movimento que leva ao desvendamento do lado selvagem do homem. Sangue, gartas, unhas ¢ boca tetio voz numa violéncia poética que transformata completamente aquilo que conhecemos. A devoragio do outro é a base da cria¢io poética, onde o essencial seré a produgio de um idioma poético proprio, O artigo “A “antropéfaga festa: metifora para uma ideia de poesia em Herberto Helder” (2009) de Ana Liicia Guerreiro analisa os doze poemas do livro Antrmpafagias (1971), pensando 0 cariter individual e subjetivo da antropofagia herbertiana como um processo critico de si mesmo, Fi uma antropofagia que constitui um sujeito, e nio uma nagio, pondo em didlogo o poeta, seus antecessores e seus leitores, no que representaria uma partilha espisitual — estritamente ligada A poesia e A linguagem — entre aquele que escreve € aquele que Ie. Além disso, a antropofagia herbertiana & marcada pela relacio de amor édio entre pocta ¢ tradigio, caracterizada comumente pela figura da mae, onde ambos estio em constante embate. Embate este que causa a morte do poeta © o silenciar de seu canto. O pasado fotizado como sendo a musa, 0 canto, mie, que levam o poeta para desconhecido ¢ a solidio. F: também o lugar dos mortos que chamam, do mundo das sombras, © pocta: Alguém se debruca para gritar ¢ ouvir em meus vales ‘0 eco, ¢ sentir a alegria de sua expressa existéncia Alguém chama por si prdprio sobre mim, em seus terrificos confins. T. eu tremo de gosto, ardo, consumo ‘© peasamento, ressuscito dons esgotados (.,] Esctevo 0 «que bate em mim ~ a vox fra, « alarmada malicia das vores, (5 cos de alegriae a escurido das paegantas lascadas, (HELDER, 2006, p. 167) Neste trecho do poema “Teoria Sentada” que fax parte do livro Lagar (2006) ha a representacao do momento em que © poeta é chamado pelo passado, “Alguém” — que pode ser interpretado como sendo a encenagio da figura dos mortos —, para que cante o que jé foi esquecido € silenciado, recebendo em mios a responsabilidade de ressuscitar “dons esgotados”. O esquecido € o silenciado na tradi¢io podem set vislumbrados nas inguas primitivas, conccbidas como fonte origindria da linguagem humana. Por isso, € possivel dizer que Herberto Helder, quando traduz. poemas de povos primitivos ou faz releituras de classicos da tradigio, esta em busca dessa lingua de origem, ou melhor, dessa voz universal. Alguém se procura dentro de meu ardor eseuro, ¢ reconhece as noites espantosas do seu proprio silencio, E ea falo e veja as mudancas ¢ 0 imével sentido do meu amor, ¢ vejo minha boca aberta contra minha propria boca num amargo funda de vozes universais (HELDER, 2006, p. 57) As vozes universais, destacadas no trecho acima, sio a representacio das tio conhecidas vozes comunicantes, que interligam o poeta, a tadicio e a poesia. Tal compreenstio obtida com a leitura do poema herbertiano nos faz ver que a atitude do poeta perante a tradi¢io dé a ver uma descontinuidade poética, num processo em que hi a rejeicio da tradigio por meio da destruigao de textos, pocma “2.” de Faxemplas (2006), ¢ a accitagao das musas, do canto e dos mortos — figuras representativas da tradigio — que chamam por ele: Eu abaixava-me e tomava como nos bracos, «ssa erianga jgnota, E porses enc! ‘um afogado, Tudo me inspirava nessa noite abrupta, entre o con se de Sigua, eu seria em breve sg0.€ 0 fim Revista MOARA Ta, p.70-81, jan jun, 2014, Fsnidos Literarios 76 Haroldo de Campos ¢ Herberto Helder: a Antropofagia como eriagio poética do mundo. Como pode um coragio absorver tanta matéria, tanta inocéncia da terea? Se era uma crianga, sua vida eirculava indecisamente; se eram os mortos a distincia tomava-se infinita, Apenas minha forga se dobrava um pouco, e um nove calor ccortia nas palavras adormecidas ¢ degelava as mios ‘que se cobriam de um sentido impenetrivel (HELDER, 2006 p. 36.) ‘A accitagao da inspiragio, que vem como um raio, uma luz, uma revelacdo é 0 que proporcionari a renovacio da tradigio. Seré ela quem dari calor aquilo que é frio € adormecido, pois “Nenhuma vida tanto se gastou/ que nao seja visitada, nenhum deus/ € tio grande que se nao perca na substincia da sombra [..J” (HELDER, 2006, p. 28.) A musa ¢ 0 canto, signos da criacao poética, sio um exemplo da inspirago que vem do passado. Fm poemas como “Amor em Visita”, a musa é a mulher amada e desejada pelo poeta e a fonte de onde tudo sera eriado, mie da poesia. B através dela que tudo sera cantado € eriado. Entio sento-me a tua mesa. Porque é de ti que me vem o fogo. Nio hi gesto ou verdade onde nio dormissem tua noite ¢ loucura aio hi vindima ou agua em que nio estivesses pousando o silencio, Digo: olha, € 0 mare a ilha dos originas. Tu das-me a rua mesa, descertas 1a vaste da terra a eaene teansceadeate, E em ti principiam @ mae €0 mundo. (HELDER, 2006, p. 20) Jia destrui¢io dos textos é uma forma de Herberto Helder nos dizer que no quer ser visto como um poeta seguidor de uma determinada influéncia, 20 mesmo tempo em que ele sabe que faz parte de uma, Em “Herberto Helder ¢ os Dispositivos de Didlogo Cultural” (2013), Izabela Leal pensa os procedimentos poéticos de Herberto Helder, como a citacao direta e indireta de textos alheios ¢ os seus trabalhos de traduc3o como: Uma proposta que apenas problematiza a pripria ideia estanque de um passade morto © de uma tradicéo fixa © congelada, mas também pressupée uma visio calcada na idcia de descontinuidade, de reconfiguracio permanente, de interrupgao rio curso da historia (LEAL, 2013, p. 203) No caso de Herberto Helder, segundo Leal, é preciso se pensar numa “nilo-tradigio”, levando-se em consideracio o surgimento de um modelo de literatura mundial marcado pela fluidez, no sentido de que este modelo comportaria toda a descontinuidade e a desconstrucio da poesia herbertiana, E Hetberto Helder, seguindo seu padrio descontinuo, quem escolhe suas influéncias, seus precursotes, num processo que caracteriza um provavel ptojeto de poética sincrénica, mas que Leal (2013, p. 205) prefere chamar de “afinidades eletivas”. Nesse ponto dirfamos que Herberto Helder ¢ Haroldo de Campos fazem uma verdadeira sclecio critica daquilo que seri lido e relido em seus poemas, pois a releitara de outros textos, candnicos ou nio, s6 ocorteré quando estes aptesentam um trabalho poético esteticamente inovador. Um exemplo disso, na obra poética de Haroldo de Campos, é 0 caso de poctas como Sousandrade, Dante Alighieri, Camdes, Gregorio de Mattos, Mallarmé, dentre outros, Em Herberto Helder, a antologia Edoi Lelia Dowra (1985) — que seri composta, principalmente, por autores e poetas considerados “‘menores” dentro do panorama literitio portugués ~ seri o exemplo da releitura critica ¢ criativa do presente ¢ nao do passado como ‘corre em Haroldo de Campos. A presenga de autores “menores” na antologia composta por Helder é a demonstracio de que a releitura nio € algo descompromissado ¢, muito menos, Revista MOARA, ai, p.70-81, jan,/jun, 2014, Fstados Literirios Geovanna Matcela da Silva GUIMARAES; Teabela Guimaties Guetta LEAL acritico. Na antropofagia herbertiana esse process é 0 vislumbre de uma criagio poética critica e inventiva que busca © poético nas vozes “menores”, mas admiravelmente comunicantes, da moderna poesia portuguesa. ‘Além desses aspectos, vemos no livro Os Selos, mais especificamente no fragmento “A poesia pode também ser isso” (HELDER, 2006, p. 457), que a antropofagia herbertiana possui um laco forte com o canibalismo, tendo em vista que canibalismo ¢ antropofagia sio priticas diferentes, tal como é discutido no texto “Antropofagia ¢ os limites da representacio”, presente no ensaio Alén do visivel: 0 olbar da literatura (2007) de Karl Erik Schollhammer, que destaca 0 caréter ambiguo da visio do homem europeu sobre a antropofagia: ora encarada como algo ircepresentivel ¢ incompreensfvel, ora como um ato simbélico, cuja apreciacio e admiracio sio inevitiveis. © autor destaca que desde 0 inicio a antropofagia foi usida como instrumento de critica dos valores do homem europeu, colonizador, € que por isso houve a necessidade de se distinguir 0 indio “canibal” do indio “antropéfago”, sendo “o primeiro [..] 0 homem que barbaramente come seus semelhantes para se nutrit € © segundo |. aquele que come ou ingere carne humana em ritos simbélicos que se destinam a dignificar a vitima e os valores comunititios” (SCHOLLHAMMER, 2007, p.201). No fragmento “A poesia pode também ser isso”, 2 afirmacio “Devoro a minha lingua” caracteriza nfio somente um canibalismo, mas também uma autofagia: o poeta devora a si mesmo. A poesia aparece como um ritual, ou melhor, um batismo em que © poeta é purificado ¢ abencoado com o dom da linguagem poética. O que daré a ele o poder de falar de todas as coisas de forma inesperada e surpreendente. Porque tudo € canto de louvor na vida inspirada, tudo porque ‘acaba na mest: garfo e fuca is faiscas ¢ a carne no prate. Devoro a minha lingua: citila ainda, Lirismo ancropofigico, visio, oh sucessivo, A poesia é um baptismo atdnito, sim uma ppalavra surpreendida para cada coisa: nobreza, um supremo ‘ete. das vores (HELDER, 2006, p. 458) Em “Devoro a minha lingua” esti contido este processo simultineo de antropofagia- autofagia-canibal, pois a devoragio da lingua representa a devoragio nao apenas de si, mas também da linguagem, pois a lingua a que o poeta remete nio € simplesmente o érgio humano, é a lingua materna constantemente representada pela figura da mae ou, como esti no poema, da madre. I 0 que podemos ver em outro texto de Leal, “No teino das mies: notas sobre © poético em Herberto Helder” (2008), que afirma que o embate entre pocta ¢ lingua materna/mae pata ctiacio de um idioma proprio é necessitio A formacio do poeta que nio se daria sem uma “certa dose de violéncia [...” (LEAL, 2008, p. 127). Na busca pelo seu idioma poético — aquilo que o distingue dos demais — 0 poeta se insurge contra a lingua materna, sua mic que o acolhcu tio afetuosamente cm seu scio. ssa insurrcigio, por parte do pocta, € oriunda do desejo de amadurecimento que ele nutre em relagio & poesia, ao seu fazer poético, tornando-se perante a lingua materna o “Filho intratével”. Filho este que devora sua prépria mie, enquanto cla morre: Devorus-ie enquante morto até aos nics do outo ta sotnbre. {Um dia tocaram-me nos contros doces ¢ahrasados vi que os expelhos se moviam entre os polos, os rostos enfxavam-me no me roto arco ‘arco mia dnice matit. Ea doe? A noite bebo agua quiets, dormo, 2 chamas desatam se. B € com isto que sonho, imagem is Fase, 0 Sitio selvagem mas suavissimo,absolutoa imagem inabitvel que ea habit, um dom] Porgue so hos vivo da minha agua vibranc, do mea félego, mio a mio dos raios de quando adoxmego. Revista MOARA, a, p.70-8, jan./jun, 2014, Estados Literirios 7 Haroldo de Campos ¢ Herberto Helder: a Antropofagia como eriagko poética (HELDER, 2006, p. 472) Neste fragmento de Os selos,ontros,stimos (2006) 2 mie, apesar de estar sendo devorada pelos filhos, nfo demonstra nenhum ressentimento contra eles, 20 contratio, demonstra serenidade e resignacio. E, como se ela soubesse que essa devoragio fosse necesséria para que eles amadurecam, pois somente assim o seu dom, que esti escondido nas profundezas das Aguas, seri descoberto. Fi possivel perceber na poesia herbertina que a figura da mie esti intrinsecamente ligada 4 figura da 4gua, sendo que uma possivel explicagio para isso residiria no fato de que mae e agua sio metaforas para vida e energia, Com isso, concluimos que a antropofagia hetbertiana visa a uma cria¢io poética de sentido estritamente pessoal, onde as meviforas para a devoracio da tradigio sao miltiplas, porém todas apontam para a necessidade de manter © que hé de mais essencial na poesia: a inspiragio, a linguagem € a ctiacio. Consideragées finais A convergéncia antropofigica existente entre Hatoldo de Campos ¢ Hetberto Helder é a compreensio da antropofagia como instrumento de selegio ctitica para a ctiacio de uma poética que renega os padres estabelecidos pela tradigio em prol da valorizagio de obras € autores esquecidos por ela, caracterizando, desta maneira, um didlogo entre passado ¢ presente, onde a critica teri papel fundamental, pois a (re)visitagio do passado pelos poetas teri como objetivo a busca de “novas” formas poéticas, estéticas e artisticas possiveis de serem atualizadas nas posticas do presente. Harold de Campos dir que a caracteristica da arte do nosso tempo — isso em meados dos anos 70, mas que pode muito bem ser aplicado aos dias atuais — & que ela “é cada vez mais uma arte ‘metalinguistica’, ou seja, uma arte critica [onde] 0 poeta faz continuas operacées criticas” (CAMPOS, 1977, p. 74), 0 que nos fax ver que o trabalho poético empreendido por cle ¢ por Herberto Helder é um constante proceso, de critica ¢ releitura da tradigio. Trata-se de um minucioso trabalho de transformagio da histéria por meio da linguagem, que em Haroldo é mareado pela critica e pela refl Herberto Helder pelo destegramento pela violéncia. Para finalizar, com a leitura do ensaio “Tradi¢ao da Ruptura” (2013), de Octavio Paz, podemos pensar as obras poéticas de Haroldo de Campos e Herberto Helder como exemplos da chamada tradicio da ruptura, ou melhor, da tradicio moderna, por serem obras que Propdem o rompimento da poesia com os padrécs universais da tradi¢ao, jé que clas valorizam o passado para poder romper com o presente institucionalizado e ideolégico da sociedade moderna, para, em seguida, propor uma nova tradigio que seri baseada na diferenga ena heterogeneidade. Na antropofagia, a releitura critica ¢ criativa do pasado nfo ocorreri a partir de qualquer obra. Somente as obras com alto teor criativo, estético © poético serio relidas pelo fato de que elas servirio como fonte de reflexio para o presente. Por isso, podemos dizet que as escolhas de Haroldo de Campos ¢ de Herbetto Helder sio cons Segundo Paz (2013, p. 21), essa consciéncia é a principal caracteristica da tradigo da ruptura: nte Aquele que sabe que pertence a uma tradigZo ja sabe, implicitamente, ser diferente dela, ¢ esse saber o leva, mais cedo ou mais tarde a q as veres, a negi-la. A critica da tradigio se inicia como consciéncia de pesteneet a uma tradigio. uestion A consciéncia de fazerem parte de uma tradigo ¢, consequentemente, da mudanga que operam sobre ela faz com que Haroldo de Campos ¢ Herberto Helder sejam considerados poctas originais ¢ talentosos. Para Campos ¢ Helder, a mudanga ¢ a novidade sio produzidas Revista MOARA, ai, p.70-81, jan,/jun, 2014, Fstados Literirios 7 Geovanna Marcela da Silva GUIMARAES; Izabela Guimaties Guerts LEAL por um gesto antropofigico encenado como manifestagio de uma tradigZo nfo estanque ¢ convocadora, que de uma hora para outra, como uma tevelagio, chama o poeta apto para renové-la e ressignifici-la, pois € do pasado que emerge 0 nove. REFERENCIAS CAMPOS, Hatoldo de. “Da razio antropofi I -Metalinguagem e Outras Meta Perspectiva, 2010, p. 231-255, gica: didlogo ¢ diferenca na cultura brasileita”, aios de teoria € critica. 4. ed. Sio Paulo: “Minha relagio com a tradi¢ao € musical”. In: _Metalinguagem e Outras ‘Metas: ensaios de teotia € critica. 4. ed. Sio Paulo: Perspectiva, 2010, p. 257-267. Finismundo: a tiltima viagem, Tipografia do Fundo de Ouro Preto, 1990, “Transctiagio, Tradugio, Transculturagio: o ponto de vista do ex-céntrico”, In: TAPIA, Marcelo; NOBREGA, Thelma Médici (Orgs). Haroldo de Campos — Transcriago, Sao Paulo: Perspectiva, 2013, p. 197-205, “Aspectos da poesia de vanguarda no Brasil e em Portugal: Entrevista de Haroldo de Campos a EM de Melo e Castro”, In: Ruptura dos géneros na literatura latino- americana. Sio Paulo: Perspectiva, 1977, p. 51-75, DANIEL, Claidio. “Um otiente além do oriente: releituras de Haroldo de Campos”, In: TENORIO DA MOTA, Leda (Org). Céu acima: para um “tombeau” de Haroldo de Campos. Sao Paulo: Perspectiva; Fapesp, 2005, p. 183-191 FERREIRA DE ALMEIDA, Maria Candida, “S6 a antropofagia nos une”. In: MATO, Daniel (Coord.). Estudios y otras practicas intelectuales latinoamericanas em cultura y poder. Caracas: Clacso (Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales), p. 122-132, 2002. Disponivel em: Acesso em: 05/01/2014. GUERREIRO, Ana Licia. “A ‘Antropéfaga festa’, metafora para uma ideia de poesia em Herberto Helder”. Diacritica, Ciéncias da Literatura, n. 23, v.3, p. 9-22, 2009, Disponivel Acesso_em: 10/04/2014. HELDER, Herberto. “A Colher na Boca”. In Ou poema continuo. Si0 Paulo: Girafa Editora, 2006, p. 7-100. “Lugar”. In: - Ou poema continuo, Sio Paulo: Girafa Editora, 2006, p. 1 180. “Os selos”. In: Ou poema continuo. Sao Paulo: Girafa Editora, 2006, p. 437 465. “Os sclos, outros, iiltimos”, In: Ou poema continuo, Sio Paulo: Girafa Editora, 2006, p. 467-480. “Exemplos”. In: Ou poema continuo. Sio Paulo: Girafa Editora, 2006, p. 301-314, Revista MOARA, ai, p.70-8, jan. jun, 2014, Estados Literirios 3 Haroldo de Campos ¢ Herberto Helder « Antropofagia como eriagio poética Poemas Amerindios: poemas mudados para 0 portugués. Lisboa: Assirio & Alvim, 1997. (Org). Edoi Lelia Dora: antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa. Lisboa: Assitio & Alvim, 1985. LEAL, Izabela. "Herberto Helder ¢ os dispositivos de didlogo cultural”. In: BUENO, Lufs; SALES, Germana; AUGUSTI, Valéria (Orgs). A tradigao literdtia brasileira: entre a periferia e 0 centro. Chapecé: Argos, 2013, p. 203-219, “No reino das mies: notas sobre a poética de Herberto Helder”. In: Cadernos de Letras da UFF: Dossié Literatura, Lingua ¢ Identidade, n. 34, p. 127-138, 2008. Disponivel em: < hitp://www.uff-br/cadernosdeletrasuft/34/artigo8.pdf>. Acesso em: 08/01/2014. LIMA, José Lezama. A expressio americana. ‘Tradugio Irlemar Chiampi. Si0 Paulo: Brasiliense, 1988. OSEKL-DEPRE, Inés. “Make it new”. In: MOTA, Leda Tendrio da. (Org.). Céu acima: para um “tombeu"de Haroldo de Campos. Sio Paulo: Perspectiva: Fapesp, 2005, p. 213-220. Os filhos do barro: do romantismo a ‘osac Naify, 2013. PAZ, Octavio. “Tradigio da Ruptura”. In: vanguarda, Traducao Ari Roitman ¢ Paulina Wacht. Sio Paul “Invengio, Desenvolvimento, Modernidade”. In Signos em Rotagio. Sio Paulo: Perspectiva, 1996, p. 133-137. RICOEUR, Paul. Sobre a Tradugao. Traduca de Patricia Lavelle, Belo Horizonte: Editora UEMG, 2011 SANTAELLA, Lucia. “Transcriar, Tranasluzir, Transluciferat: a teoria da tradugio de Haroldo de Campos”. In: TENORIO DA MOTA, Leda (Org). Céu acima: para um “tombeau” de Haroldo de Campos. Sao Paulo: Perspectiva; Fapesp, 2005, p. 221-232, SCHOLLHAMMER, Karl Erik. “A Antropofagia ¢ os limites da representacio”. In: Além do visivel: o olbar da literatura. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007, p. 195-207. TORRES, Rui. “Camées Transformado ¢ Re-montado: 0 caso de Herberto Helder”, Revista Callema, n. 1, p. 58-64, nov. 2006. Recebido em 21/04/2014 Aprovado em 23/08/2014 Revista MOARA, ai, p.70-81, jan,/jun, 2014, Fstados Literirios a

Você também pode gostar