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ENRIQUE RICARDO LEWANDOWSKI PRESSUPOSTOS MATERIAIS E FORMAIS DA INTERVENCGAO FEDERAL NO BRASIL 2" edigdo revista, ampliada e atualizada ic ph — © Forum 2018 (© 1994 ei tor Rei ds Ts ‘Sams ine Eos Four is. pid ero tl ou pln ca, por gage io trina "Geel por tro cop en snare epee oa. ‘Conecho Eitri Alan Abe Dallss rian de Aevdo Magus Neto ‘sia holt Nepuce cao Gusta frie de Olea ‘snc Coho opin) Ind Vigan Prod Sta “Knits eaee Jere Ubon Fern Crirtprrieae lcs ne Cs fere Marco Cammarano cS Rin) Marco Etude Dior Addlseicet Gatt_ Mars pia ane ie Dee oc trdimmm ee Osreldo thn Pe Sra Fike vce Mats Roreu Fee Bacar Fike FemunoReetSéroGaere iva Henig UmsPerea_Walber dou Agra ©) Férum pee eee elo Horzte” ns Geri e122 900/212. 188 sewers crt loafer. {ishp Levande Bion Rear ‘rapes ise fomainterwnsofeert ‘no Bra ge Rear Lewandowa 2 ed ~ Bo Flsnt: Frum 208 TN srs 088.2 1. Di, 2 Dnt Conatcoa.3. Cnc pita 4 tferengio fede Ti Tnlagi Wepre deze to, cnorme «NOR da ‘asa ear de Noro Te (NT) {LEWANDOWSKL Ensue Rear, Pope mais fra dt Intro on 2 Blo Homie Fr, 8176p INTRODUGAO, Estado Federal consiste numa unido permarente e indissoluvel de entes politicos, dotados de autonomia, que tem por fundamento uma constituicao 4 qual todos se submetem. Trata-se de uma forma de organizagao estatal que assegura aos seus membros 0 desfrute das vantagens da unidade, a0 mesmo tempo em que preserva os beneficios da diversidade. ‘A federacao é um fenémeno novo historicamente. Surgiu da unio proviséria das treze ex-col6nias britanicas na América do Norte, que se transformaram em Estados soberanos depois de 1776. Apés se libertarem do jugo colonial, elas se associa- ram definitivamente, mediante a adesio a uma constituicéo comum, em 1787, momento em que surgi um novo Estado, a partir da fusdo dos entes politicos que a subscreveram. Nao se confunde com uma confederacao, que é uma unio precaria de Estados, restrita consecucao de fins econdmicos ou militares, e que tem como base juridica um tratado de direito internacional. Uma federagio (termo que vem do latim foedus, foederis) configura uma unio permanente e indissolivel de entes politicos (estados, provincias, Linder, cantdes etc), que ndo admite a secessdo, e tem como elo uma constituigao compartilhada. Por suas caracteristicas, a federagio repousa sobre um delicado balango de forcas. De um lado, estimulos desagre- gadores militam no sentido de fragmentar a associagao. De 12 | FRStivomorsiratnn emans DA nTeRVENGAO FEDERAL NO BRAS. outro, impulsos de cardter centralizador atuam na linha de aplainar as individualidades. Para preservar esse precario equilibrio, a técnica constitucional desenvolveu alguns meca- nismos estabilizadores, que vao desde a solucao dos dissidios internos por um tribunal especializado, até a intervenco do conjunto dos associados em determinada unidade federada para a restauracdo da harmonia institucional. A intervencao em uma unidade federada, embora cons- titua, pela propria natureza do sistema, medida de caréter excepcional, foi largamente empregada no Brasil, sobretudo nas primeiras décadas da Republica, como instrumento de pressio do governo central sobre liderancas politicas locais. Os abusos verificados na utilizago da intervencao federal, ao longo da historia republicana brasileira, ensejaram importantes modificagées no instituto ao nivel constitucional, de maneira a compatibilizar a autonomia dos entes federados com a necessidade de preservar a estabilidade do sistema, segundo regras de convivéncia democritica, O presente estudo analisa a origem do instituto e sua evolugo nas Constituigdes do Pais, delineando os pressu- postos materiais e formais da intervencao federal no direito vigente, ao mesmo tempo em que examina as transformagées que sofreu, a luz das vicissitudes do federalismo brasileiro. CAPITULO 1 O FEDERALISMO BRASILEIRO, 111 Formas de Estado - 1.2 Confederagaes FederacGes ~1.3 Caracteristicas do Estado Federal - 1.4 Transformagées do Federalismo ~ 1.5 Evolugéo do Estado Federal no Brasil 1.1 Formas de Estado Quando se analisa as formas de Estado, a pesquisa concentra-se na estrutura apresentada pelos diferentes Estados, ‘ou seja, em seus aspectos morfoldgicos, ao passo que quando se examina as formas de Governo a atencao incide sobre 0 modo como se expressa 0 poder estatal, prendendo-se ora aos valores ideol6gicos que 0 inspiram, ora as técnicas de sua organizacao! Para a anélise do federalismo importa, funda- mentalmente, examinar os Estados quanto a sua conformagao interna, identificando as diferentes unidades que os integram, reservando-se a discussao concernente as questdes axiologi- cas ¢ ao relacionamento dos érgios governamentais entre si, respectivamente, para estudo da monarquia e da republica ou do parlamentarismo e do presidencialismo? TCE. BONAVIDES, Paulo, Formas de Estado e de Governo. In: BONAVIDES, PPtilo. Curso de introdugto 8 ciéncia politica. Brasilia: Ed. da UnB, 1979. p. 47. > Alguns preferem reservar a expressio formas de Governo para a repiblica e a ‘monarquia,utilizando o conceito de sisiemas de Governo para o presiciencialismo co parlamentarismo, tal como a Constituicio Federal no art. 2° de suas Disposi- (608 Transitérias. “ sons wei FYORIASDAINTVENCKO FEDERAL NORMA. Tradicionalmente, a0 se analisar os Estados sob a perspec- tiva de sua morfologia interna, duas categorias sao entrevistas: 0 Estado unitirio eo Estado composto.* Estado unitério “é aquele que no possui sendo um unico centro de impulsao politica e governamental’” Tal tipo de estruturagao estatal nao comporta, pois, divisdes internas. As circunscrigdes territoriais em que este eventualmente se subdivide nao sdo dotadas de autonomia politica. No maximo, outorga-se as diferentes regides que o integram um certo grau de autonomia administrativa, de modo a emprestar maior eficdcia A agdo governamental. Nessa forma de Estado, por- tanto, todos os cidadaos submetem-se a um tinico governo e a.uma mesma lei. Via de regra, Estados de dimensdes territoriais pequenas e com populagdes homogéneas adotam esse tipo de estrutura Além da Franga, que historicamente sempre se apresentou como Estado unitdrio, pode-se citar o exemplo da Italia, Espanha, Portugal, Bélgica, Holanda, Suécia, Dinamarca, Noruega, dentre outros.> Os Estados compostos so aqueles que se apresentam como uma unigo de dois ou mais entes politicos, dotada de maior ou menor estabilidade, conforme o regime juridico que caracterizaa sua vinculagio. Em que pese a existéncia de outras tipologias, identifica-se, como regra, duas espécies de Estado sob essa rubrica: as confederagdes e as federagdes* ‘CE BURDEAU, Georges. Droit constitucionnel et institutions politiques. 17. ed Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1976. p. 49-50. + id Bid, p. 50 > Vale notar que alguns autores repudiam a generalizagio do conceito de Estado uunitirio, entendendo que o mesmo nao permite caracterizar adequadamente os Estados intogrados por regides dotadas de elevado grau de autodeterminacio, ‘como é 0 caso da Espanha e da Itilia, destacando-se, nessa linha, GONZALES ENCINAR, José Juan. E! Estado Unitéio-Federal: Ia autonomia como principio ‘estructural del Estado, Madeid: Tecnos, 1985. p. 63-70. + CE BURDEAU, Georges. op. ct, p. 50-54. Para uma classificagio distinta e mais, ‘exaustiva, v. MALUF, Sahid. Teoria geval do Estado, 20. ed. $30 Paulo: Saraiva, 1990. p. 159-168 1.2 Confederagées e Federagdes A palavra federalismo vem do latim foedus, foederis, que significa liga ou tratado. E, de fato, uma federagao constitui, em sua acepgao mais simples, uma unido de estados ou de grupos sociais organizados que, tendo por fundamento um. acordo de vontades, visa & consecugao de objetivos comuns. Sao intimeros os exemplos histéricos de unides institucio- nalizadas de esforgos, mais ou menos permanentes, com vistas a0 atingimento de fins determinadose, via de regra, limitados. Pode-se mencionar, nesse sentido, a Liga Acaica, fundada no século IV aC, que reunia doze cidades-estado gregas, obje- tivando a defesa miitua contra incursdes de piratas no Golfo de Corinto. Bem mais tarde, registra-sea Liga Hansedtica, que, entre 08 séculos XIII XV da nossa era, chegou a reunir mais de cem cidades no norte da Europa com a finalidade de desenvolver ‘0 comércio no Mar Baltico e promover outros interesses dos participantes da associagio. Nota-se, porém, que essas e outras associagdes do género, jamais passaram, até o final do século XVIII, de unides precé- rias, coordenadas por uma autoridade central lassa, exercida 1nos estritos limites dos objetivos comuns. Os participes sempre retiveram plena liberdade da atuacao, naquilo que respeitasse aos seus interesses particulares, e conservaram a possibilidade de, a qualquer momento, abandonar a unio. ‘A Teoria do Estado guarda para esse tipo de associagio 0 nome de confederacio, identificando uma unio estavel de entes politicos, estruturada para a consecucao de fins especificos, cuja principal caracteristica é a preservacao da autodetermi- nacio de seus membros e a possibilidade de secessao. O do- cumento que Ihe serve de base é 0 tratado, instrumento tipico de direito internacional” CL, SPOTA, Alberto Antonio. Confederacin y Estado Federal. Buenos Aires Cooperacdora de Derecho y Ciencias Sociales, 1976. p. 2542, 15 16 | ustrostossetonas eros nERVENGAOEDERALNO BEASL ‘Uma das mais antigas confederagées, organizada com 0 sentido acima descrito, é representada pela Confederagao Heloética, fundada em 1291, por trés cantées suigos, com 0 obje- tivo de conjugar esforgos contra 0 dominio dos Habsburgos e propiciar auxilio reciproco em diversas questdes. Pos- teriormente, no ano de 1848, coma adesao de outros cantées, a Suica transformou-se em Estado Federal, mantendo, contudo, a denominacio original.* A confederagio, como associagio de Estados soberanos, constitui uma forma de conjugagao de esforgos, no ambito internacional, que revela ainda hoje grande potencialidade, em especial nos planos militar e econémico, nao sendo raros os exemplos nesse sentido, com destaque para a Unido Europeia, cujo vinculo apresenta claro caréter confederal? conceito de confederagio, todavia, nao se confunde com o de federagao, no sentido estrito do termo, compreenden- do esta uma unio de Estados, em carter permanente, que faz surgir um terceiro Estado, com a perda da soberania daqueles que se associaram originalmente. Algo de novo em termos histéricos, o Estado Federal resultou do génio dos constituintes norte-americanos de 1787, que o conceberam sem o amparo de qualquer experiéncia concreta anterior. A federacao norte-americana surgiu na pratica, com a superacao do pacto confederativo celebrado entre as treze an- tigas colénias britdnicas da América do Norte, transformadas em Estados soberanos, logo apés a Declaragio de Independéncia de 1776. A confederacio, organizada com o escopo de fazer frente A inimiga comum, a Coroa Inglesa, logo esgotou as © Para um apanhado histbrico sobre o pacto confederativo de 1921 ea atuagio de Guilherme Tel, herdifundador da Sug, v. MAUGUE, Pierte. Guillaume Tell 1a tradition celtque: le mythe et Vhistorie. Paris: La Maisie, 1985. p. 101-118. + V. sobre a questio BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Terie geral do federa- lismo. Rio de Janeiro: Forense, 1986. p. 253, conpauswossnsne | 17 suas potencialidades, sobretudo em fungio da fragilidade dos vinculos entre os Estados associados e a falta de eficécia de sua atuago conjunta, fazendo com que estes, revendo os chamados Artigos de Confederagao, adotassem uma constituicéo comum, depois de longas e acaloradas discussdes de seus represen- tantes, reunidos na cidade de Filadélfia, em 1787. Conforme ficou decidido no conclave, a Constituigao passaria a vigorar depois de ratificada por, pelo menos, nove dos integrantes da confederacao. A Convencao de Filadélfia, ao ensejar a transmudagio de uma alianga precdria de Estados numa uniao permanente de entes politicos, sob a égide de uma Constituicao comum, trouxe a lume uma inovagao que passou a ser largamente adotada nas mais diferentes regides do globo, especialmente porque ela se apresentou como uma forma de organizacao estatal que permitia a vantajosa conjugagao de recursos materiais e hu- ‘manos pertencentes aos distintos associados, sem o sacrificio dos particularismos locais. Uma federacao consiste, pois, em linhas gerais, numa associacao de entes politicos que, buscando uma integracao harménica de seus destinos, transmudam-se num tinico Estado soberano, a0 mesmo tempo em que reservam para si, constitu- cionalmente, uma esfera de atuacdo autOnoma, Essa autonomia se traduz no poder de autogoverno, que inclui a possibilidade de escolha dos proprios governantes e a capacidade de decidir sobre assuntos que Ihes digam respeito.” © V. sobre o assunto CORWIN, Edward S. American constitutional history. New ‘York: Harper & Row, 1964. p. 15-24, e BOWEN, Catherine Drinker. Miracle at Philadelphia: the story ofthe Constitutional Convention May - September 1787. New York: Bantam, 1968. p. 111-122. CE DALLARI, Dalmo de Abreu. © Estado Federal. $0 Paulo: Atica, 1986. p. 18. 18 | Rissircmossermas Protas a eexvencAoeDERAL NERA 1.3 Caracteristicas do Estado Federal ‘Tendo em vista a multiplicidade de FederagSes que exi tem atualmente e a rica elaboragio tedrica sobre o assunto, 6 dificil precisar, visto que néo ha unanimidade em torno do tema, quais as caracteristicas essenciais do Estado Federal, embora seja possivel identificar, no minimo, quatro atributos basicos: (i) reparticao de competéncias; (ii) autonomia politica das unidades federadas; (iii) participacdo dos membros nas decisées da Unido; e (iv) atribuicgo de renda propria as esferas de competéncia.” No que concerne a reparti¢ao de competéncias, é preciso que se diga que essa é uma das caracteristicas mais importantes da Federacio, prendendo-se, inclusive, a hist6ria dessa institui- do. Com efeito, quando as ex-coldnias britanicas da América do Norte, j4 transformadas em Estados soberanos, se uniram em torno de um governo central, mantiveram praticamente intactos os poderes que originalmente detinham, transferindo 8 Unido, de forma taxativa, apenas as competéncias que dis- sessem respeito as questdes de interesse geral. Essa é, preci samente, a origem da grande autonomia que, até hoje, gozam as unidades federadas nos Estados Unidos. Por esse motivo, “o problema das competéncias” - como observa Dalmo de Abreu Dallari ~“pode ser considerado o ponto central da organizacao federativa’.” E, de fato, isso é assim, porquanto a amplitude da autonomia é diretamente proporcional a extensio da esfera de competéncias atribuidas ao ente politico. Como regra, as constituigdes dos Estados Federais, inclusive todas as brasileiras, adotaram a formula segun- do a qual compete aos entes federados tudo o que nao for ® Para um estudo comparativo das diferentes formas de associagio federativa, v. DUCHACEK, Ivo D. Comparative federalism: the territorial dimension of politics. New York: Halt, Rinehart & Winston, 1970, especialmente p. 188-275, » DALLARI, Dalmo de Abreu. O Estado Federal, cit, p. 18. onmeausomaatano | 19 atribuido & Unido. O governo central, portanto, exerce apenas as competéncias que lhe sio expressamente deferidas na carta ‘magna, cabendo aos integrantes da federacao o chamado poder residual:* Compreende-se, pois, que, quanto mais poderes se defere & Unido, tanto menor serd 0 Ambito de atuacao dos demais integrantes do pacto federativo.® Com relagéo & autonomia politica das unidades fede- radas, cumpre notar que elas gozam tradicionalmente do poder de autogoverno e auto-organizacéo, sendo, na verdade, a preservacio de uma esfera de competéncias propria mera consequéncia desse fato. Deve-se observar, por oportuno, que a questo da existéncia de uma soberania estadual ow local encontra-se de longa data superada pela doutrina, que apenas reconhece a autonomia das unidades federadas, ou seja, a capacidade que estas possuem de determinarem os respectivos destinos por meio de leis préprias, dentro das balizas estabelecidas pela constituigo comum. A soberania, como poder incondicionado de manifestagao da vontade, ¢ atributo exclusivo do Estado Federal, nova entidade politica resultante da unio indissokivel dos membros da federagao."* No que tange & participacao dos entes federados nas decisdes da Unido, verifica-se que, historicamente, as antigas col6nias britanicas, é transmudadas em Estados, ao abdicarem da soberania, nao desejaram ficar totalmente sujeitas ao go- verno central. Constituiram, entao, um Senado, integrado por = V, sobre o conceito WILLIAMS, Jerre S. Constitutional analysis. Saint Paul: West, 1979. 146. "© Vale observar que, além da técnica de reparticio de competincias que outorga 0s Estados-membros o poder residual, dotada na Argentina, México Austria, fentre outros, registra-se também a atribuicio de poderes enumeraclos a0s Estados-membros e 05 remanescentes & Unido, empregada no Canadé, ¢ ainda a especificagio das competéncias dos Estados-membros e da Unio, tal como ‘ocorre, por exemplo, na Venezuela. % CE DALLARI, Dalmo de Abreu. Elements de teoria geral do Estado. 16. ed. S80 Paulo: Saraiva, 1991, p.218; e KELSEN, Hans. Teoria general del Esta. México: ‘Nacional, 1975, p. 153. 20 | Seetroernriia#FOBLAISO4 NTERENGAO RDERAL NOMA. todos os membros da federacdo, de modo a garantir a estes 0 controle sobre as decisdes que Ihes dissessem respeito. A partir disso, passou-se a assegurar, na maioria das federacdes, uma participacio igualitaria as unidades federadas na Camara Alta, reservando-se a outra Casa legislativa para a representacao popular.” Provavelmente, a caracteristica mais relevante do Estado Federal - pelo menos a que apresenta maiores consequéncias de ordem pratica -, ao lado da questao da distribuigo de competéncias, seja a atribuicao de rendas préprias as unida- des federadas, Com efeito, é indispensdvel que o participe da federacio, que exerce a sua autonomia dentro de uma esfera de competéncias prépria, seja contemplado com a necessaria contrapartida financeira para fazer face as obrigagdes decor- rentes do exercicio pleno de suas atribuigdes. Modernamente fala-se, inclusive, em autonomia financeira. Dalmo de Abreu Dallari, a propésito, sublinha que quem confere competéncias, na verdade, esta transferindo encargos, sendo imprescindivel atribuir-se ao ente politico as rendas adequadas para que possa desempenhé-los satisfatoriamente:* Com efeito, sem autonomia financeira, a autonomia politica de que, por definigao, é dotado o membro da federagao, sera apenas nominal, porquanto nao pode agir com independéncia aquele que nao possui recursos préprios. 1.4 Transformacées do Federalismo federalismo praticado nas diferentes partes do mundo acompanhou, de certo modo, as vicissitudes do Estado Federal norte-americano, o qual se caracterizava, em seus primérdios, ® V, sobre a questo BONAVIDES, Paulo. Ciéncia politic. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 214-215, ™ DALLARI, Dalmo de Abreu. O Estado Federal cit, p. 20. onomaswoseanano | 21 por uma rigida separacao de esferas de competéncia, mutua- mente exclusivas e reciprocamente limitadoras. Nesse estagio de desenvolvimento do sistema, havia uma rigida separacao entre a autoridade federal e local, razo por que esse federa- lismo passou a ser conhecido como dual. Segundo Manoel Gonealves Ferreira Filho, o ideal, nesse tipo de federalismo, consistia em separar dois compartimentos estanques, opondo a Unido aos Estados-membros, por meio da adocao da técnica da reparticao vertical de competéncias e da atribuigao de tributos exclusivos.” ‘Como nota Bernard Schwartz, esse federalismo dual constitui o complemento necessério A doutrina do laissez-faire, no plano econémico e social, correspondendo a um maximo de descentralizacao politica ea um minimo de intervencionismo estatal® Especialmente a partir do New Deal de Roosevelt, na dé- cada de 30 do século passado, o Estado cresceu, hipertrofiou-se. De um Estado Gendarme, voltado preponderantemente para a manutengao da ordem interna e a defesa contra agressées externas, o Estado transformou-se em um ativo prestador de servicos, passando a desempenhar um papel cada vez. mais propositivo. Observa-se que a intervencao estatal nos planos econémico e social deu-se obviamente em escala nacional, eis que dificilmente ela seria eficaz caso se restringisse apenas ao nivel local, porquanto se tratava, como se sabe, de superar a cri- se econémica em que se debatia a sociedade norte-americana, duramente atingida pela Grande Depressio, desencadeada a partir da débicle financeira de 1929 FERREIRA FILHO, Manoel Goncalves. Curso de dieito constitucional. 17. ed. Sio Paulo: Saraiva, 1989. p. 45 » SHWARTZ, Bernard, 0 federalismo norte-americanoatual. Rio de Janeiro: Forense Universitaria, 1984. p. 29.30, * CE. Ibid, p.30-32 22 | pusurcsoessreiasPYOmIAs DA NTERVENCAO FEDERAL NO MAS Sem embargo da resisténcia inicialmente oposta pela Suprema Corte dos Estados Unidos, anova postura do Governo Federal acabou por prevalecer, deixando como saldo extensa legislacao no campo das relagées trabalhistas e a consolida- 40 do intervencionismo estatal, especialmente no plano da produgio e do consumo.” ‘A essa expansao do Estado, que se concretizou, basi- camente, por meio do Governo Federal, correspondeu tam- bém uma ampliacao da capacidade de imposicao fiscal por parte da Unido, com fundamento no art. I, seco 8, item 1, da Constituigio, que se encontra vazado nos seguintes termos: “O Congreso teré poder para lancar e arrecadar impostos, direitos, tarifas e licencas, para pagar dividas e dispor sobre a defesa comum e o bem-estar dos Estados Unidos’, Tal amplia- cdo da capacidade impositiva da Unido mereceu o beneplacito da Suprema Corte, que apontou para o fato de que os tributos tém também uma fungéo extrafiscal, imprescindivel & atuacao governamental para regular a economia Na verdade, o setor privado nao possuia os recursos necessérios para fazer frente aos enormes problemas gerados pela crise econémica dos anos 30, em especial os atinentes a0 desemprego e & expansao da pobreza, passando a aco estatal corretiva basicamente para o ambito da Unido, que chamou asi o papel de promover a seguranga econémica e social dos individuos, dando inicio ao que se convencionou denominar de Welfare State, ou Estado do Bem-Estar.* = Para anilise desse momento histéricoe dos confrontos do Presidente Roosevelt com a Suprema Corte, v. ALLEN, H. C. Histria dos Estados Unidos da América Rio de Janeiro: Forense, 1964.p. 250.251, e ABRAHAM, Henry J, Justices and Presidents: politcal history of appointments tothe Supreme Court. 2.ed. New York: Oxford, 1985. p. 206-236. ® Cf, SHWARTZ, Bernard. op. cit, p. 36-37. % Cf. MORRIS, Michael; WILLIAMSON, John B. Powerly and public policy: an analysis of federal intervention efforts. New York: Greenwood, 1986. p. 8-12. onmeauswosecaine | 23 Outra forma de incremento da agao do Governo Federal consistiu. no repasse de auxilios e subvengdes aos Estados- membros, dentro da politica de superagao da crise econdmica. Com essa iniciativa, Estados e governos locais passaram a ser contemplados com verbas generosas, as quais, no entanto, vinham rigidamente condicionadas quanto & destinacao e ao modo de aplicagao. A Unido, assim, passou a conceder, numa pratica que se mantém até os dias atuais, verbas para o custeio da satide publica, o amparo aos desempregados e a promocao do bem-estar materno-infantil, bem como para outras aplica- ‘ges no campo social, subordinando os Estados aos padrées de investimento previstos na legislacao federal. ‘A partir dessa evolugao desapareceu o federalismo dual, baseado na igualdade entre a Unido e os Estados-membros. Evoluiu-se, entéo, para 0 chamado federalismo cooperativo, no qual se registra um entrelacamento de competéncias e atribuigées dos diferentes niveis governamentais, com franco predominio da Uniao. Nao obstante falar-se, hoje, nos Estados Unidos, em um nove federalismo, como uma espécie de reva- orizago da autonomia estadual, especialmente mediante a aboligdo de grande parte dos controles na aplicagao das verbas federais, a verdade é que a supremacia do governo central parece ter se tornado definitiva. ‘Com efeito, voltar ao federalismo classico dos fins do sé- culo XVIII seria entregar-se 4 busca de uma quimera, conforme nota Bernard Schwartz, ponderando que o Governo Federal, que superou uma violenta depressao econémica e capitaneou o pais em duas grandes guerras globais, elevando-o a lideranca mundial, dificilmente retornaré aos limites assinalados pelos constituintes de 1787. A sua previsio, contudo, é no sentido ‘Para uma descriglo e avallagio critica dessa forma de transfertncia de recursos, v. REAGAN, Michael D; SANZONE, John. The new federalism, New York: (Oxford, 1981. p. 124-153. 24 | jrsurosresuarenAls PORAISOA NTERENGHOFEONRAL NOMA. de que, inobstante a tendéncia de crescimento da esfera de competéncias da Unio, essa hipertrofia nao acarretard o de- saparecimento dos Estados, porque, dentre outros motivos, a prestacio dos servicos basicos a coletividade deverd continuar sob a responsabilidade dos governos locais.* Essa evolugdo, que alguns denominam de “centralizagao” do federalismo, nao se limitou apenas aos Estados Unidos, visto que as condigées sociais, politicas e econdmicas por ela responsaveis também se reproduziram, mutatis mutandis, em outras partes do mundo onde foi adotado.” O proprio avanco teenolégico, que dia a dia rompe a barreira da distancia — um dos principais fatores responsdveis pela descentralizagéo federal —facilita a acdo do poder central sobre as comunidades localizadas nos pontos mais distantes do territério do Estado. Vislumbrando ja a superacao do federalismo cooperati- vo, caracterizado por uma reparti¢ao vertical e horizontal de competéncias, aliada a partilha dos recursos financeiros, sob a hegemonia da Unido, Manuel Gongalves Ferreira Filho anuncia © advento do federalismo de integracao, o qual “acentuaria os tragos do cooperativo, mas que o resultaria, antes, num Estado unitério constitucionalmente descentralizado do que num verdadeiro Estado Federal’ 1.5 Evolugao do Estado Federal no Brasil O Brasil, consoante é sabido, encontra-se organizado politica e administrativamente como uma Repiiblica Fede- rativa, Essa conformacao do Estado brasileiro veio a lume com a proclamacao da Republica, em 1889, consolidando-se & SHWARTZ, Bernard. op. cit, p. 64 ¢73-75. » ¥, nesse sentido RIALS, Stéphane. Destin du Federalisme, Paris: Librairie Générale de Droit et de jurisprudence, 1986. p. 29-32 * Cf. CAMPOS, Bidart. Derecho politico 2. ed. Buenos Aires: Aguillar, 1972. p. 4. FERREIRA FILHO, Manoel Gongalves. Curso de ireito constitucional cit, p. 45. ormrmausnsensann | 25 definitivamente com a primeira Constituicao republicana, que passou a vigorar a partir de 1891. Recorda-se que a Federacao foi implantada provisoriamente no Pais por meio do Decreto n° 1, de 15 de novembro de 1889, que adotou a Repiiblica como forma de governo e fixou “as normas pelas quais se devem reger os Estados Federais’. Antes desse momento, mais precisa- mente, de 1824, ano da promulgagao da primeira Constituigo, até 1889, data da proclamagio da Republica, o Brasil constituia um Império, estruturado como um Estado unitério, que se subdividia em provincias, com autonomia muito limitada. Nota-se que os ideais federalistas, perto do final do sé- culo XIX, encontravam-se intimamente entrelagados com as, aspiracdes republicanas, como resultado de uma oposiggo monarquia centralizadora e autocratica entao vigente.” Além disso, as dimensées continentais do Brasil, aliadas is diferen- gas socioculturais entre as diversas regides, apontavam para a solugao federativa. Nesse sentido, o conhecido Manifesto Repu- blicano, publicado no Rio de Janeiro em 1870 - documento que deflagrou formalmente a derrubada do regime monérquico -, assinalava em seu texto, enfaticamente, que o principio fe- derativo constituia, no Brasil, um verdadeiro imperativo da natureza. Dalmo de Abreu Dallari registra, ainda, que Alberto Sales, em seu Catecismo Republicano, editado em 1885, conside- rava a organizacfo federal uma “lei natural’, acrescentando 5 CE CRUZ COSTA, Joo. Pequena hstra de Repiblice. 3. e€. Rio de Janeiro: Gilizagio Brasileira, 1974p. 2829; e SODRE, Nelson Werneck. Formacio histrce do Bras. Sto Paulo: Braslens, 1968 p. 292298. * O MANIFESTO Republicano. Transcrito por Waldemar Martins Ferzeita In: FERREIRA, Waldemar Martin. Histrn do ivetoconstituionl basis. SS0 Paulo: Max Limonad, 1954, p. 62-65. Em um de seus trechos,consgnava 0 seguinte:*No Brasil antesainds daidcia democrética, encarregou-s anstureza deestabelecer o principio Federative. A topografa de nosso teritro, as zonas diversas em que ale se divide, os clmas varios © a8 produgtes diferentes, ts cordilheiras as aguas estavam indicando a necestidade de modelar a fiminisiragio ¢o govemo local acompanhando ss prépras divisSes criadas pola natureza fisiae impostas pela imensa superficie de nosso tertio” 26 | astrosos art ORAS NTERVENGAO EDERAL NOMRASL que a Federagao, tal como a Repiiblica, deveria fazer parte do que denominava de “tipo definitivo de Estado" federalismo brasileiro, institucionalizado mais de um século depois de sua cogitagao nos Estados Unidos, adotou as principais feigdes do modelo norte-americano, em especial a coexisténcia de duas esferas de governo distintas, uma na- cional e outra estadual. Com a derrubada da Monarquia, as circunscrig6es territoriais do Império foram transformadas em Estados, consignando a primeira Constituigao republicana, em seu art. 1°, que “a Reptiblica Federativa, proclamada a 15 de novembro de 1889, constitui-se, por unio perpétua e indissolt- vel das suas antigas provincias, em Estados Unidos do Brasil’. Cumpre assinalar, porém, que a federacao implantada no Brasil, desde os seus primérdios, contemplou, ao lado dos Governos da Unido e dos Estados-membros, um terceiro nivel politico-administrativo, ou seja, o municipal. Isso porque as comunas brasileiras sempre desfrutaram, de fato, emboranem sempre de direito, de consideravel autonomia, em fungao das enormes distncias que as separavam, num pais de dimensbes continentais, dos centros de decisio politica. E tal foi a reali- dade desde os tempos coloniais, sendo certo que os governos locais sempre tiveram de assumir grandes responsabilidades, porquanto nao podiam depender, para a sua sobrevivéncia, das autoridades centrais, localizadas a centenas ou milhares de quilémetros de distancia. ‘Assim, desde a época anterior a independéncia, as comunas passaram a prover tudo aquilo que respeitasse ao seu peculiar interesse, lembrando Hely Lopes Meirelles que “as municipalidades tiveram inegavel influéncia na organi- zagio politica que se ensaiava no Brasil, arrogando-se, por ® CE DALLARI, Dalmo de Abreu. Novos pélos administratives afetando a Federacio brasileira. In: BONAVIDES, Paulo (Org). As tendncias atuais do dirito piblico: estudos em homenagem ao Professor Afonso Arinos de Melo Franco. Rio de Janciro: Forense, 1976. p. 68 ormmauswosnacnsn | 27 iniciativa propria, relevantes atribuigdes de governo, de administragao e de justica’® Caio Prado Junior observa, nesse sentido, que as Camaras, sediadas nas vilas e cidades coloniais, exerciam atribuigées “que segundo nossa classificagéo moder na so tanto de ordem geral como local”. Por essa razao a Federacao brasileira afigura-se sui generis, visto que contempla trés niveis politico-administrativos - e nao dois, como € usual nesse tipo de estruturacao estatal - a saber, 0 federal, o estadual e o municipal, aos quais se atribuiu, em maior ou menor grau, nas diferentes Constituigdes, uma esfera de competéncias e rendas préprias. ‘Convém reparar, todavia, que o Municipio, antes do advento da Constituicao de 1988, apesar da grande autono- mia de que desfrutava, jamais integrou o pacto federativo de jure, em flagrante contraste com as importantes fungdes politico-administrativas que desempenhou ao longo de sua historia. Mas, como notam Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, a partir do “momento em que a Constituigao brasi- leira algou o Municipio a entidade condémina do exercicio das atribuig6es que, tomadas em sua unidade, constituem a soberania, ndo poderia, a ser coerente consigo mesma, deixar de reconhecer que a prépria Federagio estava a sofrer um processo de diferenciacao acentuada, relativamente ao modelo federal dominante no mundo que congrega apenas a ordem juridica central e as ordens juridicas regionais: a Unido e os Estados-membros”* ‘Assim é que, com a Carta Magna de 1988, os Municipios passaram a integrar a estrutura federativa brasileira, que 3 MEIRELLES, Hely Lopes. Dire municpl brs, 3. e, So Paulo: Revista dos Trbunas, 1977. ps % PRADO JUNIOR, Caio. Formagio do Brasil contemporinee 17. ed. Sio Paulo Brasiiene, 1951, p. 314 BASTOS, Celso Ribeito; MARTINS, Ives Gandra, Comentrias & Contigo do Brasil Sao Paulo: Sarvs, 1988. v1 p. 252 28 | umtrotoshare eRoIASDA RTERVENGAOPDERALND BRAS continuou a contemplar também um tertium genus, qual seja, 0 Distrito Federal, com a exclusao dos Territérios, considerados agora meras autarquias federais integrantes da administracao descentralizada da Unido. Estes, alids, desapareceram com 0 advento da atual Constituicao, transformando-se em Estados- membros de pleno direito. Nesse sentido, o texto constitucional vigente, no art. 1°, estabelece que a Repiiblica Federativa do Brasil é formada pela unio indissoliivel dos Estados e Municipios e do Distrito Federal. Interessantemente, 0 Distrito Federal configura um ente federativo, dotado de autonomia politica, administrativa, legislativa e financeira, apresentando, todavia, particular hi- bridismo, eis que, além de exercer as competéncias normativas e tributarias dos Estados e dos Municfpios, cumulativamente, sofre, em muitos aspectos de sua estrutura de poder, a inter- feréncia da Unido.” E interessante observar que a Federacao brasileira, a0 longo de sua historia, tem alternado momentos de grande descentralizagio com outros de exagerada centralizagao, obe- decendo a um movimento pendular. Periodos houve em que 08 entes federados foram enormemente prestigiados, como ocorreu logo apés a adogio dessa forma de organizacao estatal, contrastando com outros em que grande parte das compe- téncias e dos recursos foi concentrada ao nivel da Unio, tal qual aconteceu na longa fase de excegao vivida a partir do ®Y,, sobre a nova posigdo das comunas, SILVA, José Afonso da. O Municipio na Constitwiio de 1988. S30 Paulo: Revista dos Tribunais, 1988, sabre o Distrito Federal, v. CENEVIVA, Walter. Direito consttucional brasileiro, Si Paulo: Saraiva, 1989. p. 124 ® Como, por exemplo, no concemente & competéncia que tem a Unio para ‘organizar e manter 0 Poder Judicsrio no Distrito Federal, conforme o art. 21, Xill, da Cv. sobre oassunto Enrique Ricardo Lewandowski, Distrito Federal brasiefio en el contexto del régimen federal. In: ROCA, Ricardo Pablo et al Estatutos Juridicos de las Capitals y Areas Metropolitanas. Bogoté: Universidad Extemado de Colombia, 1991. p. 45-71, movimento politico-militar de 1964, e que se encerrou com a promulgacao da Constituicao de 1988. De fato, de 1891 até a Revolucao de 1930, a Federacao viveu um periodo em que os seus integrantes gozaram de uma enorme autonomia, chegando alguns intelectuais e politicos a temer 0 esfacelamento do Pais Alids, chegou-se a extremos de levar a autonomia ndo apenas aos Municipios, mas também aos distritos, conforme previa a Lei de Organizagao Municipal de Minas Gerais de 1891. ‘As constituigdes estaduais elaboradas em fungéo da Constituigdo Federal de 1891 abrigaram uma série de exageros, em seu bojo, procurando garantir para as autoridades locais ‘uma esfera de aco independente da tutela do Governo central, mesmo em matérias de evidente competéncia deste. Assim, por exemplo, muitos Estados-membros autodenominaram-se “soberanos”, outorgando-se 0 direito de regular o comércio interestadual, de celebrar ajustes e convengées internacionais, sem qualquer referéncia & necessidade de obtengao do assen- timento do Congreso Nacional, embora essa obrigatoriedade constasse da Constituigao Federal, e de decretar 0 estado de sitio, além de outras exorbitancias.” Coma Revolugao modernizadora de 1930, que deu inicio a0 processo de industrializagao no Pais, 0 federalismo brasilei- ro chegou a uma centralizacao exagerada até para os padrées vigentes durante o Império, que passou a ser estruturado como um Estado unitario. Os draméticos acontecimentos politicos, dentre os quais se destaca o movimento armado de 1932 em ® Esse temor justifice-e plenamente, porquanto o periodo foi fértil em insurrel- ‘ges que colocaram em risco a unidade nacional, como por exemplo, a Revoluio Federlists, de 1893, a Revolugto do Acre, de 1899, ea Revolugto Paulista, de 1924 » Para um levantamento das demais extravagancias das Constituigies estaduais ‘v. HORTA, Raul Machado. A autonomtia do Estado-membro no diretoconstitucional brasileiro. Tese (Cétedra) ~ Concurso para a Céteira de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1964. p. 111-118, 29 a 30 | Restrcetosnarms FrODAs OX NTERENGAO FREAL NORA Sao Paulo, e as profundas mudangas socioeconémicas que ento ocorreram eclipsaram as frageis franquias democraticas € os incipientes avangos no sentido do fortalecimento dos entes federados que foram conquistados sob a égide da Carta Magna de 1891. De 1930 até 1934, data do advento da nova Constituicao, os Estados foram governados por interventores do Governo Federal.” A Constituigao de 1934, porém, especial- mente em virtude das pressdes exercidas pelos movimentos constitucionalistas, com destaque para a Revolucao Paulista de 1932, revigorou o principio federativo. Esse diploma, que em uma inusitada simbiose conjugava o liberalismo politico com 0 reformismo econémico, reproduziu, em linhas gerais, a estrutura federal da chamada Repuiblica Velha, isto é, a do regime constitucional anterior a 1930. Em 1937, com 0 denominado Estado Novo e a ditadura de Getiilio Vargas, ocorreu nova centralizacao, registrando-se,na pratica, a alteracdo da prépria estrutura estatal, num retorno extemporaneo ao unitarismo, embora formalmente a Carta entao outorgada, em seu art. 38, estabelecesse que o Brasil constituia uma federagéo:* A pretexto de imprimir maior racionalidade € eficdcia & aga do Estado, a autocracia getulista reprimiu qualquer forma de manifestagao politica espontanea, liqui- dando também com o que era considerado um “divisionismo federativo’.® = V.sobre ese perfodo, especialmente no que tange & nomeasio de invento BASBAUM, Lsdnco’ Het snr és Replion de" 1960 6 1960. ed Sho Paul: Alée-Omege, 1976, p. 133, © CE SKIDMORE, Thomas resi de Getilio a Castel, 3. ed. Rio de Janeiro: Paz Terra, 1975.38. ‘© V.BARRETO, Carlos Naver Paes. A Costitigodo Estado Novo. Ro de Janeiro: Coelho Branco, 1988. p. 49, que, interpretando 9 ctado dispositive, sintoma fame sins prune “Ota atnoon mas dbo "um govern cena, que tem por obigass0fortalecer os lagos que no se podem sister eee sean © Vea respeito CARONE, Edgard. © Estado Novo (197-1945). Rio de Janeiro Dita, 1977. p. 163-164, e CHACON, Wamireh. Vide e mort das Constitutes rss. Rl de Janie: Forense, 1967. p. 179176 onpeaumosmanana | 31 Essa situagéo perdurou até 1945, verificando-se nesse interregno total eclipse do federalismo brasileiro. Apenas com aderrubada do Estado Novo e a promulgacao da Constituicéo de 1946, na esteira do processo de democratizagao que se seguiu ao término da Segunda Guerra Mundial, em escala planetaria, 6 que o principio federativo voltou a imperar no- vamente no Pais. Com efeito, sob a égide da Carta Magna de 1946, nao s6 se restaurou e ampliou a autonomia dos Estados e Municfpios, como também se registrou um razodvel equilibrio entre os Poderes, instaurando-se ainda um pluripartidarismo atuante, com eleicao para todos os cargos eletivos da Reptiblica. A par- tir da promulgacao da nova Constituicao, logrou-se obter no Brasil quase vinte anos de normalidade institucional, sem que, inclusive, ocorresse qualquer intervencao federal nos Estados, salvo a decretada em Alagoas, mas mesmo assim ela ocorreu sob a égide do Poder Judiciario, e sem que fossem afastadas de seus cargos as autoridades estaduais legitimamente eleitas.+ ‘A centralizagao do sistema federativo brasileiro atingiu, sem diivida, 0 seu 4pice apés 1964, notadamente depois da edico da Constituicao de 1967, cujos preceitos, neste particular, foram basicamente reproduzidos na Carta de 1969. De fato, 0 Estado brasileiro, em que pese a retérica liberal dos militares que se sucederam no poder, caracterizou-se, a partir de entao, por uma ingeréncia crescente nos campos econdmico e social, evada a efeito, de forma predominante, por meio da Unio, que restou aquinhoada com grande parte das competéncias WA observasio & de Oswaldo Trigueiro, A Federacio na nova Constituigéo do Brasil, Reviste Brasileira de Estudos Politics, Belo Horizonte, n. 60/61, janul 1985; o Decreton, 42.266, de 14 de setembro de 1957, que efetivou a intervencio em Alagoas, por sessenta dias, para “assegurar, o livre exercicio dos poderes da “Assembléia Legislativa’,estabelecida o seguinte do pardgrafo tinico do art. L* “A intervengao ndo atingiréo live exercicio dos poderes dos érgios judiciétios, ‘nem do Governador do Estado, o qual deverd, entretanto, prestar ao interventor ‘a colaboraglo de que necessitar para o desempenho da sua missio" il 32 | Msstroresarei¢YOwuAs DA TERUENGAO FEDERAL NO MEAS conferidas aos Estados-membros, os quais viram reduzidos, de forma drastica, os seus poderes residuais. Melhor sorte nao coube aos Municipios, que, a semelhanca dos Estados, pas- saram ainda a padecer de uma crénica caréncia de recursos, concentrados ao nivel federal, dentre outros problemas. Dalmo de Abreu Dallari, analisando o art. 8° da Consti- tuigéo de 1969, conclui que ela deferiu & Unido o poder de legislar sobre praticamente todo o sistema juridico, chamando atengio para o fato de que certas matérias que ainda permane- ceram na esfera de competéncia estadual ou municipal, como a elaboracao dos respectivos orgamentos, ficaram sujeitas as normas gerais estabelecidas no ambito federal: A exagerada supremacia do Governo Central revelava-se, inequivocamente, noart. 10, V, “c’, da Carta, que autorizava a Unido a intervir em qualquer Estado que adotasse medidas ou executasse planos econémicos ou financeiros incompativeis com as diretrizes estabelecidas em lei federal* Com a Constituicgo de 1988, porém, verificou-se nova- mente a descentralizacao do sistema, de modo consistente com o movimento pendular que caracteriza 0 federalismo brasileiro. E ¢ interessante notar que os governadores e deputa- dos estaduais, bem como os prefeitos e vereadores municipais, livremente eleitos pela populagdo antes dos trabalhos da Assembleia Constituinte, exerceram grande pressdo sobre os deputados e senadores constituintes para que a nova Carta ‘Magna outorgasse maiores recursos e ampliasse a esfera de competéncia dos Estados e Municipios. Ressalte-se, contudo, desde logo, que a Unio, inobstante esse movimento de descentralizagio, reteve grande parte das competéncias e das rendas que conquistou ao longo da © DALLARI, Dalmo de Abreu, Novos pélos administrativos afetando a Federacio brasileira, cit, p. 7. * Bxemplo colhido por ld. Ibid, p.76. ormeuuswosensuina | 33 evolugio do federalismo no Pais. Isso nao apenas porque ele jamasceu com um pecado original, qual seja, 0 de ter-se desen- volvido a partir da descentralizacao politica de um Estado unitério, e no como resultado da unido de Estados sobera- nos, mas também pela prépria transformagio do sistema, no sentido do fortalecimento do poder central, registrado aqui e em outras partes do mundo. De fato, constata-se que tanto 0 federalismo dos Estados Unidos, quanto o de outros paises, transitou, conforme ja foi visto, de um federalismo dual para um federalismo coo- perativo ou de integracao, caracterizando-se 0 primeiro pela existéncia de uma distribuigao vertical de competéncias e uma previsdo de tributos exclusivos para cada um dos niveis, politico-administrativos, eo segundo pelo entrelagamento das esferas de poder central e local, pela distribuigao mais equitativa da renda nacional, através da técnica das receitas compartilhadas e, ainda, pelo expediente da outorga de com- peténcias concorrentes ou comuns em determinados assuntos, sempre, porém, sob a supremacia da Unio. Essa transigéo também ocorreu entre nés, valendo ob- servar que a macica presenga do Governo Federal nos mais diferentes setores da vida nacional, em permanente expanséo desde a década de 30, assim como a necessidade de um com- bate centralizado ao proceso inflacionario, com o qual o Pais foi obrigado a conviver a partir dos anos 50, ¢ ainda a admi- nistracao de uma enorme divida interna e externa contraida pela Unido, depois de 1964, nao permitiu que se concretizasse uma descentralizagio radical do sistema federativo, conforme desejavam muitos constituintes de 1988. ‘Com efeito, o elenco de poderes deferides & Unido pela Carta de 1969 permaneceu praticamente inalterado. O art. 21, IX, da Constituigao vigente, por exemplo, confere & Unido a competéncia de elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenacao do territério e de desenvolvimento 34 | BeSyesretnareiat eros NTERVENGAO FDERALNOWASL econdmico e social, mantendo-se, assim, a ideia, que prevaleceu durante todo o regime militar, respaldada pelos tecnocratas que o integravam, segundo a qual caberia ao Governo central a tarefa de elaborar planos para 0 Brasil como um todo. Tal planejamento, observa-se, desce inclusive a detalhes que seriam mais préprios dos Governos estaduais e munici- pais. Assim, por exemplo, o inciso XX do citado artigo cons- titucional confere a Unido o poder de expedir diretrizes para 0 desenvolvimento urbano, inclusive habitagio, saneamento bisico e transportes nas cidades. No que se refere as competéncias legislativas, nota-se que a Unio manteve praticamente intacto 0 amplo espaco que conquistou nas Constituiges passadas. Isso fica evidente no art. 22, que, logo no inciso I, estabelece que compete pri- vativamente a Unio legislar sobre extensa lista de assuntos, quais sejam, direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrario, maritimo, aerondutico, espacial e do trabalho, isto é sobre praticamente todo o direito substantivo e adjetivo, além de muitas outras matérias arroladas nos vinte e oito incisos seguintes. ‘Comonovidade, aCartade1988 introduziu, noart.23,acha- mada competéncia comum aos trésniveis politico-administrativos da Federagio, que delimita 0 campo de atividades em que deve ocorrer a cooperacao entre a Unio, 0s Estados, o Distrito Federal os Municipios, cooperacao essa a ser delineada, quanto a forma, em lei complementar federal. A competéncia comum ¢ exercida, além de outras, nas areas da satide, assis- téncia publica, protego ao meio ambiente, defesa dos bens de valor histérico, cultural e paisagistico, produgio agropecuaria, abastecimento alimentar, construcao de moradias e implan- taco de saneamento basico.” [°¥, sobre 0 assunto ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competéncias na Constituigio de 1988. Séo Paulo: Atlas, 1991. p. 142-147. onoeamomanim | 35 Ao par disso, a Constituigio recém-editada instituiu, no art. 24, a denominada competéncia concorrente, segundo a qual incumbe a Unio, ao Distrito Federal e aos Estados, excluidos ‘0s Municipios, legislar concorrentemente sobre determina- dos assuntos, respeitadas sempre as normas de carter geral emanadas do Governo central. Salienta-se, dentre as matérias que sio objeto de legislacdo concorrente, as seguintes: direito tributadrio, financeiro, penitencidrio, econémico e urbanistico; producao e consumo; florestas, caga, pesca, fauna, conservagao da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais; defesa do consumidor, educacéo, cultura, ensino, esportes;e organizacio, garantias, direitos e deveres da policia civil. Cumpre notar ainda que os Estados lograram manter, em seu favor, a tradicional cléusula que Ihes assegura 0 poder residual, na medida em que ficou expressamente consignado no art. 25, §1°, da Constituigao que sio a eles reservadas todas as competéncias que nao sejam atribuidas a outras instancias federativas pela Carta Magna. Esse mesmo artigo estabelece, em seu caput, que os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituicées e leis que adotarem, respeitados os principios da Constituicao Federal, garantindo, assim, a sua capacidade de auto-organizagio e de autogoverno. No que tange as comunas brasileiras, ressalta-se, confor- me jé foi anotado, que estas lograram obter importante incre- mento em seu status institucional. Com efeito, os Municipios, embora hajam, ao longo de sua histéria, desempenhado de forma continuada uma expressiva gama de poderes, jamais tiveram reconhecida, integralmente, nas Constituigdes a gran- de autonomia que, de fato, sempre gozaram. A nova Lei Maior, porém, fazendo jus ao passado dos Municipios, elevou-os, conforme expressa o art. 1° do texto constitucional, 4 cate- goria de integrantes de pleno direito da Federagao brasileira, cabendo-lhes uma esfera de competéncias exclusiva no que respeita aos assuntos de interesse local, sem prejuizo da 36 | RESURSlosuartRsrromasoa TER MciORENEAL NO AS competéncia comum jé referida e da faculdade de suplementar a legislaco federal e estadual no que couber. Mas o grande avango que merece ser sublinhado é que 0 Municfpios, por forca do art. 29 da Carta Magna, podem agora elaborar as suas leis orgénicas, verdadeiras constituigdes locais, devendo observar, apenas, os principios integrantes das Leis Maiores federal e estaduais. Outra novidade importante consiste na competéncia deferida aos Municipios para atuar, amplamente, em dois importantes campos em que sua presenca era, de um modo geral, bastante limitada. Agora, segundo o art. 30, Vie VII, da io, caberd as comunas, com a cooperacao técnica e financeira dos Governos da Unido e dos Estados, prestar ser- vigos de assisténcia a satide da populagao e manter programas de ensino pré-escolar e fundamental. De ora em diante, os Municipios estabelecerao também, a0 contrario do que antes ocorria, livremente, 0 nimero de vereadores, de forma proporcional & sua populacao, observa- dos, apenas os limites maximos estabelecidos no art. 29, IV e alineas, da Carta Magna. Além disso, fixardo a remuneracao de prefeitos e vereadores, matéria que, no passado, era regulada pela legislacao federal e estadual. No que respeita a distribuigao da renda tributéria nacio- nal, a Constituigao de 1988 introduziu algumas modificagdes importantes em prol dos Estados e Municipios, os quais foram contemplados com receitas adicionais, nao s6 oriundas de novos impostos, como também derivadas de uma maior participagio nos fundos fiscais previstos na Carta Magna, sem Ptejuizo da capacidade impositiva da Unido, que continuou a manter a situagao privilegiada que vinha desfrutando desde o estabelecimento da Federagao. Com efeito, permanece ampla a participagao da Uniéo na partilha da renda nacional, competindo-lhe, conforme estabelece o art. 153 da Constituicao, instituir os impostos oreoemsniomanien | 37 sobre a importacao, exportacao, produtos industrializados, renda e proventos de qualquer natureza, operagdes de crédito, cambio, seguros e propriedade territorial rural, tal como o fazia sob a égide da Carta Magna anterior, todos eles de relevante expresso econémica. ‘A Unio, é certo, perdeu alguns tributos, como 0 imposto sobre a prestacao de servicos de transportes e comunicacées, {que passou para os Estados. Em compensaco, foi-lhe atribuida a competéncia para criar 0 imposto sobre grandes fortunas, nos termos de lei complementar. Os Estados, por sua vez, perderam o imposto de transmis- sio de bens iméveis intervivos, que foi deferido aos Municipios, conservando, contudo, 0 causa mortis, que passou a incidir, de forma mais abrangente, sobre bens e direitos. Estabeleceu-se ainda em beneficio deles o imposto sobre a doacao de bens e direitos e também sobre servigos de prestagao de transporte interestadual e de comunicacao. Em um balango final, constata-se que a Constituigio de 1988 deu novo alento aos Estados e aos Municipios, con- firmando a tendéncia histérica de alternancia entre perfodos de centralizacao e descentralizagao da federacao brasileira, sem embargo do tradicional predominio politico e econémico da Unio, que se mostra ainda mais acentuado na atual fase evolutiva do sistema federativo.

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