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A. Santos Justo INTRODUCAO AO es a) 2S. DO DIREIT( 6.* Edicado & TITULO 1 ORDEM SOCIAL $1. O homem e a sociedade 1.1. A natureza social do homem Ninguém ignora que 0 homem é um ser-cuje natureza ¢ essencial- ‘mente social: €, na célebre definiclo de ARISTOTELES, um animal. politico Porque naseeu para viver em comunidade (polis), Com efeito, sendo dotade de sentimentos ¢ de razSo, precisa de comunicar, de trocar expe- Tiéncias, de produzir bens para si e para os outros, de utilizar o produto do trabalho alheio, porque ¢ absolutamente impossfvel criar sozinho tudo © que necessita para viver. A expressii latina uns homo, nullus homo caracteriza bem a sua natureza social porque o homem que viva absolu- tamente isolado, sem uma comunidade social mais ou menos extensa (a familia, a tribo, a cidade, © Estada), niio é homem: & um nada. ‘Ser grepério por naturcza, o homem pertence a dois mundos; 4) a0 mundo natural, constituido por seres animais, vegetais e minerais. © homem 6, tio-36, uma parte constituinte do todo, tas ¢ indubitavelmente a mais importante em resultado das 588 qualidades biopsiquicas que o impGem aos restantes sores; 4) a0 mundo cultural, construfdo pela sua inteligéncia ¢ trabalho. E constituida pelos seres humanos ¢ bens que produzem para viverem e obierem melhores condigSes de vida. Caracteriza a vitéria do homem na sua luta tena para se destacar no mundo natural, criando uma dualidade que o separa dos restantes seres, # no mundo cultural que © homem afirma a sua racionalidade que Se manifesta nas realizagdes duma vida que decorre em convivenci eine Et 16 Hiaia Geral de Dire Dir-se-4 que viver com os outros (conviver) € 0 seu destino, a que no pode fugir sob pena de deixar de ser homer ('), Porém, a convivéncia postula regras que disciplinem os comporta- mentos de cada homem e transmitam a seguranga necesséria A vida de rolagia com 05 outros. ‘Tais regras corporizam a ordem social que importa estudar 1.2. A ordem social. Instituigées sociais 12d. Nogda e fungao ‘A palavra instituigo comporta vérios significados. Etimologica- mente, deriva de institutio, institere e pode definir-se como © que esti ‘ou permanece numa sociedade em evolugio (). ‘Na linguagem corrente, fala-se de instituigo em vérios sentidos: um ‘complexo de leis, de costumes, dé normas; uma obra constitulda por elenientos pessoais © muteriais organizados segundo leis ¢ regulamenios (estatutos) préprios com vista & realizago dum fim determinado; etc. 7). Juridicamente, instituigéo designa ora um conjunto mais ou menos ‘extenso de normas que, subordinadas a princfpios comuns, disciplinam um determinado tipo de relagdes sociais (+), ora a realidade social que Ihe estd na base (4) (©) No passam de mera fiogio ws dowtinas comemtes nos sé XVI a XIX sé que © homem comegou por viver isolada num estado de nacureca 9 teria prc cetido 0 estado socal. Referimo-nos » Hosa para quem @ homem € um ser profundarscate egoista que a sciedade educa; ¢ 2 ROUSSEAU que v8 no homem um ‘et orginariamente bom que a civilizagéo cocrompeu. A sociabilidade inata do ‘homem eas modernat investigaySes antropolégicas desmentem aquelas dootrinas. Vide Inoctncio GALvAO THLLES, Iniroducpdia a0 Estudo de Direito 1'' (Coim- bra, 1999), 33-39; José de Oxivera Ascensio, O Dircito. tiradurdo « Teoria Geral"? (Coimbra, 2005), 23-24; @ Miguel TEIXERA De SOUSA, Infraducde ao Direito (Aimedina / Coimbra, 2012) 53-55, C) Vide Ouiverea Ascensio, oc., 33-35. @) Vide Joio Bapnsta MacHAaDo, Inirodiugiio ao Direito ¢ ao Discurso Legi- timador (Cotmbra, 1989), 14 ©) V...0 dieito das obrigagbes,o dircito de propria, 0 dicito da fumte lia, ee. @) Assim, a obrigapio, a propricinde, a famdia, ee. ‘Ordem Social 7 AS 8uas fungSes slo muito importantes, porque ajudam a resolver ‘9% problemas da sociedade © dos homens que a integram, As principais ‘si a estabilidade normativa que permite oricntar os seus membros na rossecusio de abjectivos comuns ¢ transmite a seguranga indispensé- ‘el & planifieagio do: futuro; e @ imtegragiio numa organizagao que uni- fica e identifica os seus elementos (°). ‘Hid instituigdes fundamentais e secunddrias. As primeiras pertencem: a familia, instituigdo bisica que constitui 0 ponto de partda das dem: propriedade, que € 0 sustentéculo do sistema social ¢ politico dum ovo; eo Estado, em que um pove se organiza politica ¢ juridicamente hhuma unidade de poder. As segundas complementam as instituigbes fundamentais ¢ nem sempre se encontram em todas as sociedades: des- tacames, v. g., 0 Parlamento, um tribunal, uma igreja, uma escola, urn sindicato, uma academia, etc. (6) Impontard teferir que também se fala de instituto (nfo de institui- go) quando se trata dum complexo normative menor (7). 422. Necessidade ‘Uma perspectiva antropolégica modema sustenia que 0 homem um ser naturalmente inacabado, uma criatura de gestagio incom- Pleta que nasce prematuramente; carece dum equipamento instintivo que © oriente ¢ permita encontrar um rumo de acgio no meio em que se integra. Por isso, tem necessidade de criar instituigdes que o guiem ¢ ofe- regam, nas relagdes com os outros, a seguranga indispensivel & previsi- bilidade em que assenta a planifieagiio da vida. ¢ @ progresse ('), ©) Vide Barnsta Macnano, 0, 19-22; Miguel TenaanA ne SOUSA, 0¢, 51 (©) Vide Orlando de Atawuins Sacco, Inradusdo ao Esnudo do Direivo (Rio e Janeiro, 1995), 26-31 ©) Vide, no nosso Codigo Civil, v.g. a preserigSo (arts. 300° ¢ 85), 4 re ponsabilidade civil (ars. 483° c ss), e usucapido (arts, 1287." sx), as responsa- bilidades parentais (arts. 1877. ¢ 38. na redacg¥o que thos foi dada pela Lel ‘n° 61/2008, de 31 de Outubro), 1 sucesso legitima (ans, 2131, ¢ 58), ee ©) Vide Barnsta Mactabo, a, 7.9; € Paulo Feria da CUnis, Prinipior sie Divetto Porto, sit), 30. Leia Geral de Dire ais normas pertencem ao mundo cultural c, por isso, nlo se con- fundem com a8 leis fisico-matemsticas que explicam um fendmece sare, ral segundo o principio da causalidade. Pelo contrério, as leis caltean caraeterizamn-se pela sua referéncia a valores ou por adequatem meios 2 fins ttn, portanto, uma aturéza axiolégica ou teleologica. Enire as leis fisioas © as normas observam-se as seguintes diferengas: forma enunciada: os factos devem confirmé-ta. As nonnas dir ei-se a seres livres que @ podem violar ou obedecer. Nio deixa de ser valida se 0 comportamento dum destinatério dela fe afastar: nio depende da experi¢ncia us suas excepebes ‘epercutem-se na sua eficdcia endo na sua validade (%. Nem todas as leis culturais nos interessamn: de fora ficam as leis ‘ociolégicas, histricas © econdmicas porque, embora as suas conclusées jossam influenciar a ordenago dos comportamentos, ndo disciplinam as wessas condutas. Ocupar-nos-emos, sim, das Ieis ou normas éticas, ou ide Mioues Reats, Lites Pretiminaes de Dirt! (Coimibes, 1982), 25; © Atatsipa $8cc0, 0, 20-26, (5 Vide Eduardo Garcia Maisz, Iniaduccidn af Estudio del Derecho (Mexico D. F., 1944), 5-8; ¢ GALVAO THLLES, o1c, 1. 28-25, int Eat Orde Sociai 19 cia, das proposiges ou enunciados linguisticos que expressam um dever-ser que orienta o inter-relacionsmenia humano (2) No entanto, as normas sociais nfo visam o mesmo fim e tio-pouco 2.2. Ordem religiosa As narmas religiosas so criadas por um Ser transcendente ¢ ordenam as condutas dos crentes nas suas selapdes com Deus. Apre. soniam earacteristicas préprias que as distinguem das demais normas sociais ('), Sia: |. instrumentais: preparum ou tornam possivel o-que nfo perience ‘40 mundo terreno; 2. intra-individuais: destinam-se directa e fundamentalmente a0 {atime do homem crentc, embora nio deixem também de impor ‘um certo comporiamento exterior, 3. as sangdes, que estabelecem, pertencem a0 foro exclusive das igreas ¢, portato, sto insuscepuiveis de imposigio pelo Estado, Dizem respeito & crenga e & f€ numa vida ulaterrena na qual cada homem receberd a retribuigfo (a paga ética) da sua con- data. O remorso ¢, também, uma forma de sang imediata ®). Subjacente © come suporte da ondem religiosa est4 "a ideia fundae mental da religio de que vivemos uma vida transitéria que no tem os & luz da ideia de uma vida utraterena, na qual 08 homens serio jul- sds segundo 0 valor ético da sua propria existéncia® (), ©) Vide Miguel REALE, 0c, 27-38: ¢ Javier De Lucas e Outros, Curso de Introdccidn al Derecho (Vslencia, 1994), 18 (D Vide Pedro Bind, Nopdes Blemeniares de Dircio (Lisbos, 1997), 19-20, @ Vide Miguel Rests, a... 74. 0) ‘Sto palavras de Miguel REAL, o., 74 isia Geral de Direito ‘Nao se diga que as normas religiosas (v. g., 0 mandamento que proibe matar ou 0 prectito qué impde qué amemos o proximo como a ‘6s mesmos) esto ausentes das relagSes entre os homens. ‘To-s6 cons- fie, do ponto de vista puramente religioso, deveres do homem para com Deus ¢ nfo direitos dos homens uns para com os outros (4). Nos alvores da civilizagio, as normas religiosas canfundiram-se, durante muito tempo, com as normas juridicas. Q Direito Romano constitu um campo fecundo: no vocdbuld jus, que tem na deusa ust ‘a a sua geradora; no simbolo da direito, composto pela mesma deusa que, de olhos vendadas, segura uma balanga de dois pratos com o ficl Perfeitamente aprumado (derectum) (9); em alguns negécios juridicos, em ‘cuja eelebragio se invocava a deusa Fides (*), etc. Também na Idade Média, a ordem juridica nfo foi estranha & influéncia da ordem reli- giosa: bastard exemplificar com os ondalios ou juizos de Deus (7) ¢ 0 ‘casamento de juras (*), figuras juridicas que se caracterizam pelo directo (9) Vide J, Dis Manques, dnuredugis ao Extudo da Diretc? (Lisboa, 1994), 38.39, ©) Vide Schastiio Cru, tus. Derectum (Directum) (Coimbra, 1974), 28, 39 e446, (©) Vide Sebastiéo CRUZ, Direito Romano ("lus Reeianum") 1, Introduedo, Fonzest (Coimbra, 1964), 241 6 305. ©) Divergndo os jummentos acerca da prétca dum determinado delito, recor ‘fa-se ao juieo de Deus na crenga de que revelaria 4 sutoria a inocéncia. Refe rimos a prdtica do fero em brass: depois de lavar ¢ enxugar a mie, 0 suspeito Fegeva mum ferro cm brasa, caminhava nove pés ¢ depositava-o no chilo. A mio era abengoada por um sacendote © cabema com um pano com cert ¢linho, Tres dias depois, era examinada c, se a qucimadura no manifestasse sina de cura, 0 indi- ‘viduo era condenado; de contro, seria absolvida. Vide Marcello CaETANO, Hi {ria do Direito Portugués I (1140-1495) (Lisbou, 1981), 262-263. (No casamento leghimo do direito germinica (rechte Ehe), 2 desponsatio solenc eavolvie o cansentimenta dos pais da sua enttega (traditio) 20 ‘iva, a bengto da Igreja ¢ a boda, No cio de os pais no consentirem e perante ‘uma situagio de rapt em que a mulher pastava a viver com 0 noivo, a lgreja, ‘que tinha consagrado © principio consensus facit muptias. reconhecia © casamente Drestado in manu cleric: com a declaracio de mitvo consemtimento dos esposos, na presenga de testemumnhas c do sacendote. Vide Manel PAULO MERLA, Sobre o "Casamento de Juras',em Novos Estudos de Mistéria do Direio (Bareetos, 1937), 131-138. Orden Sactal 21 apela a intervengao de Deus ¢ da Igreja. E no deixamos, também, de referir 0 dircito mugulmano que vai buscar it religido 0 contetido dos seus critérios normativos (°). ‘Todavia, nos pafses ocidentais a ordem juridica foiese secularizando € hoje no se confunde com a ordem religiosa, ceujas caracterfsticas assinalimos (1%), Das normas religiosas de origem divina distinguem-se a3 normas que regulam a organizagio ¢ a pritica religiosa das conunidades de crestes, irigidas por autoridades hierarquicamente escalonadas. Tais normas tém um carécter positive ¢ sio criadas pela hieranquia eclesidstica com vista A aplicagéo @ a0 desenvolvimento das primeiras ("1). A sua vio lagéo pode determinar a aplicacdo de sangies religiosas (¥. g.. a exco- ‘munhifo) que se: repercutem no meio social com uma intensidade que varia segundo as épocas histéricas da civilizagBo (2). 23. Ordem moral ‘A moral 6, nas palavras de CABRAL De. MoNcADA, constitufda pelo "conjunte dé preceitos, concepgtes e regras, allamente abrigatéries para coin a consciéncia, pelos quais se rege, antes € para além do direito, algu- ‘mas vezes até em conflito com ele, a conduta dos homens numa socie- dade’ (). Caracteriza-se pela interioridade, absolutidade ¢ espontaneidade do dever moral. A sua esfera de aplicagio ¢ imensa, porque vai sté onde ©) Vide Mario Jilio de Atsmpa Costa, Hlstdrla do Direito Porregués), 2+ reimpressio (Aimedina, Coimbra, 2000), 153-157. (5) Entre nds, a Constinsisfa da Repablica determina que "a liberdade de consciéncia, de religibo © de culto ¢ inviolivel” (art. 41%,n. 1; pratbe a persegigio © a privagio de direitos "por causa das suas convicgdes ou prética religiosa” (ar. 412,02 25, © afirma que "as igrejas ¢ outras comunidades rligioaas esto Separidas do Estado « 580 livres na sit organizagio © no exercicio dis sins fen- es ¢ do- culo” (art 41/7. 4), (2), Vide Dias Marauts, 0, 39-80, (2) Vide Dias Manguts, 0. 39-40, (0) Referimo-nos & moral positiva € nBo s uma ética de valores absolutos. Vide Luts Canea DB MONCADA, Filosofia do Direito e do Esiado, Ul (Coimbra, 1966), 134. Hela Gerat de Diceto podem chegar as projecySes da consciéncia humana: “o homem, se tiver conscincia, sente-se permanentemente como qué solicitado ou atrafdo pelo dever moral, independertemente dé toda © qualquer sango externa" "a dnica sangdo a que estard sujeito serd, ainda e sempre, a interior do Femorso ou, pelo menas, a do desgosto de si mesmo, no caso de nao cumprir 0 dever moral" (*), Consideramos aqui, tdo-s5, a moral geral (comum a todos os mem- ‘bros duma sociedade) sem, todavia, ignorarmos que. hé morais parti- ulares (préprias de certas profissdes). Esta distinglo justifica a recusa de relativismo na moral sub specie conscientiae ¢ a relatividade moral sub specie socieraris @), A relagio entre a moral ¢ © direita no foi desconhecida na Anti- guidade Clissica que, embara no tenha claborado um critério que per- mitisse a sua distingo, nila deixou de ter a intuigio de que nlo se con- fundem. Constituem exemplos significativos a afirmagio de PauLus “non ome, quod licet, honestum est" (4) e a regula stribuida a ULPANUS "cositationis poenam nemo patitur” (), Poréim, foi na dade Moderna que este problema adquiriu um sen- tido mais vital ow pragmatico na sequéncia dos conflitos entre a Igreja Caidlica ¢ os vérios culios protestantes e das dissensGes que dividiram 8 protestantes em diversas correntes. Os Chefes de Estado passaram. a intervir na vida particular dos cidadios para indagarem as suas convic~ ges religiosas: uns queriam qué 05 seus sibditos fossem catdlicos; ‘outros, protestantes, Surgiu, entio, a necessidade de delimitar clara. mente a zona de interfer€ncia do poder piiblica, sé possivel através da istingo entre os campos juridico, moral e religioso. Merece desta- ‘que Tuomasius, o primeiro jurisconsulto que, para tutelar a liberdade de eosamento: e de consciéncia, procurou distinguir a moral € 0 direito separando as aceSes humanas em internas (foro intimo) ¢ extemas (foro extemo). Ao direito 56 interessam os actos da vida de relago, ou scja, “vacgo humana depois de exteriorizada; a. moral oeupa-se do que se pro- @) Sto palavras de CaBnat.o& MONCADA, 04, 135-136. (0) Vide Casnal. 08 Moxcana, oc, 136-1371 (@) $0, 17, 144: "Nem tudo o que € Iicito (juridico) € honesto (moral)" ©) 48, 19, 18: “Ninguém & punido por pensar’, Caines Car Orden Social 3 cessa no plano do pensamento e da consciéncia, que sito actos inter- nos, Em consequéncia, s6 © que se projecta no mundo exterior fica sujeito & possfvel intervenc&o do poder péblico e, partanto, nenhum cidadiio pode ser processado pelo simples facto de pensar; e tiio-pouco pode ser obrigado a ter esta ou aquela crenga (6). Porém, este critério logo se revelou insuficiente porque, se hi sctos puramente interiores, nio hd aepdes humanas exclusivamente extemas; ¢ 0 direito, porque disciplina fundamentalmente actos humanos livres, no dispensa a apreciagio de factores internos (v. g., a culpa, o dolo, o ani- mus, e.) que determinaram comportamentos externas ("). Por outro lado, a relagdo entre a moral e 0 direito no é to linear que dispense o inte- esse de a aprofundar. Surgiram outros crtérios que é necessério analisar. Destacamos 0: 1. eritério teleolégico: a moral interessa-se pela realizagio plena do homem (fim pessoal), enquanto o direito tao-s6 tem em vista a realizagéo da justiga para assegurar a paz. social necesséria & convivéncia em liberdade (fim social), Este critério softe a cen- sura de que a moral iem também um fim social e © direito ssatisfaz igualmente um fim pessoal (*), além de os seus campos variarem consoante as diferentes escalas de valores das diver: sas épocas histéricas: hé normas juridicas que se converter em ‘morais; normas morais que se tomiam juridicas (), 2. eritérie da perspectiva; a moral incide sobre: a interioridade (@ motivagao) dos actos (lado interno) ¢ o direito atende ao ©) Vide Miguel Rate. oc, 53-54. ©) Vide Luis Lacne ¥ Lacawaaa, Filosofia del Derecho! (Barcelona, 1979), 494-435; e GALWAO THLLES, 0.0. 1. 116, ©) V. ga norma moral que dispde que devemos ajudar um mendigo contibai ‘também para o fim social de diminair a delinguéncia; © a norma jurcica que impic "9 papamento de lmpostos nko delxa de orentat of individvos no sentido do seu apes feigoamento tico. Vide Norberto ALvaniz.e JL. MUROZ DE BASNA, Jnureduccin Filosdfica al Derecho (Madrid, 1988). 53-54. ©) Vg. 4 moral soniém normas que jf foram juridicas: quando a sua infre- ‘ogo ea punida como constitutiva de escindslo; € ha normas morais mum sistema ‘democritico (v. g., apoiar um partido politico) que s¢ tomam juricas em dita- dura, Vide Norberto ALVAREZ. © MUBAZ 16 BABNA, 01. 65-66: a ia Geral de Dirito que externamente 5 manifesta (lado extemo). J4 vimos, porém, que este critério (utilizado por THomAsiUS) nilo satisfaz; des- ‘Valoriza a importincia que o direito atribui so elemento interno ‘das acges humanas ¢ no atende a0 relevo que a moral confere 20 elemento externo. Ora, a moral também exige que actuemos rectamente, manifestando e executando 05 nossos propésitos (19); € 0 direito penetra com frequéncia na consciéncia para analisar 68 motivos da actuaga humana (!!), No entanto, este critério néo deixa de conter um elemento stil: assinala os diferentes Pontos de partida da moral ¢ do direito. Aquela parte da atitude interior; esta assenta nos aspectos exteriores da conduta (!2) 3. critério da imperatividade: a moral, porque visa a perfeigao pes- soal, é simplesmente imperativa, ou seja, limita-se a impor deveres; pelo coniririo, regulando as relagies sociais. segundo a justiga, o direito ¢ imperativo-atributivo: impoe deveres recomihece direitos comrelatives ('3), Por issa, também se fala de Uunilateratidade na moral e de bilateralidade no dircito: perante © sujeito moralmente obrigado nio ha uma pessoa autorizada a ‘exigir-Ihe o cumprimento dos scus deveres: j4 quem se encon- tra juridicamente obrigado esti perante outra pessoa que tem a faculdade de exigir o cumprimento da sua obrigacso (14). Nem sempre, porém , assim é basta pensar nas obrigagses naturais cujo cumprimento nfo é judicialmente exigivel ('5); em nor- mias cuja violago nem sempre & susceptivel de sangia; ¢ em alguns direitos que carecem de eaereibilidade ('*), (9) V5 mo basta ter a into de visitar um doente; é também moramente neceaséro pr em prion este propésito, Vide OUVERA Ascansko, 0. 98-100. (CY) Bastaré pensar, v.g., 0 que at diferentes formas de culpa c a boa fé desempenham nos diritos penal c civil. Vide Gustav Rapeawet, Flosofia do Direito, (Coimbra, 1961), 115-116. (Vide Barnsta Maciuoo, 0, 60-61; ¢ QuVERA AscExsio, oc, 102-103. (2) Vide Mésio Broorre Cento, fnrodugdo ao Direio, 1 (Colenbrs, 1989), 200.201 8) Vide Gancia Mayaisz, 0.2, 16-18; ¢ GALVAO THLLES, esce y 117. (C5) Vide art. 402° do Cédigo Civil (08) Vide infra, as notas 24 @ 25, Ordem Social 25 4. critério do motivo. da acgia; os preceitos morais tém a sua fomte na conseiéncia de quem os deve cumprir que constitui, tam- bém, a instincia que decide sobre o seu cumprimente ou incum- Primento ('7); 0 dircito é fruto da vontade dum ‘sujeito dife- rente. Por isso, a moral é auténoma (0 autor da norma moral € & pessoa que Ihe deve obedecer) e o direito € heterénomo implica a sujcigo a um querer alheio). Isto ¢, o cumprimento da norma moral requer o assentimento do. obrigade, enquanto a forma juridica se cumpre independentementé da opinifo dos seus destinatérios. ‘Também este ertério, que foi utilizado por Kanr, sofre de deficiéncias: o autolegislador de Kant nio & 0 homem real, mas uma Vontade pura cujax méximas tém valor universal; por iss0, no sendo eriadas pela pessoa obrigada, as normas morais nile so autdnomas. .A sua abrigatoriedade no ‘pode fundar-se num querer empftico, mas em exigéncias ideais Ademais, se as normas morais fossem auténomas, sempre have- ‘fla que reconhecer ao obrigado. nfo sé a faculdade de as criar, mas também de derrogar ou modificar segundo 08 seus capri- chos, faculdade que nenhum moralista Ihe atribui. E também impossfvel elevar a vontade universal A dimensfo de norma sem sabermos previamente 0 gue & bom ou. mau: o imperative moral é a expressiio de algo intrinsecamente valiaso e nio duma vontade. Por outro lado, o direito tem também uma dimensio de autonomia porque, sendo a vigtneia a base féctica da vali dade, esta desvanece-se quando aquela desce a um certo grail. Além de que uma "obrigagdo" heterénoma (isto é, imposta por uma vontade alheia) envolve uma contradig&ia: a obtigagio ressupde 0 reconhecimento dum dever ¢ uma veitade alheia 86 pode produzir, quando muito, um ter-de-ser, nunca um dever-ser (If). No entanto, no deixa de poder afirmar-se que a dimensio de autonomia domina na moral; por isso, enquanto 8 ignorantia iuris no excusa do seu cumprimento (!®), ié eleva CP) Vide lavier De Lucas ¢ Outs, o£, 22; ¢ Joab Hermano Satya, Moral # Direito, em Filesefia Jarica Portuguesa Contempordnea (Porta, sf), 302-303. (9) Vide RaDeRUeH, 0.2. 126. 0) Vide art. 6° do Codigo Civil. oma Est Ideia Geral de Direito 4 ignorantia moralis: quem nio conhece uin preceito moral do Ihe esté obrigado. A moral ¢ um imperativo categérico e, Portanto, permite ao individuo que aprecie as circunstancias fora das quais a norma moral nfo tem validade: a norma juries hipotética, porque estabelece os pressupostos da sua apli- cago ®. 5. eritério da forms ou dos meios: as normas morais slo incoer- civeis, isto €, 0 seu eumprimenio s6 poderd efectuar-se espon- taneamente (*!). As normas juridicas gozam de coercibilidade: ‘hd a passibilidade de se recorrer & forga para que sejam obser vades (7). Também este critério no satisfaz plenamente. Haja 1m Vista que ordinariamente o direito ¢ observado sem pensar- ‘mos na possibilidade de imposigao pela forca (*8); também, a coercibilidade no eonstitui uma dimenséio essencial das normas juridicas porque nem todas tém sangfo (*); © ha normas cuja sango no pode ser coactivamente imposta (25), 6. critério do mfnimo ético: 0 dircito é aquela parte da moral armada de garantias especificas indispenséveis a existéncia da ‘Paz, da liberdade © da justiga na sociedade (25), Identifica-se, Portanto, com as normas bésicas ou fundamentais da convi- ‘éncia © constitui um cfrculo menos amplo da moral, 4 rela- ‘so entre 0 dircito ea moral pode set representada por dois (2) Vide Letra: v Lacampna, 0.c, 439-441. @)) Dirse-d, a propésita, que ninguém sc tora bom & forgo, Vide RiGee ChorAo, a.c, 201 (2) Vide Liane y Lacasnana, o., 437-438; GanctA Marwez.oc., 21-22: € Guvko Te, 0.2, 15118. () Vide Norbeno Atvaniz ¢ MuOZ be BABA. ox. 61; GALvAO Tass, 241, 2627, (C4 Pensemos, v. g., nas obrigardes naturais (arts. 402° ¢ 404%) 6 na orma que fixa os deveres conjugsis (art. 1672.5, Vide OUIVEIRA ASCENSAO, 9.2, 80-92, ©) Sucede, v,g com o Direito Candnico, absolatamente destituldo de coer cibilidade; e cam © Diteito Intemacional Pablico, Vide OLivimA ASCENSAQ, oc, 4-95. @) Vide Barnsta MacnADO, o-¢., 59-60. Cains ame Ordem Soci n a Te freulos concéntricos: o mais pequeno representa o direito; o maior, 88 normas morsis que o direito no protege, Por isso, Poder-se-4 afirmar que tudo o que € jurfdico 6 moral, mas nem tudo © que € moral € juridico. Também este critério nla satis- faz. Desde logo, porque hd normas jurfdieas moralmente indiferentes (27); depois. ponque também as 4 contrérias & moral (28). Referidos 08 principais critérios, nenbum fixa, dé maneira corta ow acabada, og limites que separam a moral e o direito, © que, alids, se ‘compreende se tivermos cm atengo que 0 seu telacionamento & pautadio Por atinéncias muito profundas a par de algumas stuapSes de indiferenga © de coliséo, ‘marcadas por uma valorago moral. E no raro concordam as valores ‘mons e juridicas: v. g.,nflo matar, nio difwmar, nig furtar, etc. sio deve. res igualmente morais e jurfdicos. Persistem, no entanto, alguns pontos de vista valorativos que suge- rem uma fronicira: a moral caractetiza-se pela autovinculacio e pela imparténcia primordial que atribui &s motivagdes das condutac; o direita acentua a imposigao heterénoma das suas normas € os aspectos exter. ‘nos ou sociais da conduta humana. constituem o seu ponto de purtida. Mas convém assinalar uma ideia: 0 direito ordena 0 que € neces. sério ao fim temporal do homem, enquanto a moral afecta o que de ‘mais fotimo hf na pessoa. Sendo o fim, que & proprio da moral, supe- CV. gs aormas que ordenam 4 ciculagdo autondvel pela deta. Vide Miguel REALE, 0, 42; ¢ OLVERA ASCENSAO, ov, 100-101, Ch Vg. norma que declira nulas as disposiges testamentirias a favor do ‘médico ou do enfermeieo que trata 9 textsdor, veo lstamentn forfeit dares 9 oenga e 9 seu autor vier a falcer dela (an, 2194.). “Tis daposigtis pode ee sido mocivadss pelo camprimento de-deveres de gratio. ©) Vide arts, 953° © 2196." do Cédigo Ci () Vide as. 970" © 976* do Cédigo Civi anaes Rien a Iieia Geral de Divetto ior a0 fim que © direito realiza (°'), a moral goza duma superioridade que the permite intervir na criago, na interpretago © na aplicago do direito (influéncia material) ¢ impor exigncias formais, como 0 carée- ter geral, a publicidade, a no retroactividade e a clareza das normas jurf- dicas @). 24. Ordlem de trato social As normas de trato social (também denominadas usos sociais, regras de etiqueta ou de boa educago, normas convencionais, costumes, ete.) (!) sio usos ou convencionalismos sociais destinados a tornar a convivén- cia mais agradavel (*). Dirigem a maioria dos nossos actos, como a forma de vestir, sau- dar ¢ responder a uma saudagdo, oferecer presentes a certas pessoas em sdeterminadas épocas, retribuir uma. visita, dar os pésames aos fam res duma pessoa falecida, etc. (3). Tais normas revestem duas caracte~ iisticas. So: iimpessoais: tm origem, no numa vontade conereta, mas em uusos ou priticas sociais regularmente observadas (4); 2. eoactivas: impiem-se através da pressao exercida pelo grupo social a que se pertence € a sua inobservancia é punida com diversas sangdes, como a perda de prestigio e de dignidade, a marginalizago e o afastamento do grupo, etc. @) Vide Lecaz ¥ Lacaana, 0.c., 443; Juvier De Lucas e Outros, o., 27; ¢ Miguc! TunxEima be SOUSA, 0-c. 49. ((®)_ Vide Javier De LUCAS © Quiros, 0.c, 27-28; © THIXIRA DE SOUSA, 0.c., 480. () Vide Norberto ALvarez € MURoz D6 BAENA, 0.c, 87-88; GARCIA MAYNEZ, oc., 25-26; ¢ Leaaz v Lacampra, oc, 448. .@) Diferemes, por ndo disporem de cardcter noemativo, sfo alguna usos (iam- bvém denominados simples habits) que no se impéem: v.g. passear ou comer & uma bora determinads, ci Vide Javier De Lucas ¢ Outro, oc. 1920; Norberto [ALVAREZ © MUNGE D8 BAENA, o.c., 92-98; © LEGNZ ¥ Lacasna, 0.24 451, (@) Vide Javier De Lucas @ Outros, 0.c., 19. () Gcraimente, estes usos siio exigéncias técitas da vida colectiva: carecem de formulacie expressa, mas nada impede que sejam escritos ¢ até codificados, come observames, v. g, nos manuais de urbanidade, Vide GARCIA MAYNEZ, 0, 27, Orden Soctal 2» Estas caracteristicas mostram que as normas de trato social tém semelhangas com as normas juridicas: sfo vinculativas e gozam de san- ‘¢lo.c de concedo ($), No entanto, ha diferengas que as separam. Desde logo, o direito prevé ¢ quantifica as sanges que se aplicam a condutas determinadas; e ha drgios especificamente criados pelo ordenamento juridico para as aplicar e impor segundo procedimentos adequados Fala-se, a propésito, da “institucionalizago da sang" que distingue 0 \dreito dos usos sociais dotados de sangies ¢ de meios de coaceio inde- ‘terminadas, informais ¢ inorganizados (°). Depois, enquanto-as normas, juridicas possuem uma estrutura bilateral ow imperativo-atributivo (7) ‘as normas do trato social sto unilaterais: obrigam, mas no facultam (*) ‘Ni se trata, porém, de normas morais: além do cardcter cosetivo, as normas de trato social niio exigem a rectido da intengo que motiva aconduta externa (°). Dir-se-4, portanto, que as normas de trato social nlo sio morais nem juridicas. $90 usos sociais, costumes, convencionalismos ou decoro social que exercem, por vezes, uma. pressio a que o direito nfo pode ser insensfvel, transformando-os em normas juridieas (!9); de contrério, ©) Esta semethanga Jevou Det, Vsccino a sustentar que a nctividade humans 16 pode ser objecto duma regulamentagéo que umas veres:é moral c, outras, jor dies, E Ranarucn vé nos.1sos socias a forma primitiva comm dentro da qual se encontram, no prineipio, @ direito e a moral, num estado ainda embrionétio de indiferenciagio. Destc estado indiferenciado partem, em direegSes distntas, as forenas da diseto ¢ da moral. Vide Giorgio DEL. VECO, Filosofia del Derecho? (Barcelona, 1991), 321-323; Rapanucs, o.c, 137; © LOOAZ ¥ LACAMBRA, 0.¢, 452-462, (9) Vide Javier De Lucas Outros, a, 20-21, (14 vimos que perante uma pessoa juridicamente obrignda esté outra que tem a faculdade de the exigir © crmprimento da obrigayio. Vide supra, § 2.8 (5B um dever de eomesia ceder 0 assenio a uma senhor que viaje de pé num sutocamro,-mas nlo uma abrigacto jridics, (@) ‘Ha quem emtenda que as noras de trata social tarabém reclamam wma boa intengio. Porém, s¢ « uma saudagio amavel no cdmesponde a verdadcia inten- iio de saudar, no se Violenta a norma de cortsia: quem sata no € descors, mas hipécrita. Vide GARCIA Ma¥ne2, o-., 34. (C3) Manuel Marti FoRNozA (Curso de Ini Juridico® (Madrid, 1979), 217) oferece-nos un exermplo dam iso social que adqaina uma dimensio jr ‘dei Geral de Dirsito aarrisea-se no fracasso. Mas ao direito cabé, também, a missio de liber- tar © homem da tirania de certos usos, impondo novas formas de vida social que © progresso ¢ a liberdade humana reclamam (!!), 25. Ordem juridies Depois de procurarmos caracterizar as ordens religiosa, moral e de trato social, ¢ tempo de nos ocuparmos da ordem jurfdica. Deparamos, ‘Ro entanto, com vérias dificuldades. Desde logo, porque no ¢ facil definir direito. Como observou, Max E. Mays, "até agora nfio houve um jurista nem um filésafo do Direito que tenba acertado a formular uma definigga unanimemente aceite, sobretudo porque "é impossfvel compreender ¢ explicar satis- futoriamente as diversas formas manifestativas do direito numa tinica formula" ('), B certo que nao tém faltado definigdes desde as. mais modemas (que ¢ reduzem a um conjunto de normas dotadas de cocrci- Dilidade @) ou referem uma "ordenagio heterGnoma, coercfvel c bilate~ ral atributiva das relagdes de convivéncia, segundo uma integracéio nor- mative de factos ¢ valores" (%)) as antigas de Dante que fala de *realis ae personalis hominis ad hominem proportio, quae servata ser Yat Societatem; corrupia, corumpic® (*) e de Ciceno para quem "natura ddica: durante algum tempo, foi use social dar uma gorjeta aos serventes ios res- ‘turantes, cafés, bares, etc. que nfo tinham silfrie, Se o cliente no cumprisse e6¢ uso social, sujeitarse-ia apenas a ser mal servido no funuro ow tratado com alguma hostilidade. Mais tarde foi crinda uma norms jurica que concedeu 90s ser= vents 0 dineto « uma perceatagem (159%) sobre o valor do consumo, ASSIM se can- Vere um uso soctal em norma juridica, (1) Vide Lecnz ¥ LacaMaRA, 01 468, () Vide Sebustiéo Cauz, Direito Romano, cit, 20; Herbert L. A. HART, © Conceito de Direito%, tad. de A. Ribeiro Mendes (Lisboa, 1996), 18-22; MAST Fornaza, 0, 21; Femando José Brose, Ligdes de [nireducéo ao Direite? (Coim- bra Ealitora, Coimbra, 2006), 146-233; e Paulo Ferreira di CuNIA, o.c., 45-46, @) Vide Gaacta Maywtz, 0... 36, (©) Vide Miguel REALE, o.c., 67 (5 °O direito 6 uma proporgio real ¢ pessoal do-bomem para o homem que, ‘onservada, conserva a sociedade; cormumpids, eorrompe', Vide Miguel REALE, oe, 60 Ondem Social 31 luris ab homine reperenda est natura" (3), De todo 0 modo, a ideia de dircito postula uma ordem justa e, por isso, io € possfvel defini-lo sem uma referéncia & justiga que Ihe transmite validade (°), Poder-se-4, Portanto, dizer, com Sebastiio CRUZ, que o direito "é tudo aquilo que tem especiais atinéncias eom @ usta" (’), Depois, porque falta também uma nogo de ordem juridica que se tenha imposto sem discussio, Fala-se de "um complexo de regras, inst- ‘twigdes & Grgiins" (*); de "conjunto de normas imperativo-atributivas que fhuma certa época ¢ num determinado pals a autoridade politica consi- ddera obtigatérias" (); de "sistema de mormas juridicas in acte, eampreen- dendo as fontes de direito c tados os seus contetidos ¢ projecgses" (!9); duma "nogio englobante em que se inserevem as InstituigSes, os Srpios, as fontes do Direito, a vida jurfdiea ou actividade jurfdica © as situagtes Juridicas" (1); de “um conjunto de normas, prineipios, insttuigSes e ins- titutos juridicos (direite positivo) trabalhados pela especulagio cientifica (Giéncia juridica)" (19); de "institucionalizagao histérica do direito* (12) Ressalta, no entanto, a ideia nuclear de um direito relativamente ‘estdvel num certo tempo (4), constitufdo por um conjunta de normas cor- relacionadas ¢ harménicas entre si (5) que se denomina direita positive ‘Gus in civitate positum) ou objectiva ('6) © *A natureza do direito deve ser retirada da natureza humana". Vide Miguel Ruaus, 0.¢, 61 (9) Vide Barnsta Maciano, 0.c, 32-33; Lucaz ¥ LACANIRA, 0¢,, 288-289; © Dias MARQUES, 2¢., 47-48, ©) Vide Sebastito Cavz, Direito Romano, cit, 20, ©) Assim a entende Baxasno, apud OLIVEIRA ASCENSAD, a. 43. ©) Vide Ganca Maysez, oc. 37. 9) Vide Miguel REALE, 2, 190, (2) Vide Ourvenen Ascxtesh, 0, 48-50. (2) Vide CamraL. ne Mosicada, Liedes de Dircito CivitP (Coimbra, 1959), $5. (@) Vide Antinio Castaraieima Neves, Intreducdo ao Estudo do Direito (Coimbra, 1968-1969), 350. (9) Vide Castasisina Neves. oc, 330 (0) Wide Joso Castro MENbEs, Jnirodugdo ao Estudo da Direito (Lisboa, 1984), 42, (09) Vide Gauvao Tetes, oc. f, 52-55; OLVERA ASCENAD, 0¢,, 46-48; € Femando José Brow, ibisem, 381-606, et era de Dit A este direito, visto na perspectiva da ordem jurfdica e considerado globalmente como um sistema de normas, apontam-se algumas carac- terfsticas que. urge exper criticamente: ‘Necessidade: resulta da natureza social do homem. Dotado de sentimentos e de razo, o ser humano precisa de comunicar, de produzir ¢ consumir bens, isto é, 0 homem realiza-se pela convivéncia com os outros ¢ pelo dominio e uso das coisas. A sociedade, onde necessariamente convive, pastula tum conjunto de normas juridicas que disciplinem o seu comportamento: ubi societas, ibi ius. De contririo, a sociedade dissolver-se-d, nem a anarquia é sustentivel duradouramente (0 homem aspira ’ ordem) nem o despostismo ¢ tolerével par muito tempo ("7) 2. Alteridade: 0 direito nfo disciplina a condata do homem isolado, ‘mas enquanto vive em sociedade, comunicando, produzindo ¢ consurnindo bens, numa palavra, convivendo (!8). 3, Imperutividade: tadicionslmente tem-se entendido que as nor- mas juridicas, porque constituem, normas éticas, silo imperativas, ‘A sua esséncia ¢ um dever-ser a que devemos abedecer incon- dicionalmente sem a possibilidade de escolhermos livremente centre 0 seu cumprimento ¢ a sua inobserviincia. Dir-se-6 que o direito orienta as nossas condutas independentemente da nossa vontade porque s6 assim cumpriré a sua fung&o ordenadora indispensiivel & subsisténcia da sociedade ('°). Tratar-se-ia de imperativos categéricos (), porque o direito "fixa os fins € 7) Vide Ourvama Ascensho, 0c, 56-59; Sebastito Cruz, Direito Ramano, sit, 11; GALWAO THLLES, o.¢, 1, 32-395 ¢ TEINEMRA DE SoUsA, 0.2. 54. (1%) Vide Pedro Bm6, o.., 25. (®) Vide Gaivko Tautes, oc. I, 124125; Tencara oe Sousa, oc. 91: € Pedro End, 04 26. (@) Valeré a pena distinguir os imperativos hiporético e categético. Aquele ¢ condicional: subardina o imperativo a um fim ¢ $6 tem valor se procurarmas slingir esse fim. No passa, paranio, dum simples consetho dc pradéacia ow de: habi- lidade: v.g., © quiseres ter satide, no comets exageros, O imperativo eateg6rica incondicianal: nfo est subordinado a nenbum fim, tem valor em si ¢ ordena bsolutamence sempre e em toda a parte, quaisquer que sejam as consequéncias:v.g., 1 propesigho ‘nko deves mata (ini Edw Ordem Sociat 3 exige a sua realizagéo de uma forma to incondicional, dum modo exactamente tio "categérico' como a moral”, observa Karl Enciscu (*"). No entanto, além de igualmente se par falar de imperativo hipotético no sentido de imperative condicionall (a.norma juridica representa uma hipotese s6 se aplica quando se verificarem os factos af deseritos) (22), importaré também referir que hd normas que niio ordenam ou profbem uma conduta, antes atribuem um poder ou faculdade (2); ¢ que a norma € 2 ‘Tesposta a um problema juridico © a opgio valorativa que traduz, Porque condicionada pelos termos do problema, pelas opgées ‘possiveis e pelo critério valorative que the imprime coeréncia e significado, "nunca poder ser um puro acto de vontade, puro imperativo' (*), Por isso, hd quem observe graus de impera- tividade ¢ tecomende que "é preciso entender a imperatividade do dircito cum grano salis": sendo expressio axiol6gica dum complexo processo de opgdes valorativas, a sua natureza é social © os individuos gozam de larga margem de acgio livre (5), E afirma-se também que "a imperatividade, que aqui nos ocupa, ¢ somente 4 imperatividade propria da ordem normativa no. seu ‘conjunto" © "nao cabé (a) cada regra em particular’ (26) 4. Coercibilidade: & a susceptibilidade de aplicaggo pela forga das sangtes prescritas pelo dircito (?). Distingue-se da coaccho que, definindo-se camo a forga (fisica ou psicol6gica) que acom- Panha o direito, s¢ revela inadequada para o caracterizar: falha, quando as normas jurfdicas slo violadas e, portanto, 0 direito no teve forga para se impor (*); ¢ é desnecesséria na esmagadora 1) Vide Karl Exciscn, Inerodupdo ao Pensamente Juridico® (Coimbra, 1977), 27. (2) Vide infra, § 25; ¢ Bvarscu, oc., 41-42. ) Vide infra, § 26. (C4) Vide Barnsta Macnabo, o.,, 91-92; e Miguel REALL, 0, 33. 2) Vide Miguel REALE, o.., 33 © 129-136, G8) Vide Ouivema ASCENSAD, 0.0, 62-63. @) Vide Oven AscENSKO, 0, 80-82; THXERA DE SOUSA, 0. 105-107; © BlcOrTE CHoRAO, oc. IB, GH) Vide Leaae ¥ LacaMana, o.c 386-387. omen Eo 8 MacnAaco, 9, 32; Bioorre CHORAA, 0. ‘90 Estudo do Direito, IP (Coimbra, 2000), 125-129. eta Geral de Direiva maioria dos casos em que as normas jurfdicas se observam espontaneamente (%9). Pelo contririo, a coercibilidade é a pos- sibilidade de aplicar uma determinada sano a quem violar uma norma juridica e, por isso mesmo, é também uma forga ‘spiritual que cumpre uma fungo pedagégica (}, Esta atitude, ‘to cara & doutrina positivista que vé na coercibilidade um cle mento essencial do (C4, oferece grandes motivos de cri- tica que justificam a sua recusa, Sustenta-se que "o direito depende da forga na sua vigéncia (o direito tem uma existéncia ‘no tempo @ NO espago), mas no HO seu ser, na sua esséncia ou no seu contetido que € determinado em fungao da ideia de Direito* (3), Q princfpio da justiga informa-o, dé-lhe validade, ‘mas ¢ necessério que vigore efectivamente; por isso, no per- tencendo & esséncia do direito, a coaccdo e a coercibilidade ‘constituem uma importante condigao de eficécia: contribuem para a sua vigencia. Daqui se extrai uma conclusiio nfio menos importante: se a juridicidade duma norma ndo resulta da coer- cibilidade, mas esta ¢ que deriva daquels, a coercibilidade 36 seré legitima se a norma jurfdica também o for {isto &, conforme & ideia de direito). Nurna palavra, ao "Direito cabe legitimar ¢ impor limites & forga" da qual pode depender na sua vigéncia: para existir (9), Importa também referir que a coercibilidade eM Sempre esté presente: nlio € necesséria nas sangdes que operam automaticamente (4); nfo é possfvel em normas regu- ladoras das poderes das érglos supremos do Estado em relagdo 0s quais se poe a eterna questio quis cusrodiam custodia? (3); (®) Vide Oravema Ascensko, 0.2, 81-82; ¢ BIGOTTE CHORAG, e120, (C8) Vide Lecaz vy Lacamnia, o.c.. 387. (C1) Vide Lecaz Y LACAMBEA, oc., 386; Miguel Rea, o., 47; BAPrSTA 121-122; ¢ GaLvao Taxes, Jntroducto (03) Transerevemos Barista MACHADO, o-., 31-39, (9) Vide Barrsta MACHADO, o.c, 41-42; © Paulo Ferreira da Cunita, 0, 2-28. C8) Sucede, v.g., com a ineficécia, Vide infra, § 372. ©) Vide Ovens ASCENSAD, ov. 37-88, omer Est Ordem Social 35 nao funciona em alguns direitos por falta dum aperelho eapez de impor as suas normas (v. g., 0 Direito Internacional Pablico) C9) ou absolutamente destitufdos de coercibilidade (+. @» 0 Direito Canénico) (7); nem pode exist ern normas juri- dicas desprovidas de sangio (8), ‘Todavia, embora a coc lidade nfo pertenga & essénecia das norma j ha quer entenda que "pode predicar-se da ordem juridica globalmente considerada* (¥) ¢ justifique com a fungo, que ao Poder per- tence, de "necessariamente garantir a ordem juridica da socie- dade, defendendo-u de elementos anti-sociais" (9). 5. Exterioridade: as notmas juridicas disciplinam comportamen- tos que se manifesiam exteriormente. F certo, o direito também ‘Penetra no recinio da consciéncia para determinar os mativos. que ‘explicam as condutas sociais (*!). Todavia, o ponta de partida ‘sto a3 actos exteriones: mera imengo, sem munifestacgo externa, niio provoca direito (2). ‘6. Estatalidade: esta pretense caracteristica do dircito esté na base duma questo que opde o monismo juridico estatalista a0. plu- nalismno juritico. Aquele, sobretuda representado por KuiSex que considera o dircto & 4 Estado dois aspectos distintos, mas inse- Pardveis, da mesma realidade (o Estado € 0 direito como act vidade normativa; o direito é 0 Estado como situagio fixada elas suss normas) ("), redux a criago e a aplicago das nor- mas juridicas ao Estado. © pluralismo juridico susteanta, pelo Contrério, que nem todo o direite & criado aplicado pelos ‘Grgaos estatais (4). Impora saber, portanto, se todo o direito 05) Vide Bioorm CxoRio, 0., 121; © QUVEIRA ASCENSAO, a, 84-85. 07) Vide supra, § 23°. OF Vide supra, § 23% C%) Vide BioorTe Cuno, 0.2, 1 () Vide Ouivamea Ascenso, 0.7, (8) Vide supra, § 23. () Vide Pedro Eo, o;, 26-23 (8) Vide Hans Kitsen, Teoria Pura do Direito, I (Colesbra, 1962), 163-182; 38, Ranaeuce, 0.¢, 126-127; ¢ infra, § 19.1 (4) Vide Bicorre Cuoada, ¢.¢, 211-212,

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