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MI ca rae BN ee re fom eae td Nota sobre o livro Fste livro procura introduzir o leitor no conhecimento da historia da mésica, por forma o propiciar a sua compreensio como fato social, sujeito ds condigées do tempo e do lugar em que é produzida. ‘ho longo de todo o texto se manifesta a preocupacao de solientar as influéncias e as interagGes que se exercem entre evolugdo da misica e as condigdes sociais ¢ culturais, o pen- samento dominante, as tendéncias artisticas e todas as de- mais citcunstincias de cada época. Assim, entre outros aspectos, é tratada a influéncia exercida pela Igreja, pelas Cruzadas, pelas descobertas cien- tificas, pelas teorias dos grandes fildsofos e pensadores, pela idéia da superioridade do homem sobre a mulher, pelo poder absoluto do Rei-Sol, pelos contrastes e excessos do barroco, pelo desenvolvimento da burguesia e consequente democra- tizagGo da mésica, pelas violentas transformagbes ocorridas no princfpio do século e suas repercussdes nas artes, culmi- nando com a “revolugdo” de Picasso, e na musica, com Schoenberg e Stravinsky. Ao longo de todo 0 trajeto percorrido — desde a Idade ‘Média até meados do séc. XX —a pintura é destacada dentre as demais artes, e os comentérios que suscita sio ‘acompa- nhados de reproduces de obras dos principais pintores de cada periodo. Esta énfase dada pintura deve-se ao interesse de salientar um aspecto particularmente instigante e atual das relacdes entre a midsica e a pintura: a convicgio monifestada por muitos artistas — e cada vez com maior intensidade — de que existe uma real e profunda corespondéncia entre a arte dos sons ¢ a arte das cores, ae, oe es ee es ee i A ig ab eee . O ENREDO DA HISTORIA tes terras que Ihe rendiam os beneficios que o regime feudal propiciava. Os monges viviam em mosteiros, situados em lugares isolados, longe das povoagoes. Era nos mosteiros que se concentravam os homens mais cultos, dedicados ao estudo, as artes ¢ ao ensino. As tinicas escolas que existiam eram as dos mostei- ros, e era dentro destes que se produzia toda a arte. A pintura desta época caracteriza-se pelos seus temas, quase sempre de cardter religioso. As figuras eram representadas de frente, e os rostos tinham uma intensa expressdo, que representava o ardor e 0 @x- tase da fé. Nesta época nao foi muito cultivada a escultu- Ta, que quase se limitou a pequenas pecas e estatuetas. Nos grupos escultéricos as figuras aparecem envol- vidas umas nas outras, sem autonomia, e os rostos apresentam expressdes pouco reais. Uma forma de arte que teve grande desenvolvi- mento na Idade Média foi a iluminura, que era a deco- ra¢éo manual dos livros e documentos. Através dos desenhos que compunham estas preciosas ornamenta- Ges, registrava-se todo o saber da época, inclusivamente em relag&o 4 mtisica. Os valiosos manuscritos que con- tinham estas iluminuras eram cuidadosamente guar- dados em bibliotecas situadas em lugares de dificil aces- so, verdadeiros labirintos. A iluminura, na Alta Idade Média, era uma arte privativa dos monges. O estilo romanico — Este foi um perfodo de intensa atividade na construgao de novas igrejas. 14 ABRINDO CAMINHOS Houve um monge do séc. XI que se dizia maravilha- do ao ver “o mundo cobrir-se com um manto branco de igrejas”. O estilo de arquitetura, nos sécs. X e XI, era o romAanico, caracterizado por construgdes gran- des, pesadas, sombrias, de uma solidez maciga. Eram imponentes e grandiosas manifestagdes de forca e riqueza, simbolos de poder e de autoridade. Mais do que servir aos fiéis, destinavam-se a proclamar a gl6- ria de Deus. As grossas paredes de pedra e as janelas pequenas e distantes do chao obedeciam a necessi- dades de defesa. Uma das caracterfsticas destas cons- trugGes sfo os arcos inteiros ou arcos de volta per- feita, diferentes dos arcos cortados ou convergentes do estilo gético, que viria a seguir. [Fig. 2] A misica: canto gregoriano Os atos littirgicos que se celebravam nas igrejas eram acompanhados por canticos. Esses cAnticos eram inicialmente transmitidos de geragéo em gera- ¢ao, e em cada local os cAnticos eram diferentes. Até que, no ano 590, o papa Gregério I (cerca de 540- 604) compilou os cAnticos dispersos, organizou-os e estabeleceu, com base neles, 0 cAntico oficial da Igre- ja. Para isso houve que adotar algum tipo de sinais que pudessem representar a musica por escrito. Es- ses sinais foram os “neumas”, que haviam sido in- ventados e usados pelos gregos. Foi esta a primeira escrita musical que existiu na nossa era, muito rudi- mentar ainda e muito distante da escrita atual, mas suficiente para se conhecer a mtisica que se fazia. 15 O ENREDO DA HISTORIA Esta mtisica chamava-se cantoch4o e passou a designar-se também por canto gregoriano, em ho- menagem ao papa Gregério, que a organizou e lhe deu unidade. Era uma miisica vocal, isto é, apenas cantada. Inicialmente, nao era acompanhada por nenhum instrumento, e s6 os padres e os monges a podiam cantar. As mulheres eram completamente exclufdas dos cantos e dos atos littirgicos. Os mon- ges eram os préprios compositores, que se manti- nham no anonimato. O canto gregoriano era can- tado em coro, a uma s6 voz, como se fosse uma s6 pessoa: todos cantavam ao mesmo tempo a mesma melodia. O canto gregoriano tinha como objetivo criar um ambiente de espiritualidade propicio A oragao e & louvago a Deus; e, por outro lado, destinava-se a servir de suporte as palavras da Biblia, que, em vez de serem faladas, eram cantadas. Por isso era assim cantado a uma s6 voz, com toda a clareza, para que os textos pudessem ser entendidos pelos fiéis. A exclusao das mulheres dos cAnticos e dos atos littirgicos esta bem de acordo com o espfrito da épo- ca, segundo o qual as mulheres eram consideradas como seres inferiores. Esta discriminac&o vinha ja da Antiga Grécia. Aristételes considerava a mulher um ser menor, uma espécie de imitac&o imperfeita do homem. Em conformidade com este pensamento, Sao Paulo proclamou a maxima: “Que as vossas mulhe- res guardem siléncio nas igrejas”. ABRINDO CAMINHOS Santa Cecilia, protetora da mtisica. E curioso observar que a Igreja, embora adotando estas idéias, elegeu como protetora da mtisica uma figura feminina — Santa Cecflia — santa e martir que, segundo algumas versées, teria sido queimada viva enquanto cantava hinos religiosos. Foi no séc. XV que Santa Cecilia foi declarada protetora da mui- sica. E geralmente representada tocando algum instrumen- to. Houve um poeta que escreveu varias poesias intituladas Odes a Santa Cecilia, que mais tarde foram musicadas por dois importantes compositores de quem lhes falarei mais adiante: Henry Purcell e Haendel. O dia de Santa Cecilia € 22 de novembro. Do que lhes falei acerca da Alta Idade Média, vocés podem observar que a musica e as artes, em geral, refletiam fielmente o espfrito da época: tudo se centrava em Deus, e os homens eram considera- dos seres insignificante. Com excegdo daqueles que se dedicavam ao servigo religioso, tidos como beneficidrios de uma relagio privilegiada com Deus, nao se admitia sequer que participassem dos canticos religiosos. A musica era apenas mais um ato de lou- vor a Deus e de celebragao das suas glérias. Falei-lhes da musica da Igreja. E fora da Igreja, sera que nao se fazia musica? Sera que nao existiam festas e dangas? Certamente que sim. S6 que essa musica nao era escrita, e por isso nao foi conservada. Nao a conhecemos. S6 a Igreja escrevia a sua mtisica, ¢ s6 a Igreja tinha meios materiais e pessoais que lhe permitiam conservé-la, e que nos permitem hoje conhecé-la. 17 UFRN-ESCOLA DE MUSICA BIBLIOTECA © ENREDO DA HISTORIA Foi s6 no séc. XI que um misico italiano, cha- mado Guido d’Arezzo (cerca de 995-1050), inven- tou a escrita musical que permitiu a elaboracao das primeiras partituras e deu origem a nossa escrita atu- al. S6 a partir daf é que toda a mtisica, e nao sé a religiosa, comegou a poder ser registrada. Vocés podem imaginar a importancia que esta invengao assumiu para o progresso da miisica? 3.2 A Partir do Séc. XII (Baixa Idade Média) As Cruzadas Um dos acontecimentos que mais repercutiram na vida da sociedade medieval a partir do séc. XII foi o empreendimento das Cruzadas. O grande entusiasmo religioso que animava os cris- taos fez com que toda a Europa se mobilizasse para lutar contra os maometanos, que tinham ocupado a Terra San- ta, em Jerusalém, na Palestina, onde se encontrava o se- pulcro de Cristo. Os maometanos eram adeptos do islamismo — religido fundada por Maomé, cujo livro sagra- do € 0 Corio, e cuja capital espiritual é Meca. Quando os maometanos se apoderaram das terras que para os cristdos eram sagradas, todos os povos da Europa, correspondendo a um apelo do Papa, se organizaram e partiram por varias rotas, por terra e por mar, com destino a Asia, para recu- perarem essas terras. Foi 0 inicio das Cruzadas. A primeira Cruzada aconteceu no final do séc. XI e varias outras se Ihe seguiram. No inicio, foram sem dtivida motivadas pelo entusiasmo religioso e 18 ABRINDO CAMINHOS pelo espirito de aventura; depois, porém, prevale- ceu o interesse econdmico: eram muitos os produ- tos que os cruzados traziam do Oriente para serem comercializados na Europa. Além de géneros, os cru- zados trouxeram também idéias e aprenderam no- vas técnicas: os moinhos de vento e os carrinhos de mao sao algumas dessas novidades. Com a abundancia de novos produtos e a inten- sa pratica de trocas, 0 comércio desenvolveu-se muito, sobretudo o das cidades italianas de Veneza, Génova e Pisa, que transportavam nos seus barcos todas as novas variedades de géneros; e, além disso, forneciam as enormes frotas em que, nas rotas mari- timas, eram transportados os cruzados. Daf o grande enriquecimento destas cidades e 0 crescimento de uma nova classe social que emergia, com grande ca- pacidade financeira e um enorme desejo de ter acesso ao saber e as artes. Era 0 comego da burguesia. Para corresponder a esta crescente procura, fo- ram criadas novas escolas, independentes dos mos- teiros, e fundadas as primeiras universidades (Bolo- nha, Paris e Oxford). A cidade de Salerno, na Sicilia, tornou-se 0 centro médico da Europa, e em Bolonha, no norte da Itélia, foi dado grande desenvolvimento ao direito civil e canénico, a teologia e A filosofia. Esta maior difusdéo do conhecimento fez com que as pessoas comegassem a questionar os valores que lhes eram impostos e a ensaiar caminhos que as le- vassem a ter as suas proprias opinides, inclusiva- mente em relacio a religiao. 19 © ENREDO DA HISTORIA Outra conseqiiéncia das Cruzadas foi o conta- to que os seus participantes — os cruzados — tive- ram com a Grécia, que ficava no caminho para o Oriente. Esse contato permitiu-lhes tomar conhe- cimento da civilizagao da Antigiiidade Classica e conhecer a sua filosofia, o seu saber, as suas artes. De volta aos respectivos pafses de origem, os cru- zados estimularam o interesse por esse conhecimen- to e pela busca de novas descobertas, através de escavagées arqueoldégicas. Em conseqiiéncia da nova mentalidade que se criou e das novas circunstancias, 0 regime feudal entrou em decadéncia. A Inquisigao, a peste e a guerra Mas, a par destes fatos, que contribufram para melhorar a vida das pessoas, aconteceram outros que profundamente as atormentaram. Um deles foi a cri- aco da Inquisic&o — um tribunal da Igreja que jul- gava e punia quem de algum modo se manifestasse contra o Cristianismo e fosse, por isso, acusado de herege. Qualquer opini&o contrdria aos princfpios impostos pela Igreja era classificada de heresia e se- veramente punida, chegando-se até a aplicar a pena de morte. Como conseqiiéncia, gerou-se um clima de medo e de pessimismo na sociedade. Outra causa de desventura foi a peste negra, uma doenga terrivel que se prolongou por muitos anos e matou milhares de pessoas em toda a Europa. A pes- te era vista como um castigo de Deus pelas heresias 20 ABRINDO CAMINHOS dos homens, e isto agravava ainda mais o medo e o pessimismo. No final da Idade Média desencadeou-se uma guerra sangrenta entre a Franca e a Inglaterra, que se prolongou por muito tempo e afetou toda a Euro- pa: foi a Guerra dos Cem Anos. Houve ainda a revolta dos camponeses contra os senhores feudais, que criou um ambiente de pro- funda instabilidade. As artes Vejamos agora como estas circunstancias reper- cutiram nas artes. Em primeiro lugar, observa-se que tanto a misi- ca como as demais artes comegaram a deslocar-se da Igreja para a sociedade. A Igreja j4 nao era o tini- co patrocinador das artes, e 0 monopélio do saber que até af mantivera comegou a diluir-se. Em con- seqiiéncia, os temas das artes deixaram de ser exclu- sivamente religiosos. Por outro lado, o espfrito de aventura estimulado pelas Cruzadas influenciou a literatura, dando origem as novelas ou romances de cavalaria, com os seus ide- ais de amor cortés e de valentia e lealdade. Também a 4nsia de conhecer outros mundos e de buscar outras respostas para uma vida cheia de frustragdes e descon- tentamentos levou.o homem a alienar-se da realidade e a partir para a fantasia. Assim, foi dada forma liter4- ria a numerosas lendas, como a do Rei Artur e da Tavola Redonda, a do Santo Graal, a do Lancelote e outras. © ENREDO DA HISTORIA Os trovadores: poetas e musicos — A poesia teve um grande impulso com os trovadores, que eram poetas-mtisicos itinerantes que se deslocavam de cidade em cidade para apresentarem as suas compo- sigdes. Estas eram designadas pelo nome francés de “chansons”, dado que os trovadores tiveram origem na Franga. Estes artistas propagaram-se por varios paises e contribuiram muito para o progresso da po- esia e da mtisica. O tema mais freqiiente das poesias era o amor nobre e cortés que 0 cavaleiro dedicava A sua dama e que, como lhes disse atrds, fazia parte dos ideais da cavalaria, provenientes do espirito das Cruzadas. A arte dos trovadores chegou até Portu- gal, onde, além das cantigas de amor, havia as poe- sias que ironizavam os costumes da época e que eram chamadas “cantigas de escdrneo e maldizer”. Ja no final da Idade Média, a poesia atingiu o seu mais elevado nivel com o poeta italiano Dante (1265-1321), cuja obra mais importante é A Divina Comédia e cujos poemas serviram de inspiragao para mtisicas de varios compositores, entre eles Liszt, de quem mais tarde lhes falarei. Dante era um poeta que, embora ainda na Idade Média, ja tinha um pé no perfodo seguinte — o Renascimento — porquanto a sua vasta cultura se baseava no profundo conheci- mento dos poetas ¢ fildsofos da Antigiiidade Classi- ca. Veremos a seguir que esta era uma das caracte- rfsticas da cultura do Renascimento. O estilo gético — Na arquitetura grandes mu- dangas aconteceram. A principal foi a criagado de um

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