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UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA Faculdade de Ciéncias e Tecnologia ‘Secgdo de Ciéncias de Educagao A Pedagogia do Conceito de Energia contributo para a utilizagao formativa do conceito de energia Por Mariana de Jesus Pedreira Valente Dissertagdo apresentada na Faculdade de Ciencias e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa para obtengio do grau de Mestre em Ciencias da Educagto, Area de Educagdo ¢ Desenvolvimento Sob a co-orientagio de: ‘Teresa Ambrosio e Duarte Costa Pereira LISBOA, 1993 Sumario da Dissertagao Quando nasce um novo conceito & necessério um termo para o designar. O termo energia € utilizado para designar o conceito cientifico que emerge, a meados do século dezanove, com o estabelecimento do, ento, Principio de Conservagiio da Forga. Que relagGes se podem estabelecer entre 0 novo conceito e a ideia de energia que nos finais do século dezoito usufruia de tao grande sucesso? Na primeira parte deste trabalho tentamos mostrar queemborao conceito cientifico tenha a sua especificidade propria, ele pertence & “nebulosa a que chamamos ideia de energia”. Recorrendo A Hist6ria das Ideias e & Histéria da Ciéncia propomos um percurso, de natureza epistemol6gica, conducente & emergéncia do conceito cientifico de energia. Com este percurso pretendemos, por um lado, clarificar © significado cientifico deste conceito, e, por outro lado, destacar 0 seu potencial valor formative. Caracterizamos, depois, algumas das conceptualizacSes propostas para a energia tanto por fisicos como por investigadores em Ensino da Fisica, colocando em destaque eventuais ligagdes. A partir da realizagio de entrevistas a um grupo de professores de Fisica tentamos caracterizar algumas das concepgées ¢ priticas dos professores, relativamente ao ensino/aprendizagem da energia. Estas serdo interpretadas © avaliadas & luz de alguns dos modelos epistemol6gicos construfdos ao longo do trabalho. Abstract ‘When a new concept is bom we need a new term to design it. The term energy was used to designate the emerging scientific concept, by the middle of the 19th century, with the establishment of the, then, Principle of Conser- vation of Force. ‘What relationships can be established between the new concept and the idea of energy which was so successful by the end of the 18th century? In the first part of this study we will try to show that even though this scientific concept has its own specificity, it belongs to the “cluster” we call energy. Having resource to the History of Ideas and History of Science we propose a path, of an epistemological nature, leading to the emergence of the scientific concept of energy, we thus wish, on the one hand, to clarify the scientific meaning of the concept and, on the other, to highlight its potencial formative value. ‘We go on to characterize some of the conceptualizations proposed for the energy both by Physicists and Researchers in the teaching of physics, high- lighting eventual links. ‘Through the use of interviews to a group of Physics teachers we will try to characterize some of the teachers’ conceptions and practices, as to teaching and leaming energy. These will be interpreted and evaluated from some of the epistemological models built throughout the study. Résumé Quand il nait un nouveau concept il faut un terme pour le désigner. Le terme énergie est utilisé pour désigner le concept scientifique qui emerge, depuis le milieu du XIX *siécle, avec Iétablissement du Principe de Con- servation de la Force. Quelles relations peuvent-elles sétablirentre le nouveau concepteet'idée énergie qui a la fin du XVIII sigcle avait été tes utilisé dans différents domaines? Dans la premitre partie de ce travail nous essayons de montrer que cependant le concept scientifique aie son spécificité propre, il appartient & la “nébuleuse que nous appellons idée d'énergie". En recourant a L'Histoire des Idées et & L'Histoire dela Science nous proposons un parcours epistimologique qui conduit 'emergence du concept scientifique d’énergie. Avec ce parcours, on prétend, parun coté, épurer le sens scientifique de ce concept, et, par un autre, mettre en evidence son potentiel valeur formatif. On caracterize, aprés, quelques unes des conceptualizations proposées pour I'énergie pardes physiciens comme par des rechercheurs enenseignement de la physique, mettant en évidence des eventuelles liaisons. En utilisant la réalisation des interviews A un groupe de professeurs de Physique on & tenté caracterizer quelques conceptions e pratiques, dans le domaine de1'énergie, des enseignants .Celles-Ia serontinterpretées et évaluées dans le cadre des modéles épistémologiques construits pendant cette recher- che. 4 Indice Geral Sumario 3 Abstract 4 Résumé 5 Introdugio Geral 9 Primeira Parte - Energia da Ideia ao Conceito e do Conceito a ideia Capitulo 1 - Energia: i ia integradora de olharesedesaberes 14 LIntrodugéo 14 2. Alguns elementos sobre a histéria da palavraenergia 16 3. "A ideia de energia na viragem do Huminismo” 19 Capitulo 2 - A emergéncia do conceito fisico de energia 32 1. Introdugdo 32 2. Alguns elementos para a compreensio da "descoberta" do principio de conservagio da energia 35 3. Aemergéncia do principio de conservagao de energia 72 4, Sumério de algumas das ideias expostas 96 Capitulo 3 - O valor cientifico/pedagégico do conceito de energia 99 1. Introdugao 99 2. 0 valor cientifico e metafisico do conceito de energia 100 3. 0 valor psicolégico da energia 107 4, 0 valor educativo do conceito de energia ul Capitulo 4 - O ensino/aprendizagem da energia 19 1. Introdugéo 19 2. A conceptualizagao da energia 120 3. Transferéncias e transformagdes de energia 131 4, A conservacio da energia 135 5. A degradagio da energia 141 6. conclusio 148 Segunda Parte- Concepgdes e Praticas dos Professores de Fisica no 4mbito da Pedagogia da Energia Capitulo 5 - Metodologia da Investigacéo Empirica 150 1. Introdugio 150 2. Problemética da investigagao 152 3. Contexto e descrigdo das varias fases da componente empfrica da investigagao 157 6 3.1 Corpus da investigagao 3.2. Construgdo do guido para recolha de dados através de entrevistas 3.3 Método de andlise de dados 4, Descrigdo e definigo dos sistemas de categorias 4.1 Sistema de categorias utilizado na andlise de contetido das entrevistas 4.2 Sistema de categorias utilizado na anélise de contetido dos manuais escolares Capitulo 6 - Andlise dos dados ou Emergéncia de Sentidos para as Priticas e Concepgées dos Professores de Fisica 1. Introdugo 2. Alguns dados sobre os professores entrevistados 3. Andlise das entrevistas 3.1 Introdugao. 3.2 Apresentagdo dos dados 3.3 Interpretago dos resultados 4, Andlise dos manuais escolares 4.1 Introdugio 4.2 Leitura interpretativa dos dados 4.3 Sintese dos resultados 158 159 161 168 168 179 181 181, 182 184 184 184 215 228 228 229 239 Conelusées e implicagdes pedagégicas Agradecimentos Bibliografia Anexos Anexo 1 - Guido das entrevistas Anexo 2 - Justificagdo das decisdes tomadas relativamente a algumas das categorias 241 248 249 261 267 Introducao Geral A convicgio de que os conceitos cientificos, para além de serem instrumentos importantes na compreensio do mundo, contribuem, também, para o enriquecimento da linguagem verbal, motivou-nos para 0 desenvolvimento de uma linha de investigagao centradanum conceito cientifico. lids, o proprio enriquecimento da linguagem verbal vai, por sua vez, “afectar a visio € compreensio” do mundo (Bacon citado por Matthews, 1992). Esta valorizagio verbal vai também contribuir para o aumento do potencial comunicativo que, quanto anés, éuma vertente muito importante da formagdo pessoal. A ideia da aprendizagem dos conceitos cientificos ser importante no desenvolvimento pessoal, sobretudo na dimensio cognitiva, é particularmente relevadapor Vygotsky. Este autor teve grande influéncia no desenvolvimento destanossa investigagao. Como refere Vygotsky a aprendizagem dos conceitos cientificos ajuda a desenvolver competéncias cognitivas que so transferidas para outros contextos, nomeadamente para as operagdes com conceitos espontaneos. Conscientes do valor formative dos conceitos cientificos, importava escolher 0 conceito, em torno do qual irfamos desenvolver o trabalho de investigagdo. Esta escolha recafu sobre 0 conceito fisico de energia, pelas razGes que a seguir se enunciam. Ser a energia um termo a que esté associada uma multiplicidade de sentidos, nonosso contexto cultural. Porsubstancializar © conceito de energia, através do principio de conservacdo, a presenga do bindrio diferenca/semelhanca fundamental, comodizKelly,no desenvolvimento dos conceitos. Na verdade, o principio de conservagao constitui um bom exemplo para tomar conscientes as duas operagdes bésicas na construgao dos conceitos: distinguir e assemelhar. Por constatarmos a existéncia de algumas dificuldades de abordagem deste assunto em contextos escolares. Por nos parecer que, por vezes, os alunos apenas ficam com uma capacidade de nomeagdo de formas de energia, nfo adquirindo, portanto, nem novos significados nem novas formas de pensar. Por nos parecer que esta linguagem centrada nas formas de energia € inibidora do desenvolvimento de uma linguagem enriquecida, tao importante no nosso mundo comunicacional, Em sintese: por um lado, parecia-nos que o conceito cientifico de energia continha um potencial valor formativo; por outro lado, defrontévamo-nos com umacerta decepgo quando assistiamos a aulas em queera abordada aenergia. Face a esta dissonancia propusemo-nos caracterizar algumas dificuldades associadas a abordagem da energia, potenciando a sua resolugao num quadro de valorizagio formativa do conceito. ‘Ao concebermos a pedagogia da energia como objecto da nossa investigago sentimo-nos um pouco como Palomar que pensa para consigo: “s6 depois de ter conhecido a superficie das coisas nos podemos aventurar a rocuraro que esti por baixo. Mas a superficie das coisas ¢ inesgotdvel” (Italo Calvino, p.63), Na verdade, dada a imensidao da tarefa, era impossivel dar resposta a estes dois apelos: o conhecimento da superficie e o conhecimento da profundidade. Tivemos, portanto, de limitar a superficie, sem, todavia, renunciar a0 seu fascfnio. O primeiro limite que nos impusemos foi o tratamento do conceito numa perspectiva pré-relativista. O desenvolvimento deste trabalho realizou-se em tomo de dois pélos: a 10 suporte substantivo no desenvolvimento deste trabalho, estando assim justificada, a nosso ver, a relevancia especial que foi dada a Elkana. A segunda parte do trabalho ocupa-se essencialmente e como jé foi referido da caracterizagao das concepgdes e priticas dos professores de Fisica. Distinguindo-se da primeira no objecto, dela se distingue, também, em termos metodol6gicos. Assim, com a finalidade de dar corpo as hipéteses de que partimos desenvolvemos, em ambas as partes, os seguintes percursos metodolégicos: na primeira parte realiza-se uma reflexio epistemoldgica e psicolégica em tomo da conservagio, quer a0 nivel do desenvolvimento cientifico desse conceito quer das suas implicagées pedagégicas; na segunda parte procede-se. interpretagdo de dados empfricos, provenientes da realizagao de entrevistas a professores e da anslise de contetido de dois mauais escolares, num quadro de valorizago da abordagem da energia. 12 demonstrago do valor formativo do conceito e a caracterizagao das préticas concepgdes dos professores no que diz respeito ao ensino/aprendizagem da energia. Daqui decorre que o trabalho escritoesteja organizadoem duas partes. A primeira parte comega por abordara ideia de energia no século dezoito, recorrendo, para isso, 4 obra de Michel Delon “L’idée d’énergie au toumant des lumitres” (1988). Este livro tem origem na dissertag2o de doutoramento deste autor. Delon faz da ideia de energiao elementochave paraa compreensio de novos movimentos em diferentes dominios, centrando, no entanto, a sua atengdo na literatura; utiliza também esta ideia para estabelecer ligagdes entre movimentos entendidos, geralmente, como opostos, sem, todavia, cair na tentagio de identificagao desses movimentos. Depois de abordados alguns dos sentidos e significados associados a ideia de energia, tentaremos abordar a emergéncia do conceito fisico, sublinhando as suas especificidades. Teremos, também, ocasiio de confrontarmos a ideia de energia em contextos contemporineos com a que prevalecia no século dezoito. Ou seja, construimos um percurso ideia-conceito-ideia. Este percurso sera depois repetido considerando 0 contexto de ensino/aprendizagem. Relativamente & emergéncia do conceit fisico de energia, recorreremos a diversos historiadores da ciéncia. Seguiremos, em particular, a obra de Yehuda Elkana, “The discovery of the conservation of energy” (1974). Este livro € baseado na dissertagao de doutoramento deste autor sob a superviso de Stephen Toulmin. Elkana comesa por afirmar que a ideia fundamental subjacente a todo o livro “6 a unidade essencial de todos os aspectos do empreendimento intelectual”. No comentério feito pelo professor I. B. Cohen ‘esta obra, podemos ler o seguinte: “(Elkana) demonstra convincentemente que este t6pico s6 pode ser completamente compreendido por uma consciéncia do significado filos6fico da doutrina da conservagio em geral, tanto no desenvolvimento das ciéncias fisicas como no pensamento cientifico do século dezanove”. Este pensamento constitui um guia fundamental ¢ um u PRIMEIRA PARTE Energia: da Ideia ao Conceito e do Conceito 4 Ideia CAPITULO 1 Energia: ideia integradora de “olhares” e de saberes 1. Introdugao Neste capitulo vamos tentar mostrar que a ideia de energia atravessou varios dominios do conhecimento, constituindo-se como leia chave na produgdio de novos estilos e movimentos, antes de teremergido como conceito cientifico. Adoptamos aqui a diferenca entre ideia e conceito exposta por Delon (1988). Para este autor 0 conceito (refere-se ao conceito cientifico) define-se por exclusio, por depuragio por corte enquanto que a ideia garante, pelo contrério, “confluéncias, trocas, continuidades paradoxais” (p.516). Quando nos referimos a uma ideia estamos a fazer apelo ao resultado de um processo de abstraceo, portanto, a uma representago mental mais ou menos elaborada, mais ou menos clara ¢ distinta. Quando a ideia se torna clara e distinta estamos a aproximar-nos do conceito (Francois Chitelet, 1992, p.93). A discuss4o emtomo das diferengas ou semelhangas entre ideiae conceito nao € pacifica e levar-nos-ia, certamente, muito longe. Por razSes meramente 14 praticas utilizaremos o termo conceito sempre que nos situarmos em contextos cientfficos e utilizaremos o temo ideia fora desses contextos, 15 2. Alguns Elementos sobre a Hist6ria da Palavra Energia Aorigemetimol6gica da palavra energia éa palavra grega energeia, cujos significados dados pelo Iéxico histérico “Termos Filoséficos Gregos” (Peters, 1977, p-73) so: funcionamento, actividade, acto, actualizacZo. Acnergia em Aristételes “O sucesso da palavra energeia ¢ o seu estatuto conceptual datam de Arist6teles que d4um lugarcentralna sua filosofia ao binério dynamislenergeia “elon, 1988, p.35). Estes dois termos ao serem introduzidos por Aristételes na Metafisica levantam algumas “dificuldades metodolégicas dado que nem adynamis nem a cnergeia so susceptiveis de definigdo no sentido vulgar, mas apenas podem serilustradas por exemplo e analogia” (Peters, 1967, p.73).“O bindrio dynamis/energeia surge quando Arist6teles aborda o movimento. Para explicar as transformagdes os deslocamentos no mundo, € necessério colocar, numa relago de contradigao assim como de complementaridade, 0 possivel e o real, a multiplicidade do que pode acontecer ¢ a unidade do que € (08 sublinhados so nossos) (Delon, p.35). Aristételes ¢ os seus continuadores utilizavam, muitas vezes, a analogia do mérmore convertido em estétua pelas mfos do escultor para ilustrarem a diferenga entre ‘potencialidade’ e ‘actualizagio’, O escultor deita fora parte da pedra para fazeremergira forma, ie.,""amatériaé aparte potencial actualizada pela ‘energia’ da forma; sendo matéria e forma inseparaveis, tanto quanto 0 actual € ele préprio potencial que alcangou completamento” (Elkana, 1974, p.22). A cnergia nos séculos XVII e XVIT A ideia de energia &, depois, difundida e no mundo cristéo ela surge associada a Deus, é da ordem da divindade. A partir do séc.XVI, em Franga, 16 ela surge como forma de expressao literéria ou como qualidade de um discurso ‘ou de uma forma de expressio artistica. Por exemplo, Delon refere Du Bellay quando este discute “a possibilidade para a arte de <>” (id. p.43). A energia como movimento aparece como tipica da época da Revolugao Francesa e do Romantismo (Delon, 1988). Nos finais do séc.X VII a palavra energia toma-se, em Franga, uma moda, circulando pelos sales. Dada a grande circulagdo de palavras e de ideias, no séc.XVII, na Europa, Delon pela para uma comparacdo da utilizago da palavraenergia nos dominios inglés e alemio. Neste sentido refere que o sentido filos6fico se encontra definido, desde o séc.X VI, por Bacon. A energia é concebida “quer como exercida efectivamente, quer como capacidade que no esté em aco” (Delon, 1988, p.55).Delonsugerea influéncia do ingléssobreo desenvolvimento das utilizagdes cientificas do termo em francés, No que diz respeito & Alemanha a primeira ocorréncia do termo data de 1732, num sentido retérico. ‘No entanto, recorrendo a Sulzer, Delon afirma que embora a palavra nao surja nos textos alemies “a ideia de energia est4 muito presente no dominio cultural alemdo e que a influéncia leibniziana é sem diivida tio importante quanto as influéncias inglesas no desenvolvimento da ideia de energia em Franga” (id. ps7). Delon ea ideia de energia Delon trabalhou a ideia de energia em varios dominios entre 1770¢ 1820, portanto, num perfodo anterior & emergéncia do conceito cientifico, © que acontecerd a meados do século dezanove. Este trabalho parece-nos muito stil pois permite-nos avaliar os varios ¢ importantes valores assumidos pela ideia de energia nessa épocae possibilita-nos “desenhar” o quadro cultural da época em que emerge o conceito cientifico. 7 Algumas ideias importantes a reter: -Aeexisténcia de uma certa ambiguidade associada & ideia de energia desde Aristételes. Impossibilidade de defini¢ao. Recursoaexemplos concretos ¢ analogias na sua clarificagao. ~A existéncia de uma ideia de energia, em Arist6teles, associada aos aspectos da multiplicidade e da unidade dos acontecimentos. -Acenergia concebida filosoficamente, por Bacon, “quer como exercida efectivamente, quer como capacidade que ndo esté em aco”. -A energia concebida como movimento, ideia tipica da Revolucdo Francesa e do Romantismo. 18 3. “A ideia de energia na viragem do Iluminismo” ‘Man has no Body distinct from his Soul; for that called Body is a portion of Soul discem’é by five Senses, the chief inlets of Sov" in this age. Energy is the only life and is from the Body, and Reason is the bound or outward. circumference of Energy. Energy is Eternal Delight William Blake em “The Marriage of Heaven and Hell “, 1793 diferentes perspectivas Delon (1988) desenvolveu uma investigagdo em tomo da ideia de energia na literatura e no pensamento franceses de 1770 a 1820. Este autor comega por se interrogar sobre se existiré “uma ideia de energia, cobrindo os diversos valores tomados pelo termo. Se o estatuto cientifico da energia pode ser definido a posteriori, o que se passa em relago 0s dominios filoséfico, moral ou literério? O que hé de comum entre estes desenvolvimentos sobre a energia da lingua, da matéria e da alma?” (p.13). Este primeiro passo parece-nos muito importante, pois 0 autor coloca-se ‘numa perspectivaepistemol6gica que consiste em procuraridentificar algumas semelhangas na diversidade das diferengas. & interessante verificar que a chave utilizada por Delon para 0 estabelecimento dessas semelhangas seja a ideia de energia. ‘Quando 0 conceito cientifico emerge também ele vai ter uma fungdo de assemelhar uma grande diversidade de manifestagées. Como mais tarde ‘veremos a procura de semelhangas no contexto cientifico vai culminar com a 19 tentativa de unificagio dos varios campos, reduzindo, neste caso, todos os campos ao modelo mecanicista. Esta procura de unificagdo liga-se com uma perspectiva, de certa forma, redutora danatureza e que se prende com determinadas perspectivas filosoficas (contrariamente a estas, hoje em dia, hé campos do saber que cultivam o elogio da diversidade, como € o caso dos dominios biolégico, ecol6gico, etc.). NZo 60caso de Delon, este, ndo parece pretender unificar todos os campos e 6esse facto que, quanto a nés, merece muita atengdo no desenvolvimento do seu pensamento, Este autor utiliza a ideia de energia como uma categoria estabelecendo, com ela, igagSes entre diferentes correntes de pensamento em varios dominios do saber. ‘Nesta obra Delon tece, também, algumas consideragées sobre o valor da hist6ria das ideias e, em particular, sobre o valor da ideia de energia na ligagZo do séc.XVIII ao séc.XIX. Para este autor toda a ideia esté “intrinsecamente ligada a uma expressdo particular, ligando-se igualmente a um conjunto de outras ideias ou principios que a tornam possivel, pensavel” (p.16). Neste sentido a histéria das ideias “nao pretende construir modelos abstractos, totalisantes, tais como as <<épistémés>>, mas objectos parciais, participando de conjuntos diferentes” (p.15). Esta posigdo parece-nos merecer ser colocada em destaque pois poderd validar uma perspectiva de desenvolvimento do pensamento centrada na ligacdo complementando assim as perspectivas centradas na separacdo. Os contextos de ensino/aprendizagem parecem privilegiar uma perspectiva de pensamento centrada na oposigo, na separagdo, promovendo, por vezes, um corte com tudo oque possa ser, em termos culturaise sociais, familiarao aluno. No decorrer deste trabalho ilustraremos este aspecto recorrendo & anélise de ‘manuaisescolares. Com oque dissémosndo pretendemos diminuiraimportincia daactividade de pensamento que se desenvolve por oposigiio, pordiferenciagao. Esta € fundamental no processo de construgdo de novos significados e, 20 Esta € fundamental no processo de construgio de novos significados e, ortanto, de novos conceitos. No entanto, estes novos significados fazem parte de uma rede em que a semelhanga, a ligagao, serao elementos fundamentais na emergéncia de novas coeréncias. Pensamos que seria desejavel que os professores adquirissem um certo treino na procura de coeréncias. Admitindo com Delon, que “a coeréncia é uma realidade forznal e intelectual que, de contradigdes ou de tendéncias divergentes faz um conjunto, gracas a uma série de reagrupamentos, de transferéncias, de deslocamentos” (p.16). Esta educagdo para o sentido da coeréncia poder ser concretizada com © recurso & hist6ria das ideias. A cnergia na “passagem das palavras as coisas” Deacordocom Delonapalavraenergia ocorre comuma grande frequéncia nos textos datando do iltimo tergo do séc.XVIIe infcio do séc.XIX, havendo indicios de que a utilizago deste termo esteve na moda, nesta altura (relembramos que esta moda ocorre antes de a energia se ter constituido como conceito cientifico). A recorréncia a este termo, nesta época, corresponde, segundo a interpretago de Delon a “passagem das palavras &s coisas” (p.22). Isto €é,0 termoenergia parece, talvez pelo facto de até af nfo ser muito utilizado, serum termo suficientemente forte e, portanto adequado, para a descrigao de emogées € de sensagées, aspectos que neste perfodo (Romantismo) ganham uum elevado estatuto, como “reacgo” ao império da razdo, Para ilustrar esta interpretagao Delon cita a justificagao de Sulzer ao empregar o termo em 1767 “sou obrigado, no dispondo de outro termo, de me servir desta palavra para exprimir certa forga superior, no somente na palavra, mas em todo outro objecto do gosto (...)” (p.22). Recorre também este autor A correspondéncia entre a duquesa de Choiseul ¢ a Madame Du Deffand. Citando a primeira expressa anecessidade, que esta sente, de fixara data de nascimento da palavra na sua acepco modema: “é desde que temos convulsdes ao ouvir a miisica” (id. a ne Aiideia de energia vai ser, para Delon, a ideia chave constitutiva de uma articulagao entre o Tluminismo e o Romantismo. “E da ligacdo entre a sensibilidade e a razdo, quer dizer da energia, do fogo de uma temperada pela prudéncia e espfrito de discussio da outra, que nasce a verdadeira virtude ¢ 0 verdadeiro talento” (Mistelet, 1777, citado por Delon, p.31). “Actividade do coracaio do mesmo modo que eficécia, princfpio de realidade do mesmo modo que de desejo, a energia vem render e inflectir 0 Numinismo” (Delon, p-31).A ideia de energia parece, assim, integrara razdoe a sensibilidade .Fazendoapelo a0 poema de W. Blake, anteriormente transcrito, poderemos ilustrar 0 papel at desempenhado pela energia como “nica vida", delimitada pela razio. De acordo com Blake, pintor e poeta que viveu entre 1757 € 1827, a Razio do Tuminismo nao pode consituir resposta para todas as questdes ehé que deixar espaco para a Imaginacdo, rejeitando, como romintico que é, a submissio da Imaginago & Razo (Honour e Fleming, 1984, p.15). Mais uma vez, no exposto e em especial através da voz de W. Blake, a energia vem ocupar um espaco entre dois contrérios. De acordo com Delon a ideia de energia vem interferir com os dominios estético, filos6fico e moral substituindo o velho ideal do equilfbrio pelo ideal dodinamismo (p.32). Aenergia permite umanovavisio douniverso, encarando- ‘como um todo, como um devir. “As palavras, as coisas € 0s seres no existem se nio em relagdo, em tensio e em mutago. A lingua ea literatura, a natureza, vida humana sio concebidas como outros tantos processos de transformago” (p.32).A ideia de transformacao comega, assim, a aparecer associada aenergia. Podemos em Delon, perceber 0 desenvolvimento de varias linhas de pensamento, cuja estratégia essencialé a identificagdo de semelhancas naquilo 22 ‘que €aparentemente oposto. Estas linhas de pensamento témcomo instrumento fundamental a ideia de energia, que € suficientemente ambigua para poder tomar variados valores. De acordo com Delon podemos encontrar esta ideia ‘em movimentos declaradamente contraditérios comoé ocasoentre materialistas c espiritualistas, racionalistas e sensualistas, etc.. Talvez possamos, entio, arriscar que a posigdo epistemolégica de Delon consiste em considerar como inseparéveis diferencas e semelhancas, isto é, onde hé diferengas hi semelhangas. O par diferenga/semelhanga deve constituir, quanto a nés, os dois pélos daactividade de pensar, igualmente importantes, predominandoumno processo de diferenciagio de conceitos e 0 outro na construgfo de coeréncias, este timo tao essencial no alargamento do “mundo da vida” (a caracterizar no capitulo 3), finalidade principal de qualquer acto formativo. Mais uma vez consideramos importante destacar que esta posi¢ao epistemol6gica nos parece ser de valorizar numa perspectiva geral de formagao pessoal, tanto no que diz respeito a alunos como a professores, em particular no contexto do ensino/aprendizagem da Fisica, uma vez. que nos parece que correntemente ndo the & dada a énfase adequada. Continuando ainda com Delon vamos acompanhar, mais concretamente, ‘desenvolvimento de algumas das suas linhas de pensamento, nomeadamente nos dominios filos6fico, cientifico e estético, relativamente ao perfodo entre 1770 1820. Energia: “passadeira entre materialismo e espiritualismo” Os filésofos materialistas do séc.XVIII fizeram do termo energia 0 23 elemento principal das suas teses. Toland, filésofo materialista do inicio do século distingue entre dois tipos de movimento: ““Osnossos sentidos mostram-nos,em geral, duas espécies de movimentos dos entes que nos rodeiam: um é um movimento de massa, pelo qual um corpo inteiro é transferido de um lugar para outro; o movimento deste género é sensivel para nés (...). O outro é um movimento intemc e escondido, que depende daenergia propria a um corpo, quer dizer da esséncia, da combinagio, da acgdo e da reacgdo das moléculas insensiveis de matéria de que 0 corpo é composto” (citado por Delon, p.163). Contrariamente a heranga cartesiana que considera 0 movimento proveniente de Deus, os materialistas consideram o ‘movimento como um atributo da matéria. “A matéria possui uma energia propria, o movimento é-lhe intrinseco” (Delon, p.157). Recorrendo a uma citagdo de Frangois Peyrard, matemitico ateu e revolucionério (Delon, p.167), poderemos constatar que para este autor a “matéria pela sua prdpria energia, & capaz. de produzir todos os fenémenos que o universo nos presenta”. Aqui a energia surge como algo que estd presente em todos os acontecimentos possiveis no universo, ainda que possam envolver diferentes manifestages. A ideia de energia dos materialistas representa, por um lado, uma propriedade prépria do corpo mas, por outro lado, “esta qualidade entra em sistema com outras, de onde resultam efeitos novos e novas combinagées. Aenergia propria de cada elemento associa-se & energia de outros corpos: operam-se trocas que Jevam amodificagSes seja sobre o modo de uma passagem do virtual ao actual, seja sobre 0 modo de uma mudanga de forma. A ideia de energia participa conjuntamente de uma fisica estatica das qualidades e de uma fisica dinamica das trocas e mutagdes” (Delon, p.180). Acenergia é, por um lado, uma esséncia que dé unidade & diferenciagdo resultante do dinamismo do universo e por outro lado o proprio “movimento” de todo o universo. Para os materialistas este “movimento”, esta energia, de todo o universo deriva da interac, através de trocas de energia entre os corpos constituintes do universo. Ou seja, tudoé resultado da energia que é, por 24 sua vez, inerente & matéria, Porém, para outros fil6sofos este “movimento”, energia, que é essencial A matéria nio suficiente para explicar a ordem geral do universo. Para os espiritualistas a energia esté para além da matéria, Para estes h4, no universo, uma energia, uma forga central que anima toda a natureza e os seres. Assim, nesta perspectiva também 0 dinamismo do universo é explicado através de fluxos € transformagées de energia, tal como acontece nas perspectivas materialistas. O que ndo est muito longe das perspectivas materialistas. A grande diferenca situa-se, neste aspecto, ao nfvel da origem da energia que participanas transformagGes do universo. O espiritualismo pode ser encarado, na perspectiva de alguns fil6sofos, comoum “materialismo refinado”. “A ideia de energia afasta todo o risco de materialismo vulgar, redutor ou mecanicista, cla langa passadeiras entre materialismo e espiritualismo” (p.186). Delon mostra, assim, que a “ideia de energia e as suas diversas manifestagdes, das afinidades & atracco, do magnetismo & electricidade, permitem estes deslizes e estes cruzamentos. A energia situa-se no ceme da contradi¢Zo” (Delon, p.180) (0 sublinhado € nosso). Este autor acaba por afirmar que “a viragem do Iluminismo foi talvez o momento privilegiado em que materialistas e espiritualistas se refeririam a uma mesma ideia de energia, como se, para além do seu antagonismo, uma visio dindmica do homem e do ‘mundo Ihes fosse comum” (p.258). A cnergia no contexto cientifico Também no dominio cientifico a energia poderd situar-se “no cere de uma contradi¢ao”: equivalénciae diferenciacdo. Dizemaeste respeitoPrigogine € Stengers (1986, p.181): “a ciéncia, que descreve as transformagées da cenergia sob o signo da equivaléncia, deve, contudo, admitir que s6.a diferenga pode ser produtora de efeitos, que sejam, por sua vez, diferengas. A conversao da energiandoé maisquea destruigao de uma diferenga, acriagdo de uma outra 25 diferenga”. Delon aproveita para referir que “estas flutuagGes e estas permutas no so alheias 4 constituigdo do conceito cientifico” (id). Coloca, assim, em evidéncia a ideia de que os “modelos circulam dos debates filos6ficos as ficgGes literdrias eas teorias cientificas” (id.). Se op:armos, noque diz respeito a0 desenvolvimento do conhecimento cientifico, pela perspectiva de Holton ‘vamos encontrar um lugar para estes cruzamentos e deslizamentos. Com efeito, para Holton 0 conhecimento cientifico cresce num espago a trés dimensdes, x-y-z, representando x dimensoempfrica, ya dimensoanalitica za dimensio dos themata. Esta tiltima é a “dimensio das pressuposigdes fundamentais, nogdes, termos, julgamentos metodol6gicos e decisGes queno se desenvolveram, nem sio resoliveis porum lado em observacdo directae por ‘outro em raciocinio analitico légico, matematico ou qualquer outro” (Holton, 1985, p.216). De acordo com Holton, a separacio da ciéncia de outras . - entrada em apenas duas dimensGes,xey, “Esta dicotomiaesté mais atenuada, se nfo eliminada, se considerarmos que em ciéncia, também, o plano xy ndo € suficiente, e nunca o foi” (p.220). No entanto, como refere Holton, embora ossamos encontrar osmesmos elementos teméticos em ciénciae fora delanio podems cometer o erro de reduzira ciénciae ano ciéncia mesma actividade. “Ha diferengas que nés deverfamos apreciar”. Parafraseando Whitehead, Holton ilustra assim a sua posigo: “O Homem requer dos seus vizinhos alguma coisa suficientemente aparentada para ser compreendida, alguma coisa suficientemente diferente para provocar atengdo, e alguma coisa suficientemente grande para exigir admiragao”. Holton tenta assim mostrar que hé lugar para o semelhante e para o diferente. Termina este assunto afirmando que “é neste mesmo sentido ae sdeviamos estar preparadas para ee (0 sublinhado € nosso). 26 Esta perspectiva, que aponta para uma tomada de consciéncia do diferente € do semelhante, ver de encontro & perspectiva, j4 por nés explicitada, de Delon e vem de encontro a nossa prépria perspectiva, Delon estabelece um paralelismo entre o papel jogado por Toland em filosofia e 0 papel desempenhado pelos fisicos ingleses Thomas Young e Rankine em Fisica. Tal como Toland vai consagrar nos seus trabalhos o termo energia, também Young Rankine introduzem otermo nos trabalhos cientificos. “Sao eles que designam por energia a capacidade de produzir trabalho gragas & velocidade adquirida, depois distinguem a energia cinética e a energia potencial: troca por um lado entre movimento e trabalho, troca por outro lado centre virtualidade e actualidade” (Delon, p.181). A emergéncia do conceito cientifico vai, segundo Delon, “relangar em novas bases 0 debate filosofico, segundo se queira insistir sobreamaterialidade da energia ou inversamente sobre a fragmentacdo de uma matéria que acaba por se espiritualizar” (p.182). A importéncia da ideia de energia na pintura da época Continuando a ilustrar a circulagao das ideias pelos diferentes dominios que constituem a cultura da época, Delon recorre a pintura desse periodo, nomeadamente aos quadros do pintorroméntico alemio Kaspar David Friedrich (1783-1840) e do pintor roméntico britanico Joseph Mallord William Turner (1775-1851), para testemunhar a “imersao do individuo nos fluxos de energia universal” (Delon, p.188). A propésito deK.. D. Friedrich, nomeadamente em relagdo ao seu quadro 21 “Monge & beira do mar”, 1808/1810, podemos ler num artigo de José Luts Porfirio, no jomal “Expresso” de 7 de Novembro de 1992, o seguinte: “Paisagens? Imagens do sublime no desigual confronto do homem com 0 cosmos. Afinal 0 confronto quase ndo existe: a natureza permanece quieta, ¢ © homem (um monge (...) de costas para nés) funciona como testemunha de uma sobrenatural grandeza do munco”. Neste quadro a ideia de energia ndo surge associada a um movimento concreto, como acontece nos quadros de ‘Tumer, surge sim associadaaum eventual movimento intrinseco transformador contido na “sobrenatural grandeza do mundo”, Os pintores alemies do romantismo, dos quais Friedrich é considerado ‘um dos maiores expoentes, procuraram principalmente “uma forma de juntar ‘© homem ¢ 0 universo tomnando-se um” (Larousse Encyclopedia of Modem Art, 1965, p.26). Esta quase fusdo do homem com o universo é 0 resultado dos ‘luxos de energia que se estabelecem entre os dois. A paisagem romfntica alema, e em especial a de Friedrich, era vista por Carl Gustav Carus (fil6sofo ‘Naturalista e pintor) como uma imagem das “forgas vivas” da terra” (J. A. Franga, 1987, p.71) (adivinha-se aqui uma influéncia leibniziana). O homem, eneste caso omonge,é, portanto, mais do que uma testemunha da“sobrenatural grandeza”, ou das “orcas vivas”, da natureza, ele experiencia essa propria grandeza através dos fluxos de energia que se estabelecem entre eles. As transferéncias de energia so transformadoras do proprio homem, fazendo-o participar da “sobrenatural grandeza do mundo”, Assim, os “fluxos de energia” traduzem os modos de olhar de muitos dos pintores do perfodo do Romantismo e, diriamos mesmo, constituem-se como modos de olhar para os seus quadros. Outro caso exemplar € o de J. W. Tumer (1775- 1851). Delon afirma que 0s quadros de Friedrich ¢ de ‘Tumer “dio 0 sentimento de um poder da paisagem que perturba as pequenas convengGes do ser social e o confronta a uma energia insuspeitada. Ela exprime-se pela tendéncia dos dois autores & abstracgdo, O jogo das formas ¢ das cores, nos limites da figuragdo, tenta 28 traduzir as forgas do universo” (p.188). Nesta frase poderemos constatar a equivaléncia entre termos como energia e forgas. f interessante, também, notar que, normalmente, a energia aparece no singular enquanto que as forgas surgem, como se vé, no plural. Parece isto querer dizer que ha sempre uma mesma entidade, neste caso a energia, por detrés de manifestagdes muito variadas. ‘Voltando a frase de Delon, que transcrevemos, consideramos que um dos quadros que melhor exprime as ideias deste autor 6 0 “Vapor ao Largo de Harbour's Mouth durante uma Tempestade de Neve”, que apresentamos na figura 1.1. Refere-se este como “uma das suas obras mais extraordindrias” representando “o conflito das forgas naturais e das forgas criadas pelo homem (.)ymas é na realidade uma auténtica visto césmica” (Dicionério da Pintura Universal, 1964, p.314). A figura 1.2 representa do mesmo autor 0 quadro: ““Veneza -a Igreja da Salute ea Dogana”. Aqui as formas da cidade “dissolvem- se no espago” participando de uma energia universal. A cnergia como limite ‘Também recorrendo as ideias dominantes sobre os seres vivos Delon continua a encontrar uma ideia de energia centrada nos fluxos ¢ nas transformagdes mas incluindo um novo aspecto: uma ideia de energia como algo limitado. Comefeito, encontra em autores como Cabanis e Bichata ideia de uma dotagdo limitada de energia. “Ei sempre a mesma forga que, mais ou ‘menos intensa, se apresenta sob diversos disfarces” (Delon, p.247).. A ideia de energia como limite ser mais tarde desenvolvida por Poincaré (1854-1912), na sequéncia do princfpio de conservagéo, Num pequeno ensaio sobre o principio de conservacdo da energia, Leonardo Coimbra comega por dizer: “Nao hd Deus porque a matéria é etema e-etema é a energia, dizem uns. Nao hé liberdade porque a energia conserva- se, dizem outros” (p.171). Mais uma vez € colocada a t6nica no carécter 29 = "Vapor ao largo de Harbour's Mouth durante uma tempestade de neve" (Turner) Fig. 1.2- "Veneza - a Igreja da Salute e a Dogana” (Tuer) 30 ambiguo da energia. Neste caso ¢ limitadora, por um lado, ¢ libertadora, por outro. A respeito da palavra energia diz Leonardo Coimbra “(ela) arrasta, seduze convence porqueé vaga, indefinidae de imediato sabor antropom6rfico” (p71). Acnergia ea sensibilidade Os rominticos alemies valorizam a energia interior como motor do ser humano. Este poder humano encontra-se no sentimento € na imaginagao enquanto que a azo tem um papel de condugao. “Bonstetten e os seus amigos de Coppet captam a vida no seu movimento que € também a sua unidade” (Delon, p. 255). De acordo com Bonstetten “o motor que transforma as ideias em pensamento e em acgo, é a energia interior” (id.). A sensibilidade passa aserencaradacomoum “élan” enérgico fonte de toda acriago. “Ainteligéncia decompée e recompée, analisa ou acumula; s6 a sensibilidade, élan enérgico, € criadora” (Delon, p.257). Acemergéncia do conceito cientifico de energia merecerd da nossa parte ‘um desenvolvimentomais aprofundado. Noentanto, consideramos, recorrendo ‘mais uma vez.a Delon, que embora a hist6ria das ciéncias tenha os seus ritmos proprios e a sua propria I6gica, 0 conceito pertence “A nebulosa a que ‘chamamos ideia de energia” (p.182). 31 CAPITULO 2. A emergéncia do conceito fisico de energia 1. Introdugao O conceito fisico de energia surge na sua completa generalidade com o cenunciado do principio de conservago da energia. O que acaba de ser dito pode parecer absurdo pois ser dificil aceitar o desenvolvimento de um principio de conservagdo de algo que ainda no estava estabelecido. Ao longo deste capftulo pensamos poder contribuir para um ganho de sentido deste facto, aparentemente absurdo. Entio, se aceitarmos que 0 conceito surge com o enunciado do principio de conservagio teremos de admitir que a hist6ria do conceito ea historia deste principio estario intimamente ligadas. ‘Embora o termo energia aparega na terminologia cientifica pela primeira vez, com Young, em 1807 (data da publicagao das suas “Lectures on Natural 32 Philosophy”, realizadas na “Royal Institution” em 1802-1803), com um significado limitado Aquilo a que hoje em dia se designa por energia cinética, oconceito de energia s6 surge a meados do séc.XIX. De facto 0 “uso feito por ‘Young deste termo poe, claramente, de lado a hipétese de ele ter acreditado, ou concebido, a conservagio como uma das propriedades da energia” (Cohen em Elkana, 1974, p. VIII). E curioso verificar que 1807 é uma data em que 0 termo energia est4 na moda, fazendo parte da cultura da época, como anteriormente referimos. Nesta altura Thomas Young era colega de Sir Humphry Davy, que foi uma figura dominante do principio do séc.XIX. Para além de cientista notével, Davy desenvolvia actividades no Ambito filos6fico e literdrio. Nas suas produgies literérias a palavra energia surgia com grande frequéncia, o que no de estranhar dada a importéncia que esta palavra ganhou, no ambito literério, nesta época, como jé referimos. Elkana ilustra o facto com alguns extractos de poemas ¢ textos de Davy (pp.80,81). A palavra adquire, portanto, para este cientista um elevado estatuto na sua actividade literdria. Seria de esperar que, ‘como cientista que era, este autor viesse a utilizar a palavra energia em contextos cientificos. De acordo com Elkana quando isso acontecia “o seu uso ra intencionalmente vago” (p.80). Quem acaba por introduzir a palavra como termo técnico é Young, contempordneo de Davy. “As relagGes entre estes dois, grandes cientistas ingleses, cujas vidas decorreram paralelamente em muitos aspectos, so muito intrigantes e nfo esto bem documentadas” (Elkana, p.79). Estes dois cientistas trabalharam na mesma instituigdo, estando, portanto, fisicamente muito préximos. £ possivel, embora no esteja provado, que ‘Young tivesse contacto com alguns textos de Davy onde a palavra energia era muito frequente. ‘Vamos, entdo, seguir alguns passos importantes que, segundo varios autores, levaram 4 “descoberta” do principio de conservago € a0 desenvolvimento do conceito de energia. Neste sentido referiremos 0 33 desenvolvimento de alguns conceitos como o de forga, calor e trabalho; e o desenvolvimento de algumas teorias, cientificas e metafisicas, em tomo destes conceitos. Analisaremos, também, o impacto deste princfpio de conservagdo em varios dominios do conhecimento. 34 2. Algunselementos paraacompreensao da "descoberta"! do principio de conservagao da energia Elkana (1974)no prefécio a sua obra sobre a “Descoberta do princfpio de conservagdo da energia” afirma que a “emergéncia do conceito de energia” Ihe parece ser um capitulo de uma longa hist6ria ainda ndo escrita “ilustrando as raizes da ciéncia na metafisica e as raizes da metafisica cientifica nas situagdes-problema da época”. Afirma este autor que a “criagdo de conceitos temorigemem principios basicos metafisicos, quendo podem serempiricamente testados (...). Foi uma tal crenga metafisica, no principio de conservagio de alguma coisa na natureza, que conduziu a essa actividade de criagio de conceitos que resultou finalmente no desenvolvimento doconceito de energia”. Para Elkana os conceitos esto num estado de fluxo enquanto as leis que os incluem nio estiverem completamente definidas. Quer isto dizer que os conceitos s6 encontram o seu sentido final quando surgem as leis fisicas correspondentes. No caso presente, 0 conceito de energia s6 encontra o seu lugar com 0 enunciado do principio de conservago, como mais adiante veremos. Cohenno Preambuloaesta obra de Elkana afirma que este “demonstra convincentemente que este t6pico (a emergéncia do conceito de energia) s6 poder ser completamente compreendido por uma consciéncia da importancia filos6fica da doutrina da conservagio em geral, tanto no desenvolvimento das ciéncias fisicas como no pensamento cientifico do século dezanove”. A importincia deste principio de conservacao foi de tal maneira grande que “os fisicos do século dezanove passaram a considerar a conservagdo como um importante principio guia da ciéncia fisica, ¢ fizeram uma quase-religifo da “energética’” (Cohen em Elkana, 1974), a conservacdo tomou-se, mesmo, um "Utilizamos 0 termo descoberta por ser o termo utilizado por Elkana e por Kuhn. A utilizagio feita por nés deste termo néo decorre, portanto, de uma posigao epistemolégica. 35

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