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A CAIXA DE PANDORA

Alexandre Santos Lobão

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A Caixa de Pandora
Alexandre Santos Lobão

Apresentação

A Caixa de Pandora é uma das histórias do livro A Caixa de Pandora e outras


histórias , escrito por Alexandre S. Lobão no ano de 2001. Ela representa bem o estilo
do autor, que posiciona seus contos em algum ponto, impreciso, entre o real e o
imaginário e ameaça arrastar o leitor para longe da segura rotina do dia a dia. Neste e-
book apresentamos, além da história, a introdução do livro escrita pelo escritor Joilson
Portocalvo, e uma sugestão de alguns links para aqueles que quiserem saber um pouco
mais sobre Louise Brooks. O livro pode ser encontrado na Livraria Siciliano
http://www.siciliano.com.br/livro.asp?orn= LSE&Tipo=2 &ID=204556
ou diretamente com o autor, que pode ser encontrado nos endereços a seguir:
alobao@microsoft.com
ou lobao@gns.com.br.
Fiquem à vontade para enviar suas opiniões para o autor! A Caixa Mágica de Lobão
Joilson Portocalvo Pela primeira vez a tarefa de apresentar um texto me fez devorar
os originais de um fôlego. Atribuir isto à pressa do editor em publicá-lo seria
desmerecer o autor. O mérito deve- se a este, que como um diretor de cinema
consegue prender o espectador até o final da fita. A coerência da narrativa faz do
estreante Lobão, autor de uma obra madura, nada devendo a outros autores do gênero.

A Caixa de Pandora abre- se para nove contos de realidade fantástica, gênero de


poucos adeptos em Brasília. Alexandre ao mesmo tempo brinca e dá tratamento sério,
com estilo e velocidade de quadrinho e desenho animado, onde ninguém se machuca
de verdade, e nem morre pra valer. O autor faz o que quer: viaja entre o realismo
fantástico e o onírico. Por falar nisso, Sonhos parece real. Não há como saber se o
ficcionista entrou n A Casa , para revelar segredos de Antônio e Henrique ou se
realmente Lobão sonhou tudo aquilo.

Mágico! Assim se expressará quem ler A Caixa de Pandora. Parece filme, parece gibi...
é tudo ao mesmo tempo. O contador de histórias, com talento, diversifica temas e
utiliza o recurso do diário, com isso somos levados a acreditar que os fatos realmente
estão acontecendo ou aconteceram. Mas é impossível descobrir onde começa a
fantasia. Embora não seja contemporâneo das grandes guerras, pois Alexandre nasceu
na segunda metade deste século, fala como um soldado, ou um viajante intergalático.
No contotítulo aparece como um personagem apaixonado por Louise Brooks, diva do
cinema mudo, e narra em detalhes seus encontros com a atriz.

Um espiritualista identificará nos temas viagens astrais e dirá que seus relatos
confirmam isso; algum apaixonado dirá que o livro está recheado de histórias de amor.
Não afirmo nem desminto, o livro deve ser descoberto e identificar- se com o leitor e
transformar- se no que este pretender.

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A Caixa de Pandora vai desabrochando aos poucos e pulsa como um coração
cibernético. Que me desculpe Carlos Castañeda, agora, prefiro o índio Tantee de O
Espírito do Lobo , de Alexandre Lobão, a Don Juan, também índio, do autor de Porta
Para o Infinito.

A Caixa de Pandora
It s a long, long way, From where you want to be. And it s a long, long road (too
long) But you re too blind to see O. M. D. Pandora s Box.

A Caixa de Pandora, o título até que soa bem, não? A enciclopédia diz que Pandora,
segundo a mitologia grega, foi a primeira mulher. Ao se casar, ganhou como presente
uma caixa onde estavam encerrados todos os males, que se espalharam pelo mundo
quando a curiosidade feminina foi maior que a cautela. A última linha do curto
parágrafo diz, literalmente: No fundo da caixa ficou apenas a Esperança . É, bonito.
Só que eu me pergunto: se a esperança ficou no fundo da caixa, quer dizer que ela não
foi espalhada, como os males? Uma figura rabiscada por um artista incógnito ilustra o
verbete e eu me pego tentando encontrar alguma semelhança entre aqueles traços e os
traços daquela que, sem mitologia, eu posso dizer: foi minha primeira e única mulher.
Não, talvez não a primeira, nem ao menos a única, mas mesmo assim meu coração
ainda grita que sim. É engraçado. Quando comecei a escrever esta história eu nem ao
menos que a estava escrevendo, e muito menos sabia qual título colocar. Agora que o
título me apareceu e finalmente me dispus a colocar no papel tudo aquilo por que
passei, parece que ele não poderia ser outro. Não, não. Como um tolo, eu recebi; não,
pior que isso, procurei a caixa que continha minha própria desgraça, e fiz questão de
abri- la o quanto antes. Mas olhando agora para trás e repassando todos aqueles
momentos, tenho certeza de que faria tudo de novo. Afinal, de que vale uma caixa
cheia de males, comparada com o valor de uma caixa que contém a esperança, mesmo
que escondida lá no fundo? Certamente que valeu a pena. Mas estou me adiantando.
Vamos começar bem do princípio, em 1987, quando o primeiro elemento da trama
foi lançado à luz.

***

Brasília, 1987. Recém- saído do Colégio Militar, ingresso na Universidade de Brasília.


Fanático por histórias em quadrinhos, nunca me contentei com os assim chamados
gibis de linha , lançados mês a mês para um público ávido de continuações.
Procurando rotas alternativas da cultura quadrinística, se é que esta palavra existe,
enchi minhas prateleiras com críticas de jornais, fanzines, revistas em inglês, francês,
italiano e japonês embora eu não entendesse mais que as figuras em muitas delas
além de livros especializados no assunto. Para meu deleite, descobri que a
biblioteca possuía exemplares antigos de livros técnicos que abordavam desde a
linguagem metafórica dos quadrinhos até coletâneas de imagens e fotos de roteiristas e
desenhistas. Armado de um bloco de papel, lápis e borracha, gastei diversas horas
debruçado sobre os livros copiando desenhos dos grandes mestres. Hal Foster, Frank
Frazzeta, Will Eisner, nenhum deles escapou de ser garatujado no meu bloco. Entre
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muitas cópias e anotações, uma praticamente me passou despercebida. Um autor de
quem já não sei o nome, pois não o anotei, criou uma personagem baseada em uma
atriz de cinema mudo que fazia muito sucesso na época.
Ao lado dos desenhos, a foto da atriz. Copiei os desenhos quase sem cuidado e voltei
minha atenção para a foto. Como a página não merecia ser xerocada (verba de
estudante é sempre baixa), resolvi copiar a foto também, mais pensando em
comparar meu desenho com o do artista do que por outro motivo qualquer. E copiei,
o mais fiel possível que minha habilidade permitiu. O desenho, entre muitos outros,
ficou perdido em minha gaveta até que, em 1991, novos fatos me levaram a
desenterrá- lo.

***

Veneza, setembro de 1991. Se seis meses atrás alguém me dissesse que eu viajaria para
a Europa ainda esse ano, eu buscaria um termômetro para medir a temperatura do
infeliz. No entanto, aqui estou, graças ao sacrifício que meu pai fez, vendendo seu
carro para que eu pudesse vir com dois amigos participar de um congresso no qual um
de nossos trabalhos foi aprovado. Bom, a viagem inteira é matéria para uma outra
história, que, aliás, mereceria ser escrita, mas o que importa é um pequeno fato, que
não teria mais repercussões caso não fosse o próximo elo de uma corrente que, pouco
a pouco, se fechava à minha volta.

Veneza era a única cidade italiana que iríamos visitar, e o Eduardo, um de meus
companheiros de viagem, havia prometido levar algumas camisas de times de futebol
italianos para seus irmãos. Enquanto passeávamos encontramos uma loja de artigos
esportivos, e o Eduardo nos fez entrar. Escolhe daqui, escolhe dali, enquanto isso eu
topei com uma televisão passando videoclipes, a MTV ou similar italiana. Não lembro
nem mesmo se vi o clipe inteiro ou apenas parte dele, mas gostei de cara. No final, o
nome Pandora s Box, e o grupo O. M. D.

Guardei na memória ambos (já tenho dois discos do conjunto), na esperança de rever
o clipe e comprar o disco mais tarde. O clipe, para quem ainda não viu nem
adivinhou, apresentava cenas de uma certa atriz de cinema mudo, que me chamou a
atenção pelo sorriso e olhar vagamente familiares. Mais uma vez os fatos ficariam em
suspenso, pois a agitação da viagem tomou por completo minha atenção.

***

Brasília, abril de 1992. A viagem agora nada mais era que uma boa lembrança, e os dias
corriam um atrás do outro como se nos desafiando a quebrar sua rotina. Na TV,
descubro um novo programa de videoclipes, o Kliptonita, logo após a hora do almoço.
Meu segundo vício, após as revistas em quadrinhos, é a música, por isso a meia hora
de infusão áudio- visual logo virou sagrada para mim. Uma semana, duas... E de
repente lá estava ela, aquela música que chamou minha atenção e que estava perdida
no fundo da memória. Dei um pulo da cadeira e apertei o REC do videocassete.
Com um suspiro, curti a música que ao mesmo tempo que me lembrava da viagem
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parecia particularmente minha, como se eu tivesse sido o primeiro brasileiro a ouvi- la
há seis meses. Atrás do cantor, uma parede com uma grande foto ou desenho da atriz
sem nome, que em flashes de vídeo chocava com seu sorriso desprendido e seu olhar
expressivo.

Uma foto...

Droga! O vídeo! Corri e olhei atrás da televisão, mas minhas suspeitas se


confirmaram: o vídeo não estava ligado à televisão. Droga! O clipe correu seus últimos
segundos e foi substituído por uma música bate- estacas do C+ C Music Factory.
Com uma mescla de raiva e decepção, liguei o videocassete corretamente e programei
a gravação para todos os dias da semana.

Mas a foto... Quem é colecionador entende. Mesmo com uma coleção gigantesca, todo
bom colecionador sabe exatamente onde está cada um de seus objetos, e conhece
cada um em detalhes. Eu sabia que já havia visto aquela foto em algum lugar, e a tinha
copiado entre os meus rabiscos. Mais por curiosidade do que por cautela, procurei
entre minhas pastas os desenhos feitos à mão. Após uma boa revirada, encontro
finalmente a cópia da foto, talvez a mesma que estava no clipe, os desenhos originais
do artista, um nome, uma data e um título: Dixie Dugan, sex simbol 1933. Minha atriz
já tinha um nome. * * * Foi quando me veio a idéia de aproveitar a seqüência de fatos
para escrever uma história. Meus amigos sabem que não sou um escritor muito
assíduo, mas também não consigo deixar de escrever uma história quando ela me
entra na cabeça. Foi assim que, juntando pouco a pouco as histórias escritas ao longo
de praticamente dez anos, finalmente consegui material suficiente para publicar um
livro. Mas de todas as histórias escritas nestes dez anos, esta foi a que mais me
envolveu e, sem dúvida, a que mais me doeu ter que parar de escrever, pois eu nunca
desejei que ela acabasse. Mas não quero adiantar os fatos, vamos acompanhá- los à
medida em que aconteceram. A idéia básica é narrar a história de um sujeito que vai
passando exatamente por tudo que passei, uma espécie de quase- auto- biografia,
sendo que ele acaba se interessando pela atriz. Dixie Dugan. Se interessando é forma
de falar, o personagem, que aliás eu posso batizar com meu próprio nome, começa a
ter uma certa curiosidade e, aproveitando seu tempo livre, começa a procurar
informações sobre aquela atriz como um hobby, uma brincadeira de detetive. Só que
a brincadeira vai se tornando mais séria quando ele começa a se aprofundar nas
informações... Bem, estas são apenas as idéias iniciais. Para saber melhor o que vou
escrever, vai ser necessário realizar alguma pesquisa.

Me pego sorrindo enquanto dirijo para a biblioteca. Estou fazendo exatamente o que
o meu personagem faria. O seu primeiro passo seria justamente buscar mais
informações, rever o livro de quadrinhos, quem sabe achar algum livro de cinema que
a mencione. Presto atenção nas minhas próprias emoções, a ansiedade, a curiosidade...
Já convivi com pessoas de teatro, mas será que é isso que elas sentem quando
vestem um personagem? Parece que aqui existe algo mais, eu não estou
incorporando um personagem, eu SOU o personagem, porque não sei como ele vai
agir daqui a pouco. Não sei qual será o próximo passo, para onde minhas informações
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vão me levar, mas sei que ele vai se sentir exatamente como eu. É. Estou vivendo
minha história. Deixo a história me embriagar e tento esquecer que sou um escritor:
estou indo à biblioteca como um detetive, apenas um curioso. E não preciso me
esforçar muito para me sentir assim.

***

A tarde realmente não foi nada profícua. Após a decepção inicial de descobrir que o
livro de quadrinhos tinha se extraviado de alguma forma, enterrei- me durante três ou
quatro horas na prateleira sobre cinema. Livros e livros corriam pelas minhas mãos, e
por sorte grande parte deles possuía índices remissivos, senão o tempo perdido seria
ainda maior. Em muitos livros não me contentei em buscar nos índices, folheei página
a página à procura de fotos, e a cada imagem perdia um bom tempo analisando cada
rosto, buscando aqueles traços.

A julgar pelo nome, pensei, a atriz deveria ter certa descendência escocesa, por isso
busquei também referências ao cinema mudo na Inglaterra... mas nada! O mais perto
de que cheguei foi o título de um filme, de mil novecentos e trinta ou quarenta e
poucos, Dixie .
Pensei que talvez o nome não fosse da atriz, fosse da personagem em um filme, o que
seria bastante provável. Mas certamente não era daquele filme. Se por acaso o nome
não fosse exclusivamente da personagem dos quadrinhos, deveria ser de uma atriz
muito pouco conhecida, ou de um papel pouco conhecido em um filme qualquer.
Mas algo não se encaixava: se realmente ela havia sido tão pouco conhecida, por que a
inspiração para um quadrinista e um compositor? Em algum lugar deveria haver
alguma referência a ela. Cansado, coberto de pó de livros antigos e com as roupas e o
espírito amarrotados, voltei para casa sem ter dado um passo a mais na direção da
solução do mistério, sem nada para ajudar na continuação da minha história.

***
Os dias passavam devagar, e de vez em quando a história me voltava à cabeça, cada
vez com uma continuação diferente. Uma semana após eu visitar a biblioteca,
finalmente consegui gravar o videoclipe, e de vez em quando buscava uma nova
inspiração olhando para as cenas rápidas que passavam na telinha. Comprei o disco do
O. M. D. à busca de mais informações, mas ele não tinha nem mesmo as letras das
músicas, que poderiam me falar algo mais. A idéia ficou travada na garganta, como um
sentimento de angústia que não queria passar, mas eu não ousava dar continuidade a
uma história sem saber realmente o que estava dizendo... Eu sei, pode parecer besteira,
mas eu sou assim. Se fosse uma história totalmente inventada, tudo bem, mas quando
eu mencionava algum fato real, queria que fosse real mesmo.

Mal eu sabia que a realidade iria me atingir mais fundo do que eu desejava. Comecei a
pensar sobre o que sentiria meu personagem nesta situação. A princípio, frustração
por não ter conseguido seu objetivo. Depois, saudade. Saudade? É, saudade é a palavra
que chega mais perto. Ali estava ele, olhando um videoclipe com algumas curtas cenas
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de cinema mudo, pelo menos duas vezes por semana, como quem olha para a foto de
algum conhecido distante, e aos poucos aquelas fotos animadas vão parecendo mais e
mais familiares, aquele rosto pelo qual ele sentia apenas curiosidade vai se tornando o
rosto de alguém que ele gostaria de ter ao seu lado. Lógico que o pensamento era pura
besteira, mas o próprio pensamento nunca chegava a se formalizar, o que presidia era
apenas o sentimento. Aquele vago sentimento de quem perdeu alguma coisa.

Este sentimento de perda permaneceu em mim até a segunda quinzena de julho,


quando, afinal, a situação começou a mudar novamente.

***
Paro um pouco de escrever e coloco uma música. Não por coincidência, Pandora s
Box. A sua vida passa pelos meus ouvidos enquanto sento de novo na frente do micro
e tento organizar as idéias. As linhas na tela permanecem vazias durante algum tempo;
coordenar meus pensamentos não é mais tão fácil quanto costumava ser. A música
acaba e me deixa com lágrimas nos olhos, que por puro orgulho não deixo rolar.
Respiro fundo e recomeço a escrever. Tenho que colocar tudo para fora para não
implodir. * * *

Julho, 1992. Na segunda quinzena, chegou nas bancas de revista a BIZZ- letras
traduzidas , ano 08, número 07, edição 84. Nunca entendi esta numeração. Na capa,
Mr. Big, Alice in Chains, Skid Row e Roy Orbison. Na página 34, quase perco o fôlego
ao deparar com a letra de Pandora s Box: não só a letra me fala de um ou outro
detalhe da vida da minha atriz perdida, como também há uma foto e uma explicação
para a música: A Caixa de Pandora, ou Die Büchse Der Pandora, foi um filme de G.
W. Pabst, cineasta alemão, lançado em 1929. No papel principal, a atriz americana que
foi uma das maiores estrelas do cinema mudo : Louise Brooks! Até hoje não consegui
descobrir o que era Dixie Dugan em minhas anotações. Talvez o nome do próprio
desenhista de quadrinhos! Agora, sim! Finalmente eu tinha algo sólido em que me
basear. Um nome para pesquisar. Meu personagem não mais se sentia órfão, já tinha
como continuar sua pesquisa. E, na minha excitação com as novas informações, deixei
de perceber que sentia, tanto quanto o meu companheiro de ficção, um sentimento
mais próximo da felicidade de um reencontro do que da satisfação com a
proximidade da solução de um mistério.

***

Corri para a biblioteca na primeira tarde livre, e revirei novamente os livros sobre
cinema. Um a um, os volumes me sonegavam qualquer informação. Ao fim da
primeira hora e meia de pesquisa, finalmente alguma coisa: Cinema Muto: Dalle
Origini al 1930, uma coletânea de filmes mudos por Luigi Rognoni. O meu
conhecimento de italiano é pouco melhor que o meu de japonês (ou seja, quase nada),
mas devorei as linhas onde o autor descrevia a história dos filmes Lulu (o próprio
Caixa de Pandora na Itália) e Il diario di una donna perduta, também protagonizado
por ela. Entre as linhas do roteiro, o autor intercalava observações a respeito de como
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Louise via e vivia os papéis, e como a sociedade moralista se escandalizava com os
filmes e atuações. A cada linha eu me deliciava imaginando a atriz como uma
feminista antiga, ativa e sem medo de ser ela mesma na frente de uma sociedade
hipócrita. É isso que meu personagem deve sentir, essa admiração que, misturada ao
início de saudade, pode levar a algo mais.

Quando me dou conta, já se passaram diversas horas e os livros finalmente acabaram.


À minha frente, a triste colheita: dois livros e uma lista de filmes, com nomes em até
seis línguas diferentes, diretores e datas de lançamento. Ao todo, seis filmes entre 1925
e 1930, além de outras participações em filmes de terceira categoria que muitas vezes
sequer eram mencionados. Com o início do cinema falado, minha estrela se apagou e
trabalhou em muitas outras coisas, morrendo em 1985 como aposentada do
funcionalismo público. Entre feliz e arrasado, recolho meu parco material e me dirijo
à xerox, onde tiro cópias dos textos e duas cópias de cada foto. Quatro, ao todo. O
segundo livro, uma biografia de Georg Wilhelm Pabst, parece ser rico em referências à
atriz, mas infelizmente está em francês, e, embora me esforce, não consigo esquecer
que minha única frase conhecida é Je ne parle pa français, que, aliás, também não sei
escrever. Volto para casa e peço para um amigo retirar os livros para mim, pois deixei
de ser sócio após minha formatura, mas sem muita esperança de encontrar algo além
do material que já copiei.

***
Os próximos dias passam devagar, sem que eu consiga imaginar meu próximo passo.
A idéia, que me pareceu óbvia logo que a tive, me veio com a publicação, na revista
SET (de cinema), de uma pequena bibliografia de Louise em um livrinho Mitos do
Cinema . A palavra, após a leitura das curtas linhas que pouco acrescentavam ao que
eu já sabia, saltou- me aos olhos: CINEMA. Mas é claro! Eu preciso dos seus filmes.
Talvez pela dificuldade de consegui- los a idéia não tenha me passado pela mente
antes, mas agora eu percebia que, se quisesse continuar, o próximo passo só poderia
ser assistir aos filmes. Neste ponto, parei para meditar. Havia, obviamente, um ou dois
lugares onde eu poderia procurar pelos filmes, mas não foi isso que me preocupou.
É que resolvi fazer uma auto- avaliação. Quanto de autor e quanto de personagem eu
era neste momento? Eu sentia crescer em mim a ansiedade por vê- la em ação, ver seu
rosto e seu corpo em movimento, abandonando as linhas estáticas e emboloradas dos
meus livros. Tentei analisar friamente as minhas emoções, e percebi que, se realmente
quisesse e me entregasse ao sentimento, eu poderia gostar dela. Sem eufemismos:
poderia me apaixonar por ela. Não pela atriz ou pelas personagens, mas pela mulher,
pela energia que emanava de cada palavra que eu lia a seu respeito. Lembrei- me de
uma frase antiga, tirada da boca de um poeta perdido em algum lugar da minha
memória: Only the lonely can love . Um exagero, é claro. Mas também uma
possibilidade. Senti que eu tinha a capacidade de me entregar. Mas era o que eu
queria? O que aconteceria depois, quando a história acabasse? Será que eu teria
coragem de romper a barreira da ficção? Minha cabeça girava. Por momentos, senti
que minha sanidade estava por um fio, e que tudo o que eu queria era me apaixonar,
louca e perdidamente como há muito não fazia. Logo a seguir, me convencia de que
não poderia fazer isso, pelo meu próprio bem, e que além de tudo não fazia sentido.
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Uma paixão sem futuro? Não posso ser covarde! Medo de sentir? De experimentar?
Não, esse não sou eu.
Quase sem perceber, fui até a sala e coloquei o disco do OMD. Os ecos se ampliaram
na casa vazia, e comecei a dançar. A cada palavra, seu rosto me vinha à mente.
Dancei como nunca dancei antes, com a alma e com o corpo, de olhos fechados, e só
consegui parar quando a música acabou. Durante instantes que me pareceram séculos,
fiquei ajoelhado tentando entender o que se passava. No meu rosto, as lágrimas
paravam lentamente de correr.
Comecei a rir e a chorar, pensando no ridículo e no romântico da situação. Não, isso
não daria certo. Meu personagem nunca faria algo assim. Mas, se não poderia
aproveitar a cena para meu livro, pelo menos de uma coisa eu estava certo: a decisão
já estava tomada.

***
As próximas semanas foram carregadas de ansiedade e depressão. Fui ao Instituto
Goëthe, de cultura alemã, mas nada encontrei sobre Pabst, nem livro, nem filmes.
Busquei saber a respeito do acervo do Cine Brasília, mas também não encontrei nada.
Liguei para o Museu da Imagem e do Som, em São Paulo, mas ninguém conseguiu me
informar sobre qualquer facilidade quanto à pesquisa. A solução que eu queria veio
através de um amigo com quem me correspondia no exterior: em troca de três CDs
de música brasileira por filme, ele conseguiu para mim as cópias dos dois filmes mais
famosos de Louise, A Caixa de Pandora e Diário de uma Mulher Perdida.

Quando recebi sua carta dizendo que havia conseguido os filmes quase parei de
respirar. As próximas três semanas se arrastaram, cada dia dividido em duas fases:
ansiedade à espera do correio e decepção após a sua passagem. Finalmente, 17 dias
após a carta, chegou a encomenda com os dois filmes.

Tranquei- me no quarto e não fui trabalhar nesse dia. Fiz um lanche corrido já quase
às onze da noite, e continuei vendo cena após cena através da noite, repassando os
sorrisos mais expressivos e os closes. Acordei no dia seguinte com o sol na minha cara,
que estava tão amarrotada quanto as roupas e a cama, almocei ainda com um gosto de
sono na boca e tentei colocar as idéias em ordem. Minhas têmporas latejavam, embora
não costume ter dor de cabeça. Parecia que eu estava dentro de algum sonho esquisito.
Depois de um banho frio as idéias clarearam um pouco, e sentei na frente do micro
para escrever. A folha branca na tela do editor parecia me desafiar, mas eu tinha que
escrever. Sentia que estava na borda de algum abismo, e precisava desabafar de alguma
forma, precisava escrever para organizar meus pensamentos. Com um sorriso meio
cínico, pensei que havia conseguido material para escrever, mais do que na verdade
pretendia. É engraçado, parece que a coisa mais difícil de se escolher é justamente o
título, e geralmente eu deixo para colocar o título no final, ou em um momento de
inspiração. Fechei os olhos e pensei aonde deveria começar minha história. Fui
recapitulando mentalmente passo a passo cada uma das ocorrências que me haviam
levado até aquele momento.

O livro de quadrinhos. O clipe em Veneza. As buscas na biblioteca.


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A revista e a descoberta. Novas buscas e encontros. O sentimento. O sentimento!
Lembrando de todo o ocorrido, o sentimento foi crescendo, a angústia começou a me
sufocar. De repente me dei conta de que tudo acabava por ali: na frente do micro,
escrevendo minha história. É claro, eu poderia ainda correr atrás dos outros filmes,
tentar entrar em contato com pessoas que a conheceram, que pudessem falar da
Louise como ela realmente era, mesmo no fim da vida. Mas nada disso adiantaria.
Estava terminado, eu sentia. Se a música estivesse certa, ela continuou com a mesma
graça, com a mesma energia até o fim. Mas de que adiantava tudo isso? De que
adiantavam agora todas as fotos e os filmes que eu havia conseguido? De repente me
senti perdido, abafado, morto junto com ela.

O título me ocorreu logo antes da primeira linha. Eu antes havia pensado em Dixie ,
História muda ou Louise , entre outros, mas agora sabia que não poderia fugir do A
Caixa de Pandora . Por diversas razões: o filme. A música. A Caixa.

Tentando seguir a fleuma de escritor, fui buscar algo a respeito da lenda original na
enciclopédia. Meus pés se arrastavam no chão, tentando estender o tempo, buscando
organizar os pensamentos, tentando descobrir qual o próximo passo do meu
personagem. O que fazer quando não há mais nada a fazer? Sorri meio sem graça
(tenho o péssimo hábito de rir das minhas próprias desgraças) enquanto lia a
enciclopédia e via a gravura rabiscada que ilustrava o verbete. Às dezenove horas
liguei para o trabalho e pedi uma outra folga. O estômago me pesava e a digestão do
almoço mal tinha começado quando finalmente terminei de escrever minha história,
no início da madrugada, e dormi mais uma vez sem tirar os sapatos. * * * O dia 13 de
outubro de 1992 nasceu com um céu claro e sem nuvens.
O ar frio entrou pela janela e soprou meu rosto enquanto eu esfregava os olhos com as
mãos. O corpo moído pela noite maldormida não conseguia mais descansar, e me
dirigi ao banheiro com os olhos ardendo. Tentando me animar, fiz a barba e algumas
caretas e pensei que não poderia continuar daquele jeito. Mas a saudade me apertava
o peito enquanto eu arrumava o quarto e pensava no futuro do meu personagem. Eu
não sabia o que fazer. O que ELE faria? Empurrei um café para dentro enquanto
chegava à conclusão de que a minha história estava sem final. O que eu vou fazer? O
que ele faria? Um último esforço, já quase sem esperanças? Por momentos pensei em
terminar a história com um suicídio, mas o personagem precisava ser coerente,
consigo e comigo, e por mais que eu me esforce acho que nunca iria conseguir fazer
um personagem meu se suicidar, por não achar a atitude coerente. Após uma manhã
sem idéias e um almoço sem gosto, e já quase convencido de que eu e minha história
ficaríamos sem um final, resolvi passar a tarde na biblioteca. O livro de quadrinhos
ainda não havia aparecido, e nas prateleiras de cinema não percebi nada de novo. Às
três, resolvi sentar às mesas de estudo e reler o que havia escrito, à busca de algo que
pudesse salvar o dia. Eu sentia que havia alguma coisa ali, pronta para ser descoberta,
sentia que ainda tinha alguma coisa a mais. A história não podia terminar assim. Não
era só a história. Havia algo no ar. EU não podia terminar assim. Minhas linhas corriam
pelo final da história quando uma idéia se esboçou no limiar da inconsciência, e não

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tive nem ânimo de acordar para agarrá- la, eu e meu personagem éramos um.
Quaisquer que fossem os parágrafos ainda não escritos, só poderíamos vivê- los juntos.

***

Dormindo debruçado sobre os livros, ele só percebeu a presença da estranha senhora


quando ela lhe tocou levemente no ombro. Um arrepio correu pelo seu corpo quando
sua consciência se adaptou à temperatura do corpo, enquanto ele levantava os olhos e
se defrontava com um sorriso de dentes esmaecidos pelo tempo... Acordei de meu
sono/ devaneio com um pedaço da história já na cabeça, e um arrepio subiu das
minhas pernas até a coluna. Ainda meio sonolento, assustei- me com a figura à minha
frente, sorrindo com dentes amarelos e me entregando um papel. Aqui, meu filho.
Isto é o que você precisa... ou o que eu preciso, talvez...

Um brilho de maldade refulgiu em seus olhos, mas foi prontamente substituído pela
solicitude de uma bibliotecária.

Como assim? Não estou entendendo... Você não quer algo mais sobre aquela
moça? A atriz? Nesse papel está a referência de algo que você ainda não viu, e que
não pode deixar de ver. Como é que você sabe? Quem é você? Ela sorriu com
sarcasmo e minha vista ficou embaçada. Acordei com um arrepio, e quase
caí da cadeira com a mão que tocava levemente meu ombro. Ah, meu filho,
desculpa. Eu só queria te avisar que a biblioteca vai fechar daqui a meia hora, é
melhor você ir para casa. A senhora gorda e simpática me olhava com um ar de
preocupada, os óculos pendendo sobre o nariz redondo. Ainda meio desconcertado,
meneei a cabeça.

Não foi nada, não. Obrigado. Passei a mão firmemente pelo rosto, para afastar o
final do sono. Um arrepio mais profundo me subiu até a nuca quando vi a referência
sobre a mesa. Escrita em um papel de textura estranha, com uma letra que não era a
minha, seguiam as palavras Louise Brooks, P. P., Änima , e, logo abaixo, 14.681.( 1- 3)
a920/ . 08 . Talvez eu tivesse escrito aquilo dormindo. Talvez eu fosse sonâmbulo.
Ou, muito mais provavelmente, pensei, talvez eu esteja simplesmente ficando
maluco .

Juntei minhas coisas e desci até o subsolo, com medo de encontrar e de não encontrar
alguma coisa naquela prateleira. Segui a numeração das fileiras... 10... 11...
12... 13... Parede. Por pura teimosia, andei até o fim e toquei na parede, apenas para me
certificar de algo que eu já sabia: não havia seção 14. Entre perturbado e aliviado,
amassei o papel e dei dois passos em direção à lixeira antes de perceber que estava
enganado. A seção 14 era ligeiramente menor, se encaixando em um vão
da parede que eu nunca havia visto. Adiantei- me enquanto desamassava o papel,
entre as estantes de livros e a parede, no canto pouco iluminado da biblioteca. O
cheiro de mofo e papel velho por ali era mais forte, e posso jurar que vi teias de
aranha na penumbra entre os livros. Encontrei o que procurava numa prateleira quase
11
vazia, pouco mais iluminada que o resto por uma fímbria de luz que surgia dentre
dois livros maiores. Três fitas de vídeo, cuja limpeza chegava a surpreender naquelas
prateleiras esquecidas. Na frente de cada uma, apenas o nome A essência de
Louise Brooks , e um close dos seus olhos. Meus olhos começaram a lacrimejar no
instante em que as segurei, mas não tive tempo de pensar mais O sinal tocou
indicando que a biblioteca fecharia em quinze minutos. Coloquei as fitas sob o braço
e retornei aos corredores iluminados, caminhando em direção à saída.

***

Minha casa, dois dias depois. Não posso mais continuar com esta intranqüilidade.
Tudo bem, as situações que me levaram a obter estas fitas foram realmente estranhas.
Nos dois últimos dias, a primeira coisa que fiz após acordar foi justamente verificar se
elas ainda se encontravam em cima da mesa ou se haviam retornado ao sonho de onde
vieram. Mas que mal pode haver em assisti- las? Tudo bem, eu fiquei impressionado
com a tal velha do sonho. Fiquei surpreso quando encontrei a seção que eu não
conhecia. Fiquei assustado quando a bibliotecária falou que as fitas não eram da
biblioteca. Tudo bem, fiquei apavorado e mais tarde não consegui dormir porque
voltei atrás e descobri que realmente não havia seção 14 na biblioteca. Mas as fitas
estão aqui.

Não vou conseguir me livrar delas sem assistir. Pode até ser que estejam em branco,
como a minha cabeça nestes últimos dias. Quase chamei alguém para assistir comigo,
mas fiquei com medo de que as fitas não existissem, e eu estivesse louco. Tudo bem,
fiquei meio perturbado com essa história toda. Mas sei que estou são. Se estivesse
maluco, minhas idéias não iam se coordenar tão bem. Estou apenas um pouco
impressionado com a coisa toda. Mas não dá para agüentar. Se é para o pior, que seja.
A incerteza é a pior das torturas.

Juntei todo meu amor e a minha coragem e me dirigi para o quarto. Acho que apenas
para dar um clima doméstico, fiz pipoca e enchi um copo de Coca- Cola. Me ajeitei
na frente da TV e apertei o PLAY.

***

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Lá estava ela, radiante como sempre. Não. Mais. De frente para o espelho, penteava o
cabelo rapidamente, com seu jeito meio espevitado, um sorriso no rosto. De repente,
o sorriso se transforma em surpresa e ela se vira sobre a cadeira.

Estava tão entretido com minha posição de autorpersonagem, assistindo o início da


fita enquanto vivia o final da história mentalmente, que levei um susto quando a
televisão emitiu um som.

Who ARE you? O sotaque meio arrastado do Kansas era mal disfarçado pela
convivência na cidade grande. Fiquei maravilhado com o som da sua voz. Nem mais,
nem menos do que eu poderia imaginar. Simplesmente se encaixava perfeitamente
com aquele rosto. Inclinei- me para frente com um sorriso bobo no rosto.

Hey, I m talking to you. Who are you?


Just a fan respondi, quase por instinto, com um sorriso no rosto. Sua
interpretação era perfeita, embora eu não soubesse que filme era aquele. Seus
olhos olhavam diretamente nos meus, e pude ver toda a profundidade tão
badalada pelos críticos da época.
You have the most beautiful eyes I ever seen completei, brincando de
conversar com a tela.
Thank you. But who let you in? Mal pude ver seu sorriso enquanto pulava na
sua direção.

Desliguei a televisão e o vídeo, tirei a fita como se estivesse quente e a joguei no canto
do quarto, na direção da cestinha de lixo. Deitei- me na cama com o rosto apertado
no travesseiro e devo ter chorado por puro medo durante uma meia hora. Tranquei o
quarto, tomei um banho frio apesar da noite não estar quente, e saí para a rua para
esfriar a cabeça. Naquele dia, o pouco que dormi dormi no sofá, e apenas porque meu
corpo não agüentava mais ficar acordado. * * * Acordei com o corpo dolorido e pedi
umas férias urgentes no trabalho, alegando motivo de saúde. Juntei algumas roupas
numa mala e parti para a estrada.

Precisava descansar, pegar uma praia, pensar em coisas diferentes. Antes de ir, porém,
num último rasgo de coragem, conferi se a fita havia sido quebrada, coloquei a na
estante e saí sem olhar para trás. A viagem foi realmente muito interessante. Há
muitos anos eu queria fazer uma viagem assim, sem compromisso, sem ter para onde
ir, pingando de cidadezinha em cidadezinha por toda Minas Gerais até chegar ao Rio e
ao litoral. Subi por Cabo Frio e me instalei numa praia pouco mais ao norte, cujo
nome nem me lembro mais. Tudo o que eu queria era descansar. O sol e os exercícios
físicos matinais me deram uma nova energia, um novo sorriso no rosto. Agora, de
longe, a situação não parecia tão desesperadora. Estranha, sim. Incomum, com certeza.
Mas agora, com o corpo restabelecido, eu tinha certeza da minha sanidade. E com a
certeza veio a saudade. E, com a saudade, a esperança. Explicação? Segurança? Não
preciso dela. Fugiu de mim quando eu era criança , lembrei, com um sorriso, a frase
de uma poetisa amiga minha. Não, não quero ter medo de viver. Se for para escrever,
se for só para desfrutar, não interessa mais. Foi assim que, na segunda quinzena de
13
novembro de 1992, voltei meu carro em direção a Brasília, em uma viagem coberta de
expectativas e esperanças, e estava disposto a tudo para viver o que fosse necessário
para minha felicidade.

***

A fita entrou suavemente no vídeo, o ruído mecânico das engrenagens quase


inaudível. Apertei o pause antes que ela começasse a rodar, e a imagem do sorriso de
Louise ficou tão congelada quanto muda na tela. Retrocedi a fita, e vi passarem de trás
para frente os poucos segundos de nossa conversa anterior. O pensamento óbvio me
veio à mente: é só uma fita. Talvez o meiodiálogo , ela conversando sem interlocutor,
fosse um recurso qualquer usado no início do cinema falado. Talvez eu tivesse
bancado o idiota todo esse tempo. Com quase certeza disso, recomecei a fita. Lembrei
da expressão de seu olhar e de como ela parecia ter se dirigido a mim, mas aqueles
primeiros segundos se repetiram como um filme sem graça, apenas com o atrativo da
sua voz...

Thank you. But who let you in? A hora. Respondo ou não respondo? Vamos,
você disse que faria qualquer coisa . Respondi, o peito apertado de emoção: Eu...
entrei aqui sozinho. Você é Louise Brooks, não é?

É, parece que você está ganhando. Eu ainda não sei o seu nome. Alexandre.
Alexandre Santos Lobão. Espanhol? Brasileiro.

Eu mal podia acreditar. Pausei a fita mais uma vez, e soltei um suspiro profundo. Meu
Deus! Era verdade! Eu estava falando com ela! Não interessava como, mas eu estava!
Olhei para o seu rosto parado e uma onda enorme de paixão me invadiu. Lágrimas
vieram- me aos olhos, e gastei alguns minutos pensando no que poderia dizer.
Cheguei, por fim, à conclusão de que nada que eu pudesse planejar poderia ser tão
bom quanto a espontaneidade de cada momento. Continuei com a fita, ansioso.
Interessante. Nunca conheci um brasileiro. Mas, afinal, o que você quer mesmo?
Não posso descrever as próximas duas horas. Eu me entreguei totalmente à conversa,
e com tal avidez que nem mesmo percebi que estava conversando em inglês. Invenção
da minha cabeça ou alguma magia sem explicação, eu não sei. Só sei que ela estava lá.
E o que me conquistou ainda mais não foi o fato de ela ser exatamente o que eu
esperava, mas por possuir suas particularidades, sua realidade ligeiramente diferente
do que eu pensava se encaixava como a última peça em um quebra- cabeça, que não
pode ser outra. Eu simplesmente não sabia o que escrever. A minha história estava
ficando... subjetiva demais para que eu conseguisse passar para o papel. Naquela
altura, as palavras perdiam o significado. E ainda não consegui descobrir como colocar
no papel um sorriso, uma lágrima, um olhar. E por tudo isso nós passamos. Seus olhos
grandes cada vez mais me cativavam, e eram ainda mais belos quando eu percebia que
também estava refletido neles. Mas a parte final da nossa conversa ficou marcada em
fogo na minha mente, palavra por palavra. Em um certo momento ela se levantou e
sentou ao meu lado. A televisão mostrava apenas o seu rosto, seus olhos, seu sorriso, e
ela me olhou e pediu que eu segurasse sua mão.
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Instintivamente, levantei a mão em direção à tela, e por alguns instantes acreditei que
poderia tocá- la. Ela se levantou bruscamente, foi de costas até sua cadeira
e começou a chorar. Como se movida pela minha vontade, a câmera atravessou o
aposento, chegando até perto dela.

Olha, eu não sei... Claro que você não sabe! Como poderia saber? Desculpe o
choro, acho que eu já sabia que não ia dar certo. Aliás, não sei por que gastei tanto
tempo com você. Mas é que você me pareceu sincero. Você me pareceu de verdade.
Louise, sei que posso parecer bobo e apressado, mas eu gosto muito de você.
Muito. Você nem me conhece. Não sabe quem sou. Sei mais do que você
imagina. Assim que eu disse essas palavras, ela levantou a cabeça com os olhos em
brasa, como se tivesse acabado de compreender a situação.

E como, afinal, você chegou aqui? Você é um deles, não é? Nunca vem ninguém
diferente aqui! Como fui idiota!

Sua tristeza parecia mudada em raiva, e cada vez eu entendia menos. Deles quem?
Do que você está falando? Você sabe muito bem. Só eles podem vir aqui. Eles
quem, droga?! Os produtores, atores, quem? Não seja ridículo! Não vejo um
produtor desde muito antes de morrer! Lágrimas vieram- me aos olhos. Eu quis
balbuciar alguma coisa, mas a voz me falhou. Antes que eu pudesse pensar em
qualquer coisa mais, a fita acabou e foi substituída pelo chuvisco na TV, e o vídeo fez
algum barulho enquanto começava automaticamente a rebobiná- la...

***

Assim que a fita retornou ao início, comecei a repassála. Como eu havia imaginado, lá
estava uma fita comum, com meio diálogo, o que por si só já a tornava pouco
atraente. Mas o pior eu percebi aos poucos, e confirmei quando revi nosso diálogo
final: a imagem estava mais gasta, menos nítida, como um filme antigo, e mesmo em
seus momentos de raiva a imagem não expressava toda a força dos olhos e dos gestos
daquela moça. Uma fita sem alma , pensei, num arroubo poético que, simplesmente,
descrevia tudo o que eu sentia revendo o tape.

O que me levou à próxima e inevitável questão: eu ainda possuía duas fitas. Caso elas
permitissem a continuidade da minha conversa, eu teria, no máximo, quatro horas
mais com ela. Quatro horas por uma vida. E, ainda, um mistério a resolver. E depois?
Meu coração apertou no peito e resolvi não pensar nisso. Tirei a segunda fita
cuidadosamente da caixa e a examinei por alguns momentos, olhando contra a luz, à
procura de algum sinal que indicasse procedência. Nada. Sem marca do fabricante, de
quem gravou, nada. Apenas uma fita preta. Nos fundos da fita, o título e uma cruz em
baixo- relevo. Sem produtor, sem companhia, nada.

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Minha garganta ficou seca quando a luz da compreensão veio a mim, na hora de
inserir a fita no vídeo. Eu não havia percebido na primeira, mas o título ficava de
cabeça para baixo. Ao seu lado, a cruz invertida pareceu refletir o vermelho dos leds
do vídeo, brilhando por alguns instantes antes de ser tragada pelo ronronar das
engrenagens do videocassete. * * *

Não deixei que a fita começasse. Descobri que precisava pensar um pouco, digerir um
pouco de toda aquela informação que recebi de uma vez. Além disso, eu só tinha mais
quatro horas de conversa com ela. Será que eu conseguiria encontrar novamente
aquela senhora da biblioteca? Sem chance. Quatro horas. O pensamento me oprimia.
No que eu me metera, afinal? A essa altura do campeonato, já estava aceitando
qualquer explicação, mesmo que envolvendo magia ou absurdo, que esclarecesse a
situação. Qualquer que fosse a explicação, nada me faria deixar de ver as duas últimas
fitas, mas a ansiedade no meu peito não me fazia esquecer as palavras da estranha
senhora: Isto é o que você precisa... ou o que eu preciso, talvez... .

Odeio café, mas mesmo assim me forcei a tomar um copo cheio, sem açúcar, para
manter as idéias em ordem. Se eu bebesse, certamente seria um copo de uísque, vodca
ou pinga. Algo forte. Coloquei a xícara na mesinha ao lado do sofá e apontei o
controle para a televisão, tomando coragem e disparando a próxima fita.

***

O jingle do comercial foi substituído pelo choro baixinho de Louise, sentada na


cadeira e apoiada na escrivaninha, o rosto coberto pelos braços muito brancos.
É estranho, ela parecia ser naturalmente assim, em preto e branco, embora eu
soubesse que sua vida havia tido mais cores que a da maioria das pessoas. Fui me
aproximando devagar.

Louise?...

Vai embora! Me deixa em paz! Louise, espera! Eu não sou quem você está
pensando. Para ser sincero, não sei como cheguei aqui. Não sei nem se estou aqui
realmente. Só fiquei com medo de perdê- la caso você me tocasse. Não sei, estou
confuso, acho que não entendo mais nada. Ela parou um pouco de chorar, levantando
seus olhos lindos e cheios de lágrimas para mim.

Me abraça, por favor! Espere um pouco. Respire fundo e se acalme, primeiro.


Dei alguns instantes para ela se acalmar, enquanto olhava para mim. Por fim, ela
perguntou:

Quem é você? Eu já disse. Sou só uma pessoa que gosta muito de você, um fã,
se você quiser pensar assim, que teve oportunidade de realizar aquilo que mais queria:
ver você, conhecê- la pessoalmente. Mais que isso, não sei dizer.

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Como você chegou aqui? Não sei se posso dizer que estou aí. Na verdade,
estou vendo você na televisão, como se fosse uma janela. Como você me vê?

Vejo você aqui. Você não parece uma televisão. O pensamento pareceu
diverti- la, porque ela deu um sorriso ainda meio triste. Suspirei aliviado.

Estendi novamente a mão na sua direção. Minha mão tocou a tela na altura de seu
rosto, e parou por ali. A imagem correu um pouco e me mostrou sua mão se
levantando, lentamente, até se ajustar à minha, do outro lado da tela. Seu rosto
assumiu uma expressão de estranheza.

Que coisa esquisita! É como se tivesse um vidro aqui. Mas só em volta de você.

Ela fechou a mão e bateu com o nó dos dedos na tela. O alto- falante da televisão
ressoou as batidas. Realmente, isso estava cada vez mais estranho. Ela então se virou,
deu dois ou três passos de costas, brincando com o vestido, e caiu sentada no sofá.

Bom, é isso então. Só mais uma tortura daqueles desgraçados. Eles me deixam falar
com alguém, chegar até perto, mas sem tocar. Droga! Ela baixou a cabeça até os
joelhos, e ia recomeçar a chorar quando me aproximei.

Não, Louise. Pare com isso e olhe para mim. Ela continuou com a cabeça baixa.

Droga, olhe pra mim! Preste atenção! Ela levantou os olhos cansados na minha
direção, e eu me forcei a dar um sorriso.

Olha, só posso ficar aqui com você mais... (olhei para o vídeo) três horas e
quarenta minutos. Mas a gente não precisa e nem deve fazer disso uma tortura.
Vamos nos divertir um pouco, conseguir um pouco de alívio pra mim e pra você.
Usar essa oportunidade como uma forma de conseguir mais forças para continuar.
Além disso, acho que posso tocar você. Porque você já me tocou.

Coloquei a mão dentro da blusa e fingi que era o meu coração batendo. Ela riu e
pareceu mais animada.

Você quer dançar? Só não pode ser de bochecha colada!

Você tem música por aí?

Claro! De que tipo você gosta?

De tudo! Algo rápido, de preferência. Dançamos por algum tempo, desde rock
dos anos cinqüenta e sessenta até música baiana, que ela gostou e até me mostrou
outras formas de dançar. Ela me perguntou por alguns cantores antigos, de quem
nunca ouvira falar. Mostrei- lhe regravações de algumas músicas de Cole Porter por

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artistas mais novos. Por fim, nos sentamos, e a imagem correu como se eu tivesse
me sentado ao seu lado.

Ela parecia viver mais intensamente as memórias da sua juventude, embora se


lembrasse de tudo até a sua velhice, e me contou que um dia foi simplesmente assim,
ela acordou naquele lugar, novamente jovem, porém prisioneira de um aposento
pouco maior que meu quarto.
Não havia como sair. Havia sempre algo para ler ou fazer, e nunca faltou comida nem
água, embora ela não soubesse me dizer há quanto tempo estava por ali. Não havia
janelas, e sinceramente eu não sei se seria bom ver o que ocorria do lado de fora do
aposento. Ela me mostrou a única porta, sempre trancada e que havia desistido
de abrir após muitas tentativas frustradas.
Falou- me então das visitas. Pessoas estranhas e com os olhos embaçados, que sempre
iam ali para escarnecer dela. Pelo que eles falavam, parecia que estavam sempre
observando, e sempre conseguiam dizer o que parecia ser o mais doloroso para ela. A
lembrança trouxe lágrimas aos seus olhos, e mudamos de assunto. Em pouco tempo,
ela se espreguiçou gostosamente e sorriu para mim.

Alexandre, estou um pouco cansada. Acho que vou dormir um pouco. Obrigada
por tudo! Realmente você fez com que eu me sentisse muito bem.

Obrigado. Você também me ajudou muito. Acho que vou conseguir dormir
realmente em paz, pela primeira vez em semanas! Olhei de relance para o contador
do videocassete.
Ainda restavam cinco minutos de fita. Olhamo- nos ainda por alguns momentos, e
levantei a mão em despedida. Pode deitar. Eu já vou.
Boa noite. Boa noite. Durma bem. A câmera se afastou, mostrando de um canto
o quarto e sua cama. Ela se deitou, cobriu- se com um lençol fino e apagou a luz.
Fiquei reparando na sua silhueta esguia, de costas para mim. As palavras simplesmente
brotaram na minha boca, enquanto a imagem se aproximava novamente. Louise,
você já pensou em rezar? Ela virou- se, meio assustada. Seus olhos pareciam brilhar no
escuro, tal a força da sua personalidade.

Ah, você ainda está aí? Desculpe, achei que você tinha ido. O que disse? Você
já pensou em rezar? Não. Nunca pensei. Deveria? Acho que ia ser meio hipócrita,
a essa altura.

Não sei. Sempre é hora de começar. Sabe, eu sinto como se rezar fosse um
desabafo; se não resolver nada, pelo menos a gente se sente mais leve.

Que nem chorar. Melhor. Bom, é só uma idéia. Meu tempo está acabando.
Amanhã de manhã a gente se fala.

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Até amanhã, então. Até amanhã. A câmera foi se afastando lentamente, seus
olhos pousados nos meus.

Alexandre? Oi? Eu também estou gostando muito de você...

Não pude dizer mais nada. A TV começou a chuviscar e a fita foi sendo rebobinada,
enquanto eu arrumava minha cama para o repouso de que tanto precisava. Antes de
dormir, porém, rezei com uma convicção que há muito não tinha, e pedi que Alguém
olhasse por ela.

***
Acordei quase ao meio- dia, tomei banho, fiz a barba e fui almoçar. Minha alma
estava leve, e fiquei desenhando nos guardanapos do restaurante enquanto esperava a
pizza chegar. Sorria a toda hora lembrando da noite anterior. A lembrança, porém, de
que só poderia ver Louise por mais duas horas me deixou sem fôlego. Como esquecer
que os minutos estavam contados, por mais deliciosos que fossem? Mas eu não tinha o
direito de estragar com saudade as nossas lembranças. Deveria parecer forte, mesmo
que meu coração estivesse destruído no peito... Percebi com um sorriso a flutuação do
meu humor, da alegria para a sobriedade, e tentei retornar à leveza. Almocei bem,
apesar da sensação de enjôo que se instalou quando lembrei que só tinha mais duas
horas. Satisfeito e novamente sorrindo, fui para casa e me instalei na frente do vídeo.

***

Apenas para confirmar minhas suspeitas, repassei o início da segunda fita, e percebi
que ela havia entrado naquele estado apagado que eu havia observado na primeira.
Tentando não pensar no que eu faria depois que a última fita acabasse, coloquei a
terceira fita no vídeo e corri para o sofá. A imagem foi aparecendo devagar, do escuro
para o claro, e pude ver Louise ajoelhada ao lado da cama, a testa apoiada sobre as
mãos fechadas. Não me aproximei. Deus, eu sei que nunca procurei saber de Você,
e fico envergonhada por buscá- Lo numa hora assim, de necessidade, porque não O
procurei quando precisava dividir minha alegria com alguém. Sei que eu fiz alguma
coisa para merecer isso, que não pode ser ruim assim para todo mundo. Eu... eu acho
que só gostaria de agradecer por toda a vida que levei, e gostaria de agradecer por
poder falar com Você mesmo agora. Obrigada. Amém.

Não deu para evitar as lágrimas que me vieram. Disfarcei como pude e pigarreei. Ela
se levantou e virouse para o meu lado.

Alexandre?

Oi, Louise. Dormiu bem?

Bem demais. Você acordou agora?

Não, já até almocei.


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Tão cedo?

Por aqui já é quase uma e meia.

É, pensei que fosse mais cedo. E aí? O que vamos fazer hoje?

Seu sorriso me absorveu, enquanto eu respondia mecanicamente.

Não sei. Estava pensando em conversar algumas coisas mais sérias.

Por exemplo?

Por exemplo, o que vamos fazer... depois? Só posso falar com você mais duas
horas. Já pensei sobre isso, não vale a pena perdermos essas horas nos
lamentando, mas eu queria falar um pouco sobre isso.

Ela ficou mais séria. Foi até a cadeira e se sentou ao contrário, apoiando os braços e o
queixo no encosto.

Pode começar.

Não sei direito. Primeiro, gostaria de saber o que você pensa sobre isso.

Eu não parei para pensar, ainda. Depois eu penso. Agora, quero viver.

Mas eu acho que é legal a gente pensar um pouco. Eu não quero que a minha
lembrança sirva como mais uma coisa para atormentar você. Mais uma dor.

Alexandre, você me deu algo mais que lembranças. Eu não posso tocar em você
fisicamente, mas como você falou, existe muito mais. Você já me tocou. Ontem
pensei muito antes de cair no sono, e agora estou mais tranqüila, e sei que vou
continuar assim. Eles não vão mais me atormentar tão fácil. Estou mais forte. E esta
noite sonhei com uma planície muito tranqüila, e depois com um campo lindo, cheio
de flores, com muito sol e pássaros. Foi o primeiro sonho que tive desde que cheguei
aqui. Obrigada.

Não, obrigado a você. Você é mais linda que eu pensava. Muito mais. Tenho
certeza de que tudo vai ficar bem. Nesse momento, meus olhos foram atraídos
para o contador do videocassete. Com um frio na espinha, percebi que os
números corriam céleres, e já havia passado meia hora de filme.

Louise, alguma coisa está acontecendo! O tempo está correndo mais rápido que
deveria! Só temos mais alguns momentos juntos. Dois ou três minutos.

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Ela deu um sorriso triste. Comecei a chorar, percebendo que não ia conseguir ser forte
naquele momento.

Eu te amo!

Eu também. Não se preocupe comigo, vou estar bem. Você me deu algo que não
poderei nunca pagar: esperança. E compreensão. Olhei o contador. Os números
começaram a ir mais depressa. Estiquei a mão em sua direção, e ela estendeu a sua
para mim. Ficamos tocando a tela, a um universo de distância. Nossos olhares se
cruzaram e nossos corações se uniram mais uma vez. Não havia palavras a dizer
naquele adeus. Com os olhos cobertos de lágrimas, quase não vi a luz se abrindo atrás
dela, como uma passagem, enquanto a porta do quarto se abria e entravam a velha
que eu conhecera no sonho na biblioteca e dois homens grandes e deformados. Com
os braços sobre os olhos, eles tentaram se aproximar de Louise, mas a luz os mantinha
à distância. Com a mão ainda sobre a tela, Louise olhou para trás e se virou sorrindo
para mim, os olhos cheios de lágrimas.

Alexandre, é o campo com que sonhei! Que coisa mais linda!

Senti o calor da sua mão na minha, e seus dedos se entrelaçaram nos meus. Beijei- os
pouco antes de nos separarmos, e ainda tive tempo de me despedir: Boa viagem,
meu amor! A luz se apagou. A velha olhou com fúria na minha direção. Entre os
palavrões que ela começava a falar, minha voz soou mais alto.

Não, velha, não adianta reclamar. Não sei quem é você, mas seu plano não deu
certo. O desespero se foi. Você perdeu.

A fita passava lentamente de novo, os últimos segundos contados devagar. Suspirei de


alívio, olhando e sorrindo para a velha. E a senhora? Já pensou em rezar?
Ora, seu... A fita terminou e o chiado da televisão se misturou com a minha
gargalhada. Mais vivo do que nunca, liguei para o meu trabalho, avisando que amanhã
iria trabalhar. Não, hoje não. Hoje tenho uma história para terminar de escrever.

Para saber mais sobre Louise Brooks:


The Louise Brooks Society http:// www. pandorasbox. com/

O primeiro fan- clube virtual a ser criado, possui tudo o que se poderia querer saber
sobre a atriz. Louise Brooks Stuff - http:/ / www. cps. net. au/ Página com muitas
informações sobre a atriz, incluindo uma muito bem organizada cronologia de sua
vida. Existem ainda dezenas de outros sites, que podem ser acessados a partir da sessão
de links destes dois.

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Sobre o Autor e sua obra:

Alexandre Santos Lobão é um brasiliense nascido no Rio de Janeiro, em março de


1969. Quase antes de aprender a ler, mergulhou em obras de Júlio Verne, Alexandre
Dumas e outros autores da literatura universal, influências que o acompanham até
hoje. Escritor desde os doze anos, Alexandre já havia participado de antologias de
escritores em Brasília e em Minas Gerais, além de escrever artigos para revistas locais e
para sites na Internet. Já escreveu diversos livros infantis (ainda não publicados),
roteiros para histórias em quadrinhos e um roteiro para cinema - "Uhuru" (liberdade,
em idioma swahili). "A Caixa de Pandora" é o seu primeiro trabalho editado, tendo
sido apresentado primeiramente na Romênia, para universidades cujos cursos de
Letras estudam o português e para algumas bibliotecas do país. Duas editoras estão
avaliando o livro para possível tradução e publicação naquele país. Dono de um estilo
próprio de escrever, o autor apresenta suas histórias de maneira viva, quase como em
uma conversa, envolvendo com a mesma facilidade o leitor tanto em situações
cotidianas quanto em realidades diversas que por vezes chegam ao limite da
imaginação.

O lançamento no Brasil será realizado por duas editoras de maneira simultânea: Em


Brasília, no Restaurante Vercelli, pela Editora Thesaurus, e na Internet pela editora
Writers. Para corresponder com Alexandre Santos Lobão, escreva:
alobao@ microsoft.com

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