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Capituic 2 O trabalho entre sofrimento e prazer Antes de nos aprofundarmos na andlise das relagdes entre so frimento € injustica, devemos precisar 0 que entendemos aqui por softi- mento, Até agora, mencionamos principalmente as relacdes entre so- frimento e emprego. Mas cumpre estudar também as telagdes entre softi- mento ¢ trabalho. As primeiras se referem ao sofrimento dos que nio tém trabalho ou emprego; as tiltimas se referem ao sofrimento dos que continuam a trabalhar: A banalizasio do mal repousa precisamente sobre um processo de reforgo reciproco de umas pelas outras. Kis por que deve. mos primeiramente descrever a dindmica das relagées entre trabalho, softimento e prazer. Quetem nos fazer acreditar, ou tendemos a acreditar esponta- heamente, que o softimento no trabalho foi bastante atenuado ou mes- ‘mo completamente eliminado pela mecanizagio e a robotizacio, que te- iam abolido as obrigacées mecdnicas, as tarefas de manutengio e a re- lagao direta com a matéria que caracterizam as atividades industriais. Além de transformar bracais “cheirando a suor” em operadores de mos limpas, elas tenderiam a transmutar operdrios em empregados ¢ a livrar Pele de Asno de seu traje malcheiroso para propiciar-Ihe um destino de princesa de vestido prateado. Quem, dentre as pessoas comuns, no é ca. az de evocar as imagens de uma reportagem de televisio ou a lembran- ga de uma visita guiada a uma fabrica de aspecto asseado, new-look? In- felizmente, tudo isso néo passa de cliché, pois s6 0 que as empresas mos- tram séo suas fachadas e vitrinas, oferecidas — generosamente, é verda- de — aos olhares dos curiosos ou dos visitantes. Por trds da vitrina, hd o sofrimento dos que trabalham. Dos que, aliés, pretensamente nio mais existem, embora na verdade sejam legiio, © que assumem intimeras tarefas arriscadas para a salide, em condigdes Pouco diferentes daquelas de antigamente e por vezes mesmo agravadas A bonalizasao do Injustice social por freqiientes infragées das leis trabalhistas: operdrios da construgao ci- vil, de firmas de servigos de manutengéo nuclear, de firmas de limpeza (Geja em indtistrias ou em escritérios, hospitais, trens, avides etc.), de montadoras de automéveis, de matadouros industriais, de empresas avico- las, de firmas de mudangas ou de confeegio téxtil etc. HA também 0 sofrimento dos que enfrentam riscos como radia- Ges ionizantes, virus, fungos, amianto, dos que se submetem a hordrios alternados etc. Tais maleficios, que so relativamente recentes na histé- tia do trabalho, vao-se agravando e multiplicando, provocando néo s6 0 sofrimento do corpo, mas também apreensio e até angiistia nos que tra- balham. Enfim, por trés das vitrinas, hé 0 sofrimento dos que tememy no satisfazer, ndo estar & altura das ices Jo do traba-| lho: imposicSes-de-hordrio, de ritmo, de formacio, de informacio, de aprendizagem, de nivel de instrucio e de diplom: eriéncia, de 1a lez de aquisicSo de conhecimentos tedricos ¢ préticos (Dessors.& Tor-| tente, 1996) e de adaptacéio 4 “cultura” ou a ideologia da empresa, As| /exigéncias do mercado, as relacces com os clientes, os particulares ou o| {Duiblico etc. Os estudos clinicos e as sondagens que realizamos nos iiltimos anos, tanto na Franga quanto no exterior, revelam por trés das vitrinas do progresso um mundo de sofrimento que as vezes nos deixa incrédu- los. Quando se dispée de informacées, ou é individualmente, por expe- rigneia propria do trabalho, ou indiretamente, por intermédio de alguém intimo que sofre e nos faz confidéncias. Mas como nao imaginar que in- formagées tio discordantes do discurso corrente, ainda por cima pes- soais, ndo resultem de excegdes ou anomalias sem grande importincia num mundo que, gracas ao progresso da técnica, se livrou das misérias da condi¢do operria? Faz duas décadas que os jornalistas deixaram de fazer sondagens sociais ou pesquisas no mundo do trabalho comum para se dedicarem a “reportagens” sobre as luzes das vitrinas do progresso. Pouco interesse pelo sofrimento comum... e téo préximo de nés! Somen- te 0 martirio das vitimas da violéncia e das atrocidades bélicas, a distan- ia, se oferece a curiosidade de nossos concidadiios. As meias-tintas nao geram receita. Do mundo do trabalho no se ouvem senéo ecos amorte- cidos na imprensa ou no espago piiblico, 0 que nos leva a crer que as in- formagées que &s vezes nos chegam sobre o softimento no trabalho so de cardter excepcional, extraordinétio, nao tendo portanto significado nem valor heuristico no que concerne a situagéo.geral dos que traba- Tham na Europa de hoje. Assim, muito embora sua propria experiéncia 28 Christophe Dejours, seja discordante, muitos so os que fazem coro com os reftéios da moda sobre o fim do trabalho e a liberdade recobrada. Mas em que consiste afinal esse sofrimento no trabalho, que afirmamos aqui ser amplamente ignorado? Fazer o inventério das formas tipicas do sofrimento seria impor ao leitor a obrigacdo de percorrer to- dos os capitulos de um tratado de psicodindmica do trabalho. Por ora va- ‘mos nos limitar a um resumo visando prineipalmente a alertar sobre a gravidade de uma questo insuficientemente debatida. 1. 0 medo da incompeténcia Que se entende por “teal do trabalho”? © real é definido co- mo_0 que resiste ao conhecimento, ao saber, a0 savoir-faire e, de modo eral, ao domfnio. No trabalho, 0 real assume uma forma que cigncias do trabalho evidenciaram desde os anos 70 (Daniellou, Laville ‘Teiger, 1983). Ele se dé a conhecer a9 sujeito” essencialmente pela $0 temo “sujeo®romard a aparece com feitnca nese lwo. Nio€ uma denomina: co gendia para desgnar ant o sje quanto um homem ou uma mulher uma pessoa Gualquer ov tm epenteindefndo.Tbda vex que se terme apasecen ser para ar de sume a siuicto en gusts’ Asvamene tet abe ora Se iS eae ‘Ghinudouncania do coips twats ro elo po ae SaaS aE execveato como mando A aetiiade i urbe te pocandete eh Suna dada, acomere, o-€ uma eagle, © cencil de ebletedade €da eucorls da se. sofimento fo sev Tmpouco a dr. O praer ido t Vail Eee eta et ‘ok nfo si mensurived, Sto vivendadus “de oli fechados"-O fato de que a afenvida. nde poss lana ser edlda nom svalade quanatimete. de que 2 ence vo evi ao sca que se ie nekees reatdnde net gis se desea ae dla ota flor de modo cbstianista, Nequesrenareg-que samo SORTS SS taunt oo sabe ue iso soso vende ntegabnent ne mide dy eee ar ou desprezarasibleidade e a-leindade € hada mens que nega on descr aoren-o que sia hunanidade, hear a pear vds Hine oe Be eo Sse sods foxas, jam guns fem, de condescenféncin © desde pang com 8 Abe Tomaram.o credo d e-poliicas, be ‘Além disso, 0 fermo “sujeito” s6 sera empregado no texto quando for impossivel, considerando o que dissemos a tespeito da subjetividade, substiuilo por agente, ator, tra. balhador, operador,cidado ou pessoa, termos que remetem a uma séxie de conotagbes es- pecifcas e a teorias ou disciplinas distintas, 29 B benalizacse da defasagem irredutivel entre a organizacio prescrita do trabalho ¢ a or- suutzacto real do trabalho. Na verdade, sejam quais forem-as qualia, des da organizacio do trabalho e da concepcio, & impossi situa Ges comuns de trabalho, cumprir os objetivos da tarefa respeltando ex, Stupulosamente as prescrigbes, as instrucées ¢ 95 procedimentos... Cs. $0 os atenhamos a uma execucio rigorosa, nos veremos na conhecida situacdo da “operacio padrio™ ou “operacio-tartaruga” (gréve di mle) sm_queo trabalho € executado com zelo excessivo. Ozela é precisa: nente tudo aquilo que os operadores acrescentam 8 organizacio pres- crita para torné-la eficaz; tudo aquilo que empregam individual ecole ivamente ¢ que ndo depende da “execugao" A gestéo concreta da de. asegem entre 0 prescrito ¢o real depende na verdadeda‘mobiliza- ai isos afetives_e cognitivos da inteligéncia” (Dejouts, 19934; Bohle & Milkau, 1991; Detienne & Vernant, 1974) Tal conjuntura pode ser exemplificada pelo caso de um médico ainda inexperiente, mas a quem foi atribuido um cargo de responsabili. dade num setor de reanimago. Mesmo néo tendo concluido sua forma. Sfo, confiaram-the a responsabilidade médica por todo o servigo. Ne ver. dade, como varios colegas mudaram de posto, restaram cargos por pre. encher. Mas 0 diretor do hospital se recusou a fazer contratagdes. Assim, Para “tapar buraco”, aproveitou-se esse estudante, cuja remuneracio nao se compara aquela de um titular — em suma, trata-se de mais um caso de “habilitacao” abusiva e fraudulenta, como se vé com freqiiéncia em muitas indiistrias em que hé riscos (Mendel, 1989) Entéo esse jovem meédico, consciencioso e trabalhador, con- segue dar conta das tarefas que Ihe sio confiadas. Tudo corre bem ¢ ele vai ganhando gradualmente a confianga da equipe, dos pacientes e de suas familias. Sua competéncia € amplamente reconhecida. Mas algo 0 atormenta. Persiste nele a impressio de que ocorrem ébitos demais na. quele setor. Alguns de seus pacientes morrem mesmo quando 0 prognds tico Ihes ¢ favordvel. Exasperam-no os resultados incompreensiveis de certas decisdes suas, sobretudo quando prescreve a utilizacio de “respira dor artificial” em pacientes intubados. Varios pacientes so vitimas de as. fixia, e ele néo consegue entender por qué. Chega a pensar que provavel- mente cometeu erros de diagnéstico ou falhas terapéuticas, mas nao con. segue esclarecé-los. Torna-se cada vez. mais perturbado, perde a confian. a em si mesmo e resolve finalmente consultar um psiquiatra que o ajude a vencer uma depressio ansiosa, tanto mais supreendente porque todos o respeitam. Mas, tornando-se cada vez mais fechado ¢ itritével, cle se isola, se aflige e vai aos poucos perdendo a confianca de sua equi. 30 Christophe Dejours pe. Esta, por sua vez, ao descobrir a causa de sua perplexidade, acaba por duvidar de sua competéncia e, por fim, a suspeitar dele. ' Somente seis meses depois, quando sua situaclo psiquica esté francamente deteriorada, 6 que Ihe ocorre uma idéia, Antes de por um novo paciente sob respiracao artificial, ele encaixa a mascara de oxigé- nio no préprio nariz. Ent, sufoca ao inalar algo que, pelo cheiro, reco- nhece imediatamente como formol. Suas diligéncias 0 levam a descobrir que a firma responsével pela manutencdo e esterilizagéo dos aparelhos de reanimagéo nao respeita os procedimentos, a fim de ganhar tempo e disfargat, por essa fraude, a falta de pessoal, esta igualmente ligada aos cortes orcamentérios determinados pela direcéo daquela firma. Em situagées de trabalho comuns, é freqiiente verificarem-se in- cidentes ¢ acidentes cuja origem (nem sempre fraudulenta como no caso anteriot, antes pelo contrério) nao se consegue jamais entender e que abalam e desestabilizam os trabalhadores mais experientes. Isso vale pa- 1a a pilotagem de avi6es, a condugao de indiistrias de processamento todas as situagées de trabalho teenicamente complexas que implicam ris- ‘ cos para a seguranca das pessoas ou das instalagdes. Em tais situacdes, muitas vezes 9s trabalhadores nao tém como saber se suas falhas se de- ‘vem a sua incompeténcia ou_a anomalias do sistema técnico, E essa. fon- te de perplexidade é também a causa de angistia ¢ de sofrimento, qu tomam a forma de medo de ser incompetente, de nao estar a altura o} de se mosttar incapaz de_enfrentar convenientemente situacoes_inco- Mus ou incertas, as quais, precisamente, exigem responsabilidade. 2. A pressao para trabalhar mat Outra causa freqiiente de sofrimento no trabalho surge em cir- cunstancias de certo modo opostas Aquelas que vimos de mencionar Nao esto em questéo a competéncia e a habilidade. Porém, mesmo quando o trabalhador sabe o que deve fazer, no pode fazé-lo porque o impedem as presses sociais do trabalho. Colegas criam-lhe obstAculos, © ambiente social é péssimo, cada qual trabalha por si, enquanto todos sonegam informacdes, prejudicando assim a cooperacdo etc. Nas tare- fas ditas de execucdo sobeja esse tipo de contradicées em que o traba- Thador se vé de algum modo impedido de fazer corretamente seu traba- ! | | | a, Tho, constrangido por métodos ¢ regulamentos incompativels entre si mk @ejours, 1991), a a A banotizasae do Injustige social Por exemplo, numa usina nuclear, temos um técnico de manu- tengo encarregado de efetuar 0 controle técnico dos servicos contrata- dos com uma firma de mecinica. Nas miiltiplas tarefas ai executadas, en- volvendo a seguranca das instalagGes, turmas de operdrios se revezam dia e noite. Mas o técnico responsavel pelo controle, que tem vinculo em- pregaticio com a empresa contratante, esta sozinho. Nao pode supervi- sionar os trabalhos 24 horas por dia, pois também precisa repousar e dormir. Mas é sua obrigacéo assinar as faturas e responsabilizar-se pela qualidade do servigo prestado pela firma de mecanica. Embora tenha feito reiterados pedidos, ele continua sendo o iinico responsdvel e, para nao prejudicar os trabalhadores precariamente vinculados empresa contratada, é obrigado a assinar as faturas e a fiar- se na palavra do chefe do turno da noite quanto & qualidade do servigo realizado. Tal situacio psicoldgica dificilmente é aceitével para um técni- co que conhece bem 0 oficio da mecanica, por exercé-lo h4 20 anos, € que sabe como este ¢ cheio de percalgos. As condiges que ora lhe so oferecidas na nova organizacio do trabalho, apés as iltimas reformas es- truturais, o deixam numa situagéo psicolégica extremamente penosa, conflitante com os valores do trabalho bem-feito, o senso de responsabi: lidade € a ética profissional. Ser constrangido-a executar malo seu trabalho, a atamanct ¢ importante e extn eqiien- de soitimento no tabalh sein na indistria, nos servigos ou na ade ministracio Eis um segundo exemplo. Trata-se de um engenheiro, recentemente designado para uma garagem da SNCF (Societé Nationale des Chemins de Fer Francais). Al: guns dias apés sua chegada, toma conhecimento de informacées sobre tum incidente ocorrido no setor da ferrovia pelo qual & responsavel. A cancela de uma passagem de nivel néo abaixou A passagem de um trem. Nesse momento nao havia ninguém na estrada, nem a pé nem de carro Em reunido de trabalho, o engenheiro relata 0 incidente. Os dis- positivos autométicos nao funcionaram, Apés 0 incidente, a cancela vol: tou a funcionar normalmente, sem nenhuma intervengfo técnica ou repa: ro especifico. Porém o fato é inquestiondvel. Qual é a causa? Onde esta © defeito? Silencio geral entre os colegas. O novo engenheiro insiste, mas os demais minimizam a importancia do fato. O engenheiro nao pen- sa assim e, entendendo que o incidente é grave, exige uma investigacéo técnica completa, 0. grupo vai_a9s poucos isolando 0 novato insistente. Por qué? As mudancas estruturais ¢ 0 enxugamento dos quadros deixam 32 a Se ous ead Christophe Dejours todos tio sobrecarregados de trabalho que eles “deixam pra 4”. Néo po- dem, ¢ cla tir tal sityacdo oficialmente e se Jimitam a recusar a investigacs elo novo colega poraue_ela seria dificil e deman- d ts rabalhg. Além disso, insistem no fato de que, des de 0 ocorrido, a cancela aparentemente funciona sem mais incidentes. Os animes se exaltam. O engenheito se recusa a desistir da investigacao, ‘Vé-se obrigado a sustentar a gravidade do incidente, enquanto os outros © minimizam. Por fim, 0 chefe da garagem intervém e decide: Chefe: Houve descarrilamento do trem? Engenheiro: Nao! Chefe: Houve coliséo com algum veiculo ou passante? Engenheiro: Nao! Chefe: Houve feridos ou mortos? Engenkeiro: Nao! Chefe: Ento no houve incidente. O caso est encerrado, Ao sair da reunido, o engenheiro nao se sente bem, estd arra- sado, nao entende a atitude dos outros, tampouco sua unanimidade. Fi- ca em diivida, no sabe mais se est apenas seguindo 0 regulamento ¢ © bom senso ético (enquanto seus colegas se Ihe opdem, negando uma ealidade) ou se, ao contrério, est dando mostras de perfeccionismo teimosia descabida, cumprindo-lhe, nesse caso, rever toda a sua vida profissional. Nos dias seguintes, seus colegas evitam comer & mesma mesa que ele ¢ dirigit-Ihe a palavra. O infeliz ja nao compreende mais nada, O cerco se aperta, Ble se sente cada vez mais angustiado e per- Plexo. Dois dias depois, no seu local de trabalho, ele se joga do vao de ‘uma escada, transpondo o parapeito, £ hospitalizado com fraturas mil- plas, depressdo, confusao mental e tendéncia suicida. (Trata-se de um caso de alienacdo social, diferente da alienagéo mental clissica, tal co ‘mo definida por Sigaut, 1990.) Ao contrério do que se pensa, situagées desse tipo nada tém de excepcional no trabalho, ainda que seu desfecho seja menos espetacular, 3. Sem esperanca de reconhecimento Quer se consiga, como no caso do médico, vencer os obstdculos do real, quer se capitule, como no caso do engenheiro mec&nico, diante dos obstéculos & qualidade do trabalho, quer ainda, como em outros ca- 308, se Posta trabalhar em boas condigées técnicas e sociai 33, be ae ea AM A te at A bonatizacde da Injustice social obtido é em geral a custa de esforcos que exigem total concentragéo da personalidade e da inteligéncia de quem trabalha. Hé os indolentes ¢ os desonestos, mas, em sua maioria, os que trabalham se esforcam por fa- zer o melhor, pondo nisso muita energia, paixio e investimento pessoal. E justo que essa contribuicio seja reconhecida. Quando ela nao é, quam. do passa despercebida em meio a indiferenga geral ou é negada pelos ou. os, isso acarreta um sofrimento que € muito perigoso para a satide mental, como vimos no caso do engenheiro da SNCF devido A desestabi. lizagao do referencial em que se apéia a identidade. Qreconhecimento nfo é uma reivindicacio secundaria dos que r ito Delo contrério, mostia-se decisive na dindmica da.mo- billzagdo subjetiva da inteligéncia e da personalidade no trabalho (o que é classicamente designado em psicologia pela expr v trabalho” Q reconhecimento esperado por quem mobiliza sua subjetivi- dade no trabalho assume formas_extremamente reguiadas, id analisa das ¢ elucidadas ha alguns anos Guizo de utilidade ¢ juizo de beleza), < implica a_participacio de atores, também estes rigorosamenie situa dos em relacio a funcio e a0 trabalho de quem esp. n- 10 Dejours, 1993p). Nao € indispensvel retomar aqui a andlise da “psicodindmica do reconhecimento”, Basta conhecer-Ihe a existéncia para discernir o pa- Pel fundamental que’desempenha no destino do sofrimento no tabalho a possibilidade de wansformar 9 sofrimento em prazer Do secomhecimento depende na verdade 0 sentido do sofrimen- 19. Quando a qualidade de meu trabalho € reconhecida, também meus esforgos, minkias angristias, minhas diividas, minhas decepcées, meus de- sanimos adquirem sentido. Todo esse sofrimento, portanto, nao fol em vio; no somenie presiou uma cont ‘organizacio do trabal mas também fez de mim, em compensacéo, um sujeito diferente daguele ue eu era antes do reconhecimento. O reconhecimento do trabalho, ov mesmo_da obra, pode depois set reconduzido pelo sujelto ao plan: da construcdo de sua identidade. E isso se traduz afctivamente pot um sen- timento de alivio, de prazer as vezes de Teveza Talma ou até de eleva- $0. 0 trabalho se inscteve entio na dindmica da realizagéo do ego. A Henudade consiara amd te atte ea ental Na habe “Dsicopa: toldgica que nao esteja centrada numa crise de identidade. Eis o que con- {ere a relacio para com 9 trabalho sua dimens#o propriamente dramati- ca. Nao podendo gozar os beneficios do reconhecimento de seu. trabalho ‘em alcancar assim_o sentido de sua relagio para com o trabalho, o su- 34 jeito se vé reconduzido a0 seu sofrimento ¢ somente a ele, Sofrimento absurdo, que nao gera senio_sofrimento, num cfreuld vicioso e dentro em breve desestruturante, capaz de desestabilizar a identidade ¢ a perso- nalidade’e de Tevar 2 doenca mental, Portanto, nao ha neutralidade. do balho diante da Saude mental, Mas essa dimenséo “patic a tho € amplamente subestimada nas andlises sociolégicas e politicas, com consegiiéncias tedricas que veremos mais adiante. Dejours 4. Softimento e defesa Assim, embora faca parte das expectativas de todos 0s que tra- balham, 0 reconhecimento raramente & conferido de modo satisfatorio. Portanto é de se esperar que 0 sofrimento no trabalho gere uma série de manifestagbes psicopatolégicas. Foi para analisé-las e inventarié-las que se realizaram estudos clinicos denominados “psicopatologia do trabalho”. No inicio das pesquisas, nos anos 50, procurou-se identificar e caracterizar os efeitos deletérios do trabalho sobre a satide mental dos trabalhadores, visando a constituir um diagnéstico das “doencas men- tais do trabalho”. Apesar de certos resultados espetaculares — em parti- cular @ neurose de telefonistas (Begoin, 1957) —, nao foi possivel des- crever uma patologia mental do trabalho compardvel & patologia das afecgées somaticas profissionais, cuja variedade e especificidade, a so comhecidas. Se_o sofrimento nao se faz acompanhar de_descompensactio psicopatologica (ow seja, de uma ruptura do equilibrio psiquico que se manifesta pela ecloséio de uma doenca mental), & porgue contra ele 0 ‘Suicito emprega defesas que he permitem controlé-lo. No dominio da psicologia do trabalho, o estudo clinico mostrou que, a par dos meca- nismos de defesa classicamente descritos pela psicandlise, existem de- fesas construfdas ¢ empregadas pelos trabalhadores coletivamente, Tra- Jase de “estratégias coletivas de defesa” que so especificamente mar- cadas_pelas pressbes reais do trabalho, Assim, descreveram-se primei ramente as estratégias coletivas de defesa tipicas dos operarios da construgio civil, depois as dos pilotos de processo das indtistrias qui micas, dos encarregados da manutencéo em usinas nucleares, dos sol- dados do Exército, dos marinheiros, das enfermeiras, dos médicos e ci- rurgiées, dos pilotos de cacas etc, Descreveremos algumas delas no ca- pitulo 3, secdo 3. 35, A bonolizasse da injustisa social As pesquisas foram entio redirecionadas a partir da inverso da questio inicial: em vez de detectar as inapreensiveis doencas mentais do trabalho, registrou-se que, em sua maioria, os trabalhadores permane- cem na normalidade. Como conseguem esses trabalhadores_ nao enlou- _quecer, apesar das presses que enfrentam no trabalho? Assim, a prépria “normalidade” ¢ que se torna enigmatica. ‘A nommalidade ¢ interpretada como 0 resultado de uma compo- sicdo_ entre o sofrimento ¢ a luta (individual coletiva) contra 0 sofri- [mento no trabalho. Portanto, a normalidade nao implica auséncia de so- frimento, muito pelo contrério. Pode-se propor um conceito de “normali- dade sofrente”, sendo pois a normalidade ngo 0 efeito passivo de um condicionamento social, de algum conformismo ou de uma “normaliza- 40” pejorativa e desprezivel, obtida pela “interiorizacdo” da dominagéo social, @ sim o resultado alcangado na dura luta contra a desestabiliza- fo psiquica provocada pelas pressdes do trabalho. ‘Nos tiltimos 20 anos, as pesauisas em psicodinamica do traba- lho revelaram a existéncia de estratégias defensivas muito diferentes. A andlise detalhada_do funcionamento dessas_estratégias_mostra_igual- mente que elas podem contribuir para tornar_aceitvel aquilo que néo deveria sé-lo. Por isso as estratégias defensivas cumprem papel pai doxal, porém capital, nas motivacoes subjetivas da dominacdo a que jd nos referimos, Necessérias & protecdo da satide mental contra os efeitos deleé- rios do sofrimento, ag estratégias defensivas podem também funcionar co- moumaarmadilha que insensibiliza contra aauilo que faz sofrer. Além dis- so, permitem &s vezes tornar tolersvel 0 sofrimento ético, e no mais ape- nas psiquico, entendendo-se por tal nfo o sofrimento que resulta de um mal padecido pelo sujeito, e sim 0 que ele pode experimentar ao cometet, por causa de seu trabalho, atos que condena moralmente. Em outras pala~ vras, é bem possivel que agir mal, isto é, infligir a outrem “um sofrimento indevido” — segundo a concepio proposta por Pharo (1996) e a qual vol Jaremos mais adiante —. cause também sofrimento 2quele que ass no.contexto de seu trabalho. E se ele for capaz de construir defesas contra esse sofrimento, poderé manter seu equilibria psiquico. Teriam 0 sofrimento no trabalho e a luta defensiva contra o softi ‘mento alguma influéncia sobre as posturas morais particulares e mesmo so- bre as condutas coletivas no campo politico? Essa questo néo foi até ago- a considerada porque os especialistas da teoria sociolégica e filoséfica da acéo geralmente hesitam em abrir espaco, em suas andlises, para 0 s0- frimento subjetivo. 36 qd. anus

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