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Capitulo 8 A REGRESSIVIDADE DA MATRIZ TRIBUTARIA BRASILEIRA: 0 que é € por que estudé-la nos dias de hoje? José Maria Arruda de Andrade Pedro Julio Sales D’Aradj 1. Introdugao Nesse ano foram realizadas profundas reflexdes sobre ensino juridico por conta do bicentenirio de independéncia brasileira. Em evento organizado pela Faculdade de Direito da USP, um dos autores participou do debate sobre reforma tributiria, ensino e regressividade. Fomos convidados pela Professora Maria Paula Dallari a registrar nos- sas ideias sobre o tema em um breve artigo € esse dilogo nos trouxe aqui, Gostariamos de agradecer nao apenas o gentil convite da professora, mas o efetivo didlogo em torno de algumas ideias que aqui apresentamos. As provocacées da professora foram muito importantes para a nossa sistematizacio. Um dos autores, José Maria Arruda, tem escrito sobre reforma tributiria em diversas oportunidades ¢ realiza pesquisas de economia e tributacio. O outro, Pedro D' Aratijo, doutorou-se hi pouco na Faculdade de Direito da USP ¢ estudou o fenémeno da ilusio fiscal da regressi- Profesor siociado de Direito Eeonémico c Economia Politica da Universidade de Sio Paulo (USP), liedocente e doutor pela mesima instituigio. Profesor Programa Master de Pis-Graduagio em Finangas e Economia da Escola de Eeono- ania de Sio Paulo, Fundagio GetulioVarga (FGV EESP) Foi seretrio-adjunto da Secretaria de Politica Econémica do Minisério da Fazenda e pesqsisadorvistante no Instituto Max-Planck de Inovagio e Concorréncia em Munique (Alemanha) Dostor em Direto Econémico, Bnanceto e Tbutisio pela Faculdade de Diteto cha Univesdade de Sio Paulo (USP); meste e bachael pela Faculdade de Dizeito ¢d Universidade de Brula (Unb) e expecalita em Dieito Tabutirio pela FGV/SP “Awesir de Minsto do Supremo Tebunal Feder para asunts trbutirios, fi pes {qusador vistante bolita na Westlische Wilhelm- Universit Minster (Alemanhs). 137 vidade de nossa matriz tributiria © tema desse texto que se apresenta A publicacio, portanto, nos une em pesquisa realizada e por realizar A regressividade econdmica de nossa matriz tributiria sempre despertou atengio de estudiosos. Em tempos mais recentes, porém, sobretudo por conta dos debates em torno de uma reforma tributiria sobre 0 consumo, essa premissa tem sido relativizada por meio de duas linhas argumentativas principais. No primeiro caso, sustenta-se a prioridade de se reformar um gru- po de tributos em busca de simplicidade e eficiéncia, Eventuais mazelas do novo sistema ou da perpetuago da mencionada regressividade seriam. enderegadas ao debate orgamentirio (gastos compensatérios ou criagio, de fundos), A sabedoria popular nio recomendaria comprometer-se com um pagamento mais elevado de longo prazo em troca de possiveis auxilios a serem votados anualmente ou a depender da boa vontade de gestores pablicos, mas é assim que os defensores dessa ideia resolvem. a dimensio social de sua proposta, adiando a busca pela equidade para um momento, hipotético, posterior 4 nova legislacio tributéria, No segundo, comecou-se a refitara propria ideia de que a tributagio ampla de bens ¢ consumos seria regressiva, acusando-se aqueles que a afir- mam de desconhecerem a literatura econdmica que afistaria essa premissa ‘A busca pela equidade na tributa¢io, assim, embora prevista no artigo 3° da Constitui¢io Federal, bem como parte integrante do capitulo responsivel pela Ordem Econémica, tem perdido espago na arena politica pela preocupagio com a eficiéncia do sistema tributario, ignorando-se como se distribui o nus econémico da tributagio em nossa sociedade desigual Por tais azes, entendemos ser necessirio levantar 0 debate em torno da regressividade a partir de um novo olhar, nio apenas voltado para 0 convencimento dos atores politicos responsiveis por formatar as propostas hoje em voga em torno da reforma de nossa matriz tributiia. Os politicos sabem muito bem que o nosso modelo fiscal se apresenta em descompasso com o projeto de sociedade delimitado pelo texto constitucional A proposta da presente reflexio se volta a uma nova frente: a ne- cessidade de trazermos o debate em torno da repercussio econdmica dos tributos (distribuicio do énus tributirio) para os bancos de nossas escolas e, em especial, de nossas universidades. Entendemos que a for- magio de uma consciéncia social quanto 3 questio, além de possibilitar a superacao de um bloqueio hoje existente na arena piiblica, com a captura de projetos de reforma tributéria que nao se aproximam de 138 uma sincera preocupacio com a promogio de equidade e de redugio de desigualdades sociais e regionais, fomentaria a participacio popu- Jar, elemento essencial em um processo democritico que se pretenda legitimo ¢ duradouro. No que toca a0 ensino juridico, deve-se inquirir: nossa formagio universitiria nos permite tomar contato com a carga tributiria efetiva (e nio apenas nominal) ¢ a reparticio do énus econémico definitive, levando em conta a renda da populagio? Parece-nos que ainda nio, ainda que existentes iniciativas louviveis de disciplinas optativas interdisciplinares, Para tanto, antes de mais nada, é necessivio esclarecer um ponto que ultimamente tem sido colocado em diivida: seria nossa tributacio realmente regressiva ou tal ilagio seria mera opiniio ideol6gica de atores progressistas? 2. A regressividade da tributa¢ao no Brasil: Por que nossa matriz tributaria é injusta? ‘A defini¢ao de uma carga tributiria como regressiva decorre da compreensio do impacto crescente de determinado tributo — ou o conjunto deles — em razio inversa 4 capacidade dos individuos em su- porti-li’.A ideia de regressividade tributiria esta intimamente conectada 4 propria ideia de capacidade contributiva, medida como disposigio econdmica dos individuos de colaborarem com a coletividade. Ou seja, costuma-se ter, na anilise quanto 4 regressividade, uma preocupagio da medida de impacto que certo énus fiscal vai ter no orgamento das familias, na riqueza disponivel para que aquele grupo, ou individuo, possa fazer frente as suas necessidades bisicas Para que possamos compreender sob melhor Angulo em que ‘medida a matriz tributaria de um pafs pode ser considerada regressiva, devemos investigar em especial como se distribui a arrecadagao do pais entre as principais bases econdmicas de incidéncia. ‘A importincia de se discutir as formas de incidéncia deve-se ao fato de que é a partir de tal estruturagio, bem como na relagio exis~ tente entre elas, que a comunidade tragari o panorama geral do seu sistema impositivo. E a partir destas escolhas que se inicia a definigio de quem arcari com © dnus ¢ quais as finalidades que se pretender’ SELIGMAN, Edwin R.A. A Study of the History, Theory and Practice of the Income Taxation at Home and Abroad. 2. ed, New York: Macmillan ‘Company, 1914. .30 139 buscar com a tributagio, bem como se estabelece todo um plexo de direitos decorrentes da tributacio, influenciando diretamente a vida de seus cidadios. Ainda que tais escolhas tenham valor instrumental, nio sendo possivel fixar a partir delas um ideal de justiga daquela comuni- dade’, é da anilise da formatagio da atividade financeira do Estado a partir das bases tributaveis que se inicia a aferig’o do proprio retrato da sociedade em termos de construgio histérica de sua matriz tributéria Sob tal aspecto, compreender em que medida a arrecadagio em nosso pais ¢ regressiva, onerando mais as pessoas mais pobres, passa por compreender em especial que nossa tributagio se volta a0 consumo enquanto principal base econémica de incidéncia, Se levarmos em consideragio apenas a classificacio adotada pela Receita Federal, tal base corresponderia no ano de 2018 a 44,74% da arrecadagio, contra 21,62% para a renda, 4,64% para a tributacio da propriedade, 1,60% para transagdes financeiras ¢ 27,39% para a tributagio incidente sobre a folha de salério® Além disso, sob a rubrica propriedade, hé a inclusio de tributos que mais se assemelham 4 tributacio sobre o consumo diferida e periédica, como € 0 caso do Imposto sobre Veiculos Automotives (PVA). Em. um pais como 0 nosso, de grandes proporedes e com alta concentragio de renda e de propriedades, o verdadeiro imposto sobre a propriedade seria aquele que recaisse sobre o principal ative de nossa época e que nio pertence ao proprio Estado (como os recursos naturais), a saber, as grandes propriedades, notadamente rurais. Aaarrecadacio em nosso pais, portanto, se sustenta tendo 0 consumo como principal base econémica, resultando em um modelo tributério que nao necessariamente leva em consideracéo a aptidio individual em suportar o encargo fiscal. Isso se explica pelo fato de que duas pessoas de diferentes capaci- dades contributivas, que venham a adquirir 0 mesmo produto, estario sujeitas, enquanto consumidores, i mesma carga tributiria, Ent . por possufrem distintas rendas disponiveis, o peso daquele encargo seri mais érduo no individuo que tiver menor poder aquisitivo. anto, © MURPHY, Lian; NAGEL,Thomus. O mito da propriedade: os impostos «a justia ‘Tradugio de Marcelo Brandio Cipolla. Sio Paulo: Martine Fontes, 2005, . 131 BRASIL. Receita Federal. Subsecretaria de Tributag3o ¢ Contencioso. Coor- denacio-Geral de Estudos Econémico-Tributirios ¢ de Previsio e Anilise de Arrecadagio, Carga Tributéria no Brasil 2018:Anilize por tributos ¢ bases de incidéneia. Brasilia, 2020, p.5, 140 Coloquemos a questio cm um excmplo simples: uma pessoa de baixa renda que adquire um saco de feijio arca com a mesma carga tributiria objetiva de uma pessoa de alta renda que adquire o mesmo produto.A carga tributiria daquele saco de feijio a mesma, pois a tri- butagio sobre o consumo, enquanto objetiva,nio iri variar a depender de quem adquire determinado bem. Todavia, o valor marginal daquela unidade monetiria gasta para o consumo do feijio ser4 superior para a familia mais pobre do que para a familia mais rica, E, a0 observarmos os padrdes de consumo das familias brasilei- ras, temos que os grupos mais pobres, por falta de riqueza suficiente, tendem a destinar parcelas proporcionalmente maiores de suas rendas para 0 consumo e, consequentemente, serem proporcionalmente mais onerados por isso. E por tal razio que afirmamos que a tributagio sobre 6 consumo assume fei¢io regressiva Como bem salientado por Maria Helena Zockun, a diferenca de propensio a0 consumo — ou seja, a relagio entre despesas de consumo c renda monetiria das familias ~ observada entre 0 déci- mo muais pobre ¢ o décimo mais rico da populagao seria da ordem de 2,28 veres. Isso ocorre porque, enquanto as familias mais ricas apresentam uma propensio a consumir de 0,547, as familias mais pobres — pela baixa renda disponivel — apresentam despesas de consumo 1,249 vezes superior ao rendimento auferido.A partir de dados extraidos da POF 2008/2009, a autora afirma que na hipétese de todas as fa rujeitas a mesma aliquota de tributacio sobre consumo ~ modelo hoje em voga nos mais diversos ambientes académicos como proposta de reforma tributéria - a carga a ser submetida as classes mais vulneraveis seria 2,28 vezes superior a0 4nus suportado pelos extratos mais ricos da populagio, revelando a regressividade do modelo adotado’ lias estar © Quanto a0 ponto,a autora bem afirma que “iio hi muita dvida sobre a natureza regressiva dos tributos indiretos, cuja origem € a inversa relagio entre a renda f= as familias, endo tanto mais acentuada quanto por distribuida for a xenda no pais. (..) Simetricamente, num pais que - no limite = ivesse a renda igualmente distribuids entre toda a populagio, nio haveria regres= sividade tributiria mesmo que toda tributacio incidisse sobre 0 consumo, Se em amiédia toda a populagio destruts de um mesmo nivel de renda, suas propensdes a consuinir sio muito semelhantes e, portanto,a carga tributiria de impostos sobre ‘© consumo seria a mesina para todas ¢ cada familia” ZOCKUN, M. H. Equidade na tributasio. In: AFONSO,].R. etal (orgs). Teibutagio e desigualdade. Belo Horizonte: Letramento, 2017, p.24. miliar e a propensio a consum 141 (© quadro se repete a partir das conclusdes trazidas pela diltima Pes quisa de Orcamentos Familiares’.De acordo com o estudo, as familias mais pobres destinam a maior parte de suas despesas para o consumo corrente (02,6%), enquanto a parcela mais rica consome proporcionalmente me- nos (66,3% de suas despesas sio destinadas a esse gasto).A diferenca se observa ainda nos tipos de gastos. Entre os mais pobres, gastos essenciais como alimentos ¢ habitagio ocupam a maior parte das despesas familiares (espectivamente 22% e 39,2%), enquanto o extrato mais rico dedica proporcionalmente menos com os mesmos itens (7,6% e 22,6%) , Outros gastos que ainda merecem destaque no orgamento das familias pobres sao as despesas com medicamentos (4,2%) ¢ transporte urbano (2,1%). Esses valores se sobressaem em compara¢io com 0 gasto observado no extrato mais rico (1,4% e 0,4% do seu consumo, respectivamente), Ao se optar por tributar massivamente 0 consumo, como 0 faz a mutriz tributéria brasileira, temos um gravame fiscal que nao apenas impée um sacrificio desproporcional as parcelas mais pobres da po- pulacio, como também impede sua poupanga — que destinam parte considerivel de sua renda a0 consumo, que como vimos é excessiva~ tributado' ~dificultando a superagio do quadro de escassez por tais pessoas. Isso em contrariedade 4s familias ricas que, considerada a renda auferida, tanto consomem quanto poupam. Por mais perduliria que possa ser, uma familia que receba na ordem de milhares, ou vi 14, milhdes de reais, dficilmente conseguirs gastar integralmente a renda auferida, Sobraré ao final uma porcentagem que passaré a integrar o patriménio familiar e, consequentemente, a reserva de riqueza. As familias mais pobres, por outro lado, 20 dedicarem quase a totalidade de sou orgamento para o consumo, acabam soffendo um. quadro de restricio severo, tendo muitas das vezes que optar quanto a qual produto adquirir, especialmente em situagdes de alta dos pregos. A conclusio que se faz, portanto, é que qualquer aumento no preco dos produtos amplamente consumidos por nossa sociedade, consequéncia natural de uma reforma tributéria que nio observe a inerente regressividade da tributagio sobre 0 consumo, acarretar’ im- > INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA - IBGE. Coordenario de Trabalho e Rendimento. Pesquisa de orsamentos familiares (2017-2018): primeiros resultados. Rio de Janciro: IBGE, 2019 * HIGGINS Sean; PEREIRA, Claudiney The effects of Brazil’s high taxation and social spending on the distribution of household income. Tulane University, 2013. p.8 142 pactos proporcionalmente maiores nos orcamentos das familias mais pobres, que jé se encontram em situacio de escassez, tendo que realizar escolhas dificeis quanto a qual item consumir. Ao passo que, o mesmo aumento de pregos, causado pela tributacio, nio trari igual impacto a0 ozcamento das familias mais ricas,as quais, dotadas de uma maior renda, postivelmente ajustario suas finangas, comportando tanto 0 consumo daquele produto em idéntica quantidade, quanto eventual poupanga Como dito, esse cenario tem sido colocado em dvida por estudos recentes que,a partir de uma mudanga de metodologia, tendem a defender que a tributacio sobre o consumo, antes de ser regressiva, deveria ser con- siderada proporcional ou, ainda, levemente progressiva. Essa divergéncia de entendimento tem em um de seus pressupostos 0 questionamento quanto 4 melhor forma de medir o peso da tributagio sobre 0 consumo suportada pelas familias: se o parimetzo de referéncia para aferir tal nus deva sera renda, como por nés defendido, ou consumo, como professado pelos promotores dos projetos de reforma em vog’. A diferenca bisica entre as duas formas de estimagio € que 0 segundo método desconsidera a renda poupada (ou endividamento), daquelas categorias que conseguem poupar, como se fora um elemen- to de pouco interesse na diferenca de impacto da tributagio sobre as desiguais familias brasileiras. (Os adeptos da utilizagio do consumo como referéncia do peso da carga tributiria indireta argumentam que tal escolha reflete melhor © padrio de vida das familias no longo prazo, considerando que os orcamentos podem ter déficits ou superivits no decorrer dos anos, de modo que a renda seria insuficiente para tal aferico (em determinado ano, por exemplo, uma familia poderia se endividar para realizar de- terminada despesa que venha a ser superior a renda auferida naquele momento. A despesa, portanto, mediria melhor o padrio de riqueza no longo prazo, ou a chamada renda permanente)" E € por tal razio que haveria um maior nivelamento da carga tributiria segundo os decis de renda. Ao adotarmos 0 consumo das familias para medir o peso relativo da carga tributiria indireta, acabamos por nivelar os diferentes poderes de compra conforme a posi¢io social. 7 THOMAS, Alasair. Reaseesing the regresivity of the VAT. OECD Taxation Working Papers, n. 49, OCD Publishing, 2020, * THOMAS, Alastair. Reasessing the regresivity of the VAT. OECD Taxation Working Papers n. 49, OECD Publishing, 2020. 143 E isso faz com que o diferente peso dos tributos indiretos também se disperse em tal nivelamento. ‘Umna segunda critica formulada por tal corrente voltada contra a metodologia baseada na renda para aferir a regressividade da tributacio sobre o consumo, esta mais direcionada 20 contexto brasileiro, decorreria da constatagio de que os rendimentos das familias mais pobres seriam amplamente sub-reportados nas pesquisas de orpamentos familiares, sendo observada, em muitas situacées, um elevado déficit entre rendas € despesas declaradas por estes grupos populacionais*,Tal subavaliacio da renda das classes mais vulneraveis faria com que a regressividade da tributagio fosse exacerbada, quando, na verdade, a tributagio sobre o consumo seria, no entender de tais criticos, levemente proporcional. Tal anilise nos preocupa.E a preocupagio decorre da constatacio de que, diferente do exposto na critica metodologica hoje feita 4 ava- liago dos impactos da tributacio sobre o consumo, o dnus tributirio indireto nio apresenta um comportamento proporcional, mas sim uma tendéncia altamente regressiva,justamente por ser necessirio que consideremos a renda como parimetzo de aferigio do peso da carga tributiria, parimetro mais proximo de uma ideia de realizagio da ca~ pacidade contributiva Afirmar que a tributagio sobre 0 consumo equivaleria a uma taxa proporcional sobre a renda consumtida parece nao ser um argu- mento convincente, especialmente por nio considerar o impacto poupancas nas classes mais ricas, influenciando, inclusive, como fator de riqueza e nos padrdes de bem-estar para tais grupos populacionais Desconsiderar o nivel de poupanca para afericio do énus suportado. pela tributagio sobre 0 consumo & desconsiderar o extremo nivel de esgotamento dos orgamentos das familias mais pobres, tratando-os de forma equivalente aos das familias que muito tém, quando a dinimica observada é completamente distinta. ‘A conta, como apontamos acima, é simples. Retomando o exemplo do saco de feijio, temos que a carga tributéria suportada seri sempre a mesma, independente da pessoa que venha a consumi-lo, seja rica ou seja pobre, Se levarmos em consideracio 0 consumo desse saco de feijio como parimetro de aferigio do énus do tributo indireto, esse 1 SIQUEIRA, Rozane Bezerra cf al. O sistema tributirio bratileira € regressive? In: AFONSO José Roberto de ef al. (Org,). Tributagio ¢ Desigualdade. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2017. 144 énus também sera o mesmo, tanto para 0 rico quanto para o pobre Com isso, nio hi como aferir qualquer impacto redistributivo da carga twributiria indireta. © énus tributirio seré flat Tal percepcio, todavia nao reflete o cenitio de dificeis escolhas que os individuos mais vulneriveis enfrentam diariamente, com orgamentos restritos diante de custos de vida cada vez mais elevados. Afirmar ser 0 peso de eventual tributo sobre o consumo como proporcional, ou flat, & equivocado uma vez que nio traz a dimensio da escassez inerente 4 po- breza e trata como iguais quadros que se mostram totalmente dissociados. Ignorar o peso das poupangas em termos de aferir o impacto da tributacio sobre o consumo nao nos parece o melhor caminho. E neces- sério ressaltar que a tributaco sobre 0 consumo, em especial em nosso pais tio desigual, é necessariamente regressiva justamente por tributar proporcionalmente mais aquelas faixas populacionais que menos renda tém, Sendo, por outro lado, equivocado buscar na mudanga de metodo- logia justficativas para defender uma suposta proporcionalidade da carga twibutiria indireta, justamente por nio termos na renda consumida um. parimetro que aleance as diferentes capacidades contributivas, o diferente peso que aquele tributo representa no orgamento das familias € o respec ;prometimento que um aumento no valor de determinado item pode representar para a pouca qualidade de vida destiutada E, se eventualmente é possivel afirmar que a andlise do impacto da tributagio a partir da renda realgaria, equivocadamente, a regressi- vidade em razio da subnotificagio das rendas das classes mais pobres nas pesquisas de oxcamentos familiares, nio podemtos nos esquecer que também tem sido colocada em divida a estimativa dos rendimentos tivo com das classes mais ricas em tais levantamentos'* “Adotar o consumo como parimetro implica necessariamente, portanto, a suavi~ zagio dos impactor distibutivos na anilise da incidéncia da tributagio indizeta ‘Trati-ce de uma abordagem tedrico-metodolégica de justficario particularmente dificil numa estrutura distributiva desigual como a brasileira E por isso que o usual fem anilise de incidéncia é 0 emprego da renda como parimetro, podendo-se imputar a subdeclaragio tanto entre os pobres como entre os ricos — por meio. cas despesas, para os primeiros, ¢ do ajuste pelos dados da Receita Federal, para os Glkimos. Lustig (2016a; 2016b), Zockun (2017), Silveira etal. (2013) e ct al, (2000), entre outros que empregam a rend como parimetro de incidéncia aprezentam nGmeros bem divergentes dos apresentados pelo artigo citado pelo autor. Nio resta divida de que a tibutagio indieta é regresiva, uma vez que en ‘os maiz pobre: as despesas de consumo respondem por 92% da tends, enguanto, ‘entre o: mait ricos esta partiipacio é da ordem de %, segundo a Pesquisa de Or- ‘gamentos Famsliares (POF) 2017/2018. O autor sequer menciona tal controvérsia, 145 A critica ainda é compartilhada por Marciano Seabra de Godoi, que assenta nfo ser adequado sugerir que a tributacio indireta no Brasil é pouco ou nada regressiva, ¢ que, sendo assim, pode-se expandi-la sem maiores consequéncias em termos de recrudescimento da desigualdade social Esses aspectos metodolégicos devem ser levados em conta para a melhor compreensio do significado das anilises fetas e as escolhas que existem por tris de cada cenirio.Ao escolher 0 consumo das familias como pano de fundo para aferi¢io da carga tributitia indireta, optou-se por um. quadro em que o impacto regressivo seria substancialmente atenuado, potencializando, assim, um suposto efeito distributive de um modelo que se valha de uma tributacio sobre o consumo uniforme, aliada de politicas de devolucio. Como expée Silveira e Vianna, trata-se de uma opcio me- todolégica que representa a adesio a um campo ideolégico conservador* € que, 2té por isso, deveria ser transparente no debate piblico. na literatura, ignorando que a utlizagio do consumo como parimetzo (sto 60 ‘uso das despesas como denominado:) implica necessariamente uma atenua¢io dda incidéncia. A metodologia empregada ajusta a enda dos mais pobres, ou seja, reduz a desigualdade pelo uso das despesas como parimetto de incidéncia, Tal exolha tem impacto concentrador pouco significativo dos impostos indizetor no exquema de renda, 0 que é ilustrado pelo Grifico 4 (“Coeficiente de Gini em cada estigio da distribuigio de renda”),Trata-se de um resultado totalmente distinto dos obtidos por Silveira et al. 2013) ¢ Zockun (2017).” SILVEIRA, Fernando Gaiger: VIANNA, Silvador Teixeira Werneck. Um Patso i Atris: Notas Criticas A “Estado, Desigualdade ¢ Crescimento no Brasil”, De Ar- inio Fraga. Novos estudos CEBRAP, Sio Paulo, v.39, n.2, p. 349-369, Aug. 2020. Available from . access on 02 May 2021 Epub Oct 12, 2020. hesps//doi org/ 10,25091/s01013300202000020006, © GODOI, Marciano Sesbra,Tributagio do consumo ¢ efeitos redistributivos:aliquo- tas reduzidas conforme a estencialidade dos produtos/servigos (letividade versus aliguotas tniformes com transferéncias financeitas(rfimdable tax edits) para familias de baixa renda. In Tributagao e desigualdade. FGV Dircito Rio. 2017.p.567.Em linha similar, sugerimos a leitura de SILVEIRA, F G, Equidade Fiscal impactos dlistributivos da tibutagio e do gasto social. XVII Prémio Tesouro Nacional, ESAE 2012, p.33.a 35; ¢ LAHEY, Kathleen A. Taxing for Growth vs. Taxing for Equality — using human rights to combat gender inequality, poverty and income inequalities in fice laws, In: ALSTON, Philip; REISCH, Nikki (Org ). Tax, Inequality, and. Haman Rights. New York: Oxiord University Prest, 2019. p. 436. 1% SILVEIRA, Fernando Gaiger; VIANNA, Salvador Teixeira Werneck, Um Passo A Frente, Dois Atris: Notat Criticas A “Estado, Desigualdade ¢ Crescimento no Brsl”, De Anminio Fraga. Novos estudos CEBRAP, Sio Paulo, v.39, .2,p. 349-369, Aug. 2020, Available from . access om 02 Epub Oct 12, 2020. https//doi.org/10.25091 /:01013300202000020006. 146 Importante ressaltar que entendemos oportuna uma reforma da tributagio sobre o consumo ¢ que modelos sugeridos pela literatura econémica apontam para boas priticas em relagio 3 estrutura de um imposto sobre valor agregado, Contudo, um bom tribute é a conjuga~ cio de uma boa estrutura técnico-tributiria com a sua carga tributéria efetiva, ou, em termos mais elaborados, um bom tributo decorre da relagio entre (j) a sua estrutura normativa, (ii) a sociedade e as respec tivas instituigSes que o adotario, (ii) a sua carga tributiria potencial € (iv) quem o pagard efetivamente, De forma ainda mais direta, nio basta copiar o tributo, tem que se atentar 4 aliquota a ser adotada e as diferencas econdmicas entre nagdes em posics mundial. Um tributo s6 é bom quando se conhece a sua carga ea dis- tribuicio de seu nus; antes disso, ele € mera promessa. Os exemplos histéricos sio abundantes e o potencial arrecadatério dos projetos de lei federais atuais sobre tributacio sobre 0 consumo sobre a renda apenas confirmam tal fato. Nesse sentido, a compreensio da tributacio brasileira, de sua reper cussio econémica e dos verdadeiros pagadores de sua carga fiscal final esti longe de ser matéria de ficil apreensio; até mesmo especialistas, costumam dominar apenas segmentos desse assunto, de acordo com a sua formagio académica e do Ambito de sua pesquisa Transplantado © modelo da cartilha econémiica de paises desen- volvidos 4 nossa sociedade extremamente desigual, o desajuste se faz ainda mais presente, o que nos leva a0 segundo ponto de nossa andlise © papel de nossa formacao universitaria. E fundamental que tenhamos, como elemento basilar, a compreensio dos efeitos que cada escolha empreendida traz para a formatagio de nossa matriz tributiria. distintas na economia 3. Enfrentando o problema de frente: o ensino juridico e a regressividade tributaria Cumpre buscarmos uma forma de melhor enderegar o debate em torno da reformulagio da matriz ibutiria em nosso pais. Para tanto, a transparéncia informacional, enquanto signo obtido a partir de uma simplificagio da matriz tributiria, nio basta. E necessério que nosso debate académico seja claro a partir das escolhas metodolégicas empreendidas. © que nos impée o dever de levar a sério © debate em torno da regressividade tributiria inserido em um contexto educacional. 147 & fundamental criar uma cultura tributéria na qual o cidadio se mostre genuinamente interessado com o destino dos recursos fiscais ¢ exerya, ativamente, seu papel no trato da coisa piiblica, superando eventuais célculos de oportunidade que venham a induzir-lhe um de- sinteresse politico em buscar se informar sobre como se dia distribuicio dos custos de manutencio de um sistema de direitos. Nesse sentido, como alertado por Marciano Seabra Gods tum dos pontos que merecesse maior atengio por parte daqueles res- ponsiveis pela formulago das politicas piiblicas, em especial no Ambito de debates da reforma tributiria, residisse justamente ma elevagio da educagio tributiria e fiscal ao patamar de politica de Estado, prioritaria ce ativa, em todas as esferas da federacio". Isso visto que, se a persecusao de um ideal de justica social passa necessariamente pela construgio de uma cidadania fiscal ampla ¢ irvestrita, tal tarefa nio se divorcia de um. plano de educacao fiscal. Nesse sentido, o processo de educacio fiscal" inserido no contexto educacional em sentido amplo, mira a formagio de um cidadio que reflita os ideais que orientam determinada comunidade politica, tendo como objetivo a superagio desse quadro de regressividades, econdmica ¢ cognitiva, auxiliando na promogio de uma maior inclusio social e efetivagio de um Estado verdadeiramente democritico" clvez © GODOT, Marciano Seabra de. Reforma tributiria 2019: sugestées de medidas ‘conctetas e comentirios 4 PEC 45/2019. In: CUNHA, Ivan Luduvice etal. (Orgs) Reforma Tributéria Brasileira, Belo Horizonte: Editora DPlicido, 2019, 9.759. SAINZ.DE BUJANDA, Fernando. Hacienda y Derecho Vol.5. Madrid: Instituto de Estudios Politicos, 1975, p. 97-101 Desde esta perspectiva, a Educacién Fiscal se puede entender como una nueva prictica que tiene como objetivo el desarrollo de valores, actitudes y habilidades destinados a estimular en lor ciudadanos un juicio exitico que orienta si relacién, con el Estado y con otros ciudadanos en materia isea en el contexto de la convi- vvencia democritica, ste mievo enfoque se inicia a parti de una mejor comprensin, de la vida en sociedad, la estructura y el funcionamiento de la Administracion ablica la funcién socio-econémica de los impuestos, el uso de los recursos pui= Dlicos, las estracegia y los medios para el eercicio del control social. La Educaci6n fiscal ¢5, por tanto, un proceso democritico fundamental, Tiene como objetivo, por una parte, desarrollar la conciencia de las personas en relaci6n a sus derechos ¥ deberes en cuanto a la fancidn social y econémica de los tributos y, por otra, pretende fomentar el control social del Estado, estimulando el ejercicio efectivo de ls ciudadania, Bajo este punto de vista, Is pasticipacién de Is sociedad en la exfera pablica, wtilizando el lenguaje de Boaventara de Sowra Santos, es concebida ‘como wa forma de democratiar la democracia” (DIAZ, B; LINDEMBERG, A. Educacién fiscal y construccién de ciudadania en América Latina, Revista de 148 © contetido educativo deve ser direcionado nio apenas 3 formagio do comportamento desejivel por parte da Administracio, em busca pelo voluntirio adimplemento da obrigagio tributiria, mas que reflita os principios gerais de cultura e ordenacio geral da vida juridica de nossa comunidade, de modo a tornar cada individuo um membro pleno" O aprimoramento do idefrio do contribuinte por meio da educa cio perpassa também o aperfeigoamento da matriz tributiria de modo que esta esteja alinhada aos objetivos que norteiam nosso compromisso constitucional” E, no caso brasileiro, a busca por tal concretizagio se da por meio de uma matriz tributaria que seja transparente ¢ progressiva, nio bastando que se atenda ou um ou outro objetivo. ‘A busca pelo fomento da mentalidade fiscal ocorre tanto por meio de um modelo de educagio fiscal voltado para superacio da defor magio perceptiva ¢ dos esterestipos existentes em torno da atividade financeira quanto também a partir da efetivagio de um ordenamento Juridico-financeiro que esteja de acordo com os objetivos fiandamentais daquela sociedade®, No Ambito universitirio, ¢ importante que a comunidade acadé— mica desempenhe um papel ativo, pluralizando ¢ ampliando 0 alcance do debate em torno do fendmeno tributirio. Como é de se esperar da produgio cientifica, esta deve estar atenta aos subsidios fornecidos por parte do Poder Public, filtrando e contextualizando os dados de maneira a potencializar 0 acesso dos demais membros da sociedade a informagdes de qualidade" ‘Administracién Tributaria, vol. 38, pp. 49-74, 2015. Disponivel em: hutp:/ ig receita frzenda,gov-br/ acesso-rapida/direitos-edeveres/educacao-fiscal/pu= blicacoes/tevista-de-administracion-tributariaciat-aea-tief-no-38-2015.pd/ view, Acesso em: 29/11/ 2020. p. 330-331), ® SAINZ.DE BUJANDA, Fernando, Hacienda y Derecho. Vol.5. Madrid: Instituto de Estudios Politicos, 1975, p. 102-105, MESTRES, Magia Pont. El problema de la resistencia fiscal. Sus casas aluz de la pricologia. Su solucion a través del derecho financier fiscal. Barcelona: Bosch. 1972. p. 251. MESTRES, Magin Pont. El problema de la resistencia fiscal, Sus causas luz de la pricologia, Su solucién a través del derecho financiero y de la Educacién, fiscal. Barcelona: Bosch, 1972. p.275. Na mesma linha, SAINZ DE BUJANDA, Fernando, Hacienda y Derecho Vol. 5. Madrid: Intituto de Estudios Politicos, 1975. p. 113. Quanto a0 ponto, bem col ails sociedad se la informe del volumen de los ingresos y de lor gastos piblicos; dela distibuci y de la Educacién Fernando Sainz de Bujanda que “busta con que samente de ciertos hechos fundamen cs, a sab por sec 149 Por tal razio, é pressuposto do processo educativo a liberdade de ctedra, para que a academia possa atuar criticamente quanto 3 ativi- dade financeira, tendo independéncia para denunciar arbitrariedades, ou mesmo colocar em perspectiva eventuais descompassos da matriz, tributaria com o ideal de justica que deveria orientale Nesse sentido, ao discorrer sobre o papel do poder ideologico como fonte de masca~ ramento da dominacio, Bobbio destacou a grande vantagem do regime democritico em relagio Js formas de governo autocriticas: apenas no primeiro, por meio de uma critica livre da pluralidade de pontos de vistas seria possivel a promogio de desocultamento™. Igualmente importante a independéncia orcamentiria das univer- sidades pablicas, tendo em vista que apenas com a autonomia financeira ¢ de gestio de tais instituicSes, ¢ possivel garantir a independéncia do ensino e da pesquisa, possibilitando a formacio de um conhecimento livre da agenda politica dos governos de ocasiio ¢ voltada a atender aos anseios da sociedade. ‘Tais perspectivas impdem-nos a reflexio. A existéncia do di utirio, financeiro ¢ econémico di subsidios para uma visio de nossa ordem econdmica, mas est’ longe de cumprir a fungio que aqui apontamos, pois nio se trata de compreender a tecnicidade jur de um tributo, as formalidades do processo orgamentirio ou saber que tributos podem induzir comportamentos. Afora eventuais grupos de pesquisas ou disciplinas optativas em uma ou outra faculdade, os cursos juridicos nio parecem propiciar uma reflexio de conscientizagio do dnus econémico da tributagio. Nao se trata de uma critica is disciplinas mencionadas, apenas de uma demanda que se faz presente ¢ parece estar nos pontos cegos desses sabres, O direito financeiro, quando aprofndado (ou seja, quando nio se trata de mera antessala do direito tributirio), enfatiza 0 processo or- dica tres, de los gustos y del tipo de servicios cuyo coste se financia o de las exacciones piblicas. Esa informacién sobre hechos fandan ir acompaiada de reflexiones criticas, de diverso mati, formuladas por personas de filicién cientifica ¢ ideolégica muy variada y que tengan, a su ver, aptitudes ppedagégicas suficientes para que sus comentarios sean intelgibles para una masa considerable de ciudadanos.” (SAINZ DE BUJANDA, Fernando. Hacienda y Derecho Vol. 5. Madrid: Instituto de Estudios Politicos, 1975. p.133- 134) ® SAINZ.DE BUJANDA, Fernando. Hacienda y Derecho Vol.5, Madrid: Instituto de Estudios Politicos, 1975. p. 135. ® BOBBIO, Norberto, 0 futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 13" ed Tiaducio: Marco Aurélio Nogueira. Sio Paulo: Paz e Terra, 2015. p. 161-162. 150 camentrio, os gastos ¢ as reccitas, além da responsabilidade fiscal. Nao cabe no escopo original dessa disciplina discutir as decisdes politicas de reparticio dos encargos tributirios. O direito econdmico, quando presente na grade curricular de uma faculdade, apesar de estudar os instrumentos de intervencio do Estado na economia, chamando a atencio & possivel inducio de com- portamentos por politicas tributarias, nao aprofunda tal tema, que the escapa em termos de especializacio, O direito tibutério, por sua vez, apresenta os institutos juridicos da relacio tributiria, dos tipos de tributos e das garantias individuais Nio se encontra no seu escopo partir da carga tributéria nominal (ge- ralmente presente nas aulas de tributacio especifica, como federal) até chegar 4 repercussio da carga efetiva presente no orcamento familiar. ‘A regressividade de nossa matriz tributiria e os consequentes impactos causados na nossa sociedade nio sio objeto de anilise de nenhuma das trés macro disciplinas. E, como reflexo de dessa falta de preocupagio, podemos apontar a propria auséncia de empatia dos formuladores de nossa politica econémica € dos defensores em nossos bancos universitérios de uma suposta doutrina anarcoliberal que, 0 justficar na adogio de um receituario supostamente Lipico das nagdes desenvolvidas a busca pelo crescimento econdmico, 0 fazem pela metade, ignorando o importante papel desempenhado pelo setor puiblico no desenvolvimento de economias avangadas. Ignora-se nao apenas a Constituisi0, naquilo que positiva uma politica econémica especifica, com objetivos claros de uma comunidade nao s6 livre, mas também justa ¢ solidéria, como também a busca na reducao do Estado, esse inimigo de todos nés, descrito de forma fan- tasiosa como a fonte de todas as corrupgSes, espaco para a entrega de setores estratégicos de nossa economia, que nos permitiriam, 20 menos, ter elementos concretos de sonho ¢ imaginacio de um pais melhor. ‘A defesa de uma pauta mais liberal é passivel de ser imaginada, até mesmo pela constatacio histérica de alternincia de poder em regimes democriticos, mas as boas priticas liberais capitalistas de forma alguma dispensam a participacio ativa do Estado no processo econdmico. A ideia de um estado minimo, eventualmente promovida em alguns setores de nosso ensino jurfdico, ¢ de pouca aderéncia fitica. Poucas nagdes desenvolvidas © por pouco tempo podem ser descritas como liberais em algum pasado, mas, ainda assim, com uma generosidade semintica enorme ao se afirmar que a atuacio estatal seria minima. 151 Sob tal angulo,a importincia do estudo do direito econémico (¢ da economia politica) entre nés reside nese contexto civilizatério, de busca de informagio, sem necessidade de homogeneizacio discursiva em torno do desenvolvimentismo,mas a0 menos descrevendo critica- mente as engrenagens de poder e regulacio econdmica Por Sbvio, esse estudo nao pressupde uma homogeneidade ideo- logica. Visdes liberais podem ser elaboradas, 20 lado ou cm oposigio a visdes, por assim dizer, mais desenvolvimentistas. O que nos preocupa é © reducionismo e a falta de preocupagio com o outro, que abandonado 4 propria sorte, como se fosse inteiramente responsivel pela posi¢io em. que se encontra, nio tem acesso sequer is ferramentas necessirias para superagio do profundo fosso da desigualdade, cuja tributagio regressiva também tem a sua quota de participacio. Compreender a importincia do Estado, enquanto promotor de direitos, e distribuigio dos custos de financiamento deste sistema pro- tetivo, assim, parece-nos fandamental para qualquer experiéncia que se pretenda democritica. Assim, voltando a0 direito tributirio, no nos espanta a auséncia sobre arepercussio econémiica no consumidor final (pessoa fisica), até mesmo se considerurmos que, ainda hoje, insistimos em afirmar como conttibuinte do tributo, em especial sobre o consumo, aquele responsivel por repassar aos coftes piblicos os encargos suportados por um terceiro, este sim responsivel por manifestar propriamente a riqueza que se busca tributar. Por muito tempo, sequer a repercussio econémica do tribute era considerada elemento proprio a ser estudado por nossas Faculdades de Direito, Relegivamos o estudo do fendmeno a outros ramos do saber, como a econdmica ou a sociologia, como se a concretizacio de nossos objetivos constitucionais, e o consequente papel que o tributo exerce em tal tarefi, nio fosse campo de atuagio do jurista Ao criticar a metodologia propria a0 direito tributirio, José Souto Maior Borges ressalta a necessidade de supera¢io, nao apenas do isola- mento causado pela autonomia didatica desse ramo do saber, aleangada apés décadas de depuracio, mas ta ria ao redor da anilise de categorias como da obrigagio tributiria, do fato gerador ou mesmo da atividade administrativa de langamento. Qualquer questionamento para além ém em razio da circunscrigio estrita da dogmitica juridico-tribut 3 BORGES, José Souto Maior. Um ensaio interdiseiplinar em direito tributiio: superayio da dogmitica Revista Dialética de Direito Tributério. Sio Paulo: 1, p. 106-121, abril/2013, p. 106 152 de tais conceitos, como a propria destinagio do tributo, esbarraria cm uma blindagem epistémica, que transportaria referidas preocupagdes para campos outros dos saberes, estranhos Aquele que se dedicaria 20 estudo do direito tributirio. Reconhecendo o esgotamento de tal forma de encarar o fenémieno, a partir de um Angulo estritamente dogmitico centrado na andlise da semintica ¢ da sintaxe, Souto Maior Borges anuncia a necessidade de darmos um préximo passo em termos de processo metodolégico, sob risco de permanecermos num eterno impasse teérico que, além de no permitir novos avangos, se mostraria insuficiente para lidar com a complexidade posta Digno de nota, portanto, avangos como o defendido por Luis Eduardo Schoueri® que nos provoca a refletir acerca da necessidade de revisitarmos os tributos incidentes sobre o consume, alinhando a estrutura juridica 4 realidade econémica que se busca alcancar com a incidéncia fiscal. Nessa linha, defende 0 professor que a necessiria reforma tributiria nio se volte 4 criagio de um imposto sobre bens ¢ servigos, mantendo o novo tributo preso 3s amarras ¢ incongruéncias da sistematica hoje existente. Mas sim que este evolua para buscar a criagao de um verdadeiro imposto sobre o consumo, em que cada etap do ciclo produtivo ¢ de circulagio de mercadorias ¢ servicos recolha © tributo sobre o respectivo valor agregado, “sempre com natureza de antecipagio do fato do consumo”, este realizado ao final da cadeia pelo ainico e verdadeiro contribuinte, de fato e de direito, o consumidor. Trata-se de concretizar na nova estrutura juridica a realidade eco- némiica que subjaz a incidéncia tributiria, afastando de plano, ¢ em linha com 0 ja exposto por autores como Misabel Derzi* e Valeir Gassen” qualquer argumento de que a preocupagio coma repercussio do tributo, 2 identificagio do real responsivel por suportar 0 dnus econdmico ¢ todas as andlises dela decorrentes — como a propria regressividade — nao seriam problemas juridicos Nio hé, em nossas notas, qualquer sugestio sobre alteragio do ensino das disciplinas de direito tributirio. Nosso ponto € desenvol- ® SCHOUERL, Luis Eduardo, Por um imposto sobre © consumo. in Valor Eeo- némico, 20/07/2021 % BALEEIRO, Aliomar, Direito Tributério Brasileiro, 12. ed. rev. atual.¢ ampl. por Misabel Abreu Machado Dezzi, Rio de Janciro: Forense, 2013. p. 1300 GASSEN,Valcir. Teibutagao na origem ¢ destino: tributos sobre o consumo ce processor de integracio econémica. 2. ed. Sio Paulo: Saraiva, 2013. p. 89 - 94 153 vimento de uma nova reflexio, justamente porque outras disciplinas (cconémico, financeito e tributirio), por uma questio de delimitagao € de objeto, nio se ocupam dela. Entendemos que os cursos universitirios (incluindo o direito) deveriam incluir nas disciplinas propedéuticas uma maté compreensio da dimensio econémica, orcamentiria e familiar do custo do buigio desse Snus, Nio se trata de puxar as disciplinas acima apontadas, de sua delimitagio original, mas de se criar a discussio universitiria simplificada, tampouco nio trivial, desse debate. A arena de disputa em torno da tributagio envolve a propria definigio de sociedade em que pretendemos viver. O embate que se coloca diz respeito nio apenas a0 espaco de liberdade pessoal de cada um, mas 3 consideragio e responsabilidade que devemos ter para com nossos concidadios como membros de um mesmo projeto de sociedade.E tal debate, como nio poderia deixar de ser, é essencial na universidade ¢ a0 jovem jurista Dentro do contexto proposto, portanto, acreditamos haver um dever diditico de compreensio das repercussées econdmicas bisicas da tributagio brasileira, inclusive em bens ¢ servigos essenciais da popu- lacio, como telecomunicagio, energia elétrica, vestimenta e moradia € até mesmo o papel da tributagio da renda, ainda que retida na fonte. Ou seja, em que medida a tributacio exerce pressio nos orgamentos familiares e como essa pressio difere conforme a respectiva posigao na pirimide social, além de saber quais tipos de renda foram privilegiados pelo legislador, a0 se decidir pelas distintas cargas e niveis de arrecada- cio sobre a propriedade rural urbana, sobre o mercado financeiro, 0 lucro, 0 trabalho ¢ o consumo. ‘Temos como necessiria a reflexio de quem suporta 0 custo do pais e se faz sentido, em uma nacio marcada pelas desigualdades sociais, € regionais, essa distribui¢io. A politica de distribuigio da incidéncia fiscal €a decisio democratica de quem suportari custo e quem o fari em menor proporcio. E decorréncia da preocupagio de nosso texto constitucional ao eleger como um de seus objetivos fandamentais a reducio das desigualdades regionais e sociais. Alinha-se com os objetivos da ordem econémica e com a politica econémica constitucionalmente ja voltada i istado ¢ do tributo sobre as distintas bases econdmicas a distri- nu & MURPHY, Liam: NAGEL, Thomas. O mito da propriedade: os impostos ¢ 2 justia Traducio de Marcelo Brandio Cipolla Sio Patlo: Martins Fontes, 2005, p56. 154

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