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Movimentos de Resistência Global : a transformação das relações entre o campo

político e midiático1

Renata de Souza Dias - Mestranda Unisinos2


Jairo Ferreira – Professor Dr. Unisinos3

Resumo : Neste artigo, exploramos a hipótese teórica de que os Movimentos de


Resistência Global se organizam a partir dos processos midiáticos, através de uma
adaptação da ação política ao discurso do campo das mídias. Discutimos essa
abordagem a partir de relações entre o campo político e o campo das mídias, incidindo
sobre o discurso. Apresentamos indicadores de uma configuração discursiva dessa
adaptação da ação política aos esquemas discursivos do campo das mídias.

Palavras-chave: mídia; política; movimentos sociais.

Considerações Inicias

A sociedade global assiste em 1999, na cidade americana de Seattle, a


emergência de uma ação coletiva muito peculiar. Alguns setores do campo midiático,
principalmente a grande imprensa, denominaram esta ação coletiva de “movimento
antiglobalização”. Nome que permanece até hoje, apesar de diversos pesquisadores da
área dos movimentos sociais (como Maria da Glória Gohn, 2003) e da sociedade em
geral (como Boaventura de Souza Santos, 2002, e David Harvey, 2003) apontarem a
insuficiência de tal definição. Insuficiência provinda especialmente da característica
desse movimento social4 de não ser contra a “globalização em si”, mas contrário ao
modelo de globalização em curso, isto é, a “globalização neoliberal” e a favor de uma
“globalização” em outros termos que responda a determinadas demandas sociais
(algumas herdeiras dos movimentos sociais do século passado – terra, salário, justiça,

1
Trabalho apresentado ao NP 12 Comunicação para a Cidadania, do IV Encontro dos Núcleos de Pesquisa da
Intercom.
2
Jornalista e mestranda em Ciências da Comunicação no PPGCC – Unisinos, onde desenvolve dissertação de
mestrado intitulada (provisoriamente) de “A mídia agencia a política: a organização dos Movimentos de Resistência
Global nos e pelos processos midiáticos” – email: renatadias14@hotmail.com.
3
Pesquisador do PPGCC – Unisinos. Professor orientador, desenvolve pesquisa sobre a pesquisa das ong´s na Web.
E-mail: ferreira@mercurio.unisinos.br.
4
Inclusive há discussões se essa ação coletiva caracteriza um movimento social ou se é um outro tipo de
manifestação política. Discussões logicamente localizadas na sociologia, que não cabe aqui debater.
2

democracia, etc. – e outras que inserem agentes sociais vinculados a temas construídos
nos últimos 30 anos – ecologia, gênero, etnia, entre outros).
Neste texto vai se chamar essa ação coletiva de Movimentos de Resistência
Global. A palavra movimento aparece no plural para apontar a diversidade de
organizações componentes da ação coletiva – que será detalhada no decorrer do texto –;
resistência para indicar as alternativas e demandas sociais que apresentam perante aos
projetos hegemônicos de “globalização”; e global refere-se ao caráter transnacional
desse movimento social. Consideramos que o movimento é composto de agentes sociais
coletivos articulados ou não em instituições, como organizações não governamentais
(ong´s), sindicatos, associações etc..
Os Movimentos de Resistência Global apresentam-se como uma forma diferente
de mobilização, ao unir, sem apagar as diferenças, “num campo de ação comum, grupos
políticos e tribos culturais que até então nem sequer se sentavam juntos para dialogar”
(Gohn, 2002, p. 15). A composição social desses Movimentos abarca associações, redes
de luta e solidariedade, entidades de espectros variados, como ong’s, movimentos
rurais, entidades de defesa dos direitos humanos, estudantes, anarquistas, centrais
sindicais, ambientalistas, homossexuais, entre outros. Por juntar organizações de
diferentes naturezas, com formas de protesto e objetivos variados, os Movimentos, de
acordo com Maria da Glória Gohn (2003, p. 33), são “completamente diferentes de
outros movimentos sociais que conhecemos até o século XX”, diferente também das
ações de grupos revolucionários, terroristas ou fundamentalistas. A gramática dos
Movimentos, para a pesquisadora (p.48), une as razões da luta de movimentos e grupos
característicos dos anos 80, isto é, referentes ao “reconhecimento da identidade
sociocultural de seus participantes (ser negro, mulher, índio, ambientalista, homossexual
etc.)” à causas mais objetivas, referentes à estrutura política econômica. É por estas
características que a autora afirma que os Movimentos de Resistência Global
apresentam-se hoje “como uma das principais novidades na arena política e no cenário
da sociedade civil, dado sua forma de articulação/atuação em redes com extensão
global” (p. 34).
Nossa formulação parte do conceito de campos das mídias para pensarmos a
constituição dos Movimentos, ao mesmo tempo em que formula a tese de que a sua
constituição é também midiática e não só política. Isto é, observamos que a organização
dos Movimentos acontece com grande intensidade nos e dentro dos processos
midiáticos o que aponta ser também um fenômeno do campo midiático. Um objeto de
3

estudo ainda pouco pesquisado no campo acadêmico da comunicação. Observando os


trabalhos publicados na Compós (de 2000 a 2003) e na Intercom (de 1999 a 2002)
encontra-se um artigo, na Intercom de 2000, que aborda especificamente os
Movimentos. Há, deve-se afirmar, menções aos Movimentos em outros artigos, mas
este movimento social não é seu objeto de estudo. O artigo de Eduardo Cavalcanti
(2000), Contestação online: comunicação e organização política na internet, estuda
através de alguns sites de agentes componentes dos Movimentos como ocorre a
organização pela internet. A perspectiva adotada por Cavalcanti é analisar o fenômeno
da organização dos Movimentos de Resistência Global – ressalta-se que o autor não
utiliza esta denominação – como “específico das novas tecnologias” (p. 2). Em um
momento do texto afirma “Foi um fenômeno de comunicação puramente tecnológico”
(p. 5). O viés tecnológico não parece ser neste momento o mais interessante para se
estudar as relações entre os Movimentos e a mídia, principalmente ao se notar que os
processos envolvidos nessa relação ultrapassam a questão tecnológica. O campo
midiático vai estar constituindo os Movimentos de Resistência Global não só pela
utilização de aparatos tecnológicos, mas principalmente pela participação da gramática
midiática na elaboração das estratégias políticas dos Movimentos. Acreditamos por isso
que os Movimentos estariam localizados numa zona de intersecção do campo político
com o campo midiático. Zona onde as gramáticas dos dois campos estariam confluindo
através da ação política dos Movimentos elaborada utilizando-se de lógicas e processos
do campo midiático. O presente texto tem por objetivo discutir um pouco como se dá o
pertencimento dos Movimentos de Resistência Global em dois campos, numa zona de
intersecção portanto entre o campo da política e o campo das mídias. Nosso ponto de
partida, são os textos e materiais que coletamos na Internet5 relacionado ao encontro do
G-8 em Evian, França, em 2003. Portanto, o ponto articulador de nossa análise é o
discurso em dispositivos midiáticos.

5
Os materiais aqui discutidos fazem parte de pesquisa exploratória realizada em 2003, a partir da Reunião do G-8 em
Evian e conta com dez sites (A Las Barricadas, El Attacante, La Haine, Indymedia Barcelona, Indymedia Buenos
Aires, Ação Global dos Povos (AGP), Ação pela Tributação das Transações Financeiras em Apoio aos Cidadãos
(Attac), Conferderación General del Trabajo (CGT), G8 illegal, Jubileu Sul).
4

1. Campo das mídias e campo político : algumas questões teóricas

O conceito de campo social trabalhado neste texto é recortado das


problematizações elaboradas por Adriano Duarte Rodrigues. Campo social6 , de acordo
com Rodrigues (2000, p. 193-194), é formado por instituições, reconhecidas e
respeitadas publicamente pelos setores societários, possuidora de uma legitimidade tal
que a autoriza “criar, impor, manter, sancionar e restabelecer uma hierarquia de valores,
assim como um conjunto de regras adequadas ao respeito desses valores, num
determinado domínio específico da experiência”.
Cada campo dita então sua maneira de falar e de agir aos seus membros. Por isso,
se consegue identificar, sem fazer muito esforço, que a forma de se portar de um
membro do campo político é diferente da exercida por um membro do campo
econômico ou do campo religioso. São os atos de linguagem, os discursos e as práticas
de cada campo social que marcam sua especificidade e também a dos seus integrantes.
Os manifestantes dos Movimentos de Resistência Global têm ações, modos de falar e se
portar que os identificam como ativistas políticos e não líderes religiosos ou advogados.
É interessante perceber que dentro dos Movimentos encontram-se pessoas que
participam de outros campos, como os estudantes, mas que, ao estarem participando
dum ato político dos Movimentos, estarão sendo membros do campo político com uma
intensidade muito maior do que membros do campo educacional, principalmente porque
estarão utilizando os modos de se comportar ditados pelo campo político7 .
Nas manifestações de rua, por exemplo, a presença de policiais é constante e há
diversos casos de policiais que se infiltram no meio dos manifestantes numa tentativa de
descobrir os líderes, pois os Movimentos apresentam-se sem uma estrutura hierárquica.
É interessante perceber que os policiais, apesar de se ‘transvestirem’ de manifestantes,
não conseguem atuar como ativistas, não possuem os códigos, os modos de agir do
campo. O relato de José Chrispiniano (2002, p. 139), em seu livro reportagem sobre as
manifestações na cidade tcheca de Praga em setembro de 2000, aponta como era fácil
perceber os policias infiltrados.

6
Importante dizer que Rodrigues (2000, p. 191) entende campo social num sentido energético e não espacial, como
um campo de forças onde há uma tensão permanente que se manifesta e se gera nas fronteiras entre os diferentes
campos sociais.
7
Aqui também se nota a interseção entre os dois campos, já que durante os protestos há diversos ativistas que são
produtores de algum tipo de mídia e que portanto possuem ‘um pé em cada campo’. Mas mesmo localizados em dois
campos, os integrantes dos Movimentos possuem características que os distinguem dos membros de outros campos,
como o religioso, o militar, etc.
5

Ficavam nos cantos da assembléia. Andavam em duplas e trios com uma cara tensa
e culpada que nenhum manifestante jamais teria. Conversavam cochichando e não
prestavam atenção no que estava sendo discutido e, sim, em um ou outro ativista.
Suas roupas de ‘protesto’ eram de um estereótipo de punk de novela. Jeans
rasgado, boné, blusa Adidas. Às vezes, tinham o cabelo descolorido ou pintado.

Este relato aponta que só a vestimenta não basta para caracterizar um indivíduo
como manifestante, mas a maneira de se portar e agir é fundamental para designar o
membro dos Movimentos de Resistência Global. Por isso, os policiais não conseguem
se inserir dentro do campo político, pertencem a outro campo que possui discursos,
práticas e modos de se comportar diferentes.
Na perspectiva de Rodrigues (2000, p. 202), o campo das mídias é a instituição
responsável por “criar, impor, manter, sancionar e restabelecer a hierarquia de valores”
e o conjunto de regras envolvidos no exercício da mediação social entre os diferentes
campos sociais. As funções de mediação, então, constituem a razão de ser do próprio
campo das mídias. Por esta característica, o campo midiático não possui um domínio de
experiência específico, já que é formado por parte das funções expressivas ou
discursivas dos outros campos sociais, principalmente àquelas que se referem à
inscrição no espaço público. A visibilidade social em ampla escala é difícil hoje de ser
alcançada sem passar pelos espaços midiáticos. A atuação das mídias no tecido social
envolve a publicização de informações, a tematização de agendas, a construção de
cenários, enfim, ações que garantem a existência pública de um
acontecimento/nome/instituição.
O campo das mídias detém então as modalidades de acesso, presença, circulação
e permanência das diversas entidades na dimensão pública, o que conduz a realidade
hoje ser confundida cada vez mais com aquilo que é midiatizado. É interessante
ressaltar aqui que o campo midiático trabalhado neste texto não é compreendido como
algo homogêneo, mas, pelo contrário, recheado de divisões internas caracterizadas por
modos de produzir diferenciados que compõem diversos setores presentes no campo das
mídias. Pode-se dizer que neste campo se encontram a grande imprensa, os setores do
entretenimento, mídias ligadas e/ou pertencentes aos movimentos sociais e ong’s, entre
outros setores de mídias. Perceber as dissimetrias do campo midiático pode ajudar na
tentativa nem de endeusar as intervenções na mídia no tecido social como também nem
endiabrar tais intervenções. É importante deixar claro que a problematização de Adriano
Duarte Rodrigues sobre o campo midiático não aborda diferenças presentes no interior
6

do campo. A preocupação de Rodrigues centra-se principalmente na relação entre


campos. Não se cobra aqui que Rodrigues deveria ter abordado tais dissimetrias, já que
não era esta sua proposta, apenas se afirma os limites da teoria para os objetivos aqui
pretendidos.

1.1 Atravessamentos do campo político

O campo político é lugar de especialistas, como diz Bourdieu, que requisita um


monopólio da fala, decorrente de uma competência que supõe uma formação especial, e
de uma preparação de seus integrantes para participarem da concorrência pelo poder.
Mesmo não se constituindo em partidos políticos, os Movimentos de Resistência Global
disputam o espaço público no âmbito deste campo, e, por isso mesmo, nele se inserem
como interlocutores que disputam os leigos, legitimam as autoridades, creditam ou
debitam popularidade a todos aqueles que compartilham sua temática, possuindo seus
próprios capitais políticos (militantes, sedes, siglas, programas, congressos,
funcionários, etc.). A dimensão política de seus discursos, portanto, expressa sua
condição de pertencimento na constituição do campo político (inúmeros políticos tem
parcela de sua legitimidade autorizada por movimentos como esse). Por outro lado, a
política contemporânea é produzida numa sociedade altamente midiatizada que altera o
fazer político e transforma as dimensões clássicas do espaço público (praça, plataforma,
rua). O que se pretende dizer é que as dimensão clássicas para continuarem participando
do cenário político atual precisam receber a forma-mídia, precisam negociar visibilidade
com as mídias. As mobilizações de rua não se realizam em plenitude hoje se ficarem
restritas à rua, o vazamento das fronteiras da rua para os meios de comunicação é
fundamental para compor o significado das ações políticas.

Buscar e produzir ‘efeitos de mídia’ nos acontecimentos de rua, praça, parlamento,


etc., aparecem como dispositivos fundantes da produção de sentidos políticos na
atualidade. Um ato vale politicamente não só – ou mesmo primordialmente – pelo
efeito induzido nas suas circunstâncias convivenciadas, mas (também) pelas
repercussões que produz a distância na realidade-mundo, através da mediação
operada pela comunicação midiática (Rubim, 2001, p. 127-128).

O atravessamento de processos midiáticos no campo político não se dá de forma


tão tranqüila. É interessante perceber a existência de uma crítica, como aponta Rubim
(1994, p. 75), por parte de alguns estudiosos da comunicação ao afirmar que as mídias
7

operam um enfraquecimento ou até um aniquilamento da política. Rubim (p. 76) ainda


mostra que há analistas da política que esquecem ou tratam a mídia como acessório do
jogo político (o que significa dizer que o campo das mídias estaria a serviço de outros
campos sociais).

2. Algumas observações do trabalho experimental: a transformação do sentido da


ação política como forma de acesso ao campo midiático

Nos termos das relações entre campos sociais e discursos, ancoramos nossas
observações nos conceitos e formulações de Rodrigues (1990), para quem campo social
tem como característica principal a visibilidade que pode transparecer através de formas
manifestas, como insígnias – máscaras, tatuagens, fardas, emblemas, etc.8 – e/ou formas
implícitas, como modalizações de discursos, de gestos e de comportamentos
(Rodrigues, 1990, p. 145-146). Identificar essas formas em textos (em suas várias
modalidades de registros), é localizar, no discurso, lugares sociais de pertencimento dos
agentes que participam do processo enunciativo, seja como agente de enunciação,
enunciadores ou do enunciado. Num primeiro momento, não estamos diferenciando
esses agentes, mas exercitando a análise das diferentes marcas que nos permitam
identificar campos sociais de pertencimento de um processo enunciativo.
É difícil apresentar uma marca de visibilidade que caracterize todos os agentes
sociais que formam os Movimentos de Resistência Global. A composição social muito
diversificada garante características, modos de agir e se comportar, objetivos específicos
diferentes para cada organização componente dos Movimentos – em alguns casos, até
contraditórios. Pode-se, sem dúvida, dizer que as manifestações de rua durante os
encontros da Organização Mundial do Comércio (OMC), do Fundo Monetário
Internacional (FMI), enfim de entidades ligadas à globalização hegemônica – por
defender seus princípios e/ou seguir suas orientações –, configuram-se como a principal
marca de visibilidade dos Movimentos.
Nesse sentido, estamos adotando, como procedimentos operacionais, processos
de diferenciação e agrupamento das marcas, conforme nossa formulação, em três
momentos: primeiro, quais são as marcas de um vínculo do processo enunciativo ao
campo político; segundo, quais são as marcas de vínculo ao campo das mídias; terceiro,
marcas de intersecção. Nesse artigo, apresentamos indicadores de uma configuração

8
O Exército Zapatista de Libertação Nacional, movimento social mexicano, por exemplo, tem como uma de suas
marcas a passamontanha, isto é, os membros do movimento só se apresentam com uma máscara que cobre o rosto e
apenas mostra os olhos, a boca e o nariz.
8

discursivas de adaptação da produção de sentido da ação política aos esquemas


discursivas do campo das mídias, isto é exploramos as marcas da intersecção9 . Trata-se,
portanto, de algumas evidências preliminares de nosso trabalho experimental.
Ao acompanhar alguns sites das organizações componentes dos Movimentos de
Resistência Global em momentos de atuação da ação coletiva – seja de preparação
quanto de execução e desdobramento do protesto de rua – percebe-se a divulgação de
informações que se referem aos bastidores dos Movimentos, isto é, informações, notas,
notícias que visibilizam a distribuição de tarefas, atas de reuniões, ações espetaculares a
serem desenvolvidas, imagens de mapas das cidades dos encontros com a localização
das áreas permitidas para os ativistas, entre outras. São marcas da mídia agenciando o
campo político, funcionando como organizadora coletiva. Aqui está o principal ponto
desta zona de intersecção entre os campos político e midiático: a interação dos agentes
componentes dos Movimentos e a organização das ações políticas são realizadas
enquanto processos midiáticos, e para tanto obedecem as gramáticas do campo
midiático e também do campo político. Identificamos aqui observáveis que indicam a
fecundidade de nossa hipótese de que a mídia não é um recurso utilizado pelos
Movimentos, mas é constituinte dos processos formadores, discursivos e de ação dos
Movimentos de Resistência Global.
O corpo social dos Movimentos é formado por entidades de diferentes linhagens
e de diversos países que ao perceberem a realização de algum encontro de entidades
ligadas à globalização neoliberal – como FMI, OMC, G-8, Banco Mundial – iniciam o
processo de preparação das atividades de protesto durante esses encontros – atividades
como manifestações de rua, fóruns paralelos de discussões, acampamentos, oficinas,
etc.. Para preparar o cenário de protesto é necessário antes interagir as organizações
componentes dos Movimentos10 em torno das atividades a serem
desenvolvidas/organizadas e principalmente da causa em questão. A interação ocorre
com grande intensidade pela mídia digital e sem essa mídia seria muito difícil agrupar
entidades tão diversas – tanto em relação a sua natureza quanto em relação a sua origem
– para a formação de uma ação coletiva de caráter transnacional, mas localizada num

9
Começar pelas marcas da intersecção é valorizar o indiferenciado nas relações entre o campo das mídias e o campo
político. Mas esse início tem um valor metodológico. É a partir dele que pretendemos diferenciar, distanciar as
marcas específicas, e reconstruir as intersecções num patamar superior. O plano metodológico, neste sentido, retoma
o sentido da história das relações entre campo das mídias e campo político.
10
É importante ressaltar que o corpo social dos Movimentos possui um caráter fluído, sua composição não é estática.
Logicamente, há entidades que sempre participam de seu corpo, mas também há organizações que toma parte no
corpo em protestos específicos.
9

lugar específico. A mídia digital é importante para a interação dos agentes componentes
dos Movimentos pois permite visibilizar grande quantidade de informações em espaço
de tempo rápido e também porque é possível criar um fluxo intenso de informações
entre as mídias de maneira rápida, de fácil manuseio e sem muitos custos.
O que vai caracterizar essa zona de intersecção que localiza os Movimentos de
Resistência Global como adaptados ao campo midiático é a utilização da lógica
midiática do espetáculo nas ações de manifestação de rua 11 e principalmente pela
organização política dos Movimentos se realizar em grande intensidade nos espaços
digitais.
Pode-se considerar as ações espetaculares como estratégias de midiatização dos
Movimentos ao perceber que estas ações são pensadas também para atrair o olhar de
certos setores midiáticos. O seguinte trecho 12 serve para perceber a preocupação em
realizar atividades também para atrair as mídias, foi retirado do site El Attacante, da
matéria Contra el G8 prederemos fuego al lago Leman, do dia 24 de abril de 2003:

Por nuestra parte nos dirigimos a todos vosotros y vosotras para proponernos una
idea que podria ser realizada de forma unitaria y popular y generar un gran impacto
mediático y simbólico. El sábado 31 de mayo 2003 a comienzos de la noche,
podriamos, en todos los lugares posibles encender, a la misma hora, fuegos de
resistencia y de esperanza contra el orden mundial que representa el G8.

Alguns trechos de uma entrevista de Luca Casarini (2001b, p.12-13), membro e


porta-voz dos Tute Bianche – grupo italiano componente dos Movimentos –, reafirmam
a preocupação dos agentes com o relacionamento, a negociação com as mídias.

“Nossas manifestações acabam nas tevês do mundo inteiro: é como se fossem


milhões de cartões postais chegando às casas das pessoas.”
“Temos alguns especialistas em comunicação. Sabemos o que precisamos fazer
para que falem de nós.”
“Usamos as linguagens vencedoras, aquelas que chegam até as pessoas. Não é por
acaso que Hollywood vence. Esta é a sociedade da comunicação. Não podemos
ignorar os códigos”.

Em outro texto, Casarini (2001a, p. 43) diz que na sociedade da comunicação o


uso da linguagem é ação política e cita o temo utilizado por Naomi Kelin para definir

11
Não se afirma aqui que está forma de ação é inaugurada pelos Movimentos, mas que ela caracteriza essa zona de
intersecção.
10

esta situação, ‘guerrilha comunicacional’. Os Movimentos de Resistência Global


portanto negociam o espaço midiático da grande imprensa com a produção de cenas
performáticas, cênicas, que utilizam a lógica midiática do espetáculo por perceberem
que estas cenas servem como senhas de acesso ao seleto espaço da grande imprensa. A
gramática, os protocolos, a simbólica do campo midiático passam a organizar a maneira
de agir dos manifestantes no ritual dos protestos de rua. As ações espetaculares
facilmente se transformam em imagens jornalísticas nas páginas dos jornais ou nas
matérias dos telejornais.
Utilizam ações espetaculares como instâncias de midiatização – estratégias de
acesso ao espaço midiático da grande imprensa. Nas manifestações durante a reunião do
G-8, em junho de 2003 na cidade francesa de Evian, por exemplo, os ativistas
confeccionaram as cabeças dos líderes do G-8 e desfilaram com elas pelas ruas. Esta
ação trafegou pelas páginas tanto dos sites ligados aos Movimentos quanto dos jornais
brasileiros. A primeira imagem esteve presente na edição online do O Globo, do dia 03
de junho de 2003, na seção Foto Galeria. A segunda foto foi retirado do Indymedia da
Argentina (www.argentina.indymedia.org) do dia 28 de maio de 2003. As imagens
mostram esta ação espetacular dos manifestantes, se ‘fantasiarem’ de maneira
caricatural com os rostos dos líderes do G-8, presente na cobertura de duas mídias
diferentes.

A lógica midiática do espetáculo orienta uma ação política contra-hegemônica.


Este é mais um ponto a caracterizar a adaptação do campo político ao campo midiático.
O comentário de José Chrispiniano (2002, p. 93) sobre as manifestações em Praga dá a
dimensão do que sejam as diversas ações dos ativistas a compor o cenário de protesto
nas ruas. “Aquilo era uma rave, uma performance artística, um piquenique, um encontro
socialista e também uma manifestação política. E uma imensa loja de brinquedos para

12
Retirado de um momento de articulação dos agentes componentes dos Movimentos em organizar as ações durante
11

jornalistas em dúvida sobre o tipo curioso que escolheriam para entrevistar ou


fotografar”13 .
Os protestos de rua são repletos de cenas performáticas, cênicas, teatrais
compondo um cenário de protesto que envolvem fantasiar o corpo, música, dança para
manifestar o descontentamento com um sistema político e econômico considerado
desumano. As seguintes fotos vem para ilustrar as ações espetaculares elaboradas pelos
manifestantes como forma de negociar espaço em setores midiáticos. A primeira
imagem foi retirado da versão online do jornal O Globo do dia 3 de junho de 2003. A
segunda foto é retirado da versão online d’O Estado de S.Paulo, do dia 25 de maio de
2003.

Consideramos portanto a maneira de se vestir e se portar dos ativistas dos


Movimentos de Resistência Global como constituintes de uma discursividade da ação
política que alia cenarização, teatralização e performance midiática com um projeto
político. Estas ações elaboradas sob a lógica midiática do espetáculo permitem o acesso
às mídias hegemônicas, detentoras das parcelas dominantes dos mercados de consumo.
Note-se, entretanto, que essa intersecção já ocorreu na história das mídias, do
período que vai das revoluções burguesas às experiências socialistas. Por exemplo,
Lênin sugere a organização do partido através de um jornal (o Iskra). Na abordagem
gramsciana, o jornal é intelectual coletivo. Marx tem a sua militância em vários jornais

a reunião do G-8 em junho de 2003.


13
Alguns pesquisadores criticam a postura deste setor midiático em visibilizar somente esse lado dos Movimentos, a
tendência aqui é sempre considerar a mídia como grande vilã dos movimentos sociais, numa postura sempre de
generalização. Maria da Glória Gohn (2002, p. 14; 2003, p. 36), por exemplo, afirma que o exótico, as ações
espetaculares recebem mais destaque na mídia do que os debates e os encontros paralelos realizados também pelos
Movimentos. A postura adotada aqui é pensar que estas ações possuem objetivos específicos – como o acesso a um
espaço midiático não habitual aos movimentos sociais – e seguem a lógica midiática do espetáculo como forma de
negociação de espaços midiáticos, já que a performance pode obter nos espaços da grande imprensa maior
visibilidade do que as discussões e os debates. A teatralização, a cenarização e a performance são entendidas neste
texto como instâncias de midiatização e estratégias discursivas dos Movimentos de Resistência Global.
12

vinculados a processos revolucionários de sua época. Porém, essa interseção ocorria sob
uma concepção que colocava o jornal “a serviço” da política, ou seja, que pensa o
campo das mídias a serviço do campo político. A autonomização das mídias rompeu
com essa possibilidade, gerou processos específicos em termos discursivos, colocando
anteparos em termos de linguagem, e criando-se como critério de acesso ao espaço
público. Hoje, portanto, talvez inverta-se a relação, com o campo político “dobrando-se
ao discurso das mídias” para se constituir como força com acesso ao espaço público.

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