Você está na página 1de 20

O CONCÍLIO DE JERUSALÉM SOB A ÓTICA DA LEI DE CRISTO.

AGUIAR FILHO, Paulo R. Bacharelando em Teologia Interconfessional no Centro


Universitário Internacional Uninter

LIMA, Adriano Sousa. Professor orientador no Centro Universitário Internacional Uninter

RESUMO

Este trabalho aborda o concílio de Jerusalém, suas decisões e justificativas sob a ótica
da lei de Cristo. O propósito é responder se as decisões apostólicas foram uma defesa
da observância da lei mosaica ou um avanço à lei de Cristo. Essa questão se faz
necessária devido a difícil interpretação do capítulo 15 de Atos e possível limitação da
ação missional no caso do não entendimento da motivação dos conselhos dados pelos
apóstolos, principalmente pelo apóstolo Tiago. Para isso, a pesquisa usou uma
abordagem qualitativa com procedimento bibliográfico. O estudo busca esclarecer,
principalmente, que o argumento de Tiago não se tratava de uma defesa ao retrocesso
à lei mosaica, mas ao avanço à prática da lei de Cristo, que pode ser sintetizada como
a lei do Amor, tendo como fim a comunhão pacífica entre judeus e gentios na igreja de
Antioquia, bem como o avanço missional multicultural.

Palavras-chave: Atos dos Apóstolos; circuncisão; judaizantes; concílio; lei de Cristo

1. Introdução

O objetivo central deste artigo é, tendo como panorama o desafio


étnico/doutrinário da igreja do primeiro século que motivou a realização do concílio de
Jerusalém, responder se as decisões dos apóstolos foram uma defesa a um retrocesso à lei
mosaica ou um avanço à obediência da lei de Cristo.
Será que quando Tiago instruiu a abstenção de contaminações dos ídolos, relações
sexuais ilícitas, carne de animais sufocados e sangue, o apóstolo estava defendendo o
2

retrocesso à lei mosaica? O que ele quis dizer quando, para defender tais abstenções, usou
o argumento de que Moisés era lido todos os sábados nas sinagogas?
O artigo propõe uma interpretação de Atos, capítulo 15, principalmente do versículo
21, segundo a lei de Cristo conceituando-a e contextualizando-a com outras passagens
bíblicas e convida o leitor ao exercício prático da lei de Cristo em nossos diversos contextos
socioculturais.
Em relação à relevância desta pesquisa, podemos destacar que o perigo de uma
interpretação equivocada pode levar cristãos ao retrocesso da observância da lei mosaica
ou ainda à inobservância da lei de Cristo, ou da prática do amor que visa a unidade da igreja
e à evangelização multicultural.
Este estudo faz uma abordagem qualitativa usando o procedimento bibliográfico
para uma reflexão do Concílio de Jerusalém, narrado em Atos dos Apóstolos (At 15,1.31)
incluso no Novo Testamento, na Bíblia Sagrada, utilizando articulações com outros textos
bíblicos para fundamentação, buscando uma leitura que encoraje a superação de barreiras
étnicas, fortalecendo a unidade da igreja e a obra missional sendo estes, a lei de Cristo em
prática.
Inicialmente é apresentada uma breve introdução ao livro de Atos dos Apóstolos
seguida pelo conflito étnico na igreja do primeiro século e o efeito do cristianismo na
cultura. Na sequência, compreende-se mais especificamente o contexto do concílio de
Jerusalém, seus causadores, os fariseus, e as considerações dos apóstolos. Por fim,
avaliamos se os conselhos dos apóstolos, principalmente os de Tiago, seriam um
retrocesso à lei mosaica ou tratava-se da prática da lei de Cristo. Passamos ainda pelo
conceito bíblico de “lei”, alguns perigos da má interpretação deste conceito, o propósito e
validade da lei mosaica e a explicação e aplicação prática da lei de Cristo não apenas no
contexto de Atos 15, mas também em nossos dias atuais.

2. Metodologia

A pesquisa teve uma abordagem qualitativa e o procedimento bibliográfico.


Os instrumentos usados foram principalmente diferentes versões da Bíblia Sagrada,
livros, artigos, comentários bíblicos, teologias sistemáticas, manuais e dicionários bíblicos.
3

Além dos materiais impressos, houve pesquisas em sites, banco de dados de


Universidades, periódicos científicos, dissertações e teses.
Os principais parâmetros para a seleção das obras utilizadas na pesquisa foram as
palavras-chave: Atos 15, concílio de Jerusalém e Lei de Cristo. Foram priorizados os autores
e artigos mais citados, sem restrições de datas de publicação. As principais bases de dados
utilizadas foram: Google acadêmico e Scielo.

3. O Concílio de Jerusalém Sob a Ótica da Lei de Cristo

3.1. Uma Breve Introdução ao Livro de Atos

Ampla maioria dos estudiosos concordam que Lucas é autor de Atos e que esta seria
uma obra com dois volumes. Sendo “O Evangelho segundo Lucas”, o terceiro dos quatro
evangelhos, o primeiro volume da obra, e o segundo volume: o livro de atos.

Declarações no sentido de que Lucas era o autor tanto do terceiro Evangelho


como de Atos podem ser encontradas desde a segunda metade do século II;
dessa época em diante, a tradição tem sido unânime em confirmar esta
assertiva. Na verdade, não existe nenhuma prova de que esse Evangelho
tenha sido atribuído, em qualquer momento, a outro autor que não fosse
Lucas. (COX,1991, p. 349).

Quanto ao conteúdo dos dois volumes, é possível perceber a principal diferença


através das palavras iniciais de Atos:

Escrevi o primeiro livro, ó Teófilo, relatando todas as coisas que Jesus


começou a fazer e a ensinar até ao dia em que, depois de haver dado
mandamentos por intermédio do Espírito Santo aos apóstolos que escolhera,
foi elevado às alturas. (BÍBLIA SAGRADA, At 1,1.2).

Enquanto no primeiro volume há uma dedicação de Lucas para relatar os feitos e


ensinos de Jesus, neste segundo volume, chamado Livro de Atos, Lucas dedicou-se a
relatar aquilo que os apóstolos fizeram, por intermédio do Espírito Santo.
Lucas inicia o Livro de Atos com uma breve explanação da crucificação, ressurreição
e ascensão de Jesus que se apresenta como uma introdução para o assunto seguinte – o
pentecoste, a descida do Espírito Santo sobre os discípulos em Jerusalém.
4

A partir do segundo capítulo de Atos, o autor dedica-se a narração da história do


início da Igreja, bem como sua expansão numérica e territorial. Tal expansão, que faz parte
do cumprimento do plano redentivo de Deus para a humanidade, rompeu os limites da
velha aliança, onde o povo hebreu usufruía de singular relacionamento com Deus, e passou
a alcançar diferentes povos, tribos, línguas e nações, diversas culturas.

3.2. O Conflito Étnico na Igreja do Primeiro Século

O rompimento das fronteiras geográficas foi, desde o início do cristianismo,


marcado pelos conflitos étnicos.
As religiões estão muito frequentemente misturadas às culturas locais, à identidade
de um povo, e quando o evangelho é pregado, o conflito torna-se praticamente inevitável.
O concílio de Jerusalém, objeto de estudo deste artigo, é fruto de um conflito não
meramente doutrinário, mas cultural.

3.2.1 Antioquia da Siria

Existem duas cidades no Novo Testamento com o nome de Antioquia: Antioquia da


Pisídia e Antioquia da Síria.
Antioquia da Pisídia, localizada na região mediterrânea da Turquia, próxima a atual
cidade de Yalvaç, foi a cidade evangelizada por Paulo em sua primeira viagem missionária,
relatada em Atos 13 e 14. Foi, posteriormente, um dos alvos da carta de Paulo aos Gálatas.
Antioquia da Síria (a qual citarei apenas como Antioquia a partir deste momento), é
atualmente chamada Antaquia, localizada ao sudeste da Turquia. Possui profunda
importância na história do cristianismo do primeiro século. Foi nesta cidade onde ocorreu
a discussão que causou o concílio de Jerusalém.
Desde quando o cristianismo chegou à Antioquia, ficou claro o desafio étnico da
igreja do primeiro século, pois os judeus que haviam se convertido não pregavam o
evangelho aos gentios (povos não judeus).

Deus tem estabelecido com a humanidade vários pactos. Aquele que foi
estabelecido com a nação de Israel, na península do Sinai, distinguiu essa
5

nação de todas as outras nações. E todas as demais nações passaram a ser


os gentios. (CHAMPLIN, 2018, p.671)

Essa resistência só foi quebrada através de cristãos do norte da África (Chipre e


Cirene) que pregaram o evangelho para os gentios e, por sua obediência à ordenança de
Cristo, puderam testemunhar a mão do Senhor sobre suas vidas promovendo a conversão
de muitas pessoas ao cristianismo.

Então, os que foram dispersos por causa da tribulação que sobreveio a


Estêvão se espalharam até à Fenícia, Chipre e Antioquia, não anunciando a
ninguém a palavra, senão somente aos judeus. Alguns deles, porém, que
eram de Chipre e de Cirene e que foram até Antioquia, falavam também aos
gregos, anunciando-lhes o evangelho do Senhor Jesus. A mão do Senhor
estava com eles, e muitos, crendo, se converteram ao Senhor. (BÍBLIA
SAGRADA, At 11,19.21)

Temos então, inaugurada na nova aliança, uma experiência que seria inimaginável
até então: judeus e gentios, convivendo entre si e ambos usufruindo igualmente do mesmo
nível de relacionamento com Deus.
Essa experiência não se tratava apenas da conversão do judaísmo ou do paganismo
(amplamente praticado pelos gentios) ao cristianismo, mas ambos, judeus e gentios, povos
que antes eram proibidos de se associarem segundo instruções da lei, agora tornando-se
um só corpo, igreja, família da fé.
Estes dois povos agora teriam algo poderoso em comum: sua fé em Jesus Cristo
como o Messias, e a crença em sua morte e ressurreição como sacrifício vicário. Mas,
apesar de algo tão importante em comum, judeus e gentios, agora cristãos, teriam que
trabalhar para a promoção da unidade tendo que discernir quais fatores culturais
ofenderiam ou não o evangelho de Jesus Cristo.

3.2.2. O Efeito do Cristianismo na Cultura

Podemos considerar que o concílio de Jerusalém propôs a renúncia de práticas


culturais tanto judaicas quanto gentílicas tendo como propósito um ambiente de amor e
unidade na igreja de Antioquia.
6

Considerando que o conceito de cultura envolva crenças, ideias e valores, é


coerente afirmar que a conversão ao cristianismo gera transformação cultural pois o
cristianismo passa pela submissão de ideias, valores e crenças ao senhorio de Jesus Cristo.

A cultura é constituída pelo conjunto dos saberes, fazeres, regras, normas,


proibições, estratégias, crenças, ideias, valores, mitos, que se transmite de
geração em geração, se reproduz em cada indivíduo, controla a existência da
sociedade e mantém a complexidade psicológica e social. Não há sociedade
humana, arcaica ou moderna, desprovida de cultura, mas cada cultura é
singular. Assim, sempre existe a cultura nas culturas, mas a cultura existe
apenas por meio das culturas. (MORIN, 2002, p.56)

A pregação do Evangelho tem como um dos seus fundamentos a doutrina do


arrependimento de obras mortas, que alcança o ser humano em sua plenitude. Paulo em
sua primeira carta aos Tessalonicenses (5,23) diz: “O mesmo Deus da paz vos santifique em
tudo; e o vosso espírito, alma e corpo sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na
vinda de nossos Senhor Jesus Cristo”.
É a santificação do espírito, alma e corpo que alcança também todos os níveis de
relacionamento humano. O cristianismo transforma motivações, crenças, ideias,
comportamentos e, inevitavelmente, aspectos culturais.
Essa transformação cultural já era algo relevante em Antioquia, tanto que Lucas
afirma em Atos (11,26): “Tendo-o encontrado, levou-o para Antioquia. E, por todo um ano,
se reuniram naquela igreja e ensinaram numerosa multidão. Em Antioquia, foram os
discípulos, pela primeira vez, chamados cristãos”.
Até então, os que decidiam seguir a Cristo eram chamados de discípulos, santos,
irmãos, fieis, dentre outros títulos; mas agora, pela primeira vez, estavam sendo chamados
cristãos, ou seja, imitadores de Cristo. Existem duas informações importantes do texto que
podem nos ajudar a compreender o motivo.
A primeira delas é que o título “cristãos”, foi recebido após os discípulos se
reunirem com numerosa multidão e a segunda informação é que tal reunião durou por
todo um ano.
É coerente pensarmos que dedicar um ano de ensino do evangelho, da cultura de
Jesus Cristo, à uma multidão de pessoas, tenha gerado não apenas transformação
individual, mas coletiva. E que aquele grupo estava adquirindo uma cultura peculiar
distanciando-se da cultura comum de Antioquia.
7

O título foi dado porque eles estavam pensando, falando e se comportando de


forma semelhante a Jesus. Podemos dizer que estavam absorvendo a cultura de Cristo.
A conversão de judeus e gentios ao cristianismo implicou, portanto, na mudança de
determinados comportamentos culturais.
Os judeus, por exemplo, tinham enraizada a prática da circuncisão como um selo da
aliança com Deus. Já na cultura dos povos gentílicos, encontramos outras práticas culturais
que também possuíam fundamento religioso como, por exemplo, o paganismo.
No contexto judaico, houve profundo esforço dos apóstolos para que aqueles
novos convertidos compreendessem que sua cultura, profundamente influenciada pela lei
mosaica, estava sob uma nova ótica, a ótica da nova aliança, a ótica de Cristo.
De fato, os próprios apóstolos, todos judeus, foram confrontados nesse sentido.
Eles sofreram confrontos diretos de Jesus e, por vezes, confrontaram uns aos outros.
Segundo a proposta da cronologia bíblica de Reese (2003), da concessão da Lei a
Moisés em Êxodo capítulo 20, até o Pentecostes em Atos 2, se passaram cerca de 1490 anos
de história. Tratava-se, portanto, da transformação de uma cultura milenar, crida e
praticada como algo entregue por Deus ao povo.
É, portanto, bastante razoável compreender os desafios enfrentados pela nova
comunidade e igualmente compreensível a necessidade de um concílio apostólico para
esclarecer questionamentos doutrinários e direcionar aqueles cristãos de uma forma que
tanto o ambiente de amor e unidade da igreja quanto o chamado missional não fossem
prejudicados.

3.2.3. Os Causadores da Discussão

O início do capítulo 15 de Atos, afirma que os causadores da discussão eram


indivíduos que haviam descido da Judeia e, ainda, que este eram da seita dos fariseus.

Alguns indivíduos que desceram da Judéia ensinavam aos irmãos: Se não


vos circuncidardes segundo o costume de Moisés, não podeis ser salvos.
Insurgiram-se, entretanto, alguns da seita dos fariseus que haviam crido,
dizendo: É necessário circuncidá-los e determinar-lhes que observem a lei de
Moisés. (BÍBLIA SAGRADA, Atos 15,1.5)
8

Judeia era a forma como o assentamento judaico ficou conhecido em Jerusalém


após o retorno do exílio. Ou seja, “descido da Judeia”, era uma referência às pessoas que
vinham de Jerusalém, os judeus.
Estes judeus eram fariseus que haviam crido que Jesus é o Cristo.

Os fariseus foram uma seita política e religiosa influente. Estes observavam


cuidadosamente a Lei mosaica, enquanto interpretavam sistematicamente e
a adaptavam às condições de seu tempo, a fim de manter um sentido de
pureza entre o povo. (BÍBLIA, Mateus, p.1566)

Apesarem de terem nascido de novo, estes judeus cristãos defendiam a


necessidade da observância da lei de Moisés na nova aliança, incluindo a prática da
circuncisão tanto a judeus quanto a gentios.
Quando chegaram a Antioquia defendendo a circuncisão de gentios, estes
judaizantes foram resistidos veementemente por Paulo e Barnabé.
Como os causadores da discussão haviam descido da Judeia, após a discussão inicial,
ficou resolvido que a questão fosse levada de volta à Jerusalém para que a liderança da
igreja fosse consultada e pudesse determinar o entendimento sobre a questão.
Os questionamentos que pairavam eram: é preciso ser primeiro judeu para então
tornar-se cristão ou os gentios convertidos são salvos mesmo sem serem circuncidados?
Como a lei de Moisés seria tratada na nova aliança, seria necessária a manutenção da sua
observância?

3.3. As Considerações dos Apóstolos

Pedro foi o primeiro dos apóstolos a se posicionar em Jerusalém. O discípulo já havia


sido confrontado algumas vezes por Jesus durante os três anos e meio de ministério do
mestre, e havia lutado para compreender como lidar com paradigmas da lei mosaica
perante a nova aliança. Mas trouxe como testemunho a experiência sobrenatural narrada
em Atos 10 quando, após uma visão, foi levado por Deus à casa de Cornélio, um gentio, e
testificou que a graça havia alcançado os gentios pela fé e que seria um erro impor o jugo
da lei sobre estes.
Na sequência, Barnabé e Paulo contaram os sinais e prodígios que Deus fazia por
intermédio deles entre os gentios.
9

É certo que na mente não apenas dos apóstolos, mas daqueles cristãos da igreja do
primeiro século, os milagres, sinais e prodígios significavam a aprovação Divina para a
pregação do evangelho.
Pedro, por exemplo, havia afirmado em sua pregação no evento do Pentecostes
que, milagres, prodígios e sinais realizados por Jesus, eram sinal da aprovação de Deus.

Varões israelitas, atendei a estas palavras: Jesus, o Nazareno, varão


aprovado por Deus diante de vós com milagres, prodígios e sinais, os quais
o próprio Deus realizou por intermédio dele entre vós, como vós mesmos
sabeis. (BÍBLIA SAGRADA, At 2,22)

A oração da igreja em favor de Pedro e João revela o entendimento de que curas,


sinais e prodígios seguiam o anúncio da Palavra.

Agora, Senhor, olha para as suas ameaças e concede aos teus servos que
anunciem com toda a intrepidez a tua palavra, enquanto estendes a mão para
fazer curas, sinais e prodígios por intermédio do nome do teu santo Servo
Jesus”. (BÍBLIA SAGRADA, At 4,29.30)

Barnabé e Paulo, portanto, estavam afirmando que os sinais e prodígios eram o selo
da aprovação de Deus da atuação ministerial deles para os gentios.
Tiago finaliza a discussão deixando claro que: (1) A liderança de Jerusalém
reconhecia o novo nascimento dos gentios; (2) Estes acontecimentos eram cumprimentos
de palavras dos profetas; (3) A circuncisão não deveria ser imposta aos gentios, revelando
que aqueles que haviam descido da Judeia não haviam sido enviados com autoridade de
Jerusalém; (4) Algumas abstenções seriam necessárias visando a promoção da unidade
num contexto cultural diverso.

3.3.1. Retrocesso à Moisés ou Avanço à Cristo?

Apesar de as decisões terem sido muito bem recebidas tanto pela liderança e igreja
de Jerusalém, quanto por Antioquia, as abstenções direcionadas por Tiago tornaram-se
tema de grande interesse e debate teológico, principalmente pela desafiadora
interpretação dos significados destas abstenções.
Entretanto, o alvo deste artigo não é o possível significado das quatro abstenções
para a igreja gentia, mas o propósito, o que motivou Tiago a direcionar as abstenções.
10

Tiago instrui a abstenção das contaminações dos ídolos, das relações sexuais ilícitas,
da carne de animais sufocados e do sangue, com o seguinte argumento em Atos (15,21):
“Moisés tem, em cada cidade, desde tempos antigos, os que pregam nas sinagogas, onde
é lido todos os sábados”.
De Boor (2002, p.131) afirma que “esta frase é de difícil compreensão para nós”. Da
mesma forma, Allen (1994, p114) afirma: “a conclusão da decisão de Tiago, no verso 21, é
difícil de traduzir-se, bem como de interpretar-se.”
Estou de acordo com Keener (1960, p.381) quando este sugere que “a afirmação de
Tiago provavelmente signifique que os crentes devem se abster das práticas do verso 20
para que não ofendam as muitas pessoas do verso 21”.
A referência a Moisés, logo após a negação da prática da circuncisão aos gentios,
obviamente não seria uma defesa ao retrocesso à prática da lei mosaica.
O pensamento de Tiago fica claro em sua epístola afirmando que, desde que Cristo
veio, o cristão não está mais debaixo da lei de Moisés, mas debaixo da lei da liberdade, da
lei perfeita. Ele diz em sua epístola (1,25): “Mas aquele que considera, atentamente, na lei
perfeita, lei da liberdade, e nela persevera, não sendo ouvinte negligente, mas operoso
praticante, esse será bem-aventurado no que realizar”. E, ainda (2,12): “Falai de tal maneira
e de tal maneira procedei como aqueles que hão de ser julgados pela lei da liberdade”.
Portanto, a lei mosaica foi como um parêntese no relacionamento de Deus com o
ser humano e, ainda, com direcionamentos específicos à nação judaica até o que Paulo
chama de “plenitude dos tempos”, a inauguração da Nova Aliança.

3.3.2. A Eterna Lei de Deus

O significado da palavra “lei”, segundo Vine et al. (2002, p.165) é: “direção, ensino,
instrução”. Considerando tal definição, o ser humano, desde sua criação no gênesis, nunca
esteve sem lei, e jamais estará.
No gênesis, o ser humano recebeu instruções a serem obedecidas e, exatamente
por desobedecê-las, foi expulso do jardim.

E o SENHOR Deus lhe deu esta ordem: De toda árvore do jardim comerás
livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás;
11

porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás. (BÍBLIA


SAGRADA, Gn 2,16.17)

Após sua queda e expulsão do jardim, e anteriormente à lei mosaica, o ser humano
continuou submetido à lei de Deus. A benção de Deus para a vida de Abrão, por exemplo,
estava condicionada à sua obediência de ir para a terra que Deus lhe mostraria.

Ora, disse o SENHOR a Abrão: Sai da tua terra, da tua parentela e da casa
de teu pai e vai para a terra que te mostrarei; de ti farei uma grande nação, e
te abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção! (BÍBLIA
SAGRADA, Gn 12,1.2)

E mesmo agora, na Nova Aliança, é um equívoco considerar que estejamos “sem


lei” pois Jesus Cristo afirma, no evangelho de João (14,15) que se seus discípulos o amam,
estes devem guardar seus mandamentos.
De fato, o que observamos na pregação de Cristo é que a nova aliança nos chamou
a um patamar superior ao que era direcionado pela lei de Moisés, devido à transformação
do ser humano através do novo nascimento e ao cumprimento da promessa de que a lei
de Deus seria inscrita em nossos corações.

Porque esta é a aliança que farei com a casa de Israel, depois daqueles dias,
diz o SENHOR: Na mente lhes imprimirei as minhas leis, também no seu
coração as inscreverei; eu serei o Deus deles, e eles serão o meu povo.
(BÍBLIA, Jr 31,33)

Um dos momentos de demonstração da superioridade do padrão da lei de Cristo


acontece durante o sermão do monte, narrado no Evangelho segundo Mateus, no capítulo
cinco; e é marcado pelas seis vezes em que Jesus repete: “Ouvistes que foi dito” (com
exceção do versículo 31, onde ele diz “Também foi dito”), fazendo referência a lei mosaica,
seguido pela forte afirmação: “Eu, porém, vos digo”, fazendo referência à nova aliança.
Em todas as citações, Jesus Cristo eleva o padrão moral exigindo um
comportamento mais excelente do que aquele defendido pela lei mosaica.
Nesse sentido, Cristo de fato é o fim da lei, da lei de Moisés, não da lei de Deus!
Pensar estar sem lei para com Deus nos expõem a riscos como, por exemplo, o
antinomismo.
12

Segundo Champlin (2018, p. 952) “o antinomismo enfatiza de tal modo a liberdade


cristã de condenação pela lei que deixa de salientar a necessidade de o crente confessar
constantemente seus pecados e buscar de modo sincero a santificação”.
Não estarmos debaixo da lei mosaica não nos deixa “sem lei para com Deus” mas,
em Cristo, somos colocados debaixo de uma lei ainda superior, a lei de Cristo. É o que afirma
Paulo em sua primeira carta aos Coríntios (9,21): “Aos sem lei, como se eu mesmo o fosse,
não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo, para ganhar os que vivem
fora do regime da lei”.
Champlin (2018, p. 951) ressalta o enobrecimento da lei mosaica por Jesus no Novo
Testamento com suas “ideias, adaptações e aplicações espirituais de vários princípios da
legislação mosaica”, reforça a lei do amor como mandamento superior e enaltece o novo
ângulo dado pelo apóstolo Paulo dizendo:

Apesar de seus escritos incorporarem os preceitos morais da lei, e esses


preceitos, naturalmente, serem obrigatórios para todos os homens, contudo,
até mesmo esses preceitos devem ser agora vistos como cumpridos por
intermédio do ministério capacitador do Espírito Santo, e não por causa dos
próprios recursos do ser humano...Ademais, Paulo eliminou da observância
da lei toda a ideia de merecimento humano, salientando, única e
exclusivamente, a lei do Espírito. (CHAMPLIN, 2018, p. 951)

O novo nascimento não nos coloca debaixo de uma vida sem lei, mas nos eleva a
uma condição favorável à obediência, não meramente à lei mosaica, mas à lei de Cristo,
superior, excelente. Por isso o preceito da lei se cumpre em nós, porque agora, a
obediência é possível pela graça de Deus.
A graça de Deus é uma força capacitadora de Deus para vivermos dentro deste novo
padrão de vida, da nova aliança. É um poder que nos capacita a viver em obediência e em
santidade. É o poder de Deus que nos arranca da condição de escravos do pecado e nos
capacita a reinar em vida.
Paulo afirma em Romanos (5,17): “Se, pela ofensa de um e por meio de um só, reinou
a morte, muito mais os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça reinarão em
vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo”.
E, ainda sobre o efeito da graça de Deus, lemos:

Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens,


educando-nos para que, renegadas a impiedade e as paixões mundanas,
13

vivamos, no presente século, sensata, justa e piedosamente. (BÍBLIA


SAGRADA, Tt 2,11.12)

3.3.3. O Propósito e a Validade da Lei Mosaica

Além da compreensão de que a lei de Deus é eterna, a correta interpretação do


propósito e validade da lei mosaica são igualmente importantes para evitar outros tipos de
extremos como, por exemplo, o legalismo.
A lei mosaica é um caminho para um fim e não o fim em si mesma. Paulo afirma em

sua carta aos Gálatas (3,24): “De maneira que a lei nos serviu de aio, para nos conduzir a
Cristo, para que pela fé fôssemos justificados”. A compreensão da palavra “aio” nos ajuda
a discernir o propósito da lei mosaica.

Aio, do grego “paidagogos”, era um “tutor, i.e., um guardião e guia de


meninos. Entre os gregos e os romanos, o nome era aplicado a escravos
dignos de confiança que eram encarregados de supervisionar a vida e a
moralidade dos meninos pertencentes à elite. Aos meninos não era nem
mesmo permitido sair de casa sem a sua companhia até que alcançassem a
idade viril. (VINE et al., 2002, p.716)

A lei mosaica, portanto, considera o ser humano numa condição de imaturidade,


como uma criança incapaz de trilhar um caminho de obediência sem um tutor. Esta lei se
revelou como um guarda, um guia, um instrutor, conduzindo o ser humano passo a passo
até Cristo.
Ela, então, não havia sido dada para resolver o problema do pecado humano e sua
separação espiritual da comunhão com Deus, mas para condução da humanidade à solução
– a fé em Jesus Cristo.
O apóstolo Paulo esclarece duas questões fundamentais acerca da lei de Moisés em
sua carta aos Gálatas – seu motivo e transitoriedade.

Qual, pois, a razão de ser da lei? Foi adicionada por causa das transgressões,
até que viesse o descendente a quem se fez a promessa, e foi promulgada
por meio de anjos, pela mão de um mediador. (BÍBLIA SAGRADA, Gl 3,19)

Concordo com Barclay (2018), quando este considera que a lei tenha sido adicionada
para a revelação da condição pecaminosa do homem.
14

Onde não há lei tampouco há pecado. Não se pode quebrantar uma lei que
não existe. Antes que o homem seja estigmatizado como pecador deve ter
conhecido a Lei. Não pode ser condenado por agir mal enquanto desconheça
que o que faz é mau. Portanto a função da Lei é a de definir o pecado. A Lei
pode definir o pecado e de fato o faz mas é incapaz de remediá-lo.
(BARCLAY, 2018, p.34)

A lei mosaica havia sido dada por causa das transgressões humanas, ou seja, ela
revelou a condição pecaminosa do coração humano e sua incapacidade de salvar-se a si
mesmo, indicando a necessidade de um salvador.
O esclarecimento do motivo nos revela também sua condição temporária,
transitória, pois, a lei serviu como condutor à solução da condição pecaminosa da natureza
humana.
Sua temporariedade é esclarecida quando Paulo afirma que a lei foi dada até que
viesse o descendente a quem se fez a promessa, compreendido como uma clara referência
à vinda de Jesus Cristo.
Se o descendente já veio, a lei alcançou seu objetivo, cumpriu seu propósito. O
propósito da lei, em seu papel de tutora, de guia, era levar o ser humano em direção à
justificação.

A justiça de Deus é a iniciativa justa tomada por Deus ao justificar os


pecadores consigo mesmo, concedendo-lhes uma justiça que não lhes
pertence, mas que vem do próprio Deus. A justiça de Deus é a justificação
justa do injusto, sua maneira justa de declarar justo o injusto, pela qual ele
demonstra sua justiça e, ao mesmo tempo, nos confere justiça. Ele o fez por
intermédio de Cristo, o justo, que morreu pelos injustos. (STOTT, 2000, p. 67)

Quando, então, Jesus Cristo vem a Terra e cumpre a obra redentora, sacrificando-
se em favor do ser humano caído, cumpre-se a razão de ser da lei. Por isso Paulo afirma em
Romanos (10,4): Porque o fim da lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê.

Cristo é o fim no sentido de ser a terminação da lei. Esta é a ênfase primordial


das palavras de Paulo. Cristo é a terminação da lei no sentido de que, com
ele, a velha ordem, da qual a lei fazia parte, foi eliminada, para ser substituída
pela nova ordem do Espírito. Cristo é o fim da lei, pois por meio de sua morte
e ressurreição ele encerrou o ministério da lei para os que creem. A justiça
da lei, agora, se cumpre na vida do cristão por meio do poder do Espírito.
(LOPES, 2019, p.349)
15

Stott (2000) apud Lopes (2019, p.349) afirma que “é o fim da lei tanto no sentido de
“alvo”, significando que a lei apontava para Cristo, como no sentido de “terminalidade ou
conclusão”, indicando que Cristo aboliu a lei”.
A nova aliança, foi a inauguração de um novo sacerdócio, do sumo sacerdote, Jesus
Cristo. E, quando há mudança de sacerdócio não há extinção, mas mudança de lei. É o que
lemos em Hebreus (7,12): Pois, quando se muda o sacerdócio, necessariamente há também
mudança de lei.
Agora os que estão em Cristo Jesus, estão debaixo da lei do Espírito da vida.

Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus.


Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e
da morte. Porquanto o que fora impossível à lei, no que estava enferma pela
carne, isso fez Deus enviando o seu próprio Filho em semelhança de carne
pecaminosa e no tocante ao pecado; e, com efeito, condenou Deus, na carne,
o pecado, a fim de que o preceito da lei se cumprisse em nós, que não
andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito. (BÍBLIA SAGRADA, Rm
8,14)

A lei mosaica estava enferma, ou seja, sem força, enfraquecida, incapacitada pela
carne. Não era a lei em si, incapaz, mas o que a tornava incapaz era a incapacidade do ser
humano obedecê-la devido sua morte espiritual.
Ela cumpre seu propósito ao revelar nossa incapacidade de obedecer a Deus e Jesus
vem para revelar que a única solução é nascer de novo, não da carne, mas do espírito.

3.4 A Lei de Cristo

A abstenção direcionada por Tiago não se apresenta, portanto, como um retrocesso


à lei mosaica visto esta ter caducado, mas um direcionamento à prática da lei de Cristo que,
por duas vezes é citada pelo apóstolo Paulo nestes termos.

Procedi, para com os judeus, como judeu, a fim de ganhar os judeus; para os
que vivem sob o regime da lei, como se eu mesmo assim vivesse, para
ganhar os que vivem debaixo da lei, embora não esteja eu debaixo da lei. Aos
sem lei, como se eu mesmo o fosse, não estando sem lei para com Deus,
mas debaixo da lei de Cristo, para ganhar os que vivem fora do regime da lei.
(BÍBLIA, 1 Co 9,20.21)
16

Champlin (1982, p.142) traz luz ao assunto quando afirma que Paulo contava com a
mui superior lei de Cristo, que opera mediante o amor cristão.
O entendimento do apóstolo Paulo, de fato, era que ao amar o próximo, então
cumpriríamos a lei. O que fica claro em sua carta aos Gálatas (5,14): Porque toda a lei se
cumpre em um só preceito, a saber: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.
E, na mesma carta de Paulo aos Gálatas (6,2), o termo “lei de Cristo” aparece
novamente, dentro deste contexto, do amor ao próximo, dizendo: Levai as cargas uns dos
outros e, assim, cumprireis a lei de Cristo.
A lei de Cristo que levou Paulo a defender com veemência a liberdade da lei mosaica
e da circuncisão, também o levou a fazer todo esforço necessário para salvação do maior
número de pessoas possível, inclusive submetendo-se a costumes culturais que, em outros
contextos foram alvos de sua repreensão.
O mesmo Paulo que confrontou os fariseus em Atos 15, mandou Timóteo circuncidar
“por causa dos judeus” em Atos 16 porque era filho de judia mas de pai grego.
Paulo já reconhecia o novo nascimento e o chamado de Timóteo, mas sabia que,
culturalmente, o fato de ser filho de uma judia, mas ser incircunciso, seria um impedimento
à plenitude do cumprimento do seu chamado.
O apóstolo estava praticando o “ser tudo para com todos”, com o fim de que
Timóteo pudesse ganhar judeus que jamais seriam ganhos sem sua circuncisão. Paulo
estava removendo possíveis impedimentos à expansão do evangelho entre os judeus. Era
uma submissão cultural com um fim missional. Era a lei de Cristo, a lei do amor, em plena
ação.
Paulo estava disposto a colocar-se debaixo do jugo da lei mosaica, mesmo não
estando debaixo dela, para ganhar os que estavam vivendo debaixo da lei. Trata-se de um
exercício para destruir “paredes” que pudessem impedi-lo de pregar o evangelho para
alguém. Era uma adaptação estratégica com o propósito missional.
Paulo também afirma em 1Coríntios (9,22): “Fiz-me fraco para com os fracos, com o
fim de ganhar os fracos”, utilizando o termo “fraco” referindo-se à consciência humana.
Em sua carta aos romanos, Paulo reforça o princípio prático da lei de Cristo. Se estou
afetando a consciência de um irmão, a ponto de entristecê-lo, não estou andando em amor,
ou seja, estou descumprindo a Lei de Cristo.
17

Eu sei e estou persuadido, no Senhor Jesus, de que nenhuma coisa é de si


mesma impura, salvo para aquele que assim a considera; para esse é impura.
Se, por causa de comida, o teu irmão se entristece, já não andas segundo o
amor fraternal. Por causa da tua comida, não faças perecer aquele a favor de
quem Cristo morreu. (BÍBLIA SAGRADA, Rm 14,14.15)

Ainda que a Lei de Cristo seja a lei da liberdade, esta nossa liberdade não pode vir,
de modo algum, ser tropeço para os fracos. Sendo assim, se existe algo que a liberdade em
Cristo me permite fazer, mas ofende meu irmão, mesmo que devido a sua imaturidade
espiritual, a lei de Cristo ensina que devo deixar de fazer por amor.

Não é a comida que nos recomendará a Deus, pois nada perderemos, se não
comermos, e nada ganharemos, se comermos. Vede, porém, que esta vossa
liberdade não venha, de algum modo, a ser tropeço para os fracos. E, por
isso, se a comida serve de escândalo a meu irmão, nunca mais comerei
carne, para que não venha a escandalizá-lo. (BÍBLIA SAGRADA, 1Co
8,8.9.13)

A lição missional do apóstolo Paulo possui o poder de descortinar o entendimento


do argumento de Tiago durante o concílio. É coerente biblicamente pensar que Tiago
estava realmente convidando os irmãos gentios a andarem em amor para com os irmãos
judeus através destas abstenções. Assim como os irmãos judeus deveriam andar em amor
com os irmãos gentios não lhes impondo a circuncisão.
As quatro práticas que deveriam ser abstidas certamente feriam a consciência dos
irmãos judeus e podiam facilmente ser abandonadas pelos gentios. Tanto que Lucas afirma
em Atos (15,31) que quando a carta com a decisão do concílio foi lida para os irmãos de
Antioquia, “estes se alegraram sobremaneira pelo conforto recebido”.
Trata-se de uma questão missional, da prática do amor, da lei de Cristo, fazer tudo
para salvar o máximo possível.

Os crentes gentios teriam feito bem seguir as abstenções mencionadas (At


15:29), não porque fossem obrigados pela lei, mas por serem culturalmente
sensíveis aos crentes judeus, e que também tinham considerar sua missão
para com os judeus (At 15:21). (FLEMMING, 2005, p.47)

Longenecker (2017) apud Savelle (2004, p.463) diz que as proibições "devem ser
vistas não como lidando com a questão principal do concílio, mas como atendendo a certas
preocupações práticas; não como sendo principalmente teológicas, mas de natureza mais
18

sociológica; não como ordenanças divinas para aceitação diante de Deus, mas como
concessões aos escrúpulos de outros por causa da harmonia dentro da igreja e da
continuação da missão judaico-cristã.”
Barth (2009, p.791) é cirúrgico ao afirmar: “Já não estarei andando segundo o amor
se, na fraqueza do próximo, eu esquecer a existência do meu irmão em meu semelhante;
do UM, no outro; e de Cristo, nesse (e em qualquer) “próximo”.”
A lei de Cristo é a lei do amor, que foi praticada de forma mais exemplar pelo próprio
Cristo. Lembro Bezerra (2017, p.47-48) que nos ensina que nosso maior exemplo quando
falamos de missão integral é Jesus, dizendo que este: “teve uma atitude de humildade e, a
partir de seu projeto redentor, esvaziou-se, assumindo a forma de servo para se identificar
com aqueles que creem.” Atitude esta que possui plena conexão com a prática da lei de
Cristo defendida pelo apóstolo Paulo.

4. Considerações Finais

Ainda que exista um real desafio sobre a compreensão exata dos significados das
quatro abstenções estabelecidas no concílio de Jerusalém, quando estudamos não só as
abstenções e a justificativa de Tiago, mas todo o capítulo 15 de Atos sob a ótica da lei de
Cristo, parece-nos ficar coerente com toda a mensagem de Jesus Cristo e da nova aliança
que a razão das abstenções não se trata de um retrocesso à lei mosaica, mas um avanço à
lei de Cristo, à lei do amor.
Através de Jesus Cristo o evangelho rompeu limites geográficos e, portanto,
culturais. O cristianismo é um agente de transformação cultural, ainda que, ao mesmo
tempo, possa se manifestar através das diversas culturas existentes.
A proposta tanto a judeus quanto a gentios em prol da unidade da igreja de
Antioquia foi de renúncia de comportamentos culturais. Tanto a circuncisão quanto as
quatro abstenções eram práticas culturais de um e outro povo que eram ofensivas a
consciência de ambos os povos.
Não impor a circuncisão aos gentios revela a eficácia do sacrifício de Jesus na cruz
do calvário e confirma a salvação exclusivamente pela graça de Deus e através da fé. A lei
de Cristo, a lei do amor, é manifesta através do exercício dos judeus em sua prática de amor
19

fraternal para com os irmãos gentios. Judeus, que até então, não se relacionavam com
gentios, agora devem exercer o amor de Deus para a manutenção da unidade da igreja.
Por outro lado, quando Tiago determina as abstenções usando como justificativa a
leitura de Moisés todos os sábados nas sinagogas, não fazia um incentivo à prática da lei
mosaica, mas a prática da lei de Cristo, a lei do amor, pelos irmãos gentios em prol dos
irmãos judeus que haviam crescido debaixo de uma influência cultural milenar.
Considerando que a ordenança de Jesus é para que o evangelho seja pregado a
todas as nações, sem dúvidas, é necessário considerarmos também o exercício do amor
diante das diversidades culturais.
O próprio Jesus serviu-nos de exemplo quando assumiu forma de servo. Seguindo
seu exemplo, e dos demais apóstolos, cabe-nos andar em amor e buscarmos sabedoria do
alto para que a mensagem do evangelho que nos une seja mais poderosa do que as
diferenças culturais que tendem a nos separar.

REFERÊNCIAS

ALLEN, Clifton J., ed. Ger. Comentário Bíblico Broadman. Editado por Clifton J. Allen.
Tradução de Adiel Almeida de Oliveira. 3. Ed. Rio de Janeiro: JUERP, 1994. V. 10. 464p.

BARTH, K. Carta aos Romanos. São Paulo: Fonte Editorial, 2009.

BEZERRA, Cícero. Missão Integral da Igreja. Curitiba: Editora Intersabederes, 2017.

BARCLAY, W. Comentário do Novo Testamento: Gálatas. 2018.

BÍBLIA SAGRADA. Almeida revista e atualizada. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

BÍBLIA, Mateus. Português. Bíblia de Estudo Arqueológica NVI. Trad. Claiton André Kunz
et. al. São Paulo: Editora Vida, p. 1566, 2013.

CHAMPLIN R. N. O Novo Dicionário Bíblico Champlin: Ampliado e Atualizado. São Paulo:


Hagnos, 2018.
20

CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento Interpretado Versículo por Versículo, v. 5. São Paulo:


Milenium, 1982.

COX, Leo G. Comentário Bíblico Beacon: Mateus a Lucas. Casa Publicadora das Assembleias
de Deus, v. 6, 2005.

DE BOOR, Werner. Atos dos Apóstolos: Comentário Esperança. Curitiba: Editora Evangélica
Esperança, 2002.

FLEMMING, Dean. Contextualization in the New Testament: Patterns for Theology and
Mission. Leicester: Apollos, 2005.

KEENER, Craig S., Comentário Bíblico Atos: Novo Testamento. Belo Horizonte: Editora
Atos, 2004.

LOPES, Hernandes Dias. Comentário expositivo do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos,
v. 2, 2019.

MORIN, E. Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez, 2002.

REESE, Edward. A Bíblia em ordem cronológica: nova versão internacional / edição


autorizada da obra de Edward Reese (org.); tradutor Judson Canto (títulos e textos
explicativos) – São Paulo: Editora Vida, 2003.

SAVELLE, Charles. A Reexamination of the Prohibitions in Acts 15. Bibliotheca Sacra, 2004.

STOTT, John. A Mensagem de Romanos. São Paulo: ABU Editora, 2000

VINE, William Edwy; UNGER, Merril F.; WHITE JR, William. Dicionário Vine. O significado
exegético e expositivo das palavras do Antigo e do Novo Testamento. Tradução de Luís
Aron de Macedo. Rio de Janeiro: CPAD, 2002.

Você também pode gostar