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th tne ne tido, vejo como uma das caracter{sticas definidoras do trabalho do antro- B6logo procurar “interpretar as interpretacdes”, estejam em que nivel CAPITULO 9 estiverem, Observando o Familiar’ * Aaradeco os comentirios « sugestées do Roberto Da Matta « Eduardo Viverot do ‘Castro, com quem tive oportunidad de decutir este trabalho. (Este caprtulo fol ante riormente publicedo em A aventura sociolégica. Rio, Zaha. 1878, © € aq eprode ‘ido com autorizagia dos organizedores 1 L Uma das mais tradicionais premissas das ciéncias sociais 6 a necessidade de uma disténcia minima que garanta ao investigador condigées de abjetivi dade em seu trabalho. Afirma-se ser preciso que o pesquisador veja com clhos Zmparciais a realidade, evitando envolvimentos que possam obscurecer ‘ou deformar seus julgamentos @ conclusdes. Uma das possiveis decorrén Gias deste raciocinio seria a valorizaco de métodos quantitativos que seriam ‘por natureza” mais neutros e cientiticos. ‘Sem divida essas premissas ou dogmas no sio partilhados por ‘toda a comunidade académica. A nogdo de que existe um envolvimento inevitével com 0 objeto de estudo e de que isso nfo constitui um defei- 10 ou imperteicdo jé foi clara e precisamente enunciada.! Néo vou deter-me, especificamente, na discusséo mais geral sobre neutralidade e imparcialida- de. Creio ser mais proveitoso discutir algumas experiéncias pessoais que me levaram a refletir de forma mais sistemética sobre esses problemas. ‘embora sem exclusividade, tradicionalmente identificou-se com os métodos de pesquisa ditos qualitativos. A observagdo participante, a entrevista aberta, o contato direto, pessoal, com o universo investigado ‘constituem sua marca registrada. Insiste-se na idéia de que para conhecer ‘certas éreas ou dimensdes de uma sociedade ¢ necessério um contato, uma vivéncia durante um perfodo de tempo razoavelmente longo, pois existe F Vor por exempio o trabalho de Howard S. Becker, “De que lado estamos", in Uma teoria da apfo cofetve, Rio, Zahar.1977 123 124 individuatismo e cultura aspectos de uma cultura e de uma sociedade que nao slo explicitados, que ‘Go aparecem a superficie e que exigem um esforgo maior, mais detalhado @ aprofundado de observacio e empatia. No entanto, a idéia de tentar pérse zno lugar do outro e de captar vivéncias ¢ experiéncias particulares exige um ‘mergulho em profundidade dificil de ser precisedo e delimitado em termos de tempo. Trata-se de problema complexo, pois envolve as questées de disténcfa social e disténcia psicolégica. Sobre isso Da Matta jé situou com ropriedade @ trajetéria antropolégica de transformar 0 exético em fami liar @ © familiar em exético”.* Evidentemente, em algum nivel, esté-se falando em disténcia. € preciso, no entanto, refletir mais sobre o que se tentende por isto. Sem davida existe uma distéincia fisica clara entre a socie- dade inglesa da década de 1930 e uma tribo do Sudo. Hé que haver um deslocamento no espaco que requer a utilizago de um determinado tem- ‘po, maior em prine{pio do que ir de Londres a Oxford ou de Cartum a0 Cairo. € possfvel que um ou outro individuo na tribo fale inglés, mas a grande msioria comunicase exclusivamente através dos dialetos locas, 0 ue evicentemente representa, em principio, uma descontinuidade maior em termos de comunicag#o do que entre um scholar inglés e um operério ‘eu conterréneo, apesar de Bernard Shaw, Trata-se, no entanto, de um tipo de comunicago, a verbal, que néo esgota todo 0 potencial simbélico humano. Pode-se imaginar que o inglés desenvolva um interesse e cultive uma empatia por chefestribais,atribuindo a estes, real ou fantasosamente, problemas semelhantes aos seus na drea da manipulaggo do conhecimen- to € no exercicio de certas prerrogativas, podendo estabelecer pontos de Contato e de aproximargo, em determinados niveis, maiores do que os existentes entre © mesmo scholar e seus fellow-country men de origem proletéria, Simmel, a0 analisar a nobreza européia, mostra o seu caréter cos- ‘mopolita e internacional, passando sobre as fronteiras dos Estados, enfati zando seus lagos comuns de grupo de status, marcando Vigorosamente a distéincia em relagio aos conterrineos camponeses, proletérios ou mesmo burgueses.? Sem davida o patriménio ou a cultura comum de uma nobreza europeia so muito mais 6bvios do que experiéneias particulares de chofes ‘tibaisafricanos e de um scholar inglés que possam apresentar algumas seme thaneas. Num caso esté-se falando em uma categoria social e no outro em interago entre individuos que no chegamos a perceber ou definir como ‘uma categoria. Mas jé surge com nitidez a questio da relacio entre distin. cia social € psicolégica. O fato de dois individuos pertencerem 8 mesma Em 70 offcio do etnélogo ou como ter ‘anthropological blues" in Publicagbes do Programs de Pé-Graduetso em Antropologla Social do Museu Nacional, 1974 3 Em "The nobility", in On individuality and socel forms, Chicago, The University (of Chicago Press, 1971 observando 0 familiar 125 Sociedade ndo significa que estejam mais proximos do que se fossem de soci. dades diferentes, porém aproximados por preferéncia, gostos, idiossinera, ias. Até que ponto pode-se, nessos casos, distinguir 0 sécio-cultural do sicolégico? No mundo académico ou intelectual em geral essa experiénela 6 bem conhecida. Quantas vezes em encontros, semindrios, conferéneias ots de carétor internacional no nos encontramos interagindo & vontade, de maneira fécil e descontraida, com colegas vindos de sociedades & culturas 4s mais dspares? Lembro-me bem de uma vez, chegando a uma univers dade americana na hora do almogo, ter tide’ oportunidade de sentar a ‘mesma mesa com coleges norte-americanos, um francés, um argentino 6 um holandés. Quase todos estavamos nos conhecendo. No entanto, a converse, 0 correu facil, no s6 quanto a0 tom, mas também com pequenas ironies © piadas implicitas, meias-palavras, referéncias etc. Tinhamos lido Alexan. Gre Dumas ¢ Walter Scott na adolescéncia e gostdvamos de Beethoven ¢ Rosselini. Comentou-se o filme do autor italiano, que seria exibido na uni. versidade durante semana e discutiu-sea SétimaSinfonia, programada para aquela noite. Esnobismo intelectual? Cultura ornamental cultivada pela inte lectualidade académica? € possivel, mas constituer-se em temas de conver. 38 assim como discutir um jogo de futebol ou a ultima atuacio de Rivelino ‘ou Paulo César com o chofer de téxi ou com 0 porteiro do edificio. Que tipo de conversa 6 mais real, verdadeira? O fato é que se esté discutindo 0 Problema de experiéncias mais ou menos comuns, partilhdveis, que perm ‘tem um nivel de interacio especifico. Falar-se a mesma lingua nio $6 nao exclui que existam grandes diferencas no vocabulério mas que significados © interpretagdes diferentes podem ser dados a palavras, categorias ou enc Dresses aparentemente idénticas. Voltamos a Bernard Shaw e a Pigmalid Por outro lado, toda a tradi¢o marxista valoriza a experiéncia comum de classe © acentua, em certas interpretagSes, 0 caréter extra e supranacional da lute polttica, desenfatiza 0s lacos comuns, patriménio cultural de que Poderiam participar classes sociais distintas, para enfatizar, por exemplo, 2 experincia bésica comum de exploracio a que estaria submetide 6 roletariado. Expressées ou termos como burguesia internacional, unidade {internacional profetéria tendem a sublinhar a importincia de experiéncias ¢ interesses sociolbgicos e histéricos comuns em detrimento das nodes de identidade e cultura nacional. A unidade, no caso, ndo seria dada pela lingua, por tadicées nacionais de caréter mals geral, mas por experién. Cias e vivéncias de classe, definidas em termos sociolégicos, econdmicos « histéricos, que originam inclusive a norgo de cultura de classe que pode ultrapassar as frontelras dos Estados Nacionais. Sem duvide a nooo de Estado Nacional e @ valorizago de um patriménio comum dentro de suas fronteiras em oposic&o a patriménios de outros Estados estio ligadas a Uma conjuntura sécio-histérica precisa. Normalmente o aparecimento do. Estado Moderno 6 associado a0 desenvolvimento da burguesia, ao fortalc 126 individualismo e cultura cimento dq nacionalismo. Enquanto movimento intelectual, surge 0 Romantismo, preocupado em pesquisar (ou até criar) ra(zes, fundamentos, essenciais de um povo, nacionalidade. E conhecida a manipulagdo de ideo logias nacionalistas, de oposiedo simbolica e material a0 que vem de fora, ‘como estranho, intruso, fora de contexto, alienado, Pode parecer estranho que um antropélogo esteja chamando atengio para o “artificialismo” de ccertas separages ¢ limites entre sociedades e culturas. Mas creio que, con- temporaneamente, cabe justamente aos antropélogos relativizar essas no- ‘982s, no negando-as ou invalidando-as ideologicamente, mas apontando a sua dimensio de algo fabricado, produzido cultural e historicamente. NEO se trata de ser nacionalista ou internacionalista, mas sim de chamar aten: ‘edo para a complexidade da categoria disténcia e disso extrair consequén cies para 0 nosso trabalho cientifico. Assim, volto a0 problema de Da Matta, para sugerir certas compli cages. O que sempre vemos e encontramos pode ser familiar mas néo é nnecessariamente conhecido e 0 que nfo vemos e encontramos pode ser exético mas, até certo ponto, conhecido. No entanto, estamos sempre pressupondo familiaridades e exotismos como fontes de conhecimento ou desconhecimento, respectivamente. Da janela de meu apartemento vejo na rua um grupo de nordes- tinos, trabalhadores de construgo civil, enquanto alguns metros adiante cconversam alguns surfistas. Na padaria hé uma fila de empregadas domés- ticas, trés senhoras de classe média conversam na porta do prédio em frente; dois militares atravessam a rua. Ndo hé davida de que todos esses indiv(- «duos e grupos fazem parte da paisagem, do cenério da rua, de modo geral estou habituado com sua presenga, hé uma familiaridade. Mas, por outro lado, 0 meu conhecimento a respeito de suas vidas, hébitos, crengas, valo- res € altamente diferenciado. No s6 0 meu grau de familiaridade, nos termos de Da Matta, estd longe de ser homogéneo, como © de conhecimen- ‘to € muito desigual. No entanto, todos no s6 fazem parte de minha socie- dade, mas s80 meus contempordneos e vizinhos. Encontramo-nos na rua, {alo com alguns, cumprimento outros, hé os que s6 reconheco e, evidente- mente, hé desconhecidos também. Trata-se de situacfo diferente de uma sociedade de pequena escala, com divisdo social do trabalho menos com- plexa, com maior concentrago ou menor némero de papdis etc. Jé discuti, ‘em outra ocasio, © problema do anonimato relativo na grande metrépole, chamando atengdo para a existéncia de dreas e dominios até certo ponto auténomos que permitem um jogo de papéis e de construcio de identidade bastante rico e complexo.* O fato é que dentro da grande metrépole, soja Nova York, Paris ou Rio de Janeiro, hd descontinuidades vigorosas entre 0 TCom L.A. Machado da Sika, "A organizaeso tocial do melo urbeno”, inéto. observando 0 familiar 127 “mundo” do pesqusadot« outros mundos,fazendo com que ee, mesmo tendo novasorauine,parense ou croc, pons ter exprsnls dee hers, néoreconhecimento ou até choque culturalearmpartven Gs pa, 4 socndades 0 regdes “exéticas". Na opinido de De Mata foe cae twee om a mairia das pessoos dentro de sociedad conplons ree tm que a raldade eas catogorias soci su vltscrfo here errquiaorganizads, mapa e, portanto,cadn eateyois toe en ee luge através de esterebtpos como, por exernplo:e Waban ne rege ‘arab’, ignorant, inant, sibnutidoro wurata # reson nado ete. Eu acrescentara que a dimensto do poder ¢ de oe ca, {urderealpr corto dev orrauia dete apa A ee tse dt pessoas, os expecatvs de repenaes neeae dene et. elaine dtibudo see dope eo oe Iantedesiqul em uma sociedad de clases Anim oor pinto mot de um mapa que nos femilarza com os cenrios este one, a nosso cotdiano, dando nome, lugar e poseSo os indvidwee fe entanto, no significa que conhecemos 0 ponto de vista ea viséo de mundo or diferentes atores em uma stuagdo socal nem at reps ace eb detrds dessa interagdes, dando contnuidade 90 str, Lisp nego Besauisador membro da sciedade,colocese, inevitavemente ¢ encas de seu tug @ de suas pesbldades de restveao ou teres Poder “‘pér-se no lugar do outro”. E preciso chamar atengdo para o fato de ue mesmo nas soiedades mais hierarquzadar Né momeoee: Sten u paps sciis que permitom a rfc, relatzaedo ou od eee tendéncias, éreas @ dominios onde se evidencia a procura de contestar ¢ ‘edefinir hierarquias @ a distribuigio de poder. Ao contrério de sociedades {radicionais mais estdveis ou integradas, esté longe de haver um consense em torno dos lugares e posiedes ocupados e de seu valor relativo, Existe o dlssanso om varios niveis, a possibilidade do conflito 6 permanente ¢ ares, lidade esté sempre sendo negociada entre atores que apresentam interesses dlvergentes. Embora existam os mecanismos de acomodagao ou de apest, uamento, sua eficécia ¢ muito variével e, até certo ponto, imprevistvel, Hd : antropslogos, sige, Gienitas poitios ee. estio constantomente entande oe Sea F Garieno peo SopXtt,2r4blho clsico de Louin Dumont, Homo hierarchies. Pris, Gall 1965, onde 0 autor mosis que mesme ne Ta, modelo de secccede ea margem para a safda ou estranhamento da | eo 128 individualismo e cultura 5, levantando dividas, revendo premissas, questionando, E claro ‘que isso varia em funcgo de n possibilidades — origem social, tipo de for magio, orientagZo tebrica, posic#o ideolbgica, entre outras, ‘Mas, mesmo ‘em se tratando de individuos e correntes mas ligados ou identificados com tendéncias conservadoras, ou até reaciondrias, o préprio trabalho de inves- tigacdo e reflexdo sobre a sociedade e a cultura possibilita uma dimensio nova da investigacdo cientifica, de consequéncias radicais — 0 questiona- ‘mento ¢ exame sistemético de seu proprio ambiente. As analogias com a psicandlise, embora um tanto perigosas, sé0 Sbvias. Trata-se,afinal de con- ‘tas, de uma tentativa de identificar mecanismos conscientes e inconscientes, que sustentam — e do continuidade a — determinadas relacGes e situagies. Assim, volta-se a um ponto critico. Ndo 6 0 grau de familiaridade vari ‘fo ¢ igual a conhecimento, mas pode constituir-se em impedimento se no for relativizado e objeto de reflexdo sistemética, Posso estar acostumado, ‘como ja disse, com uma certa paisagem social onde a disposicSo dos atores ‘me 6 familiar; a hierarquia e a distribuigZo de poder permitem-me fixar, rosso modo, os individuos em categorias mais amplas. No entanto, isso fo significa que eu compreenda a l6gica de suas relagdes. © meu conhe- cimento pode estar seriamente comprometido pela rotina, hébitos, estere6- ipos. Logo, posso ter um mapa mas no compreendo necessariamente os princfpios ¢ mecanismos que 0 organizam. O processo de descoberta © anélise do que é familiar pode, sem divida, envolver dificuldades diferentes do que em relagio ao que ¢ exético. Em prinefpio dispomos de mapas mais complexos e cristalizados para nossa vida cotidiana do que em relacdo a ‘grupos ou sociedades distantes ou afastados. Isso no significa que, mesmo 20 nos dafrontarmos, como individuos e pesquisadores, com grupos. situa- ‘¢Bes aparentemente mais exdticos ou distantes, néo estejamos sempre clas- Sificando e rotulando de acordo com principios bésicos através dos quais foros e somos socializados. E provével que exista maior namero de divi das e hesitagdes como as de um turista em um pa’s desconhecido, mas os ‘mecanismos classificadores esto sempre operando. Dentro ou fora de nossa sociedade, nés, pesquisadores ocidentais, estamos sempre, por exem: plo, trabalhando e nos referindo & categoria indiv/duo como unidade basi ca de mapeamento. No entanto, através da obra de Louis Dumont, sabemos {que existem sociedades em que essa categoria néo ¢ dominante. Mesmo dentro da sociedade brasileira ha grupos e éreas que apresentam fortes dife reneas e descontinuidades em relaco & noedo dominante de individuo.® 7 ona. 8 Refiro-me a esta questo om “RolapSee entre a antropologia « psiqulatrs", n Revista da Associoeao de Priquiatria e Psicologia da Infancia @ da Adolescéncia Rio, 1976, n@ 1. (Caprtulo VI dete livro.) observando 0 familiar 129 sem querer entrar em discusses de natureza fllos6tica, nfo hé como deixar ‘tem um caréter aproximativo e no definitive.” O que significa a velha 6 gstudé-lo sem paranGias sobre a impossibildade de resultados imparcais, m. Tive oportunidade de pesquisar um universo de pequena classe médi verso de pequena clas iawhite collar que me era familiar através do mapa hierérquico e politico de minha sociedade e de meu bairro."° Através de esterestipos localizava os mora. 3 SHORE Oltiord, The integrin of cultures Nova ¥ ‘ ‘ of cuter. Nova York, Bate 0 {Ed. bras: intorpretopio das culturas. Rio, Zahar, 1978.) cara 40 Ver Velho, Gilberto, A utopia urbana u Fie sealhe, Gilberto, A utopia urbane: um estudo de antropotoga coca. 3° ed, 130. individualismo e cultura dores de grandes prédios de conjugados. Ao passar por um desses edi cios, “sabia’” que era um “balanca’, que havia desconforto, falta de higiene e que seus moradores ram de condicao social inferior, sujeitavam-se a cor ‘¢8es de vida mais ou menos degradantes por estarem alienados, sugestio- néveis. Certamente tinha divides, questionava alguns desses esterestipos. ‘Jd conhecera pessoas que moravam em “balancas”” e que nfo se ajustavam 1 essas pré-nocées. De qualquer forma, se um desses prédios, particular mente, tornou-se mais familiar ainda, quando para ki me mudei, o meu ‘conhecimento de sua populacdo era precério. O esforgo de entender & registrar 0 discurso do universo, seu sistema de classficagdo e de captar sua visio de mundo nem sempre foi berr-sucedido. Percebia como a minha inseredo no sistema hierérquico da sociedade brasileira levava-me constan: temente a julgamentos apressados e preconceituosos, as vezes até por que rer drasticamente repelir as nogGes anteriores, caindo em armadilhas inver sas. Depois de ano e meio de residéncia no prédio, creio que consegui perceber alguns mecanismos que sustentavam a l6gica das relagdes socials internas e externas e também captar algo do estilo de vida e visio do mun: do locais. Estou consciente de que se trata, no entanto, de uma interpre: ‘apo e que, por mais que tenha procurado reunir dados “verdadeiros” e ““objetivos"* ‘sobre a vida daquele universo, a minha subjetividade esté presente em todo o trabalho, Isso estd claro para mim na medida em que volto constantemente 2 reexaminar a pesquisa e mesmo a revisar o local da investigagio. Por outro lado, sendo um grupo que vive na minha cidade, conheco outras pessoas, inclusive cientistas socials que 0 encontram, qué também tém alguma familiaridade ou até fizeram pesquisas em contextos semelhantes, Dossa forma 2 minha interpretagdo esté sendo constantemen. te testada, revista e confrontada, © mesmo no se dé com muitos estudos de sociedades exéticas e distantes, pesquisadas por apenas um investigador, fem que no houve oportunidade de maiores discusses ou polémicas. Assim, a interpretacdo de um investigador fica sendo a verso existente sobre determinada cultura, no sendo exposta a certos questionamentos. ‘Ao contrério, na sociedade brasileira hé muitas opiniées e interpretacées sobre Copacabana, carnaval, futebol etc., colocando os pesquisadores no contro de acirradas polémicas. Embora familiaridade nao seja igual a conhecimento cientifico, 6 fora de davida que representa também um certo tipo de apreensfo da realidade, fazendo com que as opiniées, vivéncias, percepobes de pessoas ‘sem formaco académica ou som protensées cientificas possam dar valio: sas contribuigées para o conhecimento da vida social, de uma época, de lum grupo. Aiém disso, hé individuos ou grupos que talvez por um movi mento de estranhamento, como certos artistas, captam e deserevem signi ficativamente aspectos de uma sociedade de maneira mais rica e reveladora do que trabalhos mais orientados (real ou pretensamente) de acordo com observando o familiar 131 95 adres clentificos. Os exemplos na literatura so 6bvios: Balzac, Proust, Thomas Mann e, no Brasil, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Oswald de Andrade etc. Também no teatro, cinema, masica, artes plésticas pode. Fiam ser citados exemplos. Isso sem falar em géneros menos “‘nobres”” ‘como o jornalismo em suas vérias manlfestagiies, a historia em quadrinhos a literatura de cordel, entre outros. Ou seja, numa sociedade complexa contemporénes como a brasi- |eire, © antropblogo apresenta sua.interpretagdo, que, por mais que possa ‘ter certa respeitabilidade académica, 6 mais uma verséo que concorreré com outras — artisticas, politicas, em termos de aceitacdo perante um ptr blico telativamente heterogéneo. Hé outras pessoas, profissionais de in. clas socials ou no, observando e refletindo sobre o familiar — a nossa sociedade em seus miltiplos aspectos, com esquemas e preocupapses dife. Fentes. Se o interesse por grupos tribais, por exemplo, & relativamente Festrito, o mesmo no se pode dizer sobre umbande, escola de samba, uso de téxicos, homossexualismo e outros temas que tém sido pesquisados por antropélogos. Assim, ao estudar 0 que esté préximo, a sua propria sociedade, 0 antropélogo expée-se, com maior ou menor intensidade, a um confronto ‘com outros especialistas, com leigos e até, em certos casos, com represen.. ‘antes dos universos de que foram investigadores, que podem discordar des interpretages do investigador. Vivi essa experiéricia em minha pesquisa Sobre uso de téxicos em camadas médias altas,"" quando pelo menos dues Pessoas que eu tinha entrevistado no concordaram com algumas das mi inhas conclusbes, apresentando criticas que me levaram a rever pontos importantes. Embora isso possa acontecer no estudo de outras sociedades, & menos provével porque, normalmente, feita @ pesquisa, o investigador volta para o seu pais ou cidade e tem menos oportunidades de confrontar- 58 com as opinides daqueles a quem estudou. Parece-me que, neste nivel, © estudo do familiar oferece vantagens em termos de possibilidades de Fever @ enriquecer of resultados das pesquisas. Acradito que seja possivel transcender, em determinados momentos, as limitag8es de origem do an- tropélogo e chegar a ver o familiar néo necessariamente como exdtico mas como uma realidade bem mais complaxa do que aquela representada pelos ‘mapas @ o6digos bésicos nacionais e de classe através dos quais fomos socia. lizados. O processo de estranhar o familiar torna-se possivel quando somos ‘capazes de confrontar intelectualmente, e mesmo emocionalmente, dite. fentes verses © interpretacdes existentes a respeito de fatos, situagtes. © estudo de conflitos, disputas, acusacBes, momentos de descontinuidede Ye Rate ano: um eto desc «herr $80 Pula, 975 (ren Doutoramentoapreentade Faclsode de Flo Cava By oe) ae 132. individualism o cultura ‘em geral é particularmente Util, pois, ao se focalizarem situagbes de drama social, podemse registrar 0s contornos de diferentes grupos, ideologias, teresses, subculturas.ete., permitindo remapeamentor da sociedade. © | ‘estudo do rompimento e rejeicgo do cotidiano por parte de grupos ou in

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