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« Sair Neoliberalismo como gestao do sofrimento psiquico Vian olson da Silva Junior, Christian Dunker Vladimir Safatle, Nelson da Silva Junior, Christian Dunker (Orgs.) como gestao do sofrimento psiquico 1301 <> «Sair_ Neoliberalismo como gestao do sofrimento psiquicoViaviinir olson da Silva Junior, Christian Dunker TQAOR A psiquiatria sob o neoliberalismo: da clinica dos transtornos ao aprimoramento de si Antonio Neves, Augusto Ismerim, Fabricio Donizete da Costa, Luckas Reis Pedroso dos Santos, Mario Senhorini, Paulo Beer, Renata Bazzo, Sonia Pitta Coelho, Viviane Cristina Rodrigues Carnizelo, Nelson da Silva Junior Do monélogo da razao sobre a loucura ao controle social A histéria da psiquiatria & indissociével da fungio de gestio de frontciras entre os conflitos psiquicos ¢ 0s conflitos sociais (CARVALHO et al, 2020; ROSE, 2018; Dunker, 2015; Foucautt, 2014; Wattace, 1994; Basactia, 1985). Em A histéria da loucura, Foucault (2014), demonstra que a psiquiatria ja nasce como um dispositivo teérico € trabalho ¢ produgio capitalista. Sabe-se que 0s loucos, no século XVII, eram confinados em centros de internagao resultantes de um hibridismo entre instituig6es carcerdrias e hospitalares, destino de diversas figuras da re a ar (Foucaut até entéo errantes eram condenadas ao trabalho forgado, visto como um dos remédios ao mal que lhes acometia. Assim, a ociosidade passava a ser vista como aftonta. E seu oposto, o trabalho, como meio para alcancar determinados fins, passa a ser no somente um fim em si mesmo, como também um ethos, nas palavras de Foucault (FoucAULT, 2014; RezeNpe, 2001).” ssivelmente ocorrido na Inglaterra, em meados 7s <> ralismo como gestao do sofrimento psiquicoViaviinir Silva Junior, Chistian Dur ulo XVIII (PicHor, 2009) Paralelamente ao ethos do trabalho, a racionalidade se firmava como um principio de organizacao social e compreensio da esséncia do homem.” Em didlogo com a filosofia politica de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), 0 médico Philippe Pinel (1745-1826) iri desenvolyer, com suas experiéncias asilares, o seu principal livro, intitulado Traité médico- philosophique sur Ualiénation mentale ou la manie (Tratado. médico- filoséfico sobre a alicnayéo mental ou a mania), publicade em 1801. Segundo Facchinetti, as reformas pinclianas teriam fundado uma nova Basicamente, 0 Tratado pode ser compreendido em rermos (Facctunern, 2008, p. 503). Com as revolucées burguesas e, em especial, a Revolucio Francesa (1789-1799), surge a necessidade de todo um aparato juridico de protegio da populagéo contra 0 poder do Estado. Era necessério legitimar a detengio de determinados civis via um discurso socialmente ng/a01 << > « « « sais <> « 122/301 <> « «Sair_ Neoliberalismo como gestao do sofrimento psiquicoViaviinir Nolson da Silva Junior, Christan Dunkor : =TQAOR curso no mundo médico que estariam aliadas com mutagées socioculturais mais amplas da pés-modernidade. Para Gray, a medicina moderna manteve um foco muito unilateral na dimensio médica das doengas ¢ seu tratamento, deixando de lado toda uma demanda relacionada a desconfortos que nio se relacionavam a uma nosografia estipulada. Assim, a medicina hegemdnica nao estaria respondendo a uma demanda de satide que nao se restringe & cura de doengas, mas pede pela promogio de bem-estar.”” Para chegar ao enhancement com plenos direitos ¢ poderes, contudo, @ psiquiatria teve de passar por dois momentos anteriores que tivemes também de tratar no nosso texto. O primeiro deles ¢ 0 do processo de biologizagao da psiquiatria. Veremos como o sujeito da psiquiatria biolégica passa a ser entendido como auténomo em relacio ao contexto histérico e social que o circunda. Nesse dominio, exclui-se a possibilidade de pensar a dimensio social como campo produtor de patologias psiquicas e, portanto, de intervengio psiquidtrica. Ai Outro desenvolvimento importante na histéria recente da para entendermos as tecnologias de enhancement na discipl extensio sem precedentes do campo. Dos anos 1970 em diante vivemos S6 entéo teremos as ferramentas necessirias para entender o fendmeno do enhancement. Como veremos, aqui a psiquiatria deixa de operar em uma légica “marginalidade x norma”. O norte das Intervengoes psiquisitricas nao € mais o da adaptagao do sujeito desviante aos moldes sociais padronizados. Nao h4 mais um conflito entre aspiragées e desejos pessoais e os imperativos sociais normativos, mas sim uma sinergia entre esses vetores rumo a autorrealizagao, que faz coro a ordem econdmica de produgio. oO 124/301 <> « «Sair__ Neoliberalismo como gestao do sofrimento psiquico Via") Nolson da Silva Junior, Christan Dunko =TQAOR 2013). Estabelece-se assim dentro do saber psiquidtrico uma delimitagio da producéo de conhecimento vilido que orienta as pesquisas da area a procurarem os indicios bioldgicos do psiquico (VIDAL; Onrreca, 2019; Rost, 2018). Essa configuragao do campo psiquidtrico 0 aproxima do cixo epistemolégico que funda a medicina moderna, a saber: 0 modelo anatomoclinico, de Marie Francois Bichat (Foucautt, 2015). O paradigma anatomoclinico propée que, para toda manifestagio sintomatolégica clinica de um paciente, deve haver um correlato organico identificével. A_ medi orginica para intervir no dominio biolégico da docnga. Assim, cabe reconhecer que essa fundamentagio biolégica da psiquiatria responderia também a pressées internas ao campo da medicina a fim de canonizar a psiquiatria como ciéncia médica (BirMAN, 1999). Exemplos importantes da influéncia dessa matriz de pensamento na medicina em geral e na psiquiatria em particular séo estudos neuroanatémicos de Antoine Laurent Jess¢ Bayle (1799-1858). Em 1826, Bayle ird publicar seu Traité des maladies du cerveau et de ses membranes: maladies mentales (Tratado de doencas do cérebro ¢ de suas membranas: doencas mentais), lancando bases para o modelo anatomoclinico aplicado & psiquiatria, tendo como érgio de destaque especial o cérebro. Temos entio jd em 1826 uma proposta de se entenderem os transtornos mentais em uma gramitica biolégica (Pico, 2009). na deveria assim discernir essa base Do DSM-III ao RDoC: uma biologizacao radical da psiquiatria Uma reconstrugao histérica da constituisgao dessa hegemonia do aporte bioldgico na psiquiatria contemporinea deveria comegar com 0 processo de constituigio do Manual Diagnéstico e Estatistico de Transtornos Mentais, terceira edi¢io (DSM-III). Embora importante, tal passagem nao seré trabalhada em demasia, tendo em vista os limites impostos por este capitulo, Optamos, pois, em resgatar o estorgo de sintese jd apresentado no livro Patologias do social (SaravLe; Suva JUNIOR; Dower, 2018). Com o langamento de sua terceira edigio, em 1980, 0 DSM iré marcar uma transi¢ao das priticas psiquidtricas: substitui-se a roy 126/301 <> «Sai Neoliberalismo como gestio do sofrimento psiquice - Viasini Sefalo, Nolson da Siva Junior, Christan Dunke TQAOR um paciente em determinado diagnéstico tem como critério a verificagio de certos sinais e sintomas ao longo de um tempo determinado. Importante notar que, apesar da auséncia de etiologia para a constituiga dos diagnésticos, havia uma aposta de que eles apresentavam um correlato biolégico identificivel. e que. com os avangos técnicos da disciplina, ou de disciplinas correlatas, como a neurologia, tais correlatos seriam encontrados. Mas essa aposta nao se confirmou. Pelo contrério: com a patente fragilidade dos critérios eminentemente fenotipicos, vemos, desde a publicagio do DSM-IV, cm 1994, uma preocupagao da comunidade psiquidtrica com a objetividade de scus diagndsticos, ou seja, com a possibilidade de atribuir a eles um fundamento biolégico. Frente & deficiéncia da descri¢io da listagem fenotipica para a realizacio de um diagnéstico valido, 0 passo pretendido nese momento seria a inclusio, para além dos sinais e sintomas observaveis, dos almejados indicadores biolégicos/biomarcadores. Ainda que a quarta edigao do manual mantivesse a abordagem fenotipica para a construgio dos diagnésticos, essa mudanca movimentou toda uma agenda em pesquisas dentro da psiquiatria, Entre a quarta ¢ a quinta edigio do manual, a APA, organizagio responsivel pela construgio e divulgagio do manual, langou um importante documento chamado Research Agenda for DSM 5 (Kuve; First; ReGieR, 2002). Como o nome deixa claro, tratava-se de uma agenda de pesquisas que deveria guiar a construgéo da edigao vindoura. Os pesquisadores envolvidos puderam refletir para além dos moldes diagnésticos do DSM IV/IV-TR e pensar assim o futuro da psiquiatria ante os novos desenvolvimentos no campo. Vemos que, jd na introdugéo, os autores declaram que uma das razoes deste documento era a constatagao de que 0 modelo diagnéstico do DSM, até entio chamado de neokraepeliniano, produziu avancos timidos demais na identificagao de bases orginicas para os transtornos psiquidtricos (Kurrer; First; Recier, 2002). A crenga de que a delimitagao cada vez mais precisa dos transtornes pela covariagio dos » 128/301 <> «Sair_ Neoliberalismo como gestao do sofrimento psiquicoViaviinir olson da Silva Junior, Christian Dunker TQAOR sintomas em diversos pacientes nos levaria ao estabelecimento de transtornos com bases patofisiolégicas distintas se mostrava deficiente: Os transtornos no DSM-III foram identificados nos termos das sindromes, sintomas que sio observados em populagdes clinicas para covariar junto nos individuos. Supunha-se que, como na medicina cem geral, 0 fendmeno da covariagio do sintoma poderia ser explicado por uma etiologia subjacente comum. Como descrito por Robins ¢ Guze (1970), a validade dessas sindromes identificadas poderia ser incrementalmente melhorada através de uma descrigio clinica cada vez mais precisa, estudos laboratoriais, delimitagio de distirbios, estudos de acompanhamento do desfecho (follow up studies] [da doenga] e estudos das familias (family studies]. Uma vex totalmente validada, essas sindromes formardo a base para a identificagao de grupos padronizados ¢ etiologicamente homogéneos. que responderiam uniformemente aos tratamentos cspecificos. Em mais de 30 anos desde a introdugio dos critérios Feighner por Robins ¢ por Guze, que conduziram eventualmente ao DSM-III, 0 objetivo de validar estas sindromes e de descobrir etiologias comuns permaneceu elusive. Apesar da proposicao de muitos candidatos, nenhum marcador laboravorial foi descoberto come sendo especifico na identificagéo de qualquer uma das sindromes definidas pelo DSM (Kurrer; First; RecteR, 2002, p. 32). Como vemos aqui, a necessidade de encontrar explicagées etiolégicas orginicas para os transtornos mentais parecia pressionar a comunidade envolvida na construgéo do DSM a procurar por novas bases de pesquisa para os indicadores bioldgicos dos transtornos psiquidtricos. Porém, isso nao aconteceu. Em 2013, 0 DSM-V € publicado, e 0 diagndstico neokraepeliniano é mantido, apesar dos apontamentos que vimos na agenda de pesquisa Nas repercussées de seu langamento, que se deu a revelia das contradigées € dissondncias j4 evidentes na agenda de pesquisa, uma terceira solugao foi anunciada: esquecer as classificagdes precedentes € buscar novas classificages a partir de estudos diretamente sobre 0 cérebro (InseL, 2013). A confiabilidade diagnéstica adquirida pelo DSM » 19/31 <> « « «Sai Neoliberalismo como gestio do sofrimento psiquice - Viasini Sefalo, Nolson da Siva Junior, Christan Dunker =TQAOR cada vez mais adequadamente no decorrer da pesquisa. Dentro do paradigma do RDoC, sio esses sistemas e suas partes que serio candidatos a espécies naturais, aquilo que ha de natural € constante no fancionamento humano (AKRAM; GiorDANo, 2017). Tanto os dominios quanto os constructos que constam hoje nas diretrizes do RDoC foram deliberados a partir de uma série de congressos que reuniram pesquisadores da psiquiatria, da psicologia e da neurologia, obedecendo a trés critérios: (1) Evidéncias de um construto funcional comportamental ou psicolégico, (2) Evidéncias de um sistema reuito neural que tenha um papel central na implementayio da fungio, ¢ (3) Uma relagio putativa a algum problema clinico ou sintoma (Akram; GiorDano, 2017). Atualmente, 0 projeto descreve seis dominios principais do funcionamento humano, ¢ dentro de cada dominio h4 uma série de constructos que podem ser componentes comportamentais, processos, mecanismos etc. Os dominios atuais sio valéncia negativa (incl constructos como medo, ansicdade, perda), valencia positint (inch resposta ao reforco, saciacao), cognigdo (inclui atencao, percepgao, meméria), processos sociais (apego, comunicagio social), sono-vig sensério-motor. Cada constructo pode ser analisado dentro de varias “unidades de anilise” (genética, molecular, _ comportamental, psicométrica, entre outras). E possivel entender esses dominios como analogias com os sistemas funcionais do corpo, como o sistema digestério, excretor ete. (Anam; Giordano, 2017). ou ci No que diz respeito & clinica, embora esse projeto — que é ainda ¢ fundamentalmente uma orientagao de pesquisa — nao esteja proximo desse ponto, a hipétese é de que as parologias poderio ser descritas como desequilibrios no funcionamento de diferentes partes dos varios sistemas. Isso est em consonancia com um principio anunciado pelo RDC de que todo constructo ¢ elemento de andlise deve ser avaliado a partir de uma visio dimensional, da normalidade 4s patologias: © RDoC incorpora uma abordagem dimensional explicita de psicopatologia. como denominado em muitas anilises recentes de psicoparologia. No entanto, em contraste com as visdes que 132/301 <> « « « « 136/901 <> « «Sair__ Neoliberalismo como gestao do sofrimento psiquico -Viav)imir Sefailo, Notcon da Siva Juror, Chron Danko “ = TQO@R pode ser melhor entendido na dindimica do gozo, em que a questio nao é a da adequacéo a normas sociais postas, mas a da autossuperagio dos limites do sujeito a todo momento (SarATLE, 2008). O que esta em jogo aqui é a busca por um bem-estar, com toda carga fantasiosa de um estado de vida melhor do que aquele que se vive no presente, Trata-se de viver uma vida melhor, da busca por uma wellness que esté para além da cura e de sua promessa de reestabilizagio de uma pretensa normalidade do funcionamento orginico. Mas no campo do gozo, as definigoes do que seria uma vida melhor ja nao sio oriundas dos desequilibrios incernos de cada sujeito, Essas definigées sio marcadas por dindmicas ¢ interesses que Ihes escapam, mas que hes chegam como ideais a serem buscados. Ora, 0 conjunto desses ideais, ral como vimos no caso do ideal de liberdade presente nas matrizes psicolégicas do neoliberalismo, & definido segundo os interesses econdmicos da ldgica neoliberal. Esse é © novo horizonte a partir do qual intervengdes médicas néo mais focadas na nosio de docnga retiram seu sentido, Ainda que isso néo seja novidade (a cirurgia plastica e a dermatologia cosmética esto ai para nos lembrar disso), essa tendéncia na medicina parece ter se acentuado nos tltimos anos ¢ ganhou maior atengao da comunidade médica. Existe hoje toda uma sorte de demandas em satide que explicitam nio uma vontade do paciente em se livrar de uma doenga devidamente classificada, mas sim de uma insatisfagio mais etérea com a propria existéncia, uma vontade de estar melhor. Em uma tentativa de dar conceitos para essas mudangas, podemos dizer que essa pritica médica para além da doenga se apoia em um mal-estar nao relacionado a uma nosologia. O tema da utilizagio de solugées médico-tecnolégicas para a resolucio de conflitos dessa natureza ¢ sua interface com a economia jé foi trabalhada em relacao as modificagoes corporais.~ Seguindo esse primeiro trabalho, aqui, em relacéo ao psiquismo, poderemos tragar uma linha entre terapéutica e enhancement. Enquanto a intervencéo terapéutica/adaprativa teria supostamente uma caracterizacéo clara da doenga ¢ da sua intervengio, os processos de aprimoramento se dariam sem a presenga de uma doenga devidamente < 139/301 <> « «

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