Compreender
Freud
GUIA ILUSTRADO
Hervé Castanet
Yves Rouviére3)
A sexualidade
E COMUM OUVIR QUE A PSICANALISE EXPLICA A VIDA
PSIQUICA, em todas as suas manifestag6es, das mais
simples até as mais complicadas, pela sexualidade.
“Tudo é sexual!” seria seu axioma. A leitura de Freud,
por menor que seja, afasta-se desse cliché pansexua-
lista no qual um Carl Gustav Jung, seu antigo disci-
pulo, se comprazia com seus arquétipos sexuais ime-
moriais. Primeiramente, a sexualidade freudiana
nao se reduz as praticas sexuais observaveis, aqui-
lo que se realiza no encontro de corpos na cama. Ela
jamais se apresenta em seu estado bruto, isolavel em
laboratério, mas é inseparavel de uma ficcao, de uma
“teoria sexual” — expressdo freudiana que designa as
teorias que as criangas constroem para explicarem os
enigmas da concepgao, do nascimento e da diferen-
ca dos sexos. Além disso, 0 sexual se distingue do
genital. Freud destruiu a crenga em uma sexualidade
unificada sob a primazia da genitalidade e que visa a
reproducao que a expressdo “instinto sexual” credita
ao mundo animal. A defini¢ao freudiana é mais am-
pla: “Em psicandlise, o termo sexualidade comporta
um sentido bem mais amplo, ele se afasta totalmen-
do sentido popular. [...] Nés consideramos como
centes ao dominio da sexualidade todas as ma-
goes de sentimentos afetuosos decorrentes da
37ae
fis primitivas. [...] Servimo
‘atribuindo-lhe o sentido
ben (‘amar’) [...],” escre
[..] que nos
fonte das emog6es sexu:
nos da palavra sexualidade
palavra alema liel )
aa er 910. Acrescenta, em 1920:
‘a todos aqueles que, de sua
ve Freud, em 1 ;
lembrar
seja permitido os aqueles que, de su
seare, langam um olhar de desprezo sob a psicar
Mea quanto a sexualidade alargada pela psicandlis
eeproxima do Eros do divino Platao[.-1” Da mesma
orrigird um erro que Ihe atribuimos
maneira, ele c
um desejo, € errone
sempre um contetid
clusivamente
és
do sexual ou que det
as pulsoes sexuais
exual e se resume
ta ex-
Em sua, nem tudo
a0 genital
Por serem sujeitos falantes, p
ara homen
siete
theres, a sexualidade aprese ry
‘a dificuldades. Nao é
a 0
0 encontro acabado entre o fio e a agulha. A relac
A relacio
problematica com a sexualidade nao é uma eventu
alidade para os homens e as mulheres, £ um dado
do qual ninguém escapa. A pedra fundamental de
descoberta da psicandlise se aloja neste ponto: a sexu-
alidade nao é jamais o que 6. Existe uma subjetiv
problemati
acio
a do sexo anatOmico para os seresfalantes
que nés somos. A ideia de uma sexualidade natural,
como se observa nos animais, com seu ritmo, seus pe
riodos, sua sistematizagdo, sua fixaao instintiva re
petitiva, € um mito — frequentemente uma pastoral
em que cada um saberia como fazer com seu corpo
sexuado e com o do(a) parceiro(a). Esse mito fascina.
Em uma carta a Ernest Jones, Freud anota: “Qualquer
um que prometa a humanidade liberd-la das provas
do sexo sera acolhido como heréi, deixemos que ele
fale — qualquer que seja a besteira que ele despeje’.
O sexual freudiano ¢ psiquicamente traumético e &
sob essa forma que prioritariamente ele se encontra.
Por traumitica ¢ necessdrio entender uma experién-
cia vivida e que provoca uma excitagao tio forte que
nenhuma elaboragio pode traté-la e, assim, perturba
39duradouram
cia que condicionam
princfpios de prazer e de constin
ji psiquico, o trauma €
0 equilibrio psiqui a
sae buir, entdo, & psicandlise um pessimismo radical
~ uma nova maneira de declinar a mal
le? De forma alguma.
inassimilavel. Deve
sobre 0 sexo
digdo que se abate sobre el
Para abordar o sexual, Freud inventa 0 conceito de
pulsio (Trieb) e acrescenta 0 de libido, definida com?
forca (ou energia) pela qual a pulsao se manifesta ™
vida psiquica. Com esses conceitos, a sexualidade he
a sido anteriormente
mana é pensada como jamais havi
40
linos e femininos. Arete
normal (=a unio das parte
las partes genitais no act
acaeefaen
ada. O critério nor-
mal/anormal nao é pertinente para a iit es
Freud, a sexualidade se encontra desnaturalizada
to heterosexual) nao explica ni
prtanto, problemitica, por se con
frontar com 0 inassimilavel. Uma prova disso sio as
“aberragdes sexuais” (desvios em relacac
a0 objeto
ou ao objetivo sexuais), que constitu
Mas perver-
ses, tal com
Freud as nomeia nos Trés ensaios sobre
dade (1905-1925)
priticas animais ou monstruosas. Ao contritio, sio
a teoria da sexual
las nao sio
plenamente humanas, e a linguagem moral (religio
sa, ideol6;
ca, juridica) que as coloca fora das normas
quer crer em uma natureza humana legitimada por
uma transcendéncia presente em toda eternidade.
Freud insiste nisso (e suas formulagées, hoje, sio ain
radicais): “Por motivos estéticos, gostariamos de poder
imputar essa aberragao, assim como outras graves aber
rages da pulsao sexual, aos doentes mentais’; “mas isso
nio é possivel. A experiéncia mostra que os distirbios
da pulsao sexual observados nestes tiltimos nao sto
diferentes daqueles dos saudaveis, qualquer que seja
sua raga ou sua condicio”
‘As neuroses integram as perversdes: “Nenhum
adicionar a fi-
nto qualquer,
ser saudavel deixa provavelmente de
nalidade sexual normal um supleme! |que podemos
basta, por ele m abst
um emprego reprovador do termo perversao
Freud nio diz que perversio ¢ neurose (0s “que
se portam bem”) sio equivalentes. Ele afirma que a
pulsio sexual, enquanto tal, nao esté submetida ao
Pitério normal/anormal e que a disting4o neurose/
0 da luta entre a pulsdo sexual e
algumas resisténcias psiquicas — “E permitido supor
que essas forcas participem da relegagao da pulsao aos
limites estimados como normais [...|”. A referéncia
constante as perversdes nos Trés ensaios... é crucial
para definir a sexualidade humana, Sem elas, a sexu
alidade dita normal é incompreensfvel, exceto quando
é imaginada como submetida 4 proctiagao — “Veri-
fica-se sem esforcos que a sexualidade normal emer.
ge de algo que existiu antes dela [...)" As perversoes,
dissociando o objeto e a finalidade e recompondo-os
de miltiplas maneiras (as inversdes, as pedofilias, as
transgressdes anatomicas, os fetiches, as fixagdes com
finalidades sexuais preliminares, etc.), isolam os com-
ponentes de toda sexualidade humana. Ha “conexio’,
diz Freud, entre as perversoes e a sexualidade normal!
Como os conceitos de pulsdo e de libido desvirtuam
a sexualidade pensada como finalidade, visando a repro-
duo? Por que, para a psicandlise, nao existe uma si
tese sexual — uma pulsao total? A pulsio sexual noe
um bloco incindivel e nao é proveniente nem do arcaico
nem do primordial. Ela é uma montagem, uma bricola-
gem, um conjunto de diversos elementos heterogeneos
nciar o absurdo de
mo, para dent
perversio é um efeit
42
e sem cabeca. Imaging
tomada de gis ativando uma pluma dep
cécegas no ventre de uma mulher. O me
pressio do movimento, se
wansforma:aboca de dona
torna-se uma tomada de gise um sobrede nen
Bela comparacio que tira a pulsio de uma im
Epinal, na qual tudo é liso, habitual e meee e
Efetivamente, Freud isola os elementos da pt aaa
A presso, que é 0 fator motor ans
do: 1
‘um pedaco da
vidade"; 2) A meta, que é sempre a eee
40 apaziguamento da excitagi; 3) O objeto, que ¢ em
que ou por onde a pulsao visa a sua meta — “Eo que
existe de mais varidvel na pulsao, ele nio lhe é origina
riamente ligado; 4) A fonte, entendida como o proces
so somitico localizado em um érgio, Cada um desses
elementos pode sofrer transformagées, ter um destino
especifico. Nada é preestabelecido quanto ao uso da
pressdo; é um estado bruto, pronto para o tratamento
psiquico. Os meios de atingir a meta (= a satisfagio)
so miltiplos; eles podem derivar, suspender-se, com
binar-se, alterar-se, ser ativos ou passivos. Se o objeto
nao esta ligado originariamente a pulsio, entio ela
é radicalmente diferente do instinto, pois este, por
sua vez, funde meta e objeto. O objeto pode mudar
ser substituido, em qualquer momento do destino pul-
sional. Pode ser um objeto estranho ou uma parte do
préprio corpo. Quanto a fonte, ela pode-se agarrar em
nao importa qual parte (interior ou exterior) do corpo
vivo, sem se preocupar com o genital
8
——E—————————— |‘a, Apenias mon
lidade monolitic
xual
tipo podem inscrever 0°
{ Velas sio numerosas, oriundas de
miltiplas, manifestam-s¢
rdependente umas das outras € aPé
nidas em uma sintese mais ov
ia uma delas perse
Nao existe sexual
tagens pulsionais desse
nsciente:
10 incon
a primeira
fontes organicas
mente de forma i
has tardiamente so reUt
rrenos completa. A meta que cad
gue € a obtengio do prazer do Or
ae esas descricdes explicam em que pul
dona € parcial — sempre parcial em relagio a fina
fidade biolbgicss em. que a satistagdo aqul esté no
eurada e ligada a uma zona erogena autOnoma
desempenhar esse papel.
o? A resposta de Freud ¢
o freu.
qualquer 6rgio pode
sse parcial € definiti
ossivel encontr
talzagao dos elementos esparsos da pulsio? Nio. A
‘Metapscologia distinguiré o campo pulsional e aque-
Je do amor, que, por sua ve7, cria, efetivamente, uma
unidade, uma maneira de unit
é pulsional. Ele vem do Eu e & narcisico, pode cert
mente ligar-se
sim. Nao ¢ p' ar uma sintese, uma to-
o dispar. O amor nao
“ntimamente & atividade das pulsdes
ppalsoes e suas a pss
; io, ela
fs traz ao mundo consigo e é delas que proced a
@ que chamamos de sexualidade normal do adulto?”
Por isso, Freud define a crianga como um
° mo um Perverso po-
limorfo. Essa expressio foi mal utilizada. Tomar ie
Tomaram-na
‘como a afirmagao de que a crianga era um depravad
precoce, tum perverso (no sentido das priticas perver-
sas dos adultos), € a moral é ofuscada com isso, Uma
geral. Entre
como
tese assim nao poderia ser aceit
tanto, ela apenas tira consequéncias da caracteristica
parcial, polimorfa, da pulsio; a inocéncia infantil cst
am. Era ne:
perdida. Com isso, as criticas nao ces
cessirio restaurar a inocéncia. A sexualidade infantil
seria uma invencdo de Freud — um forgamento seu.
sexuais posteriores’, mas pertence a esse campo em
que se trata de se amar por meio do outro, em que
existe reciprocidade entre amar e ser amado. O cam-
po pulsional, por sua vez, é pura atividade — 0 Eu
esté excluido disso, A sexualidade é, portanto, parcial,
sonhar com uma sintese, enfim,
I! Freud man:
perversa. O amor faz
possivel... mas ele nao depende do sexua
tém a heterogeneidade dos dois campos.
44nbram disso.
‘A amnésia in
ada com 0 in.
rultos nao se Jem
rnte uma prove.
we ser relaciona
Jora do Eu. Ela é
‘A prova? Os ad
quecimento é justame
o sexual de
a instanci
strutiva, poi
a neurose
‘amnésia histérica”, reconhece
ages da sexualidade infantil
fantil sobre
nte € com
ia recalcad
is nos permite compre
“Sem amnésia
conscie!
mesmo bas
ender o que €
infantil, nao have
as manifest
tante
recalcado na
Freud. Entre
distingue-se, por exemplos 0 sugar (¢ 0 autoerotismo),
diate Gab wet anda’: A s0cc' voluptuosa
.e manter até a fase
ecém-nascido e pode-
‘onsiste em uma repeti¢ao ri
desvinculada de uma finalidade
ovém de uma fome nao apa
ica 0 lébio, a lingua, ou
aparece nO F.
adulta. Ela c
boca de uma succdo
alimentar. O sugar nao pr
ziguada. Essa atividade imp!
Gualquer outra parte do corpo que se atinja, inclusive
arjedio do pé. Frequentemente, uma preensio ¢ agre
gaia aisso, com uma insistencia ritmica simultanea do
Tbulo ou de uma parte do corpo de uma outra pessoa.
por sua satisfacao sexual, leva ao sono e
partes sen
tmica com a
Essa suceao,
‘mesmo a uma forma de orgasmo, ja que
siveis de um corpo, entre elas, os Orgaos genitais, po-
dem, por fric¢do, se associar a isso. O sugar, portanto,
se abre para a masturbacao. Incidindo sobre as partes
do proprio corpo, o sugar é autoerético. Como cle ¢
constituido? Ele éalimentado pela procura de um pre
zer ja vivido — aquele da mamada no seio materno,
na qual a zona erégena eram os labios da crian¢a. Esst
satisfagdo do sugar se apoia na satisfagao anterior 44
necessidade alimentar, que, em seguida, é transpos'*
46
sta uma
ipo a qualquer
Mamar o seio
outra satisfacao. Freud ira até escreve
da mie torna-se 0 ponto de partida de toda a vid:
a de toda a vida se-
s atingido de toda a satisfacao si
xual, o modelo jar
xual posterior
corpo ¢ libertar a crianga do m
anca do mundo exterior qu
ior que ela
uturat
A vantagem de escolher partes do
domina mal. Quais consequéncias para a vid:fixaga sa satis
Se essa fixagao ness
tard de beijar, beber ou fumar. Se o recalque interven
entao a repulsa quanto 4 alimentag4o se convertera
em um vommito histérico. Esse curto exemplo demons-
tra trés caracteristicas da vida sexual infantil: ela se
constréi pelo apoio em uma fungao corporal vital; nao
conhecendo nenhum objeto sexual constituido no ex-
terior, ela é autoerética; sua meta sexual esta limitada
auma unica zona erégena fora da primazia genital.
As perversées e a vida sexual infantil permitiram a
Freud, por intermédio da desmontagem da pulsao, es-
tabelecer que o inconsciente nao inscreve nada quan-
to a ser masculino ou a ser feminino. O inconsciente
nao escreve a diferenca entre os sexos. A pulsio é
definitivamente parcial!