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Artigo ANPOCS - Estudos Legislativos
Artigo ANPOCS - Estudos Legislativos
São Paulo
2021
1
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos.
Mestra e licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São. Paulo. Contato:
lillian.lino91@gmail.com
Resumo:
O debate presente na literatura sobre a relação entre Executivo e Legislativo aponta para
dois caminhos: essencialmente confrontacionista e com problemas de governabilidade ou
para a cooperação entre poderes devido aos incentivos institucionais. As Medidas
Provisórias seriam um elemento de usurpação de poder ou de delegação. Além de
incentivos institucionais previstos na Carta Constitucional de 1988, há outros elementos
que devem ser considerados na análise desse instrumento. Mais recentemente, a literatura
sobre presidencialismo de coalizão tem avançado no sentido de mostrar a proeminência do
Legislativo como no seu papel no emendamento (FREITAS, 2013) e sob a chave
informacional, apontando questões de delegação (SANTOS e ALMEIDA, 2011). O
objetivo é recuperar esse debate do presidencialismo de coalizão tendo como unidade de
análise as Medidas Provisórias e responder: Quais outros elementos devem ser
considerados na recente dinâmica entre os poderes Executivo e Legislativo que tenha
fomentado novos campos para a análise das Medidas Provisórias?
Introdução
2
Mainwaring e Shugart (2002) argumentam que os presidentes latino-americanos não são tão fortes como
aponta a literatura, considerando que têm dificuldades para aceitação da sua agenda política.
conta do poder do instrumento na imposição da agenda, seja relacionado ao seu uso, ou
ainda sobre os temas que pode versar (DINIZ, 1996; PESSANHA, 2000; AMORIM NETO
e TAFNER, 2002; FIGUEIREDO e LIMONGI, 2001).
Em 2001 foi promulgada a Emenda Constitucional nº 32, que regulamenta o uso
desse instrumento pelo Presidente da República (figura 1), inserindo delimitações em
relação ao tema, definiu novos prazos, estabeleceu o fim das reedições e permitiu o
trancamento da pauta do Congresso forçando sua votação. Com o fim das reedições,
esperava-se que o Presidente fosse mais criterioso na sua proposição, conduzindo para a
redução do número de propostas. Com esse novo ordenamento, esperava-se atingir o
equilíbrio nas relações entre Executivo e Legislativo (MACHIAVELI, 2008).
3
Há restrições em relação ao conteúdo das MPVs previstas na Constituição Federal (BRASIL, 1988), assim
como há outras restrições implícitas (CAVALCANTE, 2020).
4 Há a inclusão de matérias estranhas às MPVs: “Jabuti” é a denominação informal. No Congresso, também
estão presentes outros apelidos como “contrabando” e “barriga de aluguel” (AGUIAR, 2015). Freitas (2013)
também cita “Penduricalhos”.
5
A complementaridade entre o poder de agenda enquanto regra e como enquadramento é discutido por Santos
e Borges (2018, p.21) como “uma das maneiras mais eficientes de apreender o fenômeno político como
objeto de conhecimento”. O presente trabalho, no entanto, focaliza no poder de agenda como regras, pois
esse debate permite traçar relações com o Presidencialismo de Coalizão.
BORGES, 2018). Em cada um desses campos de análise, o entendimento sobre o que
consiste o conceito de poder de agenda difere6.
Dispor sobre o poder de agenda como estrutura de regras está associado ao
neoinstitucionalismo da escolha racional7. Essa tradição acadêmica parte do pressuposto
de que todo órgão coletivo possui regras que organizam a dinâmica coletiva e entende que:
“O poder de agenda, portanto, nada mais é do que o poder distribuído a determinados atores
por um conjunto de regras para que esses atores possam viabilizar e estabilizar processos
decisórios realizados via voto” (SANTOS e BORGES, 2018, p.12).
Deve ser considerada a estrutura do sistema político brasileiro. Em artigo publicado
em 1988, Sérgio Abranches denominou presidencialismo de coalizão o sistema político
brasileiro devido à combinação entre presidencialismo, multipartidarismo e federalismo.
O conceito presidencialismo de coalizão indica que essas características do sistema político
como o caráter fragmentado do multipartidarismo e sistema eleitoral proporcional
conduzem para uma situação em que o presidente não consegue obter, isoladamente, a
maioria das cadeiras do congresso, sendo necessário que ele realize coalizões. A reunião
desses elementos conduziria para a identificação do sistema brasileiro de forma específica,
peculiar8.
Sob a chave da governabilidade (DINIZ, 2005), e a preocupação com a paralisia
decisória, a discussão se refere aos conflitos entre os dois poderes ao proporem diferentes
agendas. Esse debate é mobilizado com base em duas correntes: a primeira que concebe
essa estrutura do sistema político como problemática e a segunda que sustenta a tese da
governabilidade.
A primeira argumenta que Executivo e Legislativo (MAINWARING e LIÑAN,
1998; LAMOUNIER e MENEGUELLO, 1986; CAREY e SHUGART, 1992), por serem
detentores de interesses próprios, são confrontacionistas (DINIZ, 2005). Freitas (2010)
sintetiza esse entendimento como uma agenda dual, ou seja, a compreensão de que a vitória
de um poder implica na derrota do outro, constituindo um jogo de soma zero.
6
Como enquadramento, o objeto de análise é a atenção que diferentes atores dispõem sobre as questões na
agenda. Dispor sobre atenção governamental se refere ao debate mais recente presente nos estudos de
formação de agenda em que é problematizado como os atores, com base nas informações recebidas de
múltiplas fontes, priorizam certas questões em detrimento de outras e como dirigem sua atenção para aquilo
que entendem como um problema (BAUMGARTNER e JONES, 1993; 2005; KINGDON, 2003).
7
Sobre o institucionalismo da escolha racional, histórico e sociológico, ver Hall e Taylor (2003).
8
Limongi (2006) questiona a especificidade do sistema político brasileiro, ainda que concorde com a
terminologia usada para classificá-lo apresentada por Abranches (1988).
A formação de coalizões é imperativa mas não resolve o problema, reproduz o
conflito (PALERMO, 2000). Isso porque, ainda que na mesma coalizão, os objetivos
eleitorais e específicos de cada partido, influenciam na dinâmica e estratégica (KINZO,
1999). Além da baixa eficácia institucional, haveria pouco sucesso de implementação de
projetos do governo.
Também na chave da ingovernabilidade e carregando esses traços institucionais do
sistema político, há outra discussão na literatura em que essa paralisia se deve à
concentração de poder presidencial e até mesmo a usurpação de poder do legislativo. Com
base nos expressivos poderes presidenciais, o Executivo atua de maneira a excluir o
Legislativo de sua atuação legislativa e administrativa (PALERMO, 2000).
O caso das medidas provisórias é um bom exemplo, para esse enfoque, de uma
usurpação de poder. O entendimento não é que a instituição constitucional das MPVs é
usurpada, porém se deve ao uso que o presidente faz delas, ao exagerar na sua edição -
estendendo-a para várias áreas de políticas públicas, e desvirtuar seu uso, excluindo o
Legislativo desse processo (DINIZ, 1997; MONTEIRO, 1997; SANTOS, 1999a;
PESSANHA, 1997). Nesse cenário, os conflitos são iminentes.
De maneira geral, considerando os dois enfoques da literatura, essa primeira
corrente sustenta que a combinação das características do sistema político brasileiro gera
problemas de governabilidade, ou ainda, que é problemática, baseada em conflitos
estruturais de interesses entre Executivo e Legislativo.
De forma contrária, a segunda corrente sustenta que há um elevado grau de
cooperação do Legislativo com o Executivo e que o presidencialismo não é responsável
por romper a disciplina partidária. A Perspectiva Centrada no Sistema Político rompe o
dualismo e propõe a ação articulada entre os poderes (DINIZ, 2005). Esse rompimento não
significa a ausência de conflitos, mas uma maior interação e interesse do Executivo em
criar coalizões para encaminhar sua agenda.
Nessa corrente, a estrutura do presidencialismo de coalizão não é um elemento
problemático. Em um primeiro enfoque, a governabilidade é garantida por meio dessa
estrutura, em que o presidente é dotado de recursos institucionais - como o poder de agenda
por meio de MPVs e controle do orçamento (ABRUCIO e LOUREIRO, 2018).
Além dos recursos presidenciais, o regimento interno da Câmara dos Deputados e
do Senado Federal também constituem importantes instrumentos. Isso porque, ao
institucionalizar o colégio de líderes9, composto pelo presidente da casa e líderes da
maioria, minoria, dos partidos e dos blocos complementares, confere-se força aos líderes
partidários, que podem agir em nome dos partidos com destaque para suas proposições e
encaminhamento de matérias. Essa composição do colégio, junto à presidência da Mesa
tem papel de destaque por serem os responsáveis pela organização dos trabalhos a serem
apreciados e organização da agenda (FIGUEIREDO e LIMONGI, 2001).
A Constituição de 1946 praticamente privava o Executivo de instrumentos
unilaterais, diferentemente do texto de 1988 que previu decretos com imediata força de lei.
Ainda assim, essa prerrogativa do chefe do Executivo, não considera que o Legislativo não
proporá resistência ou que não tem meios para rejeitar a proposta (FIGUEIREDO e
LIMONGI, 2007). Levantamento realizado por Figueiredo e Limongi (1998, 2001), no
período pós promulgação da Constituição Federal de 1988, indica, contudo, que o poder
Executivo sustenta elevadas taxas de dominância no processo legislativo.
Com prerrogativas institucionais, mesmo nas matérias em que o Legislativo
compartilha a iniciativa com o Executivo, este tem proeminência. Esse cenário também é
favorecido pelo amplo apoio que o Executivo tem do Congresso, apresentando índices de
sucesso similares aos de países parlamentaristas, reforçando a viabilidade da constituição
de coalizões partidárias no presidencialismo (FIGUEIREDO e LIMONGI, 2001).
Mais do que o controle do Executivo sobre a agenda do Legislativo, essa corrente
destaca os recursos institucionais que colocam o Executivo em uma posição estratégica de
dominância. Há, portanto, forte poder de agenda presidencial, conferido pela Constituição
Federal de 1988 e identificado em trabalhos empíricos (FIGUEIREDO e
LIMONGI,2001,2004; LIMONGI e FIGUEIREDO, 2001; DINIZ, 2005). No período de
1989 a 1994, é apontado o extenso uso que o Executivo fez ao editar MPVs (FIGUEIREDO
e LIMONGI, 2001).
O poder de agenda do Executivo está na possibilidade de alteração unilateral do
status quo, com a possibilidade de solicitar urgência, enquanto o Legislativo segue o
caminho das comissões e de poder terminativo. Assim, o custo para os parlamentares
rejeitarem uma MPV é bastante alto pois eles não comparam com o status quo anterior à
9
Além de influência no colégio de líderes, os líderes partidários também atuam na determinação da pauta
dos trabalhos considerando o peso ponderado das suas assinaturas para abertura de requerimentos,
apresentação de emendas, solicitação de destaque, entre outros. O colégio de líderes favorece o Executivo
ao centralizar as negociações (FIGUEIREDO e LIMONGI, 2001).
edição da medida, e sim com o que decorreria da sua rejeição (FIGUEIREDO e LIMONGI,
2001). Ressalta-se, destarte, que uma vez editada pelo chefe do Executivo, a medida
provisória já começa a produzir efeitos e cabe aos parlamentares seguirem com esse
instrumento a partir desse ponto.
Essa dominância e concentração dos poderes na figura do presidente é o que
distingue a literatura do primeiro enfoque da governabilidade para o segundo
(FIGUEIREDO e LIMONGI, 1995, 1997, 2001; SANTOS, 1999ª, 1999b; DINIZ, 1997).
Também na chave da governabilidade do sistema político brasileiro, outro enfoque
destaca que essa dinâmica é possível não devido à lógica concentradora de poder instituída
constitucionalmente e que fortaleceu o Executivo mas devido às negociações contínuas
entre Executivo e Legislativo (PALERMO, 2000). Ou seja, nesse enfoque, o entendimento
da governabilidade é possível pois há ação coordenada e negociada entre os poderes, sendo
latente a dispersão do poder decisório.
Os instrumentos legislativos à disposição do Presidente não devem ser vistos como
incentivos para excluir mas para cooperação, alterando a disposição dos congressistas.
Além disso, há uma pluralidade de atores e possibilidades de veto. Argumenta-se que as
medidas provisórias não são uma resposta a possíveis bloqueios em muitas matérias,
“simplesmente porque grande parte do que é ou poderia ser bloqueado no Congresso não
pode ser legislado através de MPs” (PALERMO, 2000, p.9).
Dialogando com Figueiredo e Limongi (2001), sobre a capacidade do Presidente
criar situações de difícil reversão através de MPVs, Palermo (2000) argumenta que, por
razões político-institucionais, isto não pode ser feito em uma área temática qualquer. De
maneira diversa da chave da ingovernabilidade, em que as MPVs seriam utilizadas para
excluir o Congresso, e até mesmo divergindo da chave da governabilidade em que as MPVs
forçariam os parlamentares a cooperar, o enfoque de Palermo (2000), que reúne dispersão
de poder e governabilidade, destaca que esse instrumento, ao ser emitido pelo Executivo,
conduz à negociação10.
Trinta e três anos após a promulgação da Carta Constitucional de 1988, a literatura
aponta que a desconfiança inicialmente desenvolvida sobre o sistema político que reúne
presidencialismo, multipartidarismo e representação proporcional foi superada (ALVES e
10
O trabalho de Palermo (2000) foi publicado antes da Emenda Constitucional 32/2001, que dispõe sobre o
fim das reedições.
PAIVA, 2017). A centralidade de poder auxilia a prevenir instabilidades institucionais. O
fortalecimento do Presidente da República no texto constitucional, dotado de mecanismos
institucionais e poder de agenda, teriam possibilitado contornar crises institucionais e
paralisia decisória (MELO e PEREIRA, 2013). Destaca-se que esse fortalecimento do
chefe do Executivo no texto constitucional se refere ao processo de “sedimentação de
experiências políticas turbulentas e crises institucionais experimentadas em períodos
anteriores, e não da usurpação de competências” (ALVES e PAIVA, 2017, p.58).
Nessa estruturação do poder de agenda como estrutura de regras é presente,
portanto, a discussão da governabilidade e da produção de estabilidade nos processos de
tomada de decisão considerando os dilemas da ação coletiva. Essas regras são delegadas
aos atores para a coordenação da agenda.
Como importante instrumento legislativo nas mãos do presidente, a literatura de
estudos legislativos debate qual seria o papel das medidas provisórias na relação entre
Executivo e Legislativo e qual é o impacto desse instrumento para a governabilidade. Há
três explicações para o uso das medidas provisórias (MACHIAVELI, 2009).
A primeira as visualiza como um mecanismo de usurpação da função legislativa,
em que o presidente imporia suas preferências para o Congresso. Entende, portanto, que o
alto número de medidas provisórias editadas estaria relacionado com um sistema que não
cria incentivos à governabilidade (PESSANHA, 2000). Nesse entendimento, a aprovação
da EC 32/2001 pode ser entendida como uma resposta do Congresso ao avanço do
Executivo nas questões legislativas (MACHIAVELI, 2008).
A segunda corrente segue na mesma linha da primeira mas entendendo que, a
depender do contexto político, o presidente poderá ou não impor sua agenda. Isso significa
que, se o presidente conseguir formar uma boa base de coalizão, haveria menos incentivos
para o uso das MPVs. Mas, caso os presidentes não tenham uma base sólida de apoio, a
governabilidade ficaria comprometida e seria necessário o uso desse instrumento de forma
autoritária (AMORIM NETO e TAFNER, 2002). Deve-se considerar, dessa forma, que em
governos em que diferentes partidos da coalizão fazem parte, como foi o governo Lula, há
maior número de demandas e interesses no processo decisório que devem ser considerados
e emerge o desafio em conciliar diferentes questões, atendendo aos partidos da coalizão e
encaminhando a sua agenda política (BATISTA, 2014).
Por último, a terceira corrente enfatiza os aspectos institucionais promovidos pela
Constituição Federal de 1988. Mesmo quando não detém o poder exclusivo, o presidente
não está impedido de iniciar legislação (LIMONGI e FIGUEIREDO, 2004). Além do
poder de agenda conferido aos presidentes, os líderes partidários também têm posição de
destaque por promoverem coalizões e pontes entre os interesses em disputa. Essa
centralização do poder do Congresso nas mãos dos líderes partidários levaria à formação
de coalizões majoritárias e estáveis, criando incentivos para a governabilidade. Nesse
sentido, as medidas provisórias não seriam utilizadas contra o Congresso e de forma
autoritária, mas como um instrumento de barganha política e com vistas à proteção da base
parlamentar de temas impopulares (LIMONGI e FIGUEIREDO, 2004).
O interesse em participar de uma coalizão partidária não se restringe à busca por
espaços no gabinete, da mesma forma que, para o chefe do Executivo, com vistas à
constituição de um ambiente favorável à manutenção de uma coalizão sólida, é necessário
negociar as questões que irão para o plenário. É latente, portanto, o interesse do Executivo
e da coalizão em pautar a agenda e realizar os encaminhamentos no processo político
(AMORIM NETO, 2003).
Nessa perspectiva sobre embates entre poderes, aprovação de legislação e busca
pela governabilidade, o campo de estudos legislativos e o poder de agenda centrado na
estrutura de regras focaliza no debate do porquê as instituições surgem, o efeito delas sobre
os resultados dessas interações e o papel dos atores frente a esse quadro.
Na dinâmica do presidencialismo de coalizão, em que o presidente deve se reunir
a diferentes partidos com vistas à governabilidade, a medida provisória é vista, por vezes,
como instrumento de usurpação por parte do Executivo de uma prerrogativa do
Legislativo, por vezes, como um meio que promove a negociação entre poderes. Trabalhos
mais recentes apontam que a delegação também ocorre devido às deficiências
informacionais por parte do Legislativo e, mais do que um instrumento de negociação,
como um elemento que avança na coalizão - essa discussão segue na próxima seção.
Rompendo com a tese dos brasilianistas de que o sistema político brasileiro estaria
fadado à ingovernabilidade e a sucessivas crises, estudos mais recentes sobre coalizões
apontaram para a governabilidade do nosso sistema político, tornado essa questão ponto
pacífico (FREITAS, 2013). Essa estabilidade poderia ser creditada aos aspectos
institucionais, frente à concentração de instrumentos legislativos em posse do chefe do
Executivo (FIGUEIREDO e LIMONGI, 2001), ou até mesmo à dispersão de atores e
poderes de veto (PALERMO, 2000).
Mais recentemente, a literatura sobre presidencialismo de coalizão tem avançado
no sentido de operacionalizar outras questões, além da variável institucional (CHAISTY,
CHEESEMAN e POWER, 2012). A chave institucional não deve ser desconsiderada. A
Constituição de 1988 conferiu ao chefe do Executivo amplos poderes de agenda legislativa,
inclusive ao ser dotado para o uso de medidas provisórias. No entanto, a literatura recente
tem mostrado que não podemos mais olhar o Legislativo de forma passiva.
O foco sobre outras chaves para além da institucional, podem ser mobilizados ao
considerarmos que o padrão político brasileiro está em transformação (ABRANCHES,
2020)11. A partir de 1994, iniciou-se, basicamente, a polarização nas candidaturas entre PT
e PSDB (AMARAL, 2020; MELO, 2010; LIMONGI e CORTEZ, 2010). O cenário
político nacional foi amplamente mobilizado em 2013, com as jornadas de Junho. O ano
de 2014 foi marcado pelo processo turbulento de reeleição de Dilma Rousseff,
estigmatizado por escândalos e acirrada disputa. Quando assumiu, Rousseff contava com
doze partidos na sua base de apoio e cerca de trezentas cadeiras na Câmara, o que indicava
que a oposição não teria força suficiente para coordenar o processo de impedimento
(LIMONGI, 2017). No decorrer do seu mandato, além da baixa popularidade, também
perdeu muito apoio dos parlamentares12. O impedimento de Rousseff foi conduzido
fortemente por membros da sua base de apoio inicial e ganhou fôlego com a ruptura do
PMDB com o PT, movimento que conduziu para a formação de uma base sólida para
sustentação do governo Michel Temer.
Essa relação conflituosa entre poderes, com o Executivo enfraquecido e o
Legislativo tomando frente mostra o caminho para o impeachment. O impedimento reflete
uma série de crises presidenciais e se mostra como uma arma contra presidentes que se
chocam com o Legislativo (PÉREZ-LIÑAN, 2007). Além da fragmentação partidária,
também há que se considerar a mudança do comportamento do legislativo, considerado
reativo, frente aos posicionamentos e enfrentamentos realizados por Eduardo Cunha na
11
Nesse artigo, Abranches (2021) discute a ascensão de Jair Bolsonaro ao poder, o presidencialismo de
coalizão e condições para a ruptura institucional. Destacamos que a mudança no padrão político brasileiro
pode ser analisada a partir da eleição anterior do Executivo federal.
12
Pesquisa disponível em:
http://arquivos.portaldaindustria.com.br/app/cni_estatistica_2/2015/09/30/31/Pesquisa_CNI-
IBOPE_Avaliacao_do_Governo_Setembro2015.pdf. Acesso em: 29 de Outubro de 2020.
Presidência da Câmara dos Deputados, que ultrapassaram a retórica e se revelaram fortes
na prática (CARVALHO, VIANA e CARLOMAGNO, 2019).
Na classificação de atuação do Legislativo, que poderia ser ativo, reativo ou
“carimbador”, Santos e Almeida (2011) indicam ser o Legislativo, historicamente, uma
instituição de perfil reativo, que se configura pela delegação de iniciativas das proposições
legais mais importantes para o Executivo. Nesse entendimento, a definição de agenda seria
transferida para o governo e posteriormente negociada com os parlamentares.
O cenário que conduziu para o impedimento de Rousseff revelaria, por conseguinte,
o reforço desse caráter reativo do parlamento. Em um cenário de crise institucional, com
uma das piores taxas de popularidade da história, Temer obteve sucessivas vitórias no
legislativo e conseguiu aprovar medidas impopulares como a PEC do Teto dos Gastos
(PEC 241/2016) e escapar de duas Solicitações de Inquérito (SIP 1/2017 e SIP 2/2017).
Destaca-se a recuperação do seu poder de agenda, já que conseguiu administrar sua
coalizão e alinhar as forças políticas (CARVALHO, VIANA e CARLOMAGNO, 2019;
LINO e VAZQUEZ, 2020).
Frente à governabilidade do sistema brasileiro, a tese sobre ação unilateral dos
poderes perde espaço. Nesse cenário, discute-se como e se há delegação entre os poderes,
assim como ocorre a relação entre poderes sob a ótica das coalizões. Almeida (2015) e
Santos e Almeida (2011) contribuem com a questão da delegação sob chaves
informacionais, enquanto Freitas (2013) discute o papel das coalizões no agendamento
brasileiro.
Na tese da delegação de poderes, pode-se considerar a chave distributiva, em que
as coalizões governistas se formariam com vistas a concessões particularistas a
congressistas individuais (AMES, 1995). Nesse entendimento, o presidente busca apoio
legislativo para a sua política com vistas ao uso de MPVs e, com isso, libera os
parlamentares para atuarem nos seus interesses particulares.
Já no entendimento da delegação de forma partidária, discutida por Figueiredo e
Limongi (2001), há a articulação do presidente com líderes dos partidos visando o controle
do Congresso, cedendo influência ao ceder ministérios e ao receber os votos disciplinados.
Nesse entendimento, o uso de MPVs está condicionado ao apoio da coalizão partidária.
Como será discutido, o trabalho de Freitas (2013) avança ao argumentar que o presidente
não atua sozinho, mas junto com a coalizão.
Pereira e Mueller (2002, 2003) argumentam pela coexistência da lógica distributiva
com a partidária, em que além da distribuição de postos ministeriais, o presidente também
precisa atender interesses particularistas de sua base. Para Almeida (2015), dentre as teses
da delegação, nem a distributiva, nem a partidária, nem a união das duas é capaz de
responder sobre o uso de MPVs.
Diferente de Freitas (2013) e, em alguma medida, se aproximando de Limongi e
Figueiredo (2004), Almeida (2015) argumenta que o uso de MPVs pelo Executivo é a
manifestação específica de uma delegação tácita do Congresso para o Executivo. O
argumento de Almeida (2015), no entanto, destaca-se pela análise na chave informacional.
O autor discute o que conduz o Executivo a propor uma MPV ou um Projeto de Lei, decisão
que ocorre devido ao fato do primeiro não passar pelo sistema de comissões permanentes.
No fluxo das MPVs, há passagem pela comissão mista do Congresso, mas não pelas
comissões permanentes. Segundo Almeida (2015, p.8), a não necessidade de passar por
essa etapa direciona para menores custos de transação para o Executivo, reduzindo a
“necessidade de negociação com parlamentares individuais e com a oposição”.
13
Para verificar o grau de complexidade da matéria, é utilizado o número de artigos da proposição como
proxy.
14
Para verificar a impaciência do plenário, é considerado o tempo restante até o final da legislatura como
proxy.
com os diferentes partidos que compõem a coalizão. Os projetos não são do Presidente,
mas da coalizão.
Devido à dominância do Executivo na produção legal, com 80% dos projetos
transformados em leis no país entre 1988 e 2011, recorrentemente, o Legislativo é visto
como passivo. A autora argumenta que o poder de agenda do Executivo e dos líderes
partidários não é um impeditivo para a atuação do Legislativo nas proposições, podendo
atuar de forma a modificar o texto, suprimir ou adicionar. O Legislativo, não considerando
as alterações, é responsável por 20% da produção legal e “retirados dessa conta os projetos
de lei orçamentária, de iniciativa exclusiva do Executivo, esse valor cresce para 37%”
(FREITAS, 2013, p.146). Além de não ser uma atuação desprezível, o processo não é
caótico. Segundo a autora, há o processo de coordenação de maiorias, buscando-se o
consenso em torno das políticas. A referência, destarte, está nos partidos políticos e, em
última análise, perpassando o papel desempenhado pelos relatores.
No que se refere às medidas provisórias15, o prazo reduzido de tramitação dessa
matéria, bem como a possibilidade de solicitação de urgência e o trancamento da pauta,
não impedem que o Legislativo atue e faça alterações consideradas necessárias no texto16.
O tempo médio de tramitação das MPVs é de 129 dias17, bastante inferior ao conferido aos
Projetos de Lei Ordinária (479) e Projetos de Lei Complementar (882). Inclusive, as MPVs
são mais alteradas do que os Projetos de Lei Ordinária, o que se destaca pelo seu caráter
extraordinário. Logo, mesmo com reduzido prazo para avaliar as MPVs, os parlamentares
conseguem deliberar e avaliar.
Mesmo projetos com ritos de tramitação extraordinário, há poucas restrições para
os legisladores apresentarem emendas. Considerando as regras institucionais, há baixo
custo para apresentação de emendas. No entanto, apresentar não é aprovar. Para aprovar é
necessário coordenação e formação de maiorias, devendo haver concordância entre
Executivo e a maioria do parlamento. É nas comissões que há esse espaço para alterações,
antes da deliberação e parecer sobre a matéria.
(120 dias) devido ao recesso do Congresso Nacional, em que o prazo das medidas provisórias para de correr.
Ao analisar Projetos de Lei Ordinária, Projetos de Lei Complementar e Medidas
Provisórias, Freitas (2013) verifica que o Legislativo é responsável por quase 40% do
conteúdo das leis examinadas. As MPVs também apresentam esse quantitativo: quase 40%
do texto das leis geradas por esse tipo de instrumento tem o Legislativo como responsável.
Conforme discutido na seção anterior, parte da literatura argumenta que as MPVs seriam
um instrumento de expressão exclusiva do Presidente da República, utilizada de forma
unilateral e contra a vontade do Legislativo. Os dados apresentados por Freitas (2013)
expõem outro cenário: poderes que dialogam e o Legislativo ativo, que não é conduzido à
inação ou submissão. Mais do que agendas coordenadas, Freitas (2013) explicita que as
alterações realizadas no âmbito do legislativo não têm como foco a abrangência local,
presente em apenas 1,8% das alterações no quadro das MPVs - apresentando-se de forma
contrária à tese de parlamentares focados unicamente em interesses particularistas. Os
parlamentares estão interessados em âmbito nacional em 98,2% das alterações da política.
Considerado que o processo legislativo de proposição de MPVs é iniciado
exclusivamente pelo Presidente da República, discute-se em que medida o conteúdo que o
Legislativo adiciona pode ser considerado um “jabuti”, “penduricalho”, ou “cauda”, que
se referem a matérias estranhas ao objeto principal. Ao entender que os parlamentares
atuam para atender às suas bases eleitorais, eles enxergam as medidas provisórias como
uma janela de oportunidade para introduzir questões que atendem essa demanda, já que
pela legislação ordinária haveria muita morosidade.
Freitas (2013) apresenta os percentuais de alterações por MPVs propostas no
Legislativo em âmbito local e nacional e questiona se essas alterações são “caudas” ou se
têm relação direta com a matéria em questão. Considerando a abrangência no âmbito local,
2% dos dispositivos incluídos têm relação direta com o que está sendo regulado e 0% não
têm. Em abrangência nacional, 76,8% dos dispositivos incluídos têm relação direta com o
que está em debate e 21,2% não tem. As chamadas “caudas” estão presentes apenas em
abrangência nacional, com menor quantitativo em relação ao total. As MPVs, deste modo,
são alteradas pelos parlamentares com vistas à abrangência nacional e não podem ser
definidas como instrumento legislativo centralizado em pautas particularistas.
Mas onde ocorrem essas alterações? No plenário ou em comissões? Freitas (2013)
destaca que apenas 0,9% dos dispositivos foram incorporados às MPVs na etapa do
Plenário, sendo quase 98% incorporado na comissão e 1,5% não foi possível obter a
informação. Os dados reforçam a importância das comissões e a sua constituição de fato,
a partir de 2012, data em que o Supremo Tribunal Federal determinou sua formação e
avaliação das propostas, ainda que o regimento interno já previsse essa etapa no processo
de aprovação das MPVs.
As comissões não constituem apenas uma etapa no processo, mas a constituição de
um espaço especial para que a dinâmica de novas informações seja mobilizada,
considerando que são convocadas audiências públicas, organizadas e dispostas
informações técnicas sobre a temática em debate. Os poderes conferidos regimentalmente
ao relator se expressam na prática, sendo esses os atores responsáveis por 86,3% das
alterações nas MPVs, seguido pelos Parlamentares (13,4%) e Líderes18 (0,3%) (FREITAS,
2013). É claro, portanto, o papel do relator na coordenação das preferências e
encaminhamento das alterações.
Para Santos e Almeida (2005, p.700), apesar de o relator ser considerado um dos
atores-chave no processo decisório legislativo, ele não tem poderes formais suficientes
para influenciar a decisão final da comissão, devido ao poder que uma maioria pode
constituir e votar propostas alternativas ao parecer do relator. Ele não pode ser considerado
um agenda-setter, já que não possui “a capacidade de definir quais propostas e quando vão
a voto na comissão”19. Frente a esse debate, os autores retomam a literatura que analisa a
tomada de decisão sob condição de incerteza, e caracterizam esse ator como o agente
informacional da comissão.
Portanto, as MPVs não podem ser consideradas objeto de abdicação ou delegação
do Legislativo, segundo Freitas (2013, p.104). Ainda que o Executivo tenha esse
importante poder de agenda de alterar o status quo, as MPVs “não constituem um cheque
em branco”. O poder de agenda presidencial define o tópico, no entanto, não é responsável
por definir o conteúdo em si, não cabendo esse controle ao Executivo. As instituições
definem incentivos e estratégias, além de fornecerem o contexto de ação política mas não
são definidoras de resultados (IMMERGUT, 1996).
Outro ponto importante considerado pela autora é que não é possível inferir que
esse importante poder de agenda, as MPVs, não tenha efeito sobre as alterações, que podem
ser realizadas para adicionar um novo conteúdo, modificar ou para suprimir (veta o
18
Freitas (2013) esclarece que os Líderes representam o acordo realizado entre as lideranças, ou seja, do ator
institucional e não individual.
19
Almeida (2015) também discute a maior abertura da agenda legislativa com o papel das comissões e grupos
de interesse.
conteúdo existente). As MPVs tiveram 81,5% de alterações aditivas, 11,8% modificativas
e 6,8% supressivas.
Conforme discutido anteriormente, as MPVs mudam o status quo antes de
chegarem ao Congresso para manifestação e deliberação. Os parlamentares não estão
trabalhando com um instrumento possível mas com um dispositivo que já foi colocado em
prática e que já produziu efeitos. As MPVs já chegam com poder de lei, tornando mais
custoso para os parlamentares modificarem ou suprimirem pontos do texto. Não só:
[...] quando os parlamentares fazem uma alteração a uma MPV, devem também
apresentar as relações jurídicas decorrentes da alteração da medida emendada.
O mesmo ocorre quando o Congresso rejeita uma MPV, sendo que, nesse caso,
cabe ao Congresso lidar com as consequências da modificação legal causada
pela rejeição da MPV (FREITAS, 2013, p.105).
3. Considerações finais