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CAPITULO QUATRO X «—_—— a LIVROS PERDIDOS, BANIDOS, ADOTADOS EscrITOS PERDIDOS A Biblia Sagrada menciona diversos livros dos quais nada sabemos por que desapareceram da Histéria. Seu contetido provavelmente tornou-se perdido desde cedo e, por alguma razao, nao foram preservados nem pela geraco que se seguiu imediatamente 4 época de sua producao. Quanto 4 lista desses livros, é importante esclarecer que nao se trata de livros perdidos da Biblia, no sentido de que um dia fizeram parte dela e depois foram excluidos. Também é importante diferencia-los dos chama- dos pseudoepigrafos, isto é, livros escritos muito tempo depois dos eventos mencionados e falsamente atribuidos a personalidades famosas, como Enoque, Melquisedeque e até Adio e Eva. Comecando pelo Antigo Testamento, costuma-se mencionar como exemplos de livros perdidos o chamado “Livro das Guerras do Senhor”, mencionado em Numeros 21:14; 0 “Livro do Justo”, Josué 10:14; 0 “Livro do profeta Nata”, 1Crénicas 29:29, entre outros. Seriam, neste caso, livros inspirados que se perderam? Esta é uma pergunta dificil de se responder, pois comporta duas pos- sibilidades. A primeira de que pelo menos alguns deles seriam inspirados por Deus, mas apenas para uma situa¢ao especifica e, por isso, nao tinham necessidade de entrar no canon. Este seria o caso de um registro escrito pelo profeta Isaias sobre o rei Uzias, e do qual nada sabemos (2Crénicas 26:22). A segunda possibilidade é que nem todas eram obras inspiradas, mas apenas histéricas e, com esse fim, foram citadas pelo autor inspirado. De fato, muitas delas serviram de base 4 composicao dos livros de Samuel, Reis e Crénicas. A inspiraciio profética, portanto, nao significa ineditismo ou originalidade, mas orientagao do Espirito de Deus no uso correto das fontes que menciona. Quanto ao Novo Testamento, a Igreja Crista foi definida em Efésios 2:20 como uma casa “fundamentada nos apéstolos e profetas”. Tal expres- sdo indica que eles ja trabalhavam com escritos tanto de um grupo quanto de outro. Logo, essa larga aceitagao de livros, ainda nos tempos apostéli- cos, em contraste com umas poucas disputas ocorridas posteriormente, indica que eles ja tinham bem amadurecida a ideia de possuir uma colecdo de escritos inspirados. £ possivel, contudo, que alguns desses escritos nao tenham sobrevivido até nossos dias. Um caso exemplar seria a forte suspeita de que Paulo havia escrito mais de duas cartas aos corintios, e que, infelizmente, se perderam. Em duas passagens, ele se refere a contetidos enviados a igreja, mas que nao estéo em nenhuma parte das cartas atuais. Em 1Corintios 5:9 ele fala de uma carta anterior, de modo que a que chamamos “Primeira” Corintios, na verdade, nao foi a primeira. J&é em 2Corintios 2:4 ele diz que escreveu anteriormente aos membros em meio a muita tribulacao e angustia, mas os estudiosos nao conseguem ligar tais circunstancias com o contetido de 1Corintios, de modo que sao grandes as possibilidades de haver outra(s) carta(s) perdida(s) de Paulo. E temos ainda uma referéncia em Colossenses 4:16 a uma carta envia- da aos cristaos de Laodiceia, cujo contetido ninguém atualmente conhece. De igual modo, alguns estudiosos pensam que a carta aos Filipenses seria, na verdade, uma colecao de varios bilhetes. Por volta do fim do primeiro século d.C., Clemente de Roma atua- va como presbitero da Igreja Crist e, estando em Roma, enviou cartas para a igreja em Corinto. Ele se demonstrou familiarizado com as car- tas de Paulo e as tratou como palavra de Deus. Alguns pensam que esse Clemente seria o mesmo mencionado por Paulo em Filipenses 4:3 (veja Eusébio de Cesareia, [Histéria Eclesidstica, III. 38, 4). Clemente também faz mengGes ocasionais a certas “palavras de Jesus”, e embora elas fossem autoritativas para ele, nao sao tratadas como “evangelhos”, muito menos qo como escritos inspirados. Ao que tudo indica, eram sentengas que ele ti- nha de meméria, possivelmente transmitidas de maneira oral, mas que n&o foram preservadas de forma escrita, como no caso dos evangelhos. Um exemplo seria Atos 20:35, onde Paulo atribui uma frase a Cristo que nao se encontra nos evangelhos. Eusébio de Cesareia (Ecclesiastical History, III, 25), apés apontar os li- vros do Novo Testamento na ordem como os temos hoje, faz mengio a ou- tros titulos que circulavam pelas igrejas cristas de seu tempo, mesmo sem serem reconhecidos como inspirados por Deus. Dentre eles estariam um certo Evangelho dos Hebreus, Cartas de Barnabé e um Apocalipse de Pedro. >» Lista dos livros perdidos mencionados na Biblia . Livro do Convénio (Exodo 24:47) Livro das Guerras (Nuimeros 21:14) Livro de Jasar (Josue 10:13; 2Samuel 1:18) Livro dos Estatutos (1Samuel 10:25) . Livro dos Atos de SalomAo (1Reis 11:41) . Livro de Nata (1Cronicas 29:29; 2Cronicas 9:29) . Livro de Gade (mesmo do item 6) . Profecias de Aias (2Crénicas 9:29; 2:15; 13:22) prywanwary we . Visdes de Ido (mesmo do item 8) 10. Livro de Semaias (2Crénicas 12:15) 11. Livro de Jeti (2Crénicas 20:34) 12. Atos de Uzias, escrito por Isafas (2Crénicas 26:22) 13.Livros dos Videntes (2 Crénicas 33:19) 14. Profecias de Enoque (Judas v. 14) 15.Crénicas dos Medos e Persas (Ester 10:2) 16. Um profeta desconhecido citado por Mateus (Mateus 2:23) 17. Epistola perdida de Paulo, provavelmente aos Corintios (1Corintios 5:9) 18. Segunda epistola perdida de Paulo, provavelmente aos Efésios (Efésios 3:3,4) 19. Terceira epistola perdida de Paulo, aos Laodicenses (Colossenses 4:16) PSEUDOEPIGRAFOS O termo “pseudoepigrafos” (ou pseudepigrapha) nao é muito conhecido em alguns meios do cristianismo. Contudo, é um titulo-chave para a de- finic&o de varios livros atribuidos a personagens do Antigo e Novo Tes- tamentos, mas que, na verdade, foram escritos por outros autores anéni- mos, séculos depois da morte do autor biblico. Pseudoepigrafo é a jungao de duas palavras gregas: pseudos, que quer dizer “falso”, e epigrafe, que quer dizer “titulo” ou “nome”. Portanto, pseudoepigrafo refere-se a livros falsamente intitulados ou falsamente atribuidos a alguém. Dependendo do contexto, podem ser sinénimos de livros “apécrifos”. O apéstolo Paulo da um testemunho que indica que j4 no seu tempo o cristianismo tinha de lidar com textos falsamente atribuidos a auto- ria apostélica. Dirigindo-se aos cristdos da cidade de Tessalénica, ele os orientou a que no se deixassem levar por cartas supostamente escritas por ele, mas que, na verdade, eram falsas (2Tessalonicenses 2:2). Por essa razao, Paulo tomou o cuidado de escrever, em algumas de suas epistolas, uma nota que dizia: “Eu, Paulo, escrevo esta saudacio de préprio punho, a qual é um sinal em todas as minhas cartas. £ dessa forma que assino” (veja também 1Corintios 16:21; Galatas 6:11 e Colossenses 4:18). Dentre os pseudoescritos que chegaram até nds, encontramos textos atribuidos a Adao, Noé, Enoque, Moisés, Elias e a Ppersonagens do Novo Testamento, como Tomé, Pedro, Joao e até Judas. Mas, repetimos, nao fo- ram escritos por eles. No entanto, existe a possibilidade de que alguns de- les contenham alguma informacao que seja legitima, baseada numa fonte oral ou em outros manuscritos hoje desaparecidos. A Epistola de Judas, por exemplo, pertencente ao canon do Novo Testamento, reputa como verdadeira uma profecia atribuida a Enoque e que consta no apécrifo de Enoque que diz: Quanto a estes foi que também profetizou Enoque, o sétimo depois de Addo, dizendo: Eis que veio o Senhor entre suas santas ‘miriades, para exercer juizo contra todos e para fazer convictos todos os im- pios, acerca de todas as obras impias que impiamente praticaram e acerca de todas as palavras insolentes que impios pecadores pro- feriram contra ele. (v. 14,15) Esses manuscritos foram produzidos, aproximadamente, entre 300 a.C. a 300 d.C. e se espalharam pelo mundo greco-romano. Contudo, eles jamais foram incluidos nas Escrituras hebraicas nem na literatura rabi- nica tradicional. Entretanto, essa colecao de antigos textos judaicos tem despertado o interesse de académicos do mundo inteiro por revelar im- portantes aspectos do judaismo que existiu nos tempos antigos, especial- mente no principio do cristianismo. Fragmentos desses livros foram tam- bém encontrados entre os manuscritos do Mar Morto. Existem pseudoepigrafos tanto do Antigo quanto do Novo Testamen- to. Uma lista parcial deles inclui os seguintes titulos: > Antigo Testamento (subdivididos em categorias) > Apocalipses + Apocalipse de Abraiio + Testamentos + Testamento de Abraao + Testamento de Adio + Testamento dos Doze Patriarcas + Testamento de Isaque + Testamento de Jacé + Testamento de JO Testamento de Moisés ou Assuncao de Moisés Testamento de Salomao Outros pseudoepigrafos do Antigo Testamento Ascengao de Isaias 4Baruque ou Omissdes de Jeremias Perguntas de Esdras 1Enoque ou livro de Enoque etiope 2Enoque ou Enoque eslavo 3Enoque ou Apocalipse hebraica de Enoque Livro dos Jubileus Livro de Janes e Jambres Livro de José e Asseneth ‘ Livro de Noé 5Macabeus Odes de Salomao Oraculos sibilinos Oracio de José Histéria de Achikar Historia dos recabitas Vida de Ado e Eva Visao de Esdras Vidas dos profetas Pseudoepigrafos ou apécrifos presentes na versdo grega da Septuaginta Esdras grego Odes Oragio de Manassés iMacabeus 2Macabeus 3Macabeus 4Macabeus Salmos 151 Salmos 152-155 Salmos de Salomao Judite Eclesidstico (Sirac) Baruque Epistola de Jeremias Suzana BeleoDragao ALXX nao é unanime Os mais antigos manuscritos gregos da LXX, exceto aqueles frag- mentos descobertos no deserto da Judeia e no Egito, datam da época de 3° e 4° séculos d.C. Nenhum deles contém a lista exata de livros aceitos, reconhecidos como deuterocanénicos pelo Concilio de Trento (1545-63). Apenas a guisa de ilustragdo: 0 Cédice Vati- cano (“B”) ndo tem 1 e 2Macabeus (canGnicos, segundo o enten- dimento catdlico), mas inclui 1Esdras (nao canénico, segundo o entendimento catélico). 0 Cédice Sinaitico (x) omite Baruque ca- nénico, segundo as versdes catdlicas), mas inclui 4Macabeus (ndo canénico, segundo as mesmas versdes). O Cédice Alexandrino (“A”) contém trés livros apdcrifos “nao canGnicos” (1Esdras e 3 e 4Ma- cabeus). Vé-se, portanto, que até os trés mais antigos manuscritos da LX demonstram consideravel falta de certeza quanto aos livros que comporiam a lista dos apécrifos ou deuterocanénicos. Textos considerados apécrifos pelos protestantes, mas presentes na Biblia catélica Judite Tobias 1Macabeus 2Macabeus Sabedoria Eclesiastico ou Siracide A v Baruque Carta de Jeremias Oracao de Azarias (Daniel) Histéria de Susana (Daniel) Bele o Dragao Versao grega de Ester > Pseudoepigrafos do Novo Testamento Evangelhos apécrifos Evangelhos da infancia de Jesus Protoevangelho de Tiago ou Evangelho da infancia de Tiago ou Evangelho de Tiago Evangelho da infancia de Tomé ou Evangelho do pseudo-Tomé Evangelho da infancia de Mateus ou Evangelho do pseudo-Mateus Evangelho arabe da infancia Evangelho arménio da infancia Livro sobre o nascimento de Maria Histéria de José, o carpinteiro Evangelhos judaico-cristaos Evangelho dos ebionitas Evangelho dos nazarenos Evangelho dos hebreus Evangelhos gnésticos Apécrifo de Joao ou Livro de Joao evangelista ou Revelac&o secreta de Joao Didlogo do Salvador Livro secreto de Tiago ou Apécrifo de Tiago Livro de Tomé Pistis Sophia ou Livro do Salvador qa p> Evangelho de Apel Evangelho de Bardesane Evangelho de Basilide Evangelho copta dos egipcios Evangelho grego dos egipcios Evangelho de Eva Evangelho segundo Filipe Evangelho de Judas Evangelho de Maria ou Evangelho de Maria Madalena Evangelho de Matias ou Tradi¢ao de Matias Evangelho da perfeicao + Evangelho dos quatro ramos celestes Evangelho do Salvador ou Evangelho de Berlim Sabedoria de Jesus Cristo ou Sofia de Jesus Cristo Evangelho de Tomé ou Evangelho de Didimo Tomé ou Quinto Evangelho. Evangelho da verdade Evangelhos da Paixao Evangelho de Gamaliel Evangelho de Nicodemos Evangelho de Pedro Declaragao de José de Arimateia Outros evangelhos Interrogatio Johannis ou Ceia secreta ou Livro de Joao evangelista Evangelho de Barnabas Evangelho de Bartolomeu ou Questées de Bartolomeu Evangelho de Tadeu Evangelhos perdidos, mas citados por outras fontes Pregacao de Pedro Evangelho de André Evangelho de Cerinto Evangelho dos Doze Evangelho de Mani Evangelho de Marcio Evangelho secreto de Marcos Evangelho dos Setenta Atos apécrifos Atos de André Atos de André e Matias Capitulo 29 dos Atos dos Apéstolos Atos de Barnabé Atos de Bartolomeu ou Martirio de Bartolomeu Atos de Santippe e Polissena Atos de Felipe : Atos de Joao Atos de Marcos Atos de Mateus Atos de Paulo Atos de Paulo e Tecla Atos de Pedro Atos de Pedro e André Atos de Pedro e dos Doze Atos de Pedro e Paulo Atos de Pilatos Atos de Simao e Judas Atos de Tadeu Atos de Timéteo Atos de Tito Atos de Tomé Cartas apocrifas Carta dos Apéstolos Carta de Barnabé Carta de Inacio Carta dos Corintiosa Paulo Carta aos Laodicenses Carta de Paulo e Séneca 3Corintios Carta de Pedro a Felipe Carta de Pedro a Tiago Maior Cartas de Jesus Cristo e do Rei Abgar de Edessa Carta de Piblio Léntulo Apocalipses apécrifos 1Apocalipse de Tiago 2Apocalipse de Tiago Apocalipse da Virgem (etiope) Apocalipse da Virgem (grego) Apocalipse de Pedro (grego) Apocalipse de Pedro (copta) Apocalipse de Paulo (grego) Apocalipse de Paulo (copta) Apocalipse de Estévao Apocalipse de Tomé Ciclo de Pilatos Sentenga de Pilatos Anéafora de Pilatos Paradosis de Pilatos Cartas de Pilatos e Herodes Cartas de Pilatos e Tibério Vinganga do Salvador Morte de Pilatos Cura de Tibério > Outros pseudoepigrafos + Descida ao Inferno (de Jesus) + Doutrina de Addai + Duas vias ou Juizo de Pedro + Doutrina de Paulo + Doutrina de Pedro + Martirio de André apéstolo + Martiriode Mateus + Ressurreicao de Jesus Cristo (de Bartolomeu) + Testamento de Jesus + Tradicdo de Matias + Dormicao da Beata Maria Virgem ou Transito de Maria (de Joao, o Tedlogo) + ‘Transito da Beata Maria Virgem (de José de Arimateia) + Vida de Joao Batista (de Serapiao de Alexandria) A Igreja Primitiva se desenvolvia, por isso os crist4os gentios precisavam render a “sa doutrina” (Tito 2:1). Paulo e os apéstolos usarem essencialmente Antigo Testamento como Escritura Sagrada (pois ja reconheciam alguns tex- neotestamentarios como inspirados). Leitores gentios também se mostra- confiantes nos textos religiosos judaicos encontrados entre os rolos gregos oniveis.Muitos cristaéos gentios, sem diavida, adotaram esses livros como ‘Aveis, e o debate sobre o seu lugar nas igrejas se intensificou desde entao.® Por isso, pode-se dizer que, ainda nos tempos apostdlicos, os lideres das ‘jas cristas deixaram de usar exclusivamente o Antigo Testamento como ‘itura. Ha fortes indicios de que os apéstolos Paulo e Pedro reconheciam, em seu tempo, certos livros do Novo Testamento como canénicos. [...] como igualmente o nosso amado irmfo Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada, ao falar acerca destes as- suntos, como, de fato, costuma fazer em todas as suas epistolas, nas quais hé certas coisas dificeis de entender, que os ignorantes e instaveis deturpam, como também deturpam as demais Escri- turas, para a propria destruic&o deles. 2Pedro 3:15,16 lia de Estudo Arqueolégica. So Paulo: Editora Vida, 2013, p. 1973. qos Db LIVROS A MAIS OU A MENOS? EdigGes catélicas da Biblia possuem uma lista de livros mais extensa que as edicdes protestantes. Tedlogos catélicos denominam essa lista de deute- rocanénicos, isto é, livros que foram canonizados num segundo momento pela Igreja, mas nao na antiguidade judaica. Costuma-se também argu- mentar que, conquanto nao fizessem parte da Biblia hebraica, esses livros seriam reconhecidos pelos judeus de Alexandria. Autores protestantes, por sua vez, discordam dessa assertiva e prefe- rem classificar esses livros como apécrifos ou apécrifa. Este termo vem da lingua grega e significa literalmente “aquilo que esta oculto”, “escondido” ou que é “dificil de entender” (Xenofonte, Memorabilia 3.5,14). Seu uso na literatura antiga era, As vezes, pejorativo e, as vezes, neutro. Podia se refe- rir tanto a livros supostamente sagrados, mas de origem duvidosa ou des- conhecida, como a livros esotéricos que s6 eram lidos em lugares secretos. Contudo, nos séculos 4 e 5 da nossa era, autores cristaos tornaram-se quase unanimes no uso pejorativo do termo para se referir Aqueles escri- tos que nao deveriam fazer parte da Biblia Sagrada. A questo é saber que livros os antigos crist&éos colocariam na prateleira dos “apécrifos”. Sao sete livros ao todo cuja canonicidade é disputada: Judite, Tobias, Baruque, 1 e 2Macabeus, Sabedoria de SalomAo e Eclesiastico. Além dis- so, temos alguns acréscimos aos livros de Ester e Daniel. Os protestantes, no entanto, embora nao reconhecam a inspiracao profética dessa cole- ¢40, admitem o estudo deles como meio de conhecer melhor o judaismo dos tempos antigos. Os catdlicos, é claro, por considerarem esse material como escritura inspirada por Deus, evitam chamar-lhes de apécrifos, pre- ferindo referirem-se a eles como deuterocanénicos. Essa questao nao pode ser discutida sem a devida referéncia a Sao Je- rénimo, que, no quarto século, iniciou, a pedido do papa Damaso, uma revisao das biblias que culminou numa nova tradugéo comumente cha- mada Vulgata latina. Ele acrescentou a sua traducio os livros a mais que as biblias catélicas trazem até hoje e que também apareciam, de modo di- versificado, na versdo grega do Antigo Testamento chamada Septuaginta. Sua classificagdo, no entanto, gera diferentes interpretagdes entre os académicos, pois, pelo menos numa passagem do Prologus Galeatus, Je- rénimo definira esses sete livros como apécrifos — termo que continua negativo em todos os seus escritos. Noutras partes, porém, o mesmo Jeré- nimo denomina-os como livros eclesiasticos e de leitura proveitosa, usa- dos até em liturgias da igreja. Seja como for, uma coisa é certa: Jerénimo nio os definiu como ca- nénicos, isto é, nao poderiam ser lidos na conta de escritura autoritativa da Igreja, nem usados como fundamentac&o doutrinaria. O mesmo posi- cionamento incerto acerca desses livros a mais perdurou nos séculos se- guintes, sendo percebido em muitos autores reconhecidos da Igreja. Joao Damasceno, papa Gregorio Magno, Walafrid, Nicolau de Lyra e Tostado foram alguns dos que continuaram duvidando da canonicidade dos livros deuterocanénicos. Em 1540, o reformador Andreas Carltadt, munido do Prologus de Je- rénimo, afirmou dogmaticamente, em seu De Canonicis Scripturis Libel- lus, que aqueles livros deveriam ser banidos das biblias cristas. A Igreja, respirando o espirito da Contrarreforma que havia na época, respondeu oficializando-os em seu canon. Assim, no famoso Concilio de Trento, rea- lizado em 8 de abril de 1546, oficializou-se que os textos deuterocanénicos (que os protestantes chamavam de apécrifos) deveriam fazer parte das bi- blias aprovadas pelo Papa. A bem da verdade, a disputa entre catdlicos e protestantes é apenas parte da histéria. Como dissemos anteriormente, diferentes tradigées cristés possuem diferentes apdcrifos ou deuterocanénicos, como pode- mos ver nas tradigées orientais. Contudo, as diferengas mais conhecidas no Ocidente sao aquelas que marcam as biblias publicadas por protestan- tes e aquelas publicadas por editoras catélicas. — ie = A teologia crist& criou termos técnicos para se referir aos di- ferentes livros da Biblia e que so aplicados a partir da forma como eles entraram ou foram excluidos do cdnon. Sao eles: + Livros aceitos por todos — Homologoumena. + Livros rejeitados por todos — Pseudoepigrafos (ou Apécrifos). + Livros questionados por alguns — Antilegomena. + Livros aceitos por alguns — Deuterocanénicos (ou Apécrifos). O QUE DIZEM OS CATOLICOS? Apocrifos sao livros que nao fazem parte do canon inspirado por Deus e nao podem ser reputados como Biblia Sagrada. Varios de seus autores usam pseudénimos, isto é, afirmam ser uma personagem importante do Antigo Testamento, como Abraao ou Enoque, mas tais livros foram, de fato, compostos séculos depois da época em que viveu o suposto autor. Nisso nao ha discordancia entre os segmentos catdélico e protestante. A divergéncia surge quanto ao grupo de livros presentes nas edigdes catd- licas que os protestantes, por negarem sua inspiragao, denominam de livros apécrifos, e os catélicos de deuterocanénicos, isto 6, canonizados posteriormente. Os deuterocanénicos sao livros do Antigo Testamento questionados pelos protestantes, mas legitimados pela Igreja Catdlica e algumas igrejas orientais. Sao assim chamados por nao constarem na Biblia Judaica Pa- lestinense (definida pelos judeus da Palestina em go d.C.), mas na Biblia Judaica Alexandrina (por referéncia aos judeus que viviam nesta cidade do Egito). Os livros que coincidem em ambas versdes sao chamados de protocanénicos. Foi Lutero que os denominou de “apécrifos” no século 16, principal- mente por conterem ensinos defendidos pela Igreja, mas negados pelos reformadores, como a intercessao dos santos, a oracdo pelos mortos e a realidade do purgatério. » Argumentos para inclusao > Inclusdo na Septuaginta Esses livros foram incluidos na traducao grega do Antigo Testamento como livros canénicos. Essa traducio foi largamente usada pelos judeus que viviam em Alexandria e noutras comunidades da diaspora. Os autores do Novo Testamento usaram grandemente o texto da Septuaginta em seus escritos, o que mostra que a aceitavam como um todo, incluindo os livros deuterocanénicos que ela contém. > Incluséo nos Manuscritos do Mar Morto Fragmentos desses textos sao encontrados na Biblioteca do Mar Morto, o que indica que eram respeitados por determinado segmento do judaismo. b> Usonocristianismo primitivo Antigos autores cristaos citavam passagens dos deuterocanénicos. Dentre eles, temos Clemente de Alexandria, citando Tobias e Eclesiastico, e Ire- neu de Lion, citando Sabedoria de Salomao. > Aceitacao por antigos concilios eclesiasticos Muitos concilios, como os de Roma (382), Cartago (393) e Hipona (397), aceitaram esses livros. Esses concilios séo citados por protestantes para sustentar o canon do Novo Testamento, mas se esquecem que eles tam- bém validaram os deuterocanénicos. b> OConcilio de Trento (1546) Apenas sancionou 0 que ja estava decidido em concilios anteriores ao mo- vimento de Reforma, como 0 de Florenga (1442). > Algreja Ortodoxa aceita os apécrifos Isso indica que estamos diante de uma crenga crista comum, e nao ape- nas de um dogma catélico. As catacumbas de Roma, construidas por cris- taos primitivos, séo pintadas com cenas descritas nos deuterocanénicos, © que indica que eles tinham grande apreco por esses livros. Importantes manuscritos biblicos, como 0 Cédex Alef e B, intercalam os deuterocan6- nicos entre os livros do Antigo Testamento, o que mostra que realmente faziam parte da Biblia Sagrada. Até ao século 19, vers6es protestantes da Biblia costumavam trazer os livros deuterocanénicos, o que indica que até eles reconheciam sua canonicidade. Avers&o grega do Antigo Testamento (Septuaginta), usada pe- los judeus alexandrinos, contém mais livros que as versdes catdli- ca, ortodoxa ou protestante. Os livros presentes na Septuaginta, conforme a ordem original, so: Génesis Exodo Levitico Ndmeros Deuteronédmio Josué Juizes Rute 1Samuel (1Reis) 2Samuel (2Reis) Reis (3Reis) 2Reis (4Reis) 1Crénicas (1Paralip6menos) 2Crénicas (2Paralipémenos) Esdras 2Esdras (Esdras e Neemias) Ester Judite Tobias 1Macabeus 2Macabeus 3Macabeus 4Macabeus Salmos Odes Provérbios Eclesiastes C&ntico dos Canticos J6 Sabedoria Eclesidstico (Sirac) + Salmos de Salomao Oseias Amés Miqueias Joel Obadias Jonas Naum Habacuque Sofonias Ageu Zacarias Malaquias Isafas Jeremias Lamentacdes Baruque Epistola de Jeremias Ezequiel Suzana (7) Daniel Bel e 0 Drago. Seria esse um antigo canon judeu mais amplo, reconhecido por Jesus e seus discipulos? O QUE DIZEM OS PROTESTANTES? Para os tedlogos de confissao protestante, evangélicos e outras ramifica- ges nao catélicas, como mérmons e Testemunhas de Jeova, existem duas categorias basicas de livros apécrifos: os pseudoepigrafos, falsamente atribuidos a personalidades biblicas que nao foram seus verdadeiros au- tores, e aqueles que a Igreja Catdlica denomina deuterocanénicos, assim oficializados no Concilio de Trento. Tais livros, ainda que validos para uma contextualizacao histérica do antigo judaismo, nao devem servir de autoridade canénica para a Igreja ao lado de livros inspirados, como dos profetas ou dos apdstolos de Cristo. » Argumentos para a exclusao E disputavel se esses livros realmente faziam parte do canon original da Septuaginta — as mais antigas copias que temos dela foram feitas por co- pistas cristéos, de modo que nao podemos dizer se as cépias judaicas ori- ginais continham estes livros. Essas cépias cristas datam do quarto século em diante, e o mais importante é que as trés cépias mais extensas nao es- to de acordo quanto ao canon dos apocrifos (ou deuterocan6nicos), pois trazem diferentes listas. E nelas estao incluidos os salmos 1512155, Salmos Salomao, Oracao de Manassés, 3 e 4Macabeus, Odes e Esdras grego, que vers6es catélicas nao reconhecem como livros inspirados. Filo, um an- o autor judeu de Alexandria que usou extensivamente a LXX (uma das meiras de se referir 4 Septuaginta), nao faz qualquer mencao aos livros uterocandnicos incluidos nas biblias catélicas, o que seria estranho, fosse unanime a sua inclusao nos manuscritos gregos mais antigos. Quanto aos manuscritos do Mar Morto, leve-se em conta que muitos ‘os encontrados nas grutas de Qumran nao sao candénicos; nenhuma canénica foi encontrada ali indicando quais seriam os livros inspi- los ou nao inspirados. Assim, a presenca de qualquer texto dentre os ‘ados do deserto da Judeia pouco concorre para a confirmagao de sua reza escrituristica. Os mais antigos autores cristéos parecem ter rejeitado os deutero- Onicos, mesmo que os citem vez ou outra. As eventuais citagdes que qn pb fazem deles nao prova que eram candénicos. Foi apenas quando a Igreja Crista iniciou seu rompimento com 0 judaismo que essa questao se tornou um ponto a ser discutido. A mais antiga lista de livros cristaos do Antigo Testamento foi composta por Melito de Sardes em 170 d.C., endo mencio- na nenhum desses textos controversos. Os concilios mencionados como endossando a inclusao de tais livros nao eram concilios universais do cristianismo, mas sinodos locais, apenas de expresso regional — Hipona, Roma e Cartago nao tinham autoridade para propor um entendimento universal acerca do assunto, e todos eles ti- nham sido influenciados pelo mesmo tedlogo, Santo Agostinho, pelo que possivelmente ecoaram o mesmo pensamento em razao de serem dirigi- dos pelo mesmo mentor. Até mesmo antigos autores catélicos foram contrarios a inclusao de alguns ou de todos os livros da colegao dos deuterocanénicos. Por exem- plo: Jerénimo, papa Gregério Magno, o Veneravel Bede, Hugo de Sao Vic- tor, Nicolau de Lyra, William de Ockham. O Cardeal Caetano foi um dos mais importantes opositores de Lutero, comissionado pela Igreja para refutar os ensinos do protestantismo. Ele escreveu um comentario dedicado ao papa no qual exprime sua opiniao de que os apécrifos (ou deuterocanénicos) nao eram inspirados, muito menos canénicos num sentido stricto senso, de modo que eles nao foram incluidos em seu comentario do Antigo Testamento. O Novo Testamento nfo reconhece tais livros como inspirados por Deus — os autores jamais fazem mengao direta de qualquer desses livros introduzindo a formula “Esta escrito” ou “Como declarou 0 profeta X”. O maximo que se pode encontrar (mas nao para além de qualquer questio- namento) seria uma hipotética alusao indireta que demonstra apenas que o autor biblico conhecia tais livros, mas nao que os considerasse Palavra de Deus. Ainda que tal citacao realmente exista, isso pouco contribui para aconclusao de que se trata de livros inspirados, pois obras seculares tam- bém sao citadas no Novo Testamento, como Atos 17:28, em que Paulo cita um trecho do Phaenomena escrito por Arato. Nem por isso poderiamos ar- gumentar que esse poeta grego seria inspirado por Deus. Mesmo os deuterocanénicos atestam que, no seu tempo, a inspiracao havia cessado — 1Macabeus 9:27 declara: “Ent&éo houve grande tumulto em Israel, tal como nunca havia tido desde o tempo em que os profetas cessaram de aparecer no meio do povo.”

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