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convêm não esquecer e acima de tudo carece de ser relatada por todos os
que ouviram falar dela ou a viveram.
A Marta tinha sido introduzida nas artes do sexo mal tinha feito doze anitos por
vizinhos e amigos da família mal os seios tinham começado a espertar e as ancas
a arredondar-se. Este era o costume de Zanganura sobretudo no campo e em
especial na altura das colheitas quando os braços eram poucos e os mais laços
adormeciam cansados sobre os molhos da forragem.
Fazia-se contrafeita quando abria as pernas aos parceiros porque a primeira vez
tinha sido ferina. A partir daí, nunca mais tinha falado com o Sr. Américo, o dono
da mercearia e autor da proeza que com falas mansas a atraíra para dentro do
balcão e sem um carinho a tinha desmoçado como se dizia na terra, ali mesmo no
chão entre o balcão e as pipas de vinho. O certo é que o merceeiro olhava a
rapariga com receios de denúncias e nunca mais lhe tinha negado fiados ou
pedido favores. É que a violação se corresse de boca em boca, poderia chegar aos
ouvidos do padre e ser objecto de homília em domingos sem mais assuntos.
Certo também é que apesar das dores que tinha sofrido, a miúda afeiçoara-se
aquelas praxes e começara a devotar-se ao sabor daqueles costumes.
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saída da aldeia e servia sobretudo para satisfazer as compras esquecidas na loja
do Senhor Américo:
- Aquela rapariga anda muito chegada ao Ti Américo! Disse ele uma vez à
professora que tinha ido à sua loja comprar sabão azul…
- Pois anda! Era bom arranjar-lhe emprego na cidade!
- Pois era… Aliviava os pais e sempre aliviava falatórios… Dê uma palavrinha ao
homem das finanças que trabalha na capital…
- Pois boa-tarde Sr. Américo… Vou pensar nisso… Palavra de professora!
Quando ela saiu, o merceeiro enquanto passava um pano sebento pelo balcão,
remoía remorsos… Aquela tarde entre as pipas e o balcão não lhe saía da cabeça
e temia que falatórios lhe arruinassem o negócio:
-Se ao menos a levassem daqui!!! Coisas de homem são o que é!!! Pensava para
consigo. Quem vai lucrando é o Clementino! E se calhar também se põe na
cabra.
De facto, a Marta, que morava bem para lá da aldeia, de vez em quando parava à
conversa com o outro merceeiro, mas ele por falta de posses pouca frente podia
fazer ao Sr. Américo, que ainda por cima era Presidente da Junta e Regedor da
Freguesia, a quem mesmo os mais abastados deviam favores. Alem das caras de
bacalhau e uns comes mal amanhados que a mulher fazia, o negócio do Sr.
Clementino ia subsistindo a vender pregos, tijolos e cimento em quantidades que
não iam alem da construção dum galinheiro ou pocilga nas traseiras de qualquer
quintal.
A ida da Marta para a capital foi discutida a fundo entre o Secretário de Finanças
da capital e a Professora. Discutiu-se tudo: O salário inicial que não poderia
ultrapassar os cem em escudos mensais, cama mesa e roupa lavada e o
tratamento: Seria uma segunda filha e tratada igualmente como o Idálio que
frequentava com excelentes notas o sétimo ano do liceu. No ano seguinte se tudo
corresse bem iria para a Universidade:
- O pior são as sortes! Vai fazer dezoito anos e vai ter que se apresentar à vida
militar…
- Pois é! Dizia a professora… Mas até para ele é bom… Em vez de andar aí com
galdérias pode ser que se afeiçoe a Marta… E dentro de casa sempre sabemos o
que se passa… Agora aos dezoito anos e na rua nunca se sabe o que se agarra.
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- É capaz de ter razão… Dizia o Secretário de Finanças…
- E Depois é um favor que faz aos pais dela que é gente respeitadora…
- Vamos pensar… Vamos pensar… Depois falamos…Encontramo-nos depois de
almoço no café.
- Olhe que ela faz problemas de cabeça com três operações… E História?
Conhece os reis todos e até os cognomes… Se a ajudar ela terá futuro…
Corria um vento tépido e toda a aldeia parecia cheirar a uvas já apanhadas, que os
tractores ruidosos transportavam para os lagares.
- Talvez me faça falta lá em casa que é grande e só com uma criada as coisas não
entram na ordem… Na minha posição preciso de ordem e a Maria que já lá serve
há vinte anos é mais da casa do que dos afazeres que a casa precisa… Vou pensar
nisso professora…
A falar assim deitava olhos ao seu decote descaído e imaginava-lhe os seios por
baixo da blusa tímida.
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- Pois é! E ela tem ar limpinho! Ainda bem que me fala dela…Estava a precisar!
A minha mulher vai ficar contente. Se quiser ir até lá a casa, podemos passar por
perto do rio e termos conversa mais demorada sobre o assunto.
- Vamos até minha casa, para falar com a minha mulher mas primeiro vamos
passar pelo rio para nos desabafarmos deste calor. Dentro do carro não disseram
palavra. Pararam junto à ponte à entrada dum carreiro que os levava à beira rio. O
Secretário de Finanças deu-lhe a mão para a ajudar a descer o carreiro um pouco
íngreme, mas quando chegaram à margem continuaram de mão dada a olhar as
águas que sem pressas desciam para a foz e sentaram-se dum atrás dum arbusto
pujante à borda de água. Separaram as mãos e como se estivesse alheado deixou
a dele a afagar-lhe a coxa:
- Você é atrevido…
Corria uma brisa quente de fim de Outono e as agulhas dos pinheiros iam
tomando a cor acastanhada denunciando um Inverno por perto.
Quando chegaram de novo junto ao carro, o negócio estava fechado. A Marta iria
com ele para a Capital. Agora só faltava comunicar a ela, aos pais e já agora à sua
mulher e filho.
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Já dentro do carro continuaram a conversa:
- Faz-lhe falta. A casa é grande e a sua criada já está a ficar velha e você precisa
da casa em ordem…
- A Marta é limpinha e conhecemos bem a família dela… é gente de religião.
- Mas não lhe pague mais do que cento e vinte escudos por mês… É que elas
habituam-se e depois não fazem nada… e com cama, mesa e roupa lavada já é
bem bom…ainda pode ajudara família que bem precisa.
- Olhe que a responsabilidade também é grande! Leva-la daqui assim… E se ela
engravida?
- Não pense nisso agora!
- Logo vou a casa dela que é mesmo aqui ao lado e depois passamos por sua casa
para discutirmos os detalhes com os pais dela.
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- Não é nada que não tenha pensado! Pois vou falar com a Senhora sua filha e ver
o que ela pensa! Da casa sabe ela!
- Vá! Vá! Mas cuidado com o Idalito… O Rapaz está espigadote.
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- IDÁLIO!!! Chamou a mãe! Não sei por que lê tanto… No meu tempo li a
Bíblia e Camões (1) e chegou-me perfeitamente…
- Tanto lês, que treslês… (Disse-lhe a mãe). Mas não é por isso que te
chamamos… Como deves ter percebido a Marta vem para cá como novo criada
para ajudar a D. Maria! Não quero faltas de respeito!
Disse isto num tom breve e conciso. O Idálio limitou-se a encolher os ombros.
Passou o resto da conversa a mirar e a remirar a Marta, que lhe retribuía os
olhares com gestos de cumplicidade traduzidos num torcer e retorcer o avental e
no ruborescer as faces. Os dois estavam entendidos. Vinha-lhes à cabeça o
restolhar dos fenos lá na aldeia em fins de colheita ou quando o sol mais
abrasador os obrigava à busca de sombras. Para alem disso ficava ainda a
recordação de carícias já trocadas e a adivinhação de futuros prazeres.
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- Deixe estar menino… Eu também queria saír da aldeia.
- Sabe menino eu também não quero ficar aqui… Logo que possa quero partir
para a cidade! Mas por favor não diga nada aos paizinhos…
O Idálio acariciou-a e ela refastelou-se mais na cama…
- Já desço!
Ficou preso aos olhos de Marta. Lembrou-se das aventuras por entre os fenos e
não resistiu a um beijo na Marta aceite pelos seus lábios grossos.
Mas o beijo soube-lhe a pouco. Durante os primeiros dez, doze anos da vida de
Marta a religião ocupou-lhe uma grande parte do tempo. Serviu-lhe sobretudo
para chegar a casa mais tarde depois das aulas com o argumento de ir assistir a
catequese.
Para a Marta era sobretudo o tempo de esperar pelo entardecer, pelo chegar das
sombras para às escondidas conhecer melhor os rapazes da sua idade em
brincadeiras mais íntimas.
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Já há noite, embrulhada em trapos, criava os seus próprios deuses e adormecia
temente aos céus a pensar nas carícias a que as suas maminhas bem tesas se
tinham subjugado e assim adormecia como uma virgem carente de futuro ou de
ternura.
Saíram os dois para terem uma conversa de homem para homem. A pensar assim
o Esteves sentiu-se verdadeiramente pai e foi neste estilo que continuou a
conversa:
- Sabes que mais? Perguntava o Senhor Esteves. Dedica-te aos estudos e já tens
bem que fazer… Mas não vás ao quarto dela nem a deixes entrar no teu logo de
manhã… Olha que isto é conselhos de pai… Batia-lhe com as mãos nas costas:
- Quero ter em ti não um filho mas um amigalhaço! É verdade quem é esse tal de
Torga?
- Não o conheço meu pai…. Mas dizem que é um médico dos olhos…
- Ainda bem! Não te metas é com essa gente da política!
- Bebe tu também… Já tens idade para teres vícios… Mas não te quero ver nas
putas… Sobretudo não dês esse desgosto ao teu pai.
Esta conversa enjoava o Idálio mas fazia-o pensar na Marta. O bagaço fazia-o
ouvir o restolhar do milho, o correr vagaroso e intimo do riacho que atravessava a
terra como se tivesse vergonha de ser ribeiro. Naquela altura as filhas dos
camponeses que viviam da jorna tinham uma carreira bem determinada:
Passavam de criadas ou amantes dos patrões, a mulheres-a-dias e de mulheres-a-
dias a putas. A progressão era simples: As criadas que já tinham conquistado pelo
nojo da humilhação ou pelo simples prazer do corpo o jus a saírem da casa
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protectora e a terem quarto em pensão rosqueira amancebava-se com o chulo e
passava a ter direito a usar rendas e vestes coloridas. É certo que por vezes as
caras apareciam manchadas por mais murro ou menos murro que o chuleco lhes
infligia ou por falta de propina ou porque durante a noite os gestos do amor lhe
tinham sabido a coisa fornecida por carícias fingidas ou então por ciúmes
inventados que lhes atiravam os prazeres do corpo para as violências. Macho é
assim: precisa de forjar a sua inutilidade ou então recita a murro cânticos
heróicos de amolgaduras de infância que lhe sofria na mente e que a alma não
tinha ainda tido tempo para esquecer.
Graças a Deus e ao sistema instituído tinha-se criado uma outra figura com poder
importante: O Afilhado. Era ele que intercedia junto do pai, em favor da mãe
quando as coisas estavam mais negras ou vinha de famílias filharadas que como
eira e beira só tinham os braços, ou nasciam em casas abastadas com a
cumplicidade das criadas. Na primeira hipótese serviam de marçanos na capital.
Neste caso tinham direito a estudos e carinhos, já que o patrão temia que se
descobrisse o imbróglio e a religião o atirasse para os pântanos da imoralidade.
Eram os mais felizes: O abastardamento não só minguava as necessidades de
mão-de-obra barata, como também era garante de fidelidade aos bons princípios e
ordem nas casas da cidade. Não compete aqui explicar a que regras esta ordem
obedecia.
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