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1.

1 O que é História
da literatura?

História
da Literatura
Licenciatura em Letras

Jeanne Ferreira de Sousa da Silva

São Luís
2022
HSTÓRIA DA LITERATURA 1
1.1 O que é História
da literatura?

UNIDADE 1 - HISTÓRIA DA
LITERATURA: conceitos e
funções

HSTÓRIA DA LITERATURA 2
Apresentação

O homem, o tempo, a arte e a escrita são elementos que se fundem e definem


as bases da disciplina História da Literatura, pois esta compreende as
manifestações literárias e suas modificações ao longo dos anos, sistematizando,
cronologicamente, a produção literária dos primórdios à contemporaneidade.

Diante do vasto material disponível, traçamos um percurso didático que


possibilitasse ao leitor o acesso aos conceitos e às leituras considerados
fundamentais para ampliar e sustentar interpretações sobre os textos literários
considerados a base para o entendimento sobre a história da literatura. No
entanto, salientamos que o conteúdo desse Guia Básico não se traduz em
uma coletânea de conceitos generalizantes, ao contrário, este material busca
promover reflexões diversas, instigar discussões, que favorecem ao leitor uma
posição crítica, diante da história literária.

HSTÓRIA DA LITERATURA 3
Neste Guia Básico apresentamos o conteúdo da Unidade 1 da disciplina - -
História da Literatura, intitulado História da Literatura: conceitos e funções,
abordamos o conceito de literatura, enquanto teoria e como manifestação
artística, pontuando preceitos teóricos atuais que ampliam a atuação
teórica desta disciplina, pois abarcam conceitos que vão além de um estudo
historiográfico, mas concebem a história literária como a possibilidade de
discutir a própria história da humanidade ao longa das épocas.

Inicialmente, pontuamos o conceito de História da Literatura, tendo como


leitura norteadora a obra do teórico Hans Robert Jauss (1994), que buscou
discutir, dentre outras questões, o lugar do leitor como elemento primordial na
análise de texto literário, passando a considerar a recepção como um aspecto
imprescindível para a compreensão de fatores sociais, culturais, políticos,
religiosos etc., presentes na estética do texto.

HSTÓRIA DA LITERATURA 4
1.1 O que é História
da literatura?
Posteriormente, discutimos sobre a conceituação de Literatura, enquanto
manifestação artística, cuja matéria de produção é a palavra. Dessa forma,
buscamos apresentação o conceito de literatura ao longo dos anos. Por fim,
abordamos as funções que a literatura exerce, como linguagem carregada
de significados. Ressaltamos, que neste material adotamos a perspectiva
mais didática, usando como referência a mesma perspectiva usada pela Base
Nacional Comum.

Vale lembrar que este Guia Básico não é material isolado da disciplina, ele se
constitui parte do material básico, pois nas demais Unidades da disciplina,
iremos disponibilizar outros materiais.

HSTÓRIA DA LITERATURA 5
1.1 O que é História
da literatura?

“[...] história, este verdadeiro mito do intelectual pós hegeliano”.


Luiz Costa Lima

Antes de qualquer coisa, é imprescindível que tenhamos consciência de que não existe
uma única história da literatura, em sentido geral e universal capaz de dar conta
de toda produção literária já constituída. Nem mesmo é possível conceber que uma
história da literatura nacional abarque “toda a evolução literária relativa ao território
selecionado, como, igualmente, nenhuma história de um gênero qualquer – literário,
discursivo etc., – que consiga tal proeza.”

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Sendo assim, as histórias literárias sofrem modificações ao longo do tempo, sendo
marcadas por parâmetros conceituados por quem as produz, como também a partir
da própria evolução literária, está definida por Carlos Reis (2003) como:

[...] o conjunto de transformações que, ao longo dos tempos e de forma mais ou menos
evidente, atinge a linguagem literária, tanto a nível de seus códigos e signos literários,
como no plano das estratégias literárias (p. ex.: aparecimento e obsolescência de gêneros).
Essas transformações assumem uma dimensão coletiva e ocorre, como se disse, de forma
normalmente lenta, conexionando-se com outras transformações (históricas, sociais,
econômicas, culturais, etc.); uma tal interação reflete-se sobretudo no plano das opções
temáticas e ideológicas que se manifestam no discurso literário. Assim se sublinha, de forma
suficientemente expressiva, a feição dinâmica do sistema literário, em articulação direta
com a historicidade que o caracteriza. (REIS, 2003, p. 389).

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Diante das colocações, sobretudo ao considerar as palavras de Reis (2003),
inferimos que a história literária – como conjunto de obras – é por vezes compreendia
como uma ramificação da própria história, ou até mesmo como uma produção que a
contradiz.
De acordo com Erich Auerbach (1972), a historiografia literária começa a ser
construída desde o século XVI, notadamente em pesquisas de Pasquier e Fauchet,
como: A compilação dos beneditinos da congregação de Saint-Maur História Literária
e os escritos do jesuíta Tirabosch em sua Storia della letteratura italiana (AUERBACH,
1972, p. 30-31). Mas, foi no século XIX que “a romântica, inicialmente metafísica e
depois influenciada pela filosofia de Hegel; e a positivista, oposta ao idealismo
romântico, ligada a Auguste Comte e à pesquisa histórica das ciências naturais, tendo
como representante Hippolyte Taine” uma constituição, como disciplina, devido ao
surgimento de duas tendências (MELLO, 2019, p. 2). Advém do positivismo, portanto, o
advento da história como ciência no século XIX, sobretudo pelo interesse em conhecer
a história a partir das mais diversas áreas do conhecimento, tendo como consequência
a afirmação da história da literatura como disciplina autônoma (MELLO, 2019, p. 2).

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Contudo, conceituar a História da literatura, vai além do entendimento de que esta
seja apenas a disciplina responsável por estudar a cronologia literária de uma literatura
nacional. Não cabe também um conceito, no qual esta disciplina abarque somente
o estudo dos grandes autores, apreciando o esquema “vida e obra”, desprezando ou
deixando os autores de menor prestígio à margem. No processo de conceituação desta
disciplina é preciso compreender que os termos História e literatura se aproximam,
não com intuito de apoiar-se unicamente no ideal de objetividade da historiografia
ou de descrever somente o valor estético das obras, mas visa perceber e analisar de
forma crítica “a história da literatura e sua continuidade, na recepção, nos efeitos
produzidos pela obra e de sua fama junto à posteridade, caso contrário a obra literária
limita-se ao um passado acabado.” (JAUSS, 1994, p.6). Portanto, o primeiro passo para
a conceituação da disciplina História da literatura é libertar a percepção estética das
amarras da historiografia, que segundo Silva (2019):

Tem suas bases teóricas e metodológicas no modelo historicista diacrônico e positivista, que
encara a sucessão dos fatos no tempo como um encadeamento homogêneo e direcionado
a um progresso futuro. Nesse modelo, as obras literárias são agrupadas em escolas ou
movimentos de categorias fixas e se relacionam com a sociedade como um reflexo desta.
(SILVA, 2019, p. 1).

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É exatamente esse modelo de ensino da literatura que vigora no ensino
secundário, e é daí que deriva a noção de que a História da literatura, fragmentada
em escolas literárias, cumpre apenas o papel de organizar cronologicamente as
manifestações literárias, assim como destaca Cosson (2006).

O ensino da literatura limita-se à literatura brasileira, ou melhor, à história da literatura


brasileira, usualmente na sua forma mais indigente, quase como apenas uma cronologia
literária, em uma sucessão dicotômica entre estilos de época, cânone e dados biográficos
dos autores, acompanhada de rasgos teóricos sobre gêneros, formas fixas e alguma
coisa de retórica em uma perspectiva para lá de tradicional. Os textos literários, quando
comparecem, são fragmentos e servem prioritariamente para comprovar as características
dos períodos literários [...] (COSSON, 2006, p. 21).

No livro História da literatura: trajetória, fundamentos, problemas, Roberto


Acízelo (2014) aponta, no capítulo 3, que desde os anos de 1800 a História da literatura
preocupava-se com a tradição e obras do passado, com narrativas longas, livros e
sistema escolar, enquanto a crítica voltava-se para a atualidade, para os movimentos
editoriais, jornais e revistas, público heterogêneo e elaboração de ensaios autônomos.

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Leitura
Complementar
Roberto Acízelo de Souza acrescenta também que a burguesia tinha a intenção de escrever
uma história da civilização. Dessa forma, a reunião de artigos e de dados com o intuito
de atender os anseios burgueses beneficiou a História da literatura. Por quaisquer que
sejam os motivos, a História da literatura sofre contestações, como o reconhecimento da
Literatura como artefato verbal/linguístico imanente ou como a importância da linguagem
verbal em todas as áreas das ciências humanas, o que compromete e desestabiliza “fatos”
considerados indestrutíveis, como o contexto social ou político na condição de mecanismo
de influência ou de explicação da obra, abalando assim a história literária, já que toda obra
seria exclusivamente um artefato linguístico. Por outro lado, a História da literatura obteria
algumas revitalizações em 1920 (o formalismo russo aceitaria uma espécie de evolução de
“substituição de sistemas”), 1960-1970 (com o surgimento da Estética da Recepção) e 1980
(com o novo historicismo nos Estados Unidos). Fonte: file:///C:/Users/User/Downloads/
iraciscosta,+frag49-255-258.pdf

HSTÓRIA DA LITERATURA 11
Leitura
Complementar
O surgimento da Estética da Recepção O novo historicismo nos Estados Unidos

“A teoria formulada por Jauss (1994), que “É definido como uma interpretação crítica
além de teórico é também historiador da que privilegia as relações de poder, [...]
literatura, provocou grande impacto nos uma prática de crítica que apresenta os
meios acadêmicos dos estudos de literatura textos literários como um espaço no qual
da época, ao reivindicar o ingresso da tornam-se visíveis as relações de poder”
história na metodologia da análise do texto (BRANNGAN, 1998, p.6).
literário e ao investir contra as teorias em
voga que estabeleciam o primado absoluto
do texto e ignoravam o papel do leitor na
experiência literária.”
Fonte: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.
br/9037/9037_3.PDF

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A partir dessas e de outras
abordagens teóricas, a História da
literatura ganhou novas perspectivas,
agregando um valor analítico, que até
meados dos 60 do século passado, não
apresentava.
Fonte: https://br.freepik.com/fotos-premium/relogio-vintage-em-uma-
-corrente-com-livros-antigos-vintage_22222356.htm

No ensaio de Maria Aparecida Barbosa (2019), a autora analisa a obra de Walter


Benjamim História da literatura e Ciência da Literatura (2016) na qual o teórico afirma
que:

[...]. A tarefa da História da Literatura não seria partir da relação da obra literária no contexto
do tempo em que ela surge, mas na esfera de sua atuação, de sua tradução, um “micro-
aión”, em que se apresenta, isso sim, o tempo presente, o hoje que se debruça sobre ela e a
reconhece. (BENJAMIN, 2016, p. 32).

Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/rle/article/view/16121/10369

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Considerando as anotações, verifica-se que a formulação de um conceito para a
História da literatura assume, na contemporaneidade, uma abordagem mais ampla na
qual se deve incluir o efeito estético e a recepção, ou seja, considerar que a historicidade
da Literatura não se dá pela cronologia das obras, mas pelo diálogo dinâmico com a
obra literária por parte de seus leitores (JAUSS, 1994, p. 11).

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Leitura
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O surgimento da Estética da Recepção

A história da literatura (entendida como vida literária é uma realidade extremamente complexa,
cujos fenômenos (fatos, relações entre esses fatos e evolução) ainda chegamos a perceber
completamente. Sendo assim, temos que compreender que as histórias literárias que lemos
são apenas esquematizações da complexa evolução da vida literária dos países; e é preciso não
esquecer que essas esquematizações variam de historiador para historiador, como é o caso de
nossas histórias da literatura brasileira: uma, como a de Silvio Romero (História da Literatura
Brasileira, 1888) apresenta toda a produção intelectual do Brasil e procuram mostrar as relações
entre a literatura e a história geral do Brasil (política, social e econômica); outra, como a que dirigiu
Afrânio Coutinho, 1955-1959), se ocupa da literatura de caráter artístico (poesia, ficção e teatro) e
de suas sucessivas tendências ou períodos estéticos (AMORA, 2006, p. 25).

HSTÓRIA DA LITERATURA 15
1.2 O que é História literatura?

Esse questionamento nos remete a inúmeros conceitos. Os verbetes de dicionários


normalmente tratam a literatura como a arte que usa a linguagem como matéria-
prima, perspectiva abrangente e superficial.
Um dos primeiros conceitos de literatura aparece na obra Poética, do filósofo e
poeta grego Aristóteles. Ele diz que literatura é mimese – imitação, em suas palavras:
“O imitar é congênito no homem (e nisso difere dos outros viventes, pois de todos,
é ele o mais imitador, apreende as primeiras lições), e os homens se comprazem no
imitado” (ARISTÓTELES, p. 203, 2019).
Ao longo dos tempos a literatura recebeu inúmeras conceituações, mas nenhuma
delas abarca todo seu sentido, isso porque em cada época, a literatura, enquanto arte, é
interpretada conforme a relação do homem com a arte, com a linguagem, com valores,
com a vida e com o mundo no qual está inserido. Nelly Novaes (1993), em Literatura e
linguagem, no capítulo Arte e Literatura, aborda as diversas conceituações de literatura
em cada período da história.

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1.2.1 A Literatura na Antiguidade Clássica
A autora diz que na Antiguidade Clássica ou também conhecida como greco-latina
– que se refere a quatro milênios a. C. -, não havia um termo para designar de forma
geral todas as manifestações literárias existentes: poesia lírica, épica e dramática.
“Por isso cada uma dessas manifestações tinha sua própria designação. Portanto, a
palavra “literatura” (do; lat. Litteratura, ae) significava “ciência relativa às letras ou
arte de escrever”, e por sua vez se originaria da palavra littera, ae que significava
“letra do alfabeto, epistola caráter da escrita” (COELHO, 1993, p. 15). A autora ainda
acrescenta que esse significado, original, resulta que:

Na cultura latina, berço da civilização a que pertencemos, o termo ‘literatura’ designava


a escrita das letras, ou melhor, a arte de desenhar letras, pois, por escrita, entendia-se a
reprodução artística e organizada das letras sobre um material mais ou menos resistente.
Portanto, a letra desenhada ou escrita, signo visível da fala, constituiu o primeiro elemento
daquilo que viria a se, a literatura escrita. Foi graças a descoberta desses sistemas escritos
originais, que a linguagem criadora deixa de ser apenas falada (e, portanto, passível de
desaparecer com a memória do grupo. que a criou), para tornar-se fixa, isto é, transmissível
através do tempo e do espaço. Inscrita sobre mármore, argila, pergaminho, ferro, madeira
ou papel, a linguagem falada torna-se traço ou figura. Torna-se signo. (NOVAES, 1993, p. 18).

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1.2.2 A Literatura na Era Romântica

Com o advento do Romantismo a rigidez doutrinal, segunda a autora, vai ser


rompida (séc. XVIII – XIX). Isso ocorre por que “A Razão onipotente e disciplinadora dos
clássicos cede lugar à emotividade/ espontaneidade individualista e à originalidade
criadora do artista.” Nessa fase a literatura deixa de ser a imitação do real, passando a ser
a expressão do “mistério e do enigma da existência, capturado por uma personalidade
de exceção.” Nesse câmbio de percepção sobre a produção artística, ainda segundo
Nelly (1993), “o individualismo romântico substitui o Universalismo clássico.”

Em Hegel, cujas ideias alimentaram o movimento romântico, no início do séc.XIX,


encontramos uma das mais expressivas conceituações da arte nessa época. Por essa
percepção hegeliana vemos que a Literatura é vista, pelos românticos, como um fenômeno
capaz de expressar a verdade essencial da condição humana. Dessa interpretação e do
estímulo à espontaneidade do poeta (ou do escritor em geral) deriva o conceito ético-estético
que perdurou durante todo o século XIX. (NOVAES, 1993, p. 19).

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1.2.3 A Literatura no Entre-Séculos

Nesse período a literatura passou por muitas modificações por conta do


Esteticismo. Nesse Entre-Século – que compreende a transição do Romantismo para
a Contemporaneidade, “surgiu um movimentou que buscou libertar a arte de todos
os compromissos com as manifestações da vida humana, ao que nível da realidade
cotidiana. Essa libertação tem início na área da Poesia, que passa a ser vista como uma
entidade-em-si, um valor absoluto, uma quase religião. (NOVAES, 1993, p. 19). Nesse
período, a Poesia é concebida como a eternização do belo, apreendida no momento
fugaz. (NOVAES, 1993, p. 20).
Como vimos, a conceituação de literatura carrega sentidos apreendidos ao
longo dos tempos. Conceitos que são reflexos das manifestações literárias de uma

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dada época e, que reunidas, evidenciam que o texto literário – produto da literatura –
além de fornecer o prazer estético (com objetivo lúdico), é a fonte mais fascinante de
conhecimento real. Dessa forma, podemos dizer que qualquer obra literária traz em
si marcas do contexto em que foi produzida, como:

• Ideologia dominante no período;


• Realidade social do período;
• Realidade política do período;
• Realidade econômica do período;
• Cultura dominante no período;
• Literatura como imitação da realidade;
• A palavra como matéria-prima.

“Arte literária é mimese (imitação); é a arte que imita pela palavra.”


(Aristóteles, séc. IV a.C.)

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Para pensar!!
Por que o conceito de literatura se altera com o passar do tempo?

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1.3 Literatura: a arte da palavra

Neste ponto, abordaremos alguns conceitos básicos que envolvem a relação da


literatura com a arte, uma noção geral de que a Literatura é a arte da linguagem.
Assim como a pintura, a escultura, o desenho, o cinema são expressões artísticas
que possuem cor, volume, forma e movimento, a literatura utiliza como matéria-
prima a palavra. A essência da arte literária está nas palavras, no potencial sonoro,
sintático e semântico, estabelecendo conexões entre a tríade autor-obra-leitor.

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1.3.1 A literatura atribui novos sentidos às palavras

Leia os significados do verbo tecer retirados do dicionário Michaelis on-line.


1.Tecer: Fazer passar os fios pelo meio da urdidura e formar a teia (de linho, lã, seda
etc.); tramar, urdir. 2. Compor algo, enredando ou entrelaçando materiais diversos,
usando tear, agulha, máquina ou as próprias mãos. 3. Passar perto, cruzando-se. 4.
Colocar de permeio; entrecortar, entremear, intercalar. 5. Fazer existir como resultado
de uma atividade mental; compor, criar. 6. Pôr-se em determinada ordem: ordenar-
se, organizar-se. 7. Colocar enfeite ou ornato; decorar. 8. Arquitetar detalhadamente
algo, geralmente com intenções escusas: armar, engendrar, maquinar. 9. Dar início a;
entabular, principiar. 10. ornar-se denso ou espesso. 11. Construir sua própria moradia
(certos animais), entrelaçando materiais tirados da natureza ou produzidos por si
mesmos. 12. Fazer considerações sobre algo, oralmente ou por escrito. 13. Realizar o
trabalho de tecelão.

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Tecendo a manhã
João Cabral de Melo Neto

Um galo sozinho não tece uma manhã: No dicionário, como acabamos de


ele precisará sempre de outros galos.
comprovar, apresenta uma série de
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo significados (acepções) que uma palavra
que apanhe o grito de um galo antes (verbete) pode ter, dependendo do
e o lance a outro; e de outros galos
contexto que é empregado. Agora leia o
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo, poema de João Cabral de Melo Neto e você
para que a manhã, desde uma teia tênue, o significado que o poeta empregou para
se vá tecendo, entre todos os galos.
o verbo TECER.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

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Após a leitura do poema, acesse a página do YouTube e assista à animação de
Tecendo a manhã.
Pensando sobre o texto responda:

a) As definições usadas no poema


coincidem com qual dos sentidos
empregados no dicionário?
b) Qual a diferença entre as definições
dadas no dicionário e no poema?
c) Que outros termos o poema utiliza
que estão dentro da mesma cadeia
semântica do significado do verbo
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=kgpCDfKCTsg Tecer?
d) E para você, que sentido tem o verbo
tecer?

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A liberdade criadora do poeta e as múltiplas possibilidades que a palavra pode
assumir, tornam a interpretação de determinados textos literários um grande desafio.
Isso acontece porque a literatura frequentemente mostra novas possibilidades de uso
da Língua Natural. A literatura se apropria de construção linguísticas populares e
eruditas, passadas e presentes – é uma arte que busca a permanência. Levando em
consideração o ato receptivo, a literatura possibilita, de acordo com o leitor e com o
contexto histórico-social e cultural, diversas leituras e interpretação – recepções.

HSTÓRIA DA LITERATURA 26
A literatura mostra novas possibilidades
de uso da língua natural

Para citar um exemplo do uso da língua na literatura, toma-se um pequeno


trecho de Guimarães Rosa, no conto “ A terceira margem do rio”: “...depois de
tamanho anos decorridos” (ROSA, 1963, p. 32). A construção mais usual seria
“depois de tantos anos decorridos”; mas, servindo-se do adjetivo tamanho, o

Saiba
autor desvia-se do lugar comum, criativamente. Além de nos passar a ideia
de muitos anos do personagem, a ideia de grande duração ou a qualidade

mais!
extensiva daquele período na experiência pessoal do personagem.
Repara-se que o adjetivo tamanho significa exatamente tão grande, inclusive
por sua origem latina: tam magnu. Ora, Guimarães Rosa não desrespeitou
o código da Língua Portuguesa; ao contrário empregou um termo mais
significativo e expressivo, criando uma novidade. A literatura, portanto, se
apropria de construções linguísticas.

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Plínio Marcos, um dos maiores autores teatrais contemporâneos, utiliza-se em sua obra de
construções linguísticas do chamado submundo paulista, constituído por marginais, malandros,
prostitutas, etc. Machado de Assis, em “Esaú e Jacó” (ASSIS, 1971, p. 945), apropria-se de construções
linguísticas das classes dominantes para narrar a história e para construir a fala dos personagens
principais. O conselheiro Aires, por exemplo, é um diplomata, com grande conhecimento do
mundo, que gosta muito de Literatura grega. Ora, tanto Plínio Marcos quanto Machado de Assis,
ao utilizarem, tipos diferentes de linguagem, estão coerentes com a natureza de suas histórias e
de seus personagens; não seria adequado um médico usar o vocabulário específico dos advogados
Saiba e vice-versa. Assim como um personagem de um livro do século XIX, utilizar gírias do século XXI.
mais!
Do fundo de nós sobe uma difusa recordação de outros momentos iguais. Queremos retê-la pelo
que encerra de documentador, pedir à repetição o meio de os identificar e objetivar para esvai
magicamente, como as visões dos sonhos ao despertar. Fica-nos só o vocabulário paupérrimo, fica-
nos a férula dos gramáticos, a insuficiência das academias... Este combate incessante do homem
com as palavras é doloroso.

Fonte: Fidelino Figueiredo, DO indizível. In: Últimas Aventuras, Rio de Janeiro, Empresa A Noite, 1941, p. 206-207

HSTÓRIA DA LITERATURA 28
1.4 As Funções da Literatura

Nesse ponto, apresentamos as funções da literatura, enquanto manifestação


artística. Usamos como texto orientador o artigo de Lopes (2021 que aborda todas as
funções, de forma crítica e referenciando teóricos renomados nos estudos literários.
Em A abordagem de Lopes (2021) tem por objetivo expor as funções da literatura no
tecido social do Estado Democrático e esclarecer como elas poderão ser agregadas ao
conjunto literário. São elas: catártica, estética, cognitiva e político-social.

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1.4.1 A função catártica

Segundo Aristóteles (1992), a função catártica, enquanto literária, tem seu ápice
na tragédia, uma vez que ela não é a mera imitação de/dos homens, mas de ações e
vida, de felicidade plena ou, na sua falta, de infelicidade. Com isso, é possível refletir
sobre o sentido da vida (para aqueles que buscam determiná-lo) ou permanecer no
questionamento acerca disso, mas estabelecem valor sempre pelas ações e não pelas
qualidades intrínsecas dos sujeitos, pois, conforme o filósofo grego, o ser humano
possui suas virtudes conforme o caráter, mas ele pode ser bem ou mal-aventurado
pela prática de atos concretos (LOPES, 2021, p.4).

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1.4.2 A Função estética

Nessa função atribuída ao literário pelo elemento estético, a literatura pode ser
considerada como uma força de iniciação vital, com complexos e variações. Entretanto,
justamente por essa razão, ela nem sempre é desejada pelos educadores: seus padrões
nem sempre suscitam Elevação ou edificação. Em contrapartida, a literatura traz
como elemento de liberdade em si o que chamamos de bem ou de mal, humanizando
profundamente porque faz viver (CANDIDO, 2004).
A função estética orienta o olhar do leitor para o mundo pelo conteúdo da
obra, que passa a ser fundado pela relação arte e mundo, afastando uma concepção
meramente utilitária (que reduz a obra literária às intenções do autor). É pela estética
que os sentidos do homem são ampliados, a ponto de permitir a contemplação da obra
pela via artística – ou seja, pela abertura da obra, o sujeito pode ser encaminhado aos
múltiplos formatos de interpretação, pois a obra é inacabada, indefinida, e quanto
mais aberta a obra for, mais caminhos serão oferecidos ao leitor (ECO, 2010).

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1.4.3 A Função cognitiva

Considera-se como cognitiva a função literária que é diversa do pensamento


conceitual e abstrato, que oferece ao leitor modelos de ação humana e percepção
mundana (GELHAUS, 2012). Dessa forma, por meio dessa função, a literatura organiza
o conhecimento por esquemas, em que a aprendizagem se funda na acumulação e
organização estrutural cognitiva. Assim, para cada estrutura há um objeto, ideia ou
evento, como um conjunto de atributos conectados às outras estruturas cognitivas
(SCHWARZELMÜLLER, 2005).
A função cognitiva, na literatura, auxilia o leitor no desenvolvimento da linguagem
e do conhecimento por trabalhar formas de articulação que ajudam o indivíduo a
delimitar o mundo em si, a entender. Eras, por indicar diversos caminhos, onde a
relação entre sujeito e objeto perde uma linha definida para criar um limite cinzento,
que varia segundo o conhecimento de cada ser.

HSTÓRIA DA LITERATURA 32
A ideia de que uma obra literária tivesse apenas a função de apresentar ao leitor
o belo foi se tornando cada vez mais obsoleta, em razão dos conflitos sociais e das
guerras que começaram a irromper, não permitindo que as pessoas permanecessem
em estado de inércia ou de silêncio. Portanto, para a literatura, existe o acoplamento
da arte intelectual para afastar a concepção meramente estética (SILVA; JOB, 2014).

HSTÓRIA DA LITERATURA 33
1.4.4 A Função político-social

Pensar qual é a função da literatura no mundo pós-guerras mundiais passou a


ser o centro do pensamento de estudiosos das Letras e das Ciências Humanas, pois
eventos urgentes, como a Grande Depressão, obrigaram que todos fizessem um
reexame metodológico, já que, no meio da estagnação econômica e das ameaças de
totalitarismo, chegou-se à conclusão que a literatura deveria ter uma função política
capaz de condenar a mesquinhez e a crueldade, ao mesmo tempo em que indica
caminhos para a construção de uma sociedade mais justa (BURNS, 1989).

Fonte: LOPES, Felipe da Silva. As funções da literatura. Organização Comitê Científico.


Double Blind Review pelo SEER/OJS. Disponível em: https://www.indexlaw.org/index.php/
revistadireitoarteliteratura/article/view/7839/pdf

HSTÓRIA DA LITERATURA 34
Após a leitura do texto, de Felipe Lopes (2021), leia o poema de Jorge de Sena
e o fragmento do poema Procura da Poesia, de Carlos Drummond, reflita sobre a
função literária que este poema manifesta.

Os paraísos artificiais Procura da poesia

Na minha terra, não há terra, há ruas; [...] Penetra surdamente no reino das palavras.
mesmo as colinas são de prédios altos Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
com renda muito mais alta. Estão paralisados, mas não há desespero,
Na minha terra, não há árvores nem flores. há calma e frescura na superfície intata.
As flores, tão escassas, dos jardins mudam ao mês, Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
e a Câmara tem máquinas especialíssimas para Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
desenraizar as árvores. Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
O cântico das aves – não há cânticos, Espera que cada um se realize e consume
mas só canários de 3º andar e papagaios de 5º. com seu poder de palavra
E a música do vento é frio nos pardieiros. e seu poder de silêncio.
Na minha terra, porém, não há pardieiros, Não forces o poema a desprender-se do limbo.
que são todos na Pérsia ou na China, Não colhas no chão o poema que se perdeu.
ou em países inefáveis. Não adules o poema. Aceita-o
A minha terra não é inefável. como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
A vida da minha terra é que é inefável. no espaço.
Inefável é o que não pode ser dito. Chega mais perto e contempla as palavras. [...]

Jorge de Sena Carlos Drummond de Andrade


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Para pensar!!
Que efeitos os poemas provocam?
As poesias apresentadas exercem as mesmas funções?

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REFERÊNCIAS

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