O Desejo de Maria
Reflexões sobre um instante de “aconselhamento
genético” em câncer de mama
Fernanda Carneiro1
Doutoranda na COPPE/UFRJ
Esta narrativa emergiu da reflexão sobre a primeira "experiência empírica" colhida para
minha pesquisa de doutorado, no campo da ética das ciências biológicas. Expresso, pois,
Comitês de Ética em Pesquisa, Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 1999.
Acreditamos que a Ética da Biologia e da Medicina não deve ser descolada da vida
vivida. Nosso esforço de teorização é um exercício de quem pensa existencialmente e se
comove com o que a razão sugere para a reflexão teórica.
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As obras de Martin Buber expressam um profundo compromisso com a vida. Para Buber, a razão de ser
do filosofar é explicitar a concretude vivida da existência humana. Buber gualda um certo ceticismo com
relação às grandes construções conceituais dos sistemas filosóficos. Nesse ponto ele tem afinidades com a
postura da Lebensphilosophie ("filosofia da vida") de forte difusão na Europa Central nos tempos da
publicação de sua obra maior -Eu Tu- cuja primeira edição data do início dos anos 20.
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(Corrêa & Petchesky, 1994) como critérios centrais nas decisões responsáveis da
mulher sobre seu corpo -sujeito de direitos. A positividade colocada na necessária
união entre conhecimento tecnocientífico e vida cotidiana enfrenta, a partir dessa
posição moral, o excesso de poder que tende a liquidar todo pluralismo e, por
conseqtiência, a singularidade, no momento dela consentir com intervenções
biotecnológicas em seu próprio corpo.
O debate bioético vem colocando que a prática da pesquisa com seres humanos deve
assegurar condições de possibilidade da pessoa exercer o direito à informação para se
viabilizar o princípio bioético da autonomia ou da "permissão individual" (individual
permission) (Engelhardt, 1996), isto é, cada pessoa deve adquirir a habilidade para
compreender o empreendimento em que está se envolvendo de forma consentida. O que
é consentir? Con-sentir é ser capaz de responsabilidade. "É o ato da responsabilidade
que nos fornece a conexão entre a pessoa e a verdade" (Buber, 1982).
"O ser humano é o único ente conhecido por nós que pode assumir
responsabilidade. &te 'poder' o entendemos de maneira imediata como
algo mais do que uma mera constatação empírica. 0 entendemos como
uma característica distintiva e decisiva da essência do ser humano e de
seu equipamento existencial. Reconhecemos assim o caráter essencial
desta especificidade humana (nossa humanidade)4 e também
reconhecemos, intuitivamente, nesta, um valor, mas não é um valor a
mais na paisagem ricamente povoada por seres vivos, e sim um valor
que supera todo o até então existente por meio de algo que o
transcende genericamente e ante o qual somos responsáveis" (Hans
lonas, 1998).
O desafio colocado para o movimento bioético será considerar o diálogo como evento
possível de se discernir o que é o bem da pessoa, no contexto dos "avanços" da ciência e
das tecnologias biomédicas par e passo à ignorância quanto a seus "efeitos cumulativos
futuros" (Jonas, 1994).
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Comentário dos autores.
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II
Por fim, elementos essenciais da relação humana estão presentes numa sessão de
Aconselhamento Genético, colocando em questão duas coisas: a pessoa (cada uma que
está envolvida na relação) e a verdade. Ambas, constituem-se pessoas em busca de
verdades, pessoas expostas em toda sua vulnerabilidade pela presença da alteridade,
capazes de responsabilidade.
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O Termo de Consentimento Livre e Informado, no Brasil, é uma das exigências éticas mais rigorosas
nas regulamentações e no critério de análise dos Comitês de Ética em Pesquisa com Seres Humanos
conforme define a Resolução CNS 196/96
II. 10: anuência do sujeito da pesquisa e/ou de seu representante legal, livre de vícios (simulação, fraude ou e1TO),
dependência, subordinação ou intimidação, após explicação completa e pormenorizada sobre a natureza da
pesquisa, seus objetivos, métodos, benefícios previstos, potenciais riscos e o incômodo que esta possa acarretat;
formulada em um termo de consentimento, autorizando sua participação voluntária na pesquisa.
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Na sala, uma equipe recebeu Maria. o que desejava aquela mulher? Certamente uma boa
notícia.
O médico parece despreocupado com o que a ele se apresentará. Ele não anota
indiscriminadamente, fica à vontade e não parece temeroso de esquecer alguma coisa.
Confia no trabalho. Inicia a conversação em tom informal, sem demasiada seriedade:
- D. Maria) todas as informações que a senhora nos der ou receber são confidenciais
e só serão usadas com o seu consentimento.
- Pra mim não tem problema não, responde ela, quase interrompendo o final da fala do
médico. Parece que tem pressa em ouvir o que virá em seguida.
Maria já não tinha um dos seios. Havia sido extirpado após a constatação de câncer, em
um outro hospital.
Algumas palavras da fala suave do médico soam como ruídos - "difícil prognóstico",
"exame preditivo"... Limites evidentes perturbam a liberdade de uma mulher em
compreender o objeto do seu consentimento: o acesso científico à sua informação
genética.
- Quando foi que a senhora teve o seu primeiro "diagnóstico"? referiu-se o médico à
cirurgia que Maria já havia se submetido.
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Seus olhos, levemente crispados pelo esforço para escutar, se abriram num certo
desespero de quem não compreende algo que lhe é fundamental e ela repete:
-'óstico?', o quê?
"Ela deve adivinhar coisas que não têm nome e que talvez nunca
terão para ela." (Cecília Meireles).
- É. De que será que ela sabe ou como deve saber desse mundo científico onde somos
protagonistas neste momento? Que palavras usar para que atinjam a sua verdade,
que palavras dizem respeito a ela própria e não a uma generalidade científica sem
sentido?, pensei eu.
“Mas eu sei tudo. Tudo o que me será sempre inacessível. Civilizar minha vida é
expulsar- me de mim Civilizar minha existência a mais profunda seria tentar
expulsar a minha natureza e a supernatureza. Tudo isso no entanto não fala de
meu possível signiftcado"(..).
O "diálogo técnico" (Buber, 1982) continua, mas há um paradoxo no ar. Alguma coisa
além de Maria e de sua, entre aspas, "ignorância" científica, nos dizem mais do que
informações para construir um heredograma, mas nós também não compreendemos o
seu silêncio.
- Me fale um pouco de sua história. Quantos irmãos, irmãs? Quem já teve câncer na
sua família?
- Minha bisavó, minha avó (começou na pele), minha mãe, hoje com sessenta anos já
operada do seio há seis; minha tia, no útero; meu irmão, no cérebro; minha irmã, no
seio (fez operação recentemente).
Negativo, no senso comum, é associado a algo que não é bom. O que será dar negativo?
Ela quer uma boa notícia. Toda a explicação anterior sobre o risco que o fator genético
supõe não teve significado algum. A palavra negativo tem um peso.
- Significa que, provavelmente, a senhora não terá câncer no outro seio, pelo menos o
que é originado da presença desse fator que não foi encontrado.
Dessa vez, a "casa da linguagem" abriu um de seus compartimentos mais íntimos. Maria
cresceu em postura. Iluminou-se. Adquiriu mesmo um ar de quem espera felicidade. O
momento dialógico instalou-se como tomada de conhecimento íntimo. Maria aparece
em toda a sua personalidade e dispara em bom tom:
- Ah, doutor; eu quero sim. Eu quero saber quando é que eu vou fazer a ‘prótese’!
Que surpreendente! Este jargão científico ela sabia muito bem pronunciar sem
balbuciar, ela mesma que até então, demasiado assustada estava para emitir, de uma
forma pura, o sentido já ordenado em seu interior. Essa palavra trazia algo a ela e algo
que pertencia à sua intimidade, à sua dignidade de pessoa. Não era o geneticista que
tinha a resposta de seu maior anseio ao participar daquele empreendimento. Não eram
os resultados, os benefícios, o prognóstico, o progresso da ciência que lhe interessavam.
Ela desejava retomar a posse de sua integridade corporal.
E a pessoa chega, plena em sua fala, arrematando com um argumento definitivo de sua
bioética aplicada e pessoal:
Maria deu a conhecer, de sua mais profunda intimidade, o sentimento do belo. O belo
que não está associado à aparência, à estética fashion. A beleza, como critério do que é
bom e justo para essa mulher, refere-se também à integridade corporal, à posse do corpo
e ao prazer de sentir-se bela com seus seios - orgulho da feminilidade. Maria não
confunde a pessoa com seu destino biológico: ela quer a beleza perdida que não está
referida a nenhum mapeamento genético. A pessoa revela-se de corpo presente
modulando uma obrigação a seu respeito que é universal: a integridade corporal. O
diálogo se instalou no momento em que Maria "em pessoa", caráter moral e não
biológico, em sua singularidade, se afirmou, com sua própria fala carente por uma
escuta. Ela queria ali a resposta verdadeira. A boa nova. Era a boa hora: a felicidade que
buscava.
O diálogo autêntico surge, inconveniente, no apelo de Maria. Estabelece entre nós uma
reciprocidade viva. É preciso responder a ela. A motivação verdadeira do seu
consentimento lidava com o não classificável. Algo sobre ela e algo sobre nós mesmas.
IV
Essa narrativa abre caminhos possíveis para a reflexão teórica esboçada nas partes
iniciais deste texto. Destacarei apenas um momento onde o cientista expressa um dos
centros da preocupação bioética - o sigilo e a guarda segura das informações genéticas:
- D. Maria, todas as informações que a senhora nos der ou receber são confidenciais
e só serão usadas com o seu consentimento, e ela responde;
-Pra mim não tem problema não.
À Maria apenas interessou o que era justo para si, naquele momento: sua busca de
beleza e felicidade aliada a um senso de justiça e adequação.6 Sua sensibilidade,
essencialmente ingênua, basta-se num mundo insuficiente para a razão bioética. A
estética que Maria percebe alterada pela mutilação em seu mundo próprio - seu corpo
íntegro e sensível- encontrou na técnica (prótese) o valor que se oferece a ela para
embasar seu consentimento às regras de um estudo experimental. O egoísmo inocente
da vida vivida constituiu o domínio de seu consentimento, tornando aguda a
necessidade de responsabilidade pessoal do dentista e da instituição em assegurar a
felicidade de seus interlocutores, como critério também da beneficência.
Este episódio, narrado como crônica do cotidiano das pesquisas, provoca-nos a reflexão
bioética sobre a autonomia e o consentimento livre e informado dos próprios cientistas
quanto às motivações e finalidades dos projetos biotecnológicos. A surpresa da presença
da alteridade concreta de Maria mostrou a vulnerabilidade dos pesquisadores,
desafiando-os a superar ingenuidades e a discernir as suas próprias tarefas éticas
implicadas no princípio da responsabilidade.
Não pretendemos aqui afirmar que uma forma de "estética do corpo" tenha validade
universal para todo o gênero feminino na imensa pluralidade das formações históricas e
culturais conhecidas da humanidade. Apenas concluirei que a responsabilidade de
assegurar essa busca tem dimensões pessoais e institucionais, no mais das vezes, muito
distante dos propósitos, finalidades e conseqüências dos projetos de pesquisa em
andamento.
BIBLIOGRAFIA
Bartholo, Roberto dos Santos Jr. Da vida provisória. In: A dor de Fausto. Rio de
Janeiro: Devan, 1992.
Buber, Martin. Eu Tu. Tradução brasileira de Marta Ekstein de Souza Queiroz e Regina
Weinberg. Perspectiva. São Paulo, Editora Moraes, 1974.
Buber, Martin. I and Thou. Translation by Walter Kaufmann. New York: Charles
Scribner's Sons, 1970
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No Brasil. foi aprovado em 02/03/1999. em primeira instância. na Câmara dos Deputados. projeto de lei
que permite a hospitais e clínicas do Sistema de Saúde Pública fazerem cirurgia plástica reparadora nos
casos de mutilação devido à câncer de mama, refletindo a relevância da integridade corporal para a
comunidade de mulheres brasileiras. No momento desta pesquisa e até hoje. essa possibilidade ainda não
está disponibilizada a todas as mulheres, razão porquê Maria valeu-se da oportunidade da pesquisa à qual
aderiu para alcançar seu desejo.
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Lima Vaz, Henrique. Escritos de filosofia II. Ética e Cultura. São Paulo, Loyola, 1993.
PAISM -Assistência integral à saúde da mulher - Bases para uma prática educativa.
INAN/ Ministério da Saúde. Brasília, outubro, 1983.