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TÍTULO ORIGINAL
The Mandibles: A Family, 2029-2047

PREPARAÇÃO
Luara França
Milena Vargas

REVISÃO
Anna Beatriz Seilhe
Fernanda Machtyngier

REVISÃO DE E-BOOK
Thais Entriel

GERAÇÃO DE E-BOOK
Joana De Conti

E-ISBN
978-65-5560-130-5

Edição digital: 2021

1a edição

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA INTRÍNSECA LTDA.
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22451-041 — Gávea
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SUMÁRIO

[Avançar para o início do texto]

Folha de rosto
Créditos
Mídias sociais
Sumário
Dedicatória
Epígrafe

2029
Capítulo 1: Água cinza
Capítulo 2: Aglomeração cármica
Capítulo 3: Esperando a grana
Capítulo 4: Boa noite, compatriotas americanos
Capítulo 5: Os intelectualoides
Capítulo 6: Busca e apreensão
Capítulo 7: A Rainha Guerreira chega a Carroll Gardens
Capítulo 8: As alegrias de ser indispensável
Capítulo 9: Material descartado
Capítulo 10: Reveses nunca trazem à tona o que as
pessoas têm de melhor
Capítulo 11: Sarjeta valeta amareta
Capítulo 12: Ação, recompensa e sacrifício
Capítulo 13: Aglomeração cármica II
Capítulo 14: Um sistema complexo entra em
desequilíbrio

2047
Capítulo 1: Dançando conforme a música
Capítulo 2: Hoje faremos uma festa como se
estivéssemos em 2047
Capítulo 3: A volta da ideia de qualquer coisa: atirar em
alguém, ir a outro lugar, ou as duas opções
Capítulo 4: “Singin’ ‘this’ll be the day that i die”
Capítulo 5: Quem quer viver em uma utopia, afinal?

Sobre a autora
Leia também
PARA BRADFORD HALL WILLIAMS
Embora você tivesse pouco tempo para a ficção, teria gostado
deste livro.
Quem imaginaria que um misantropo rabugento faria tanta
falta?
O colapso é uma forma de simplificação súbita, involuntária e
caótica.
— JAMES RICKARDS, CURRENCY WARS
2029
• CAPÍTULO 1 •

ÁGUA CINZA

— Não use água limpa para lavar as mãos!


A intenção era lembrar de forma gentil, mas a advertência saiu
estridente. Florence não queria parecer o que seu filho chamaria de
uma bostejanta, mas as regras da casa eram simples. Esteban as
desrespeitava o tempo todo. Havia outras maneiras de provar que
você não obedecia às ordens de nenhuma mulher (ligeiramente)
mais velha sem ter que desperdiçar água. Ele era um homem tão
incrivelmente bonito que ela o deixaria sair impune de quase
qualquer outra coisa.
— Perdoe-me, Pai, porque eu pequei — resmungou Esteban,
mergulhando as mãos na bacia de plástico da pia que captava
águas residuais. Tiras de repolho boiavam perto da borda.
— Isso não faz sentido, faz? — perguntou Florence. — Depois
que você já usou a água limpa, usar a cinza?
— Só estou fazendo o que mandaram.
— Essa é nova.
— O que deixou você nesse bom humor? — Esteban enxugou as
mãos, agora engorduradas, em um pano de prato ainda mais
ensebado (outra regra, e assim um rolo de toalhas de papel dura
seis semanas). — Deu alguma coisa errada na Adelphi?
— Tudo sempre dá errado na Adelphi — resmungou ela. —
Drogas, brigas, furtos. Bebês berrando com eczema. Abrigos para
sem-teto são assim. Sinceramente, não entendo por que é tão difícil
fazer os moradores darem descarga. Esse é o cúmulo do luxo aqui
em casa.
— Queria que você arrumasse outra coisa.
— Eu também. Mas não conte a ninguém. Ia estragar minha
reputação de santa.
Florence voltou a cortar o repolho; uma opção econômica,
mesmo por vinte pratas. Ela não sabia direito até quando o filho
suportaria esse vegetal.
Os outros morriam de curiosidade do virtuosismo dela, por ter
assumido um trabalho tão exigente e ingrato naqueles quatro longos
anos. Mas as suposições sobre sua natureza angelical eram
equivocadas. Depois de ralar em um emprego mal remunerado após
outro, quase sempre de meio expediente, qualquer altruísmo
crédulo que motivara sua estúpida formação dupla em estudos
americanos e política ambiental, na Barnard, tinha sido quase que
inteiramente enxotado dela. Metade de seus empregos fora
eliminada pelo fato de uma inovação qualquer ter ficado obsoleta de
uma hora para outra; ela trabalhara em uma companhia vendendo
ceroulas elétricas que economizavam o custo dos aquecedores, e
de repente os consumidores passaram a querer apenas ceroulas
aquecidas à base de grafeno eletrificado. Outros empregos foram
eliminados pelo que, perto dos seus vinte anos, eram chamados de
bôs, mas que agora os trabalhadores americanos dispensados
chamavam de roubs, por razões óbvias. Seu emprego mais
promissor tinha sido em uma startup que fazia saborosas barras de
proteína a partir de grilo em pó. Entretanto, quando a Hershey’s
entrou na produção em massa de um produto similar, só que
notoriamente cheio de óleo, o mercado de tira-gostos à base de
insetos foi para o brejo. Assim, ao topar com um cargo em um
abrigo municipal em Fort Greene, candidatou-se, por uma
combinação de desespero e astúcia: a única coisa que estava
fadada a nunca faltar na cidade de Nova York eram pessoas sem-
teto.
— Mãe — chamou Willing em voz baixa, no vão da porta —, não
é minha vez de tomar banho?
Fazia só cinco dias que seu filho de treze anos tomara banho
pela última vez, e ele sabia muito bem que a quota de todos era
uma chuveirada por semana (tinham caixas e mais caixas de xampu
seco para usar). Willing também reclamava que ficar embaixo do
chuveiro de ultra conservação que eles usavam era como “passear
na neblina”. Era verdade que os borrifos finos dificultavam tirar o
condicionador do cabelo, mas a resposta não era usar mais água.
Era parar de usar condicionador.
— Acho que ainda não... mas vai lá. — Ela cedeu. — Não
esqueça de fechar a água enquanto se ensaboa.
— Eu fico com frio. — A enunciação dele foi monocórdica. Não
era uma reclamação. Era um fato.
— Li que tremer de frio é bom para o metabolismo.
— Então, meu metabolismo deve estar irado — rebateu Willing
em tom seco, e deu meia-volta. A gozação com o vernáculo
ultrapassado da mãe não foi justa. Fazia séculos que ela aprendera
a falar maligno.
— E se você estiver certa e essa coisa da água só piorar? —
perguntou Esteban, pegando os pratos para o jantar. — Seria
melhor abrir as torneiras até o fim enquanto a gente pode.
— Às vezes eu sonho com longos banhos de água quente —
confessou Florence.
— Ah, é? — Esteban envolveu a cintura dela por trás, enquanto a
mulher tirava o miolo de outro pedaço de repolho. — No fundo
dessa santinha tensa e mandona mora uma hedonista que está
tentando sair.
— Nossa, antigamente eu me refestelava embaixo de uma água
torrencial, o mais quente que conseguisse suportar. Uma vez,
quando eu era adolescente, o vapor foi tanto que estraguei a pintura
do banheiro.
— Essa é a coisa mais sensual que você já me contou —
cochichou ele em seu ouvido.
— Bem, isso é deprimente.
Esteban riu. Seu trabalho consistia em levantar corpos idosos,
não raro obesos, para fazê-los entrar e sair de cadeiras de rodas
motorizadas — motocads, para quem era pelo menos um pouco
chique —, e isso o mantinha em forma. Florence sentiu o peitoral e
o abdômen rijos pressionando suas costas. Ela certamente estava
cansada, e podia ter quarenta e quatro anos completos, mas essas
aproximações de Esteban, ultimamente, faziam com que se sentisse
um brotinho, e isso era excitante. O sexo deles era bom. Ou era
coisa de mexicano, ou Esteban era simplesmente um homem
incomum — e, ao contrário de todos os outros caras que ela
conhecera, ele não fora criado em uma dieta rigorosa de pornografia
desde os cinco anos de idade. Gostava de mulheres de verdade.
Não que Florence se considerasse um grande partido. Sua irmã
caçula tinha levado a melhor na aparência. Avery era morena e de
curvas delicadas, com aquele toque de fragilidade que os homens
achavam tão atraente. Musculosa e forte por se manter sempre em
atividade, inquieta, com quadris estreitos, o rosto comprido e a juba
castanho-avermelhada em desalinho que vivia escapando do lenço
estilo pirata que ela usava para manter os cachos rebeldes
controlados, Florence sempre fora caracterizada como uma
“cavala”. Até Esteban se apegar a essa descrição com afeto, dando
tapinhas nas cadeiras de sua potranca nervosa, ela a considerara
pejorativa. Talvez houvesse coisas piores do que ser parecida com
um cavalo.
— Sabe, eu tenho uma filosofia totalmente diferente — murmurou
Esteban no seu pescoço. — Não vai mais ter peixe? Pois meta a
cara no badejo chileno sem pensar no amanhã.
— O perigo de não haver peixe amanhã é justamente a questão.
— O estalo puritano da língua foi temperado com uma paródia dela
mesma; Florence sabia que sua fachada severa e escrupulosa dava
nos nervos dele. — E, se a reação de todo mundo à escassez de
água for tomar banhos de meia hora enquanto for possível, vamos
ficar sem água muito antes. Mas se esse não é um motivo bom o
bastante para você, não esqueça que a água é cara. Um monstro de
cara, como diz a garotada.
Esteban soltou a cintura dela.
— Mi querida, você é uma tristeza. Se a Idade da Pedra nos
ensinou alguma coisa, foi que o mundo pode ir pro espaço num
estalo. Nos intervalinhos entre as desgraças, a gente bem que podia
tentar se divertir.
Ele tinha razão. A intenção de Florence era fazer render aquele
quase meio quilo de carne de porco moída em duas refeições; era a
primeira carne vermelha que eles comiam em um mês. Depois que
Esteban pediu para curtirem o momento, ela tomou a decisão
impulsiva de servir porções de cento e cinquenta gramas para cada
um, de uma vez só, sentindo-se zonza com o desperdício e a
desinibição, até se refrear: isso porque somos pessoas de classe
média.
Na Barnard, escrever sua tese de estudos avançados sobre
“Classe social, de 1945 ao presente” parecera uma ousadia, porque
os americanos se gabavam de estar acima das classes. Mas isso
tinha sido antes da lendária derrocada econômica que coincidira
catastroficamente com sua formatura na faculdade. Depois disso, os
americanos só falavam de classes.
Florence tinha um estilo meio brusco e prático, e a
autocomiseração não lhe caía bem. Graças ao dinheiro do seu avô,
as dívidas dela com a inútil formação universitária eram menos
onerosas que as de muitos de seus amigos. Talvez ela invejasse a
aparência da irmã, mas não a vocação de Avery; ela não falava para
ninguém, mas considerava aquela prática terapêutica secundária, a
“MenteCorpo”, uma baboseira parasítica. Comprar a casa em East
Flatbush tinha sido perspicaz da parte de Florence, porque o bairro
antes decadente tornara-se de alta classe. Em Mumbai, os indianos
se rebelavam por não poder arcar com o preço dos legumes, mas
ela ainda podia ao menos pagar pelas cebolas. Tecnicamente,
Florence podia ser considerada “mãe solteira”, mas as mães
solteiras do país ultrapassavam o número das casadas, e aquela
expressão havia caído em desuso.
Apesar disso, os pais dela nunca tinham entendido. Embora se
desmanchassem em exclamações sobre como se sentiam
“orgulhosos”, a ideia de que sua filha mais velha, já na casa dos
quarenta, precisasse de incentivo era um insulto. Agora, a adulação
deles por causa daquele emprego no abrigo era insuportável.
Florence não aceitara o trabalho por ser louvável; aceitara-o por ser
um emprego. O abrigo prestava um serviço público vital, mas, em
um mundo perfeito, esse serviço seria prestado por outra pessoa.
Os pais dela, é claro, tinham sofrido seus próprios reveses. Fazia
muito que o pai, Carter, sentia que não estava alcançando o seu
melhor no jornalismo impresso, empacado fazia séculos no
Newsday de Long Island, sem nunca pôr a mão nos cargos
influentes e bem-remunerados, cujos privilégios julgava merecer por
seu trabalho árduo. (Além disso, o pai sempre parecera se
considerar superior à irmã, Nollie, que, segundo ele, nunca fizera
nenhum esforço, e cujos livros, como ele insinuara em mais de uma
ocasião, eram supervalorizados.) Por volta do fim da carreira,
porém, ele tinha conseguido um emprego em seu amado New York
Times (que Deus o tenha). Era apenas um cargo no caderno de
Automóveis e, mais tarde, no de Imóveis, mas ter ingressado no
jornal que ele mais reverenciava constituíra um tributo vitalício.
Jayne, a mãe de Florence, cambaleava de um projeto apocalíptico
para outro, mas havia gerenciado a adorada livraria Shelf Life antes
de sua falência; havia gerenciado aquela delicatéssen artesanal na
rua Smith, antes de ser saqueada durante a Idade da Pedra e de
Jayne ficar traumatizada demais para voltar a pôr os pés na loja. E
eles eram proprietários da própria casa, isso era claro como água.
Sempre tiveram carro. Haviam enfrentado os problemas habituais
de conciliar família e carreira, mas tinham carreiras, sim, não meros
empregos. Quando Jayne engravidara pela última vez, já
tardiamente, eles se preocuparam com a diferença etária entre o
novo bebê, Jarred, e as duas filhas, mas ninguém se angustiara
como Florence durante a gravidez de Willing, porque ela não tinha
certeza de que teria condições de arcar com a criação do bebê.
Como eles poderiam entender as agruras da filha mais velha?
Durante seis longos anos, depois da formatura, Florence precisou
morar com os pais em Carroll Gardens, e esse grande borrão de
coisa nenhuma ainda manchava seu currículo. Pelo menos, seu
irmãozinho Jarred estava no ensino médio e lhe fazia companhia,
mas era humilhante ter batalhado tanto naquele bacharelado idiota
só para ficar experimentando novas receitas de brownies com pasta
de amendoim e gotas de chocolate sabor hortelã. Durante a
chamada “recuperação”, ela enfim se mudara, passando a dividir
acomodações apertadas e mambembes com contemporâneos
também diplomados em universidades da Ivy League, em cursos de
história ou ciência política, e que também preparavam café, serviam
mesas e vendiam aqueles smartphones antigos que quebravam e
tinham de ser recarregados o tempo todo nas lojas da Apple.
Nenhum emprego idiota, de todos os que ela havia conseguido
desde então, tinha a mais vaga relação com sua formação
universitária.
É verdade que o país tinha se recuperado da Idade da Pedra
mais depressa que o previsto. Os restaurantes de Nova York
estavam novamente abarrotados, e o mercado de ações fervilhava.
Mas ela não acompanhara a evolução para saber se o Dow Jones
tinha chegado a trinta ou quarenta mil, porque nada daquela alta
frenética ajudara Willing, Esteban e Florence a subir de vida. Logo,
talvez ela não fosse de classe média. Talvez esse rótulo fosse o
mero resíduo da origem em uma família culta, letrada, daquilo a que
a pessoa se agarrava para se separar de gente que se encontra em
situação muito pior que a sua. Não há muitos pratos que se possam
preparar apenas com cebolas.

***

— Mãe! — gritou Willing da sala de visitas. — O que é moeda de


reserva?
Enxugando as mãos no pano de prato — a água fria e cinza não
eliminara a gordura dos hambúrgueres de carne de porco —,
Florence encontrou o filho recém-saído do banho, com o cabelo
preto e úmido despenteado. Apesar de ter crescido uns cinco
centímetros naquele ano, o garoto era franzino e ainda meio baixo,
considerando que faria quatorze anos dali a três meses. Tinha sido
muito intempestivo quando pequeno. Contudo, desde aquele fatídico
março de cinco anos antes, vinha sendo não exatamente medroso
— não era infantil —, mas atento. Era sério demais para a idade, e
muito calado. Às vezes, Florence se sentia desconfortavelmente
observada, como se estivesse sempre sob o olhar vigilante de uma
câmera de segurança. Não sabia ao certo se desejava se esconder
do próprio filho, mas sabia que a melhor estratégia para proteger
sua privacidade não era a dissimulação, mas a apatia — o fato de
outras pessoas apenas não estarem interessadas.
Bastante desanimado para um cocker spaniel — embora a testa
perpetuamente franzida de apreensão pudesse indicar uma gota do
sangue de cão de caça —, Milo estava desabado junto ao dono,
com o queixo apoiado no chão de forma lúgubre. Sua pelagem
chocolate tinha bastante brilho, mas os olhos castanhos pareciam
preocupados. Que dupla.
Como era típico àquela hora da noite, Willing não estava
instalado diante de videogames de alienígenas e senhores da
guerra, mas do noticiário da TV. Engraçado, durante anos tinham
previsto a morte da televisão. Os canais eram transmitidos por
streaming, mas o formato sobrevivera — proporcionando o fogo
aberto, o calor comunitário que um aparelho de uso exclusivamente
pessoal jamais poderia substituir. Depois que os jornais foram quase
todos extintos, o jornalismo impresso dera lugar a uma ralé de
amadores que divulgava notícias não verificadas e sempre com fins
ideológicos. O noticiário televisivo era quase a única fonte de
informação em que Florence tinha vaga confiança. Agora que o
dólar caiu abaixo de 40% das cotações mundiais..., lamentava em
voz alta o âncora do noticiário.
— Não faço ideia do que seja moeda de reserva — admitiu ela.
— Não acompanho toda essa chatice econômica. Quando me
formei na faculdade, as pessoas só falavam nisto: derivativos, taxas
de juros, uma coisa chamada LIBOR. Era cansativo, e eu já não tinha
interesse para começar.
— Não é importante?
— Meu interesse não é importante. Juro que passei anos lendo
jornais do início ao fim. Conhecer aquelas coisas, a maioria das
quais esqueci, não fez a menor diferença. Para falar a verdade, eu
gostaria de ter aquele tempo de volta. Achei que sentiria falta dos
jornais, mas não sinto.
— Não diga isso ao Carter — recomendou Willing. — Isso o
magoaria.
Florence ainda se encolhia ao ouvir “Carter”. Os pais dela tinham
insistido para que todos os netos os tratassem por seus nomes.
Tendo “só” cinquenta anos e cinquenta e dois anos quando a
primeira filha de Avery nasceu, os dois resistiram a “vovó e vovô”
como algo que conotava um status geriátrico com o qual não
conseguiam se identificar. Obviamente, imaginavam que ser “Jayne
e Carter” para a geração seguinte induziria a uma camaradagem
acolhedora e igualitária, como se não fossem mais velhos, e sim
coleguinhas. Supunha-se também que rejeitar a convenção os
tornasse audaciosos e modernos. Para Florence, contudo, isso era
estranho: o filho se referia aos pais dela com mais familiaridade do
que ela mesma. Aquela recusa em aceitar a marca nominativa do
que de fato eram — avós do Willing, querendo ou não — sugeria um
autoengodo e, portanto, era só um gesto de fraqueza, algo que a
deixaria constrangida por eles, se os dois não tivessem a
perspicácia de se constranger sozinhos. A camaradagem forçada
não incentivava intimidade, mas desrespeito. Em vez de ser pelo
menos um pouco diferente do padrão, a rotina de “Jayne e Carter”
era cansativamente típica da primeira geração do pós-guerra.
Mesmo assim, Florence não devia descarregar sua exasperação em
Willing, que só estava fazendo o que mandavam.
— Não se preocupe, eu nunca falaria mal dos jornais com seu
avô — respondeu Florence. — Mas, mesmo durante a Idade da
Pedra... Todo mundo achou aquilo terrível, e algumas partes foram
mesmo um horror. Mas, puxa, para mim, ficar livre de todo aquele
ruído foi um barato enorme. — Ela levantou as mãos e continuou: —
Desculpe! Foi relapso. Tudo pareceu leve, tranquilo e franco. Eu
nunca tinha me dado conta de que o dia era tão comprido.
— Você voltou a ler livros — disse Willing. A referência à Idade
da Pedra o deixou pensativo.
— Bem, os livros não duraram! Mas você tem razão, eu voltei,
sim, a ler livros. Do tipo antigo, com páginas. Tia Avery dizia que
isso era “excêntrico”.
Florence deu um tapinha no ombro do filho e o deixou entregue
ao Noticiário Mais Chato de Todos os Tempos. Caramba, ela devia
ser mãe do único menino de treze anos do Brooklyn que ficava
fissurado nas notícias do mundo dos negócios.
Enquanto dava uma olhada no arroz, ela tentou lembrar o que
seu filho esquisito dissera sobre o recrudescimento da desnutrição
na África e no subcontinente indiano, depois de ambas as regiões
terem feito avanços tão grandes. Era um absurdo que os pobres não
pudessem comprar a própria comida, ela lamentara com o filho, já
que o planeta tinha alimentos em abundância. Willing respondera,
de forma obtusa: “Não, não existe abundância.” E em seguida
recapitulara a explicação tortuosa de seu bisavô — algo do tipo: “Só
parece haver uma abundância de alimentos. Se você der mais
dinheiro aos pobres, os preços subirão ainda mais, e eles
continuarão sem conseguir comprar.” O que não fazia o menor
sentido. Perto de Willing, ela deveria ser mais cuidadosa ao
monitorar a propaganda do avô. O velho era adepto do liberalismo
econômico por convicção, mas Florence nunca conhecera ninguém
com dinheiro que não tivesse instintos conservadores. Um desses
instintos era fazer com que o moralmente óbvio (se bem que
inconveniente, em termos tributários) parecesse muito complicado.
Tipo, o arroz está caro demais, então, dê dinheiro às pessoas para
comprá-lo. Que dúvida.
Willing parecia muito discreto e despretensioso na escola, mas, a
portas fechadas, podia ser bastante cheio de si.
— A propósito, combinei de conversar com minha irmã depois do
jantar — disse Florence a Esteban, quando ele foi pegar uma
cerveja gelada. — Então espero que você não se incomode em
lavar a louça.
— Me deixe usar água de verdade que eu lavo a louça todas as
noites.
— A cinza é de verdade, só não é muito transparente.
Ela não queria travar essa batalha todas as noites, e foi um alívio
Esteban ter mudado de assunto quando os hambúrgueres de porco
começaram a chiar no fogão.
— Hoje à tarde conheci o novo grupo que vamos levar ao monte
Washington — comentou Esteban. — Já identifiquei o encrenqueiro.
Nunca são os clientes fracos e bobocas que causam
aborrecimentos, são os super-heróis geriátricos. Quase sempre
homens, embora às vezes seja uma velhota durona, do tipo ainda-
acho-que-tenho-trinta-e-cinco-anos, toda colada com durex e que já
gastou centenas de milhares de dólares em cirurgias plásticas.
Esteban sabia que Florence não gostava que ele falasse com
esse desprezo das pessoas de quem cuidava, mas era
compreensível que precisasse descarregar a frustração fora do
alcance dos ouvidos da clientela.
— E quem é a dor de cabeça? Cacete, essa carne tem tanta
água que os hambúrgueres vão ficar cozidos.
— Ele deve estar para lá dos oitenta. Tem aquele jeito, com os
bíceps fibrosos de quem passa horas na academia e não notou que
agora faz exercícios de braço com halteres de madeira. Não quis
ouvir minhas instruções de segurança. A única pergunta que fez foi
como lidamos com o fato de as pessoas “terem ritmos diferentes”, e
de alguns montanhistas preferirem “exigir tudo de si”. O sujeito é
uma figura. Esses caras são atletas, ou eram, embora isso tenha
sido antes de duas cirurgias de reconstrução do quadril e cinco
cirurgias cardíacas minimamente invasivas. Você pode apostar que
eles têm dinheiro e que, antes da aurora dos tempos, fizeram
alguma coisa de impacto, e por isso ninguém se atreveu a lhes dizer
que estão velhos pra cacete. Em geral, é o médico ou a cônjuge que
determinam que eles não podem mais se embrenhar na mata sem
alguém para catar seus pedaços quando caírem numa vala e
quebrarem as pernas. Mas eles nunca se contentam com a ideia de
fazer trilha em grupo, vivem olhando para os outros desgraçados
artríticos e pensando O que estou fazendo com essas bostejantas?,
quando, na verdade, se encaixam direitinho entre elas. Esses caras
não seguem instruções e não esperam. São eles que sofrem
acidentes e dão má fama à flor da idade. Num passeio de canoa,
são os que saem remando sozinhos e pegam o afluente errado, e aí
a gente tem que abandonar a expedição inteira para achar os ditos-
cujos. Porque eles não gostam de seguir os guias. Especialmente
um guia lat. Ficam furiosos que os lats estejam dando as cartas
agora, já que alguém tem que...
— Chega. — Florence jogou o repolho no que começava a
parecer uma sopa de carne de porco. — Não esqueça de que estou
do seu lado.
— Sei que você está cansada disso, mas você não faz ideia das
ondas de ressentimento que eu recebo desses cascas-grossas todo
os dias. Eles querem sua dominação de volta, até quando se acham
progressistas. Ainda querem ser reconhecidos por serem tolerantes,
e não querem assumir que a pessoa só “tolera” aquilo que não
consegue aceitar. Além disso, temos de tolerar esses brancos-
azedos do mesmo jeito que eles têm de nos aguentar. O país é tão
nosso quanto desses gringos ultrapassados. Seria até mais nosso,
se esses cretinos brancos de perna bamba se apressassem e
morressem logo de uma vez.
— Mi amado, você está indo longe demais. — Era a bronca
padrão de Florence. — Por favor, não fale assim perto do Willing.
Como sempre, ela não precisou pedir ao companheiro para pôr a
mesa, encher os copos de água e completar o sal do saleiro.
Esteban tinha crescido em uma família grande, e ajudar era coisa
rotineira. Ele fora o primeiro namorado a convencer Florence de que
o simples fato de não precisar de companhia, e de não precisar de
ajuda para criar seu filho, não significava que ela não pudesse
gostar de um homem na sua cama, e gostar que Willing pudesse
desfrutar de algo parecido com um pai — alguém com o mérito de
ter feito o menino se tornar bilíngue. Ao mesmo tempo, Esteban era
da segunda geração e falava inglês sem o menor sotaque; as
inserções ocasionais do espanhol eram quase sempre de gozação,
uma encenação divertida do estereótipo que seus clientes idosos
engoliam de bom grado. Ele podia não ter feito faculdade, mas, na
opinião de Florence, essa tinha sido uma decisão financeira esperta.
Quanto à questão étnica, não era verdade, ao contrário do que
claramente acreditava sua irmã, que ela tivesse arranjado um lat
para ficar na moda (opa, para ser relapsa), para se aliar àquilo que
não podia derrotar, ou para renegar sua herança em função da
costumeira culpa liberal. Esteban era um homem enérgico,
responsável e vigoroso, qualquer que fosse sua genealogia, e os
dois tinham muita coisa em comum, inclusive o fato de que seu
sentimento favorito era a repulsa. Ainda assim, a escolha de um
companheiro mexicano lhe dava a sensação de estar do lado certo
da história — receptiva, miscigenadora e voltada para o futuro —, e
Florence tinha de admitir que a origem dele era um fator positivo. Se
ela se sentiria tão atraída por Esteban caso ele fosse um branco
comum, era uma pergunta que não cabia formular. As pessoas são
complexas. Não se pode separar quem elas são do que elas são, e
o resumo da história era que Florence achava a pele cor de noz de
Esteban, sua trança preta e sedosa e as maçãs do rosto altas e
largas irresistivelmente sensuais. Em sua diferença, ele ampliava o
mundo dela e lhe dava acesso a um rico e complexo universo
paralelo americano, que, para paranoicos direitistas precavidos
como sua irmã, só consistia em uma ameaça impenetrável e
monolítica.
— Ei, você se lembra daquele cara que se mudou ali para o outro
lado da rua no ano passado? — perguntou Florence quando
Esteban voltou para varrer os pedacinhos de repolho no chão da
cozinha. — Brendan não sei de quê. Na época, eu disse pra você
que aquele era um sinal de que hoje em dia eu nunca conseguiria
comprar uma casa nesse bairro. Ele trabalha em Wall Street.
— É, tenho uma vaga lembrança. Banqueiro de investimentos,
você disse.
— Topei com ele hoje de manhã, a caminho do ponto de ônibus,
e tivemos uma conversa bem estranha. Acho que ele estava
tentando ser agradável. Tenho a impressão de que gosta de mim.
— Opa, não estou gostando disso!
— Ah, tenho certeza de que é mais uma consequência dessa
reputação nojenta de bondade e misericórdia que me acompanha
feito um cachorro que caiu da mudança. Pois ele me disse que
devíamos tirar nossos investimentos do país imediatamente, hoje
mesmo. Devíamos transferir qualquer valor em dinheiro para uma
moeda estrangeira... Quer dizer, que dinheiro? Eu gostaria que isso
não fosse tão engraçado... E devíamos sair de quaisquer “ativos em
dólar”, entre aspas. Nossa, como o homem foi teatral! Talvez gente
assim não tenha muito drama na vida. Ele tocou no meu ombro e
me olhou bem nos olhos, tipo isto é sério pra caralho e eu não estou
brincando. Foi hilário. Nem imagino o que fez esse cara pensar que
gente como nós tem “investimentos”.
— Poderíamos ter, se o seu abuelo rico batesse as botas.
— Para a gente ver um centavo daquela herança também seria
preciso que os meus pais batessem as botas, então, não provoque
o destino.
Embora Esteban não fosse nenhum oportunista, qualquer
referência à fortuna dos Mandible, cujo tamanho ninguém parecia
saber qual era, deixava Florence desconfortável. A riqueza do avô
paterno não afetara de maneira significativa a sua criação modesta.
Há tempos ela fazia um esforço enorme para convencer o namorado
lat de que não era só mais uma gringa preguiçosa, mimada e
privilegiada que não merecia a sorte que tinha, e, toda vez que o
dinheiro vinha à baila, aquela caricatura de garota paparicada
tornava a mostrar a cara. Já era bem delicado ela ter a escritura da
casa de número 335 da East 55th Street e resistido às ofertas de
Esteban para contribuir com os pagamentos da hipoteca. Fazia
cinco anos que eles estavam juntos, mas deixá-lo criar algum direito
sobre o imóvel significaria confiar no relacionamento um tantinho
mais do que parecia adequado, levando em conta que antes dele
uma fileira de predecessores já se revelara um bando de decepções
espetaculares.
— O que você acha que fez o sujeito dizer isso? — perguntou
Esteban. — Assim, do nada?
— Não sei. Ouvi por alto no noticiário que um banco da Inglaterra
faliu, uns dias atrás, mas grande coisa. Isso não tem nada a ver
conosco. E ontem, sei lá, um não-sei-quê não “fez o rollover” de
alguma coisa... Você sabe que não acompanho esse troço. E isso
foi em algum lugar da Europa, ainda por cima. Depois de anos de
“queda constante do euro”, estou num cansaço monstro dos eternos
problemas financeiros deles. Mas, enfim, o noticiário que Willing
estava vendo disse mesmo alguma coisa sobre investimentos. Mas
aposto que Brendan só estava tentando me impressionar.
— Ah, e por falar em superesquisito — lembrou ela, servindo os
pratos —, Brendan perguntou se éramos proprietários desse imóvel.
Quando respondi que sim, embora um inquilino me ajudasse a
cobrir os pagamentos da hipoteca, ele disse: “Ser proprietária pode
se revelar auspicioso. Do inquilino você talvez se arrependa.”

***
Era fácil demais inventar recordações para aquelas perguntas do
tipo onde-você-estava-quando-determinada-coisa-aconteceu, olhar
para trás e impor a um passado trêmulo e aguado os fatos
concretos do que se soube depois. Para gente como a tia-avó de
Florence, Nollie, a pergunta seria sobre o assassinato de Kennedy;
para a geração da mãe de Florence, o 11 de setembro. Por isso,
Willing resolveu que, quando se lembrasse daquela noite, se
lembraria de verdade — inclusive dos detalhes dos hambúrgueres
de carne de porco com textura arenosa, da longa videoconferência
entre a mãe dele e a irmã depois do jantar e da falta d’água (já
então, protocolo rotineiro). Ele guardaria humildemente na memória
o fato de que, na ocasião, não compreendia a ideia de “moeda de
reserva”. Também não compreendia o que era “leilão de títulos”,
embora sem dúvida tivesse havido décadas inteiras, se não séculos,
em que os dois conceitos eram considerados maçantes e
irrelevantes por quase todo mundo. Mesmo assim, no futuro ele se
certificaria de se atribuir pelo menos este mérito: durante o noticiário
das sete da noite, apesar de não entender o tal “leilão de títulos do
Tesouro dos Estados Unidos”, com sua “alta da taxa de juros”, ele
havia captado, sim, o tom.
Tinha o ouvido afinado para isso desde a Idade da Pedra. Todas
as outras pessoas acharam que o pior já havia passado; a ordem
fora restabelecida, gloriosa e permanentemente. Para Willing, no
entanto, durante seu próprio momento de onde-você-estava-
quando, na grandiosa idade de oito anos, o Dia em Que Nada
Funcionou tinha sido uma revelação, e as revelações não se
desrevelavam, não voltando a se encaixar no armário. Em
consequência dessa epifania irreversível, ele aprendera a virar as
expectativas de cabeça para baixo. Não havia nada de
impressionante no fato de as coisas não funcionarem,
desmoronarem. A falha e a decadência eram o estado natural do
mundo. O impressionante era que alguma coisa funcionasse como
se pretendia, fosse pelo período que fosse. Assim, ele passara a
parte final da infância em um estado de admiração agradecida —
pela televisão brilhando com cores supersaturadas (ela ligou! de
novo!), por sua mãe voltar para casa em um ônibus que andava na
hora certa, ou apenas andava, e pela água limpa correndo da
torneira, ainda que ele raras vezes tivesse permissão para tocá-la.
Quanto ao tom, ele o identificou enquanto sua mãe ainda estava
de papo junto ao repolho, na cozinha. Nem sua mãe nem Esteban
detectaram o timbre. Só Willing prestou atenção. Willing e Milo,
melhor dizendo: olhos atentos, postura desconfiada, orelhas em pé,
o cachorro também discerniu uma entonação curiosa. É que os
âncoras dos noticiários falavam com um tipo de excitação nervosa
que era peculiar. As pessoas que apresentavam as notícias
adoravam quando acontecia alguma coisa. Ninguém poderia
censurá-las, uma vez que era seu trabalho dizer o que havia
acontecido, e elas gostavam de ter algo para fazer. Se os
acontecimentos eram ruins, o que quase sempre acontecia, já que
as boas notícias eram basicamente sobre a mesmice, elas ficavam
envergonhadas por se mostrarem tão contentes. Os piores âncoras
encobriam essa felicidade com uma grande e exagerada tristeza
falsa, que não enganava ninguém e que Willing gostaria que fosse
deixada de lado.
Pelo menos ninguém tinha morrido naquela noite, e as
ocorrências imperscrutáveis relatadas estavam relacionadas a
números e expressões atrapalhadas que ele podia apostar que
quase todo o resto dos telespectadores também não entendia. Por
isso, os apresentadores e seus convidados não tinham feito aquela
cara comprida nem baixado o tom de voz para um pesar artificial. Ao
contrário, todos no jornal pareciam satisfeitos, até empolgados. Mas
essa alegria tensa era marcada pela aguda consciência de que,
tanto quanto sua capacidade permitisse, eles deviam mascarar uma
exultação da qual viriam a se arrepender. O tom se resumia a: isto é
divertido agora, mas não será depois.
• CAPÍTULO 2 •

AGLOMERAÇÃO CÁRMICA

Avery Stackhouse tinha plena consciência de que sua irmã estava


impaciente com o fleXface, porque Florence gostava de arrumar a
cozinha enquanto conversava. Naquele dia, porém, a louça parecia
dominar a maior parte da sua atenção, e a distração da conversa
desperdiçaria um raro momento de solidão: Lowell estava dando
uma aula noturna; Savannah tinha saído com um dos namorados,
que entravam e saíam de cena tão rápido naquele ano que a mãe
desistira de aprender seus nomes; Goog estava se preparando com
a equipe para um debate interescolar sobre o tema “A escassez e
as altas de preços são causadas por políticas nacionais destrutivas
de ‘segurança alimentar’, não por insuficiências agrícolas reais” —
optara pela afirmativa; Bing estava ensaiando com seu quarteto.
Enroscada em uma poltrona suntuosa, ela observou com
satisfação a sala de estar. No início de sua vida adulta, a decoração
em voga dava preferência a superfícies duras, ângulos marcados e
refração, enquanto os esquemas de cores eram dominados por
brancos implacáveis. Agora, deliciosamente diferente, a suavidade,
a absorção da luz e as curvas eram de bom-tom; até as paredes
eram revestidas de camurça sintética e poeirenta. A sala dela era
toda em ocres e tons queimados, móveis de couro envelhecido e
tapetes de pelo curto, de modo que passar o tempo ali com uma
taça de vinho era como aninhar-se em um urso de pelúcia. O brilho
cafona do cromo tinha sido substituído pelo tom fosco do peltre.
Ainda bem que as casas abastadas de Washington já não exibiam
aqueles modulados horrorosos e haviam restabelecido a dignidade
dos sofás.
Os Stackhouse também haviam banido a numerosa massa de
livros que abarrotava todos os três andares da confusa casa de
tijolos de seus pais em Caroll Gardens. Nada revelava mais a
caretice de alguém do que fileiras paralelas de lombadas encardidas
apinhando as paredes. Uma vez lido um livro, por que conservá-lo
em três dimensões, a não ser como uma forma de se exibir? Agora
que se podia equilibrar a Biblioteca do Congresso na ponta dos
dedos, arrastar inúmeros caixotes desses objetos gastos de uma
casa para outra era como se mudar com cascas de ovo.
Avery desdobrou e fixou o telafleX para empoleirá-lo na mesinha
revestida de pele. O aparelho era tão fino que, antes das cores vivas
características de sua segunda geração, algumas pessoas haviam
jogado fora suas telas, confundindo os chumaços em seus bolsos
com lenços de papel. Como o material diáfano assumia qualquer
tamanho, entre um quadrado de cinco centímetros e um retângulo
de quarenta por cinquenta, e visto que era possível dobrar uma
parte inferior sobre qualquer superfície para transformá-lo em um
teclado, o telafleX substituíra o smartwatch, o smartspeX, o
smartphone, o tablet, o laptop e o computador de mesa, tudo de
uma tacada só. E o melhor de tudo era que o telafleX não quebrava,
um ponto positivo que seus fabricantes começavam a lamentar.
— Escute, você está bem acomodada? — começou Avery. —
Porque estou doida para falar com você sobre a fazenda que Jarred
comprou.
— É, o papai comentou sobre isso — respondeu Florence. —
Mas como é que Jarred conseguiu comprar uma fazenda?
A alta resolução destacou incipientes bolsas abaixo dos olhos de
Florence que não seriam visíveis pessoalmente. Avery nem tentou
se sentir superior; os defeitos no rosto de sua irmã eram arautos dos
seus, dali a dois anos. Além disso, uma profusão de manchas, fios
de pelo preto e descolorações horrorosas também se escancaravam
em seu rosto. As imagens forenses do aparelho ultrapassavam de
tal modo a captação benevolentemente embotada do rosto humano
na vida cotidiana que o vídeo parecia saído de um escâner médico
que não informaria se sua irmã estava alegre ou triste, mas sim se
tinha um câncer de pele. Pelo menos, ela e Florence haviam
concordado em nunca mais usar aparelhos em 3D, que eram ainda
piores: a pessoa parecia não apenas ter uma doença maligna, mas
estar gorda.
— Como Jarred nunca recorreu nem de longe ao fundo
universitário tanto quanto nós duas — explicou Avery —, ele
convenceu o Grand Man de que seria justo receber o valor da
entrada como compensação.
Homem formidável, de formidáveis vaidades, o Grandfather
Mandible sempre parecera saborear o acaso linguístico de que, ao
juntar a primeira sílaba do termo de parentesco, Grand, e o início do
seu sobrenome, Man, formava a abreviatura que dava à forma de
tratamento esta nobre significação: Grand Man, o grande homem. E
ele havia apreciado ainda mais quando os netos acrescentaram à tal
forma um novo prefixo engrandecedor, que fez dele o Magno Grand
Man.
— É bem coisa do Jarred tirar proveito do fato de ter abandonado
a faculdade — comentou Florence. — Duas vezes. Mesmo assim,
estou perplexa. Ele nunca manifestou nenhum interesse em
plantações.
— Ele nunca tinha manifestado interesse pela água do mar antes
de se meter naquele projeto alucinado de dessalinização. Nunca
tinha fritado um ovo antes de começar aquele curso de culinária
marroquina. Toda a vida dele tem sido um quebra-cabeça, um jogo
do tipo “O que não se encaixa nessa imagem?”, mas nada se
encaixa. Um idílio agrícola não se encaixa, então é o encaixe
perfeito. É uma coisa lógica na sua ilogicidade.
— É assim que você se contorce toda para fazer seus clientes
darem sentido à vida deles? Estou impressionada. É um talento
atlético.
— A verdade é que mamãe e papai têm incentivado muito.
Acham a ideia da fazenda genial. Qualquer coisa para fazer com
que ele saia de casa.
— Nossa, sair de casa na tenra idade de trinta e cinco anos! Que
valentia! — disse Florence, e as duas compartilharam uma risada
cúmplice. Elas eram as adultas e, não importava quais fossem suas
falhas, ao menos nenhuma delas era a ferrada imprestável e
comodista da família. — E onde fica esse lugar?
— Em Gloversville, estado de Nova York, se é que dá para
acreditar — respondeu Avery. — Lá onde antigamente fabricavam
luvas, ou alguma coisa assim.
— Não zombe. Toda cidade deste país antigamente fabricava
alguma coisa. O que cultivam nesse lugar?
— Tem umas macieiras e cerejeiras. Cenoura, milho. Acho que
ele até herdou algumas vacas. É uma dessas fazendas de família.
Os donos ficaram muito velhos e os filhos não queriam ter nada a
ver com aquilo.
— Negócios assim sempre dão prejuízo — disse Florence. — E
ele vai levar um susto. A exploração agrícola em pequena escala é
um trabalho extenuante. Droga, faz meses que não falo com ele.
— Ele entrou numa onda sobrevivencialista. Está chamando a
propriedade de Cidadela, como se fosse uma fortaleza. Nas últimas
vezes que conversamos, ele estava bem para baixo. Com toda essa
história de Fim dos Tempos. É muito esquisito: eu rodo por
Washington, vejo os bares lotados, os preços dos imóveis voltaram
a disparar, e está todo mundo sentado nesses carros elétricos sem
motorista que custam duzentos mil dólares. Os investimentos Dow
Jones estão a toda pressão. E, enquanto isso, nosso irmãozinho fica
enfurnado em casa, baixando essas matérias apocalípticas:
“Arrependei-vos, o fim está próximo! O centro não tem como
aguentar, estamos todos à beira da morte!” Os textos que ele devora
são laicos, mas o apelo emocional é igual ao dos evangélicos de
Iowa. Não me surpreende que ele tenha acabado numa fazenda.
— Bem, muita gente teve essa reação à Idade da Pedra...
— Você me mata de rir. Ninguém mais diz isso.
— Pode me chamar de pedante, mas “Idapedra” é uma
expressão que perde todo o sentido de “fomos bombardeados de
volta à Idade da”...
— Você é pedante. Como o papai. A língua é viva, não dá para
colocar no congelador. Mas isso não vem ao caso. Não acho que
Jarred esteja tendo uma reação atrasada à I-da-de da Pe-dra. —
Avery espaçou a expressão com esmero, como quem é
condescendente com um idiota a quem precisa explicitar que “AC”
significava ar-con-di-cio-na-do. — Essa ideia... e está longe de ser
exclusiva dele, tá? Essa convicção de que estamos à beira de um
precipício, prestes a mergulhar numa queda livre, sabe? É tudo
projeção. Não tem nada a ver com “o mundo” nem com o rumo
terrível que esse país tomou, e pelo qual todos nós vamos pagar.
Tem tudo a ver com o senso de precariedade pessoal de Jarred. É
um pessimismo sobre o futuro dele. Mas é melhor se inquietar com
o colapso da civilização do que com o fim das próprias esperanças
de se tornar perito em dessalinização, já que as qualificações eram
muito complicadas. Bem, a profecia global faz com que ele se sinta
mais importante.
— Você já falou dessa teoria com Jarred? — perguntou Florence.
— Ele pode não gostar de ver suas opiniões políticas descartadas e
transformadas em coisas que dizem respeito somente aos
problemas pessoais dele. As paixões que o movem: a extinção das
espécies, a desertificação, o desmatamento, a acidificação dos
oceanos, o fato de nenhuma grande economia ter mantido seus
compromissos com a redução de carbono, nada disso está apenas
no umbigo dele.
— Mas eu vejo a mesma coisa nos meus clientes mais velhos o
tempo todo. Eles têm obsessões diferentes, é claro: estamos
prestes a ficar sem água, ou sem alimentos, ou sem energia
elétrica. A economia está à beira do colapso, e os planos de
aposentadoria deles vão acabar em pizza. Mas, na verdade, eles
têm medo de morrer. E, já que o mundo também morre quando a
pessoa morre, pelo menos para a pessoa, ela presume que o
mundo vai morrer para todos. É um erro de imaginação, em certo
sentido: uma incapacidade de conceber o universo sem que a gente
esteja dentro dele. É por isso que os velhos se tornam apocalípticos:
são eles que estão diante do apocalipse, e essa parte, o apocalipse
privado, é real. Então, quanto mais o desaparecimento pessoal
deles se aproxima, mais alguns deles projetam no seu meio a
desgraça iminente. Além disso, às vezes há quase um espírito de
vingança. Juro que, para alguns desses bilhões de pessimistas, o
Armagedom iminente não é um medo, é uma fantasia. Porque, se
eles não puderem mais tomar seus martínis na varanda, ninguém
mais deve poder dar um gole em nenhum. Eles querem levar tudo
consigo, até as azeitonas e os palitos. Mas, na verdade, tudo está
indo bem. A vida, a civilização e os Estados Unidos, tudo vai
continuar seguindo adiante, indefinidamente, e é isso, na realidade,
que eles não conseguem suportar.
Florence riu.
— Isso foi ensaiado. Você já disse essas coisas antes.
— Aham — admitiu Avery. — Uma ou duas vezes, talvez. Mas o
que quero dizer sobre Jarred continua válido. Ele está ocupado
aprofundando o poço e estocando latas de carne ensopada, por
estar vivendo uma crise de sobrevivência psíquica. Quando tiver
atravessado tudo isso, ele vai olhar para seus múltiplos kits de
primeiros socorros e para as embalagens fechadas de fósforos de
segurança extralongos e se sentir bastante idiota.
— Aham. Mas Jarred talvez não seja o único que esteja
projetando. Está tudo ótimo na sua vida, então, para onde quer que
você olha, está ensolarado.
Esse “ótimo” tinha sido depreciativo, e Avery não gostava que as
ferramentas de sua análise fossem voltadas contra ela.
— Levar uma vida minimamente decente não transforma a
pessoa num imbecil — objetou. — E os que vivem em situação
confortável também têm problemas.
— Aham — repetiu Florence. — Cite um. — Ela nem esperou a
resposta. — Quanto a Jarred, o problema desse último projeto
mirabolante dele é prático, não psíquico. O fracasso dessa
“Cidadela” parece uma drenagem financeira. Ele já está endividado
até o pescoço nos cartões de crédito, mesmo morando com a
mamãe e o papai. Todos aqueles projetos que não deram em nada
foram caros. É melhor o Grand Man ter bolsos recheados e fundos.
— Os bolsos do Grand Man são tão fundos que chegam quase
aos sapatos.
Avery decidiu mudar o rumo da conversa. Os recursos que
pudessem vir aos poucos da fortuna dos Mandible eram um tema
espinhoso. Naturalmente, Florence nunca dissera nada
abertamente, mas, com a disparidade de renda entre as duas, Avery
se perguntava se, quando chegasse o momento, ela deveria se
afastar e sacrificar uma parcela substancial da sua parte em favor
dos irmãos, ou renunciar inteiramente à sua herança. Ela parecia
não precisar do dinheiro. Em outras palavras, será que ela merecia
ser punida por ter tomado decisões inteligentes e, como
consequência, prosperado? Essa era a lição que o sistema tributário
“progressivo”, dos Estados Unidos deveria ter lhe ensinado, desde
muito antes. Ah, e Florence, como a pioneira da enfermagem
Florence Nightingale, com certeza merecia mais o dinheiro, por ser
tão boa, generosa e caridosa em sua encarnação mais recente.
Mas as duas haviam recebido cartas do mesmo baralho. Avery
decidira se casar com um intelectual peso pesado um pouco mais
velho, que agora era professor titular do Departamento de Economia
da Universidade Georgetown; decidira comprar em sociedade uma
bela residência na capital, Washington, que tinha se valorizado;
decidira montar um lucrativo consultório particular; além de criar três
filhos inteligentes e talentosos, que ela e o marido podiam educar
em escolas particulares de alto padrão. Enquanto isso, Florence
decidira coabitar com um guia turístico mexicano de instrução
inferior; comprar uma casa pequena e decrépita, mas cujo preço
extorsivo fora um roubo, em um bairro do Brooklyn que tivera má
fama na infância delas pelas violentas guerras entre as facções de
traficantes de crack; decidira criar um filho único, fruto de um
encontro casual, que frequentava uma escola pública em que todas
as aulas eram dadas em espanhol e que, por falar nisso, vinha
ficando meio estranho; e, em termos profissionais, Florence tinha
decidido afofar travesseiros para esquizofrênicos. Avery queria
desesperadamente que sua irmã inteligente, bem-informada e
ferozmente trabalhadora — a verdadeira sobrevivente da família,
não Jarred — encontrasse uma atividade que fizesse melhor uso
dos seus talentos; e pelo menos Esteban parecia um sujeito correto.
Mas a situação desoladora de Florence, particularmente incômoda
para os mais velhos, continuava a não ser culpa de Avery. Com
certeza, as circunstâncias que Avery fizera um enorme esforço para
conquistar não a deveriam obrigar a se sentir culpada toda vez que
as duas conversavam.
No entanto, o assunto que ela levantou a seguir, para desviar o
rumo da conversa, mostrou-se tudo, menos neutro:
— Ei, você soube do bafafá por causa do código telefônico do
país?
— É, todo o pessoal lá do abrigo achou hilário alguém dar bola
para isso. Mas tenho certeza de que o assunto pode manter a turma
da Fox News espumando durante o resto do ano.
— Bom, o código nacional dos Estados Unidos sempre foi um,
desde que existem códigos de países, não é? — objetou Avery. —
Para algumas pessoas, isso é simbólico.
— Simbólico de quê? Nós somos o número um? Se isso quer
dizer alguma coisa, o próprio fato de sempre termos sido um é razão
suficiente para darmos a droga do código a outro país por algum
tempo.
— Você parece bastante agitada, levando em conta que esse é
um problema com o qual você supostamente não se importa. E isso
deve significar alguma coisa para os chineses, ou eles não teriam
criado um rebuliço tão grande por causa da troca dos códigos.
— Às vezes, a melhor coisa a se fazer quando alguém fica
furioso — respondeu Florence — é dar o que a pessoa quer.
Especialmente quando isso não custa nada, a não ser teclar uns
dígitos num computador. É o tipo de concessão que se pode fazer
de graça e, mais adiante, trocar por algo que tenha importância.
— Ou é o tipo de concessão que cria um precedente para todo
um bando de outras concessões mais adiante, e, nesse caso, tem
importância, sim. Hoje uma paciente me disse que se sentiu
“humilhada”.
— A maioria dos americanos mora nos Estados Unidos. Quase
nunca digita o código do seu próprio país. Então, a menos que sua
paciente passe o tempo todo ligando do exterior para casa pelo fleX,
ela nunca ficará realmente humilhada no decorrer de um dia
comum. É como aquela barulheira por causa do “tecle dois para
ouvir em inglês”. Por acaso é mais difícil teclar dois do que um?
— Não vamos entrar de novo nesse assunto. Você sabe que eu
achei que inverter essa ordem foi afrontoso.
— Foi um gesto generoso que, mais uma vez, não custou nada.
Para os lats, aquele “dois” representava segunda classe. Foi uma
troca que fez com que os imigrantes e seus descendentes se
sentissem incluídos.
— Eles se sentiram triunfantes, isso sim...
— Cuidado — alertou Florence. — Existem limites.
O fato de viver com um mexicano de verdade, ao vivo e em
cores, dera ares de importância a Florence. Agora ela era membro
honorário de uma minoria tão imensa que logo perderia o direito a
esse rótulo. Esse era um divisor de águas pelo qual Avery ansiava
muito. Na sua clínica, ela estimulava que todos os pacientes
acolhessem a sensação de serem especiais, mas esse próprio
senso vigoroso de identidade, de inclusão, de orgulhosa
reivindicação de uma herança pessoal admirável, singular, era
especificamente negado à maioria das pessoas no país: as que
tinham uma conspícua multiplicidade de feitos dos quais podiam se
orgulhar. Assim, quando os brancos também fossem minoria, talvez
conseguissem seus próprios departamentos universitários de
Estudos dos Brancos, onde poderiam enaltecer Herman Melville
sem nenhum pudor. Os filhos deles receberiam uma colher de chá
extra na hora da admissão na faculdade, independentemente de
suas notas nas provas. De repente, todos poderiam afirmar que ser
chamado de “branco” era um insulto, de modo que agora seria
preciso dizer “euro-americanos ocidentais”, enchendo bem a boca.
Eles gritariam uns para os outros “e aí, branquelo, tudo em cima?”,
em um conluio íntimo de camaradagem, e qualquer não branco que
empregasse esse termo preconceituoso tomaria um esculacho na
CNN. Tornar-se minoria abriria as portas para uma postura total e
festivamente ofendida em todas as oportunidades, e o protocolo das
ligações telefônicas automáticas seria revertido.
Fora da conversa entre as irmãs, Esteban exclamou:
— O que foi que eu disse? Devíamos ter aberto as comportas
enquanto tínhamos chance!
Florence virou a cabeça para trás e gritou:
— Willing! Vá lá no Green Acre e pegue todas as garrafas de
água que puder! Esteban irá logo depois... e leve o carrinho!
— Está bem, está bem — disse o menino, atrás dela. — Conheço
a rotina. Mas você sabe que vou chegar tarde demais. Todo mundo
que for de carro vai chegar mais rápido.
— Então, corra.
— Outra vez, não! — disse Avery.
Florence virou-se de volta para a tela, com um suspiro:
— O pior na escassez de água é nunca saber quanto tempo vai
durar. A água pode voltar em uma hora, ou ficar fechada por uma
semana. Pelo menos, mandamos instalar uns barris de água de
chuva lá nos fundos. Não é potável, mas ajuda no banheiro. Tenho
umas garrafas usadas que enchi de água da torneira, mas o gosto é
horroroso. Então, espero que Willing e Esteban tenham sorte. É
sempre um pega pra capar no corredor da água. Ainda bem que já
está meio tarde. Algumas pessoas vão demorar para perceber.
Merda, detesto dizer isto, mas Esteban tinha razão. Faz oito dias
que não tomo banho. Devia ter tomado quando cheguei em casa.
— Já se sabe com mais clareza qual é o problema? Não
especulação de blog. Informação real.
— Informação real? O que é isso? — bufou Florence. — Se bem
que nem a birutosfera contesta que, lá para o oeste, o problema são
os aquíferos vazios e a seca. Por aqui, a causa é mais discutível.
Talvez haja problemas de abastecimento no norte do estado. É
óbvio que a sabotagem do Túnel Três pelo Califado não ajudou. Um
monte de gente diz que é a infraestrutura decrépita, com
vazamentos enormes. E você sabe o que eu acho que é.
— É, eu sei o que você acha que é.
Diante da câmera, Avery conteve uma revirada de olhos. Estava
na moda pensar que, em uma era desprovida de jornalismo
investigativo rigoroso, as pessoas acreditavam no que lhes
convinha. O pai delas frisava sem parar esse clichê. Mas, pelo que
Avery sabia, as pessoas sempre haviam formado suas próprias
opiniões em primeiro lugar, e depois reunido com vagar as provas
corroborativas, como quem comprasse uma roupa e mais tarde
adquirisse os acessórios para combinar. Por isso, naturalmente,
Florence culpava o fraturamento hidráulico. Isso convinha a ela.
A porta da frente bateu.
— Oi — disse Lowell.
— Oi! Estou falando com Florence.
— Bom, desligue. Ok?
Ele costumava ser presunçoso, mas essa irritabilidade era
estranha.
— Quando eu tiver terminado de conversar.
— Tudo bem — disse Florence. — Tenho que buscar água da
chuva para o banheiro. Tchau, fofinha.
Infelizmente, aos quarenta e oito anos, a barba por fazer no rosto
do marido já não era estilosa, mas malcuidada, e o corte do cabelo
meio longo e já grisalho, em mechas de comprimento desigual que
um dia tinham sido chiques, agora o fazia parecer descabelado.
Avery devia pensar em um jeito de dizer isso a Lowell, ainda que
não com todas essas palavras. Para um economista, ele sempre
fora chamativo e elegante, com o andar altivo e ágil que atraía
acólitos na Georgetown. O terno cinza-claro bem talhado era a
última palavra da moda: sem colarinho nem bainha dobrada, com as
calças de cintura alta e uma túnica longa que descia até pouco
acima do joelho. Os sapatos, esta noite, eram rosa-choque. Mas era
arriscado calcar o estilo na ideia de juventude. Lowell parecia um
sujeito que se achava jovem, mas não era.
— Ei, Feiticeira, ligue a televisão! — ordenou ele. O sistema de
gerenciamento doméstico acionado por voz tinha apresentado uma
falha recentemente e passava o tempo todo informando a Avery que
o leite havia acabado. Antes que ela desabilitasse a função, o
programa ficara encomendando leite ao supermercado até eles se
afogarem. Agora, o sistema vinha ficando cada vez mais esquisito:
depois da instrução de Lowell, Avery escutou a lavadora de louça
começar a funcionar na cozinha.
— Já notou como tudo dá errado de uma vez só? — desesperou-
se Lowell. — Foi o que acabei de explicar àquele cérebro de
minhoca do Mark Vandermire. Na economia acontece a mesma
coisa. Uma titiquinha que implode por toda parte ao mesmo tempo
dá a impressão de que as falhas estão interligadas. Mas não estão,
não necessariamente. É só uma espécie de acumulação... cármica.
— Talvez você possa escrever um novo artigo com isso aí.
Acumulação cármica é sugestivo. — Avery lhe entregou o controle
remoto empoeirado da televisão. — Por sorte, nós podemos
neutralizar os comandos dela. Ellen, que mora ali adiante, tem um
problema com a Feiticeira dela e não consegue passar para o
controle manual. Quando o sistema pira, eles não podem nem ferver
água.
Lowell afundou no sofá, desanimado. Em vez de ligar o noticiário,
ficou batendo no joelho com o aparelhinho que serviria para isso.
— Quer comer alguma coisa?
— Uma taça desse vinho que você está tomando. Mas, se eu
pedir à Feiticeira um sanduíche de bacon, alface e tomate, tenho
medo de que ela ligue o sistema de irrigação do jardim. Ou ponha
fogo na casa.
Quando Avery lhe entregou a taça, ele perguntou:
— E então, está sabendo da última?
— Considerando que não sei a que você se refere, é provável
que não.
— O leilão de títulos hoje à tarde.
— A França de novo?
— Não, o Tesouro dos Estados Unidos. Olha, eu não acho que
seja grande coisa. Mas a relação entre lances recebidos e lances
aceitos foi estranhamente fraca. Barra de barata purinha, na
verdade. E o rendimento de um título de dez anos foi a 8,2%.
— Parece alto.
— Alto? Ele dobrou. Mesmo assim, tudo que eu vejo é uma
confluência acidental de forças arbitrárias.
— Uma acumulação cármica.
— É. A França ficou impedida de rolar uma parcela da dívida
prestes a vencer, mas a Alemanha e o Banco Central Europeu
entraram em ação na mesma hora, de modo que não é como se
estivessem para fechar a Torre Eiffel por falta de fundos. Bagunçou
algumas cabeças, só isso. Quanto ao Barclays, no Reino Unido, a
informação oficial é de que o governo de Ed Balls não tem como
socorrer o banco desta vez, mas isso é conversa estratégica.
Aposto que eles conseguem achar todas as moedas de dez pence
enfiadas nas fendas dos sofás da rua Downing para não deixar o
banco ir para o brejo. E aí, ontem, uns dois fundos de derivativos
nervosinhos, em Zurique e Bruxelas, reduziram praticamente a zero
a posição deles em dólares e passaram para o ouro. Pois que
passem. Vão usar as pepitas brilhantes como peso de papel quando
o ouro tornar a despencar.
— Ele subiu?
— Por enquanto! Você sabe como é o ouro. Está sempre num
pingue-pongue por toda parte. A menos que o sujeito seja mesmo
exímio em jogar com os altos e baixos, é um investimento ridículo.
— Por que é que eu tenho a incômoda impressão de que não é
comigo que você está tendo esta conversa? Você fica
argumentando, batendo com a mão. Eu não estou contra-
argumentando.
— Desculpe. Eu entrei mesmo em uma discussão com aquele
bostejanta do Vandermire. Porque, está bem, o leilão de títulos de
hoje foi... infeliz. No momento, a demanda externa de títulos da
dívida americana está baixa... mas há inúmeras razões para que
diferentes países se recusem a investir na dívida dos Estados
Unidos, elas estão apenas coincidindo agora. O mercado daqui está
aos pulos; os investidores encontram rendimentos mais altos nas
ações do Dow Jones do que numa porcaria de títulos do Tesouro.
As taxas de juros muito improvavelmente se aproximam de 8,2%, e
essa deve ser só uma alta dessas que acontecem uma vez na vida.
Caramba, na década de 1980, os juros dos títulos do Tesouro deram
uma guinada para 15%. Mais recentemente, em 1991, os títulos
estavam pagando mais de 8%...
— Isso não é muito recente.
— O que eu quero dizer é que não há motivo para histeria!
— Então, não diga isso histericamente.
— O problema é o pânico por causa da alta da taxa de juros.
Imbecis como Vandermire... ah, e adivinhe aonde ele estava indo
quando cruzamos no departamento? À MSNBC. Tinha marcado
uma entrevista atrás da outra em todas as estações principais, Fox,
Asia Central, RT, LatAmerica...
— Você ficou com inveja?
— Não, claro que não. Esses programas são um pé no saco. Por
conta da hiper-resolução, eles chapam uma maquiagem na gente
com um dedo de espessura. Depois não conseguem tirar tudo, e
aquilo acaba manchando as fronhas dos travesseiros. Além disso, a
gente nunca sabe se, sob pressão, vai lembrar errado de um dado
estatístico, e nunca mais se recupera do vexame.
— Mas você é ótimo nisso.
A postura dele se alinhou no sofá: elogio recebido.
— O medo que Vandermire deve ter espalhado, a noite toda, isso
vira uma profecia que se autorrealiza. Mesmo que ele esteja longe
de parecer amedrontado. Está se divertindo horrores. É como aquilo
que você sempre diz, não é? Esse ambiente apocalíptico...
— Eu não “sempre” digo nada. Falamos disso aquela única vez...
— Não suba a guarda desse jeito, estou tentando concordar com
você. É só que essa gente que prevê o fim do mundo nunca parece
ficar perturbada com essa perspectiva, não é? Invocando a ruína, o
desgosto, a devastação, eles mal conseguem disfarçar o prazer. O
que eles acham que é um colapso de verdade: uma festa de
aniversário de criança em que todo mundo dança numa roda,
cantando “Cinzas! Cinzas! Todo mundo cai no chão!”? E eles
parecem supor que vão ficar imunes, em termos pessoais, tomando
sol à beira da piscina, enquanto as cidades pegam fogo no
horizonte. Têm vocação para voyeurs. Veem o destino de milhões,
se não bilhões de pessoas reais, como uma diversão.
Lowell estava com um olhar de quem queria escrever isso.
— Florence e eu estamos com medo de que Jarred siga um
caminho parecido. Acho que é mais ligado no terror ecológico, mas
a ideia é a mesma. Se bem que, para ser justa, eu dificilmente diria
que Jarred parece estar se divertindo. Ele anda bem taciturno.
— Bem, Vandermire está em êxtase. Adora a atenção, e anda
eufórico porque supostamente ele estava certo o tempo todo.
“Insustentável! A dívida pública é insustentável!” Se eu o ouvisse
dizer insustentável mais uma vez hoje de tarde, teria acertado um
murro no nariz dele. A definição funcional de insustentável é “aquilo
que não é sustentado”. Se você não consegue manter uma coisa de
pé, não mantém. Depois de toda aquela bagunça sobre a dívida,
vinte anos atrás, das paralisações dramáticas do governo por causa
da elevação do teto da dívida, o que aconteceu? Nada.
Correspondendo a 180% do PIB, o que o Japão provou ser
inteiramente viável, a dívida foi sustentada. Logo, por isso mesmo,
ela é sustentável.
— Então, não deixe Vandermire incomodar você. Se ele está
errando o alvo, logo vai parecer tão burro quanto você acha que ele
é.
— Aquele discurso meio desconexo e inflamatório dele é
perigoso. Mina a confiança.
— Que confiança, que nada. Que importância tem se uns
investidores ricos ficarem nervosos?
— Dinheiro é uma coisa emocional — postulou Lowell. — Como
todo valor é subjetivo, o dinheiro vale o que as pessoas acham que
vale. Elas o aceitam em troca de bens e serviços por confiarem
nele. A economia está mais perto da religião que da ciência. Se
milhões de cidadãos, indivíduos, não confiam em uma moeda, a
cédula é só papel colorido. Do mesmo modo, os credores têm de
acreditar que, se concederem um empréstimo ao governo dos
Estados Unidos, vão receber seu dinheiro de volta, caso contrário,
não darão o empréstimo, para começo de conversa. Portanto, a
confiança não é uma questão secundária. É a questão central.
O problema de ser professor é que, quando se leciona para
ganhar a vida, é difícil cortar o papo-furado quando se chega em
casa. Avery estava acostumada com isso, embora já não achasse
as preleções de Lowell tão encantadoras quanto no início do
casamento.
— Sabe, quase todos os outros apocaliptistas do estilo de
Vandermire também são fanáticos por ouro — recomeçou Lowell. —
Francamente, agarrar-se a um metal decorativo como a resposta a
todas as nossas orações é medieval...
— Não comece.
— Não estou começando. Mas não sei por que a Georgetown
contratou aquele jumento. Ele deveria ser um símbolo da
“amplitude” ideológica do corpo docente, mas isso é como dizer
“Nós temos amplitude acadêmica porque alguns dos nossos
professores são inteligentes e os outros são umas toupeiras”. O
padrão-ouro foi abandonado há uns sessenta anos, e ninguém
sentiu falta dele. Era incômodo, obrigava os instrumentos ao
alcance dos bancos centrais a regular a economia com exatidão, e
limitava artificialmente a base monetária. É antiquado, supersticioso
e sentimental. Sabe o que os fanáticos por ouro nunca admitem?
Que, agora que o metal quase não tem utilidade real por si só, ele é
tão artificial como reserva de valor quanto as moedas fiduciárias, ou
conchas de búzios.
Avery observou o marido. Talvez ele houvesse desistido de ligar a
TV por medo de deparar com seu bicho-papão, Mark Vandermire. Ou
talvez estivesse com medo das notícias.
— Você parece preocupado.
— Tudo bem... estou um pouco.
— Mas eu conheço você. Portanto, a pergunta é a seguinte: você
está preocupado com o que está de fato acontecendo? Porque acho
que sente mais medo de estar errado.

***
Recriminando-se por aquela terceira taça de vinho com Avery,
Lowell acordou cedo na manhã seguinte com a cabeça pesada. Ao
deixar de lado sua olhadela compulsiva e costumeira no único site
de notícias no qual depositava uma pequena confiança, ele resolveu
tomar café na faculdade, ainda que no departamento a bebida fosse
sobretudo um substituto à base de sassafrás; para Lowell, a maior
catástrofe agrícola dos últimos anos não era a alta absurda do preço
de commodities como o milho e a soja, mas a praga disseminada
que causara a morte das lavouras de Coffea arabica, fazendo um
verdadeiro café com leite custar o mesmo que um conhaque Remy
caríssimo. Mais motivado do que nunca a defender uma economia
moderna, educada e criativa, agora que gente como Vandermire
gostaria de pôr todo mundo para negociar dinheiro feito de conchas
com um ábaco, Lowell queria seguir adiante em seu ensaio sobre
política monetária antes da aula das dez, História da inflação e da
deflação. A turma tinha chegado à Grã-Bretanha da Revolução
Industrial, quase um século de deflação persistente, durante a qual
o maldito país não fizera senão prosperar, o que sempre deixava
Lowell de mau humor.
Na caminhada até o metrô, as calçadas do Cleveland Park
estavam mais movimentadas do que o normal para o horário.
Embora o céu do alvorecer estivesse límpido, os pedestres tinham
aquele ar encolhido e apressado que as multidões adquirem
embaixo de chuva. Uma mulher que chorava baixinho não o
surpreendeu, mas duas, sim, e a pessoa seguinte a chorar foi um
homem. Embora Lowell tivesse por norma não usar seu fleX ao
caminhar pela bela cidade, cujos panoramas preferia absorver, era
comum os seus conterrâneos washingtonianos enrolarem os deles
em um dos pulsos ou os prenderem na aba do chapéu. Mas era
muito estranho ver tantos pedestres telefonando por áudio. Era
verdade que, desde a Idapedra, um punhado de malucos puristas
havia boicotado completamente a internet, esse bando retrógrado
tagarelava sem parar, porque falar era o único modo como os
amantes do retrocesso se comunicavam. Para todas as outras
pessoas com vida normal, o telefonema era, por consenso, tão
proibitivamente invasivo que o som da campainha era assustador —
era óbvio que alguém tinha morrido.
Quando Lowell desceu a longa escada cinzenta da estação perto
da sua casa, os rostos dos passageiros apressados exibiam uma
expressão incomodamente uniforme: contraída, concentrada,
abalada. Lowell se espremeu no trem quando as portas estavam
quase se fechando, mal se encaixando em meio à multidão. Pelo
amor de Deus, eram só seis e meia da manhã!
Também ali estavam todos falando. Não uns com os outros, é
claro. Com fleXes. Agora baixou para quanto? ... Bom, em Londres
está só ... Está chegando a pedidos de margem de manutenção...
Compre moeda australiana, francos suíços, não me interessa! Não,
canadense não, ela vai ser arrasada ... Aposto que já acordaram o
presidente ... Ordem de limite de perdas... Passamos da ordem de
limitar as perdas há duas horas ... Limitar as perdas...
Até para os padrões de Washington, Lowell Stackhouse era
excepcionalmente avesso a receber notícias de que todas as outras
pessoas já tinham conhecimento e, após trinta segundos dessa
mistura de murmúrios, já tinha ouvido o bastante. Tirou o fleX do
bolso, esticou-o até cobrir a palma da mão e entrou diretamente no
Bloomberg.com, mais ou menos confiável: DÓLAR EM QUEDA
VERTIGINOSA NA EUROPA.
• CAPÍTULO 3 •

ESPERANDO A GRANA

Em épocas mais normais, Carter Mandible dirigiria para Milford


debatendo até que ponto se sentia culpado por detestar visitar seu
pai. Ora, quase todas as pessoas da idade dele fariam de tudo para
chegar ao domínio rarefeito dos noventa e sete, ainda que Douglas
Mandible não sujeitasse o filho às provações adicionais da
imbecilidade. Ao contrário, às vezes Carter desejava que seu pai
mostrasse mais sinais de fadiga mental, o que poderia despertar
sua simpatia e pôr seus ressentimentos de lado. Um desses
ressentimentos, antes de mais nada, era que o velho ainda
estivesse vivo.
Ah, Carter nunca desejara ativamente que o pai morresse. Tinha
plena certeza — bastante certeza — de que, quando chegasse a
hora, seria derrubado pela dose costumeira de luto filial. Amigos o
haviam alertado para o fato de que a perda sempre era pior do que
se esperava. Mas essa era uma descoberta para a qual ele estava
mais do que preparado fazia quinze anos.
No trajeto de duas horas partindo do Brooklyn — esse trecho
arborizado que passava por Connecticut era aprazível —, também
era comum Carter questionar suas motivações para essas visitas.
De olho no longo prazo, é natural que a pessoa se dedique a um pai
idoso, como uma profilaxia sutilmente egoísta: poder garantir a si
mesma, ao receber aquele telefonema fatal, que fez o melhor que
pôde. Às vezes, ser um pouquinho mais atencioso do que se tem
propriamente vontade pode prevenir autorrecriminações futuras.
Afinal, os velhos têm o terrível hábito de bater as botas logo depois
que você inventou uma desculpa esfarrapada na última hora para
não vê-los, ou logo após um encontro lamentável em que você
deixou escapar um comentário ríspido. Ser de um zelo infalível era o
mesmo que fazer um seguro afetivo.
No caso de Carter, porém, o interesse pessoal era crassamente
pecuniário. Será que ele se mantinha nas boas graças do pai, com
suas visitas mensais à casa Braços Acolhedores, apenas para
proteger sua herança, digamos, de um impulso final precipitado ou
vingativo do velho em deixar a grana para uma cátedra em Yale?
Ele nunca saberia. Pior, seu pai nunca saberia, e talvez nunca se
sentisse suficientemente estimado. A fortuna da família introduzia
um componente de corrupção. Embora Carter pudesse
sentimentalizar um mundo ideal, em que passaria todo o tempo
possível com Douglas E. Mandible por amor ao pai, por apreciar a
companhia dele e por estar decidido a tirar o máximo proveito da
abençoada longevidade paterna enquanto era possível, o dinheiro
era um contaminador inescapável, e não ia desaparecer.
Ou não ia desaparecer em tese.
Porque aquela não era a mais comum das épocas.
Embora fosse comum Carter brincar dizendo que, quando
recebesse a herança, estaria velho demais para gastá-la, naquela
tarde essa exasperação estava freneticamente elevada. Ele e Jayne
ainda moravam na mesma casa geminada de Carroll Gardens, cada
vez mais dilapidada — e de tijolos, não arenito vermelho. Estava
paga, finalmente, mas a hipoteca tinha sido um esforço enorme
durante anos. Era verdade que ele e Jayne tinham ido à Toscana
em 2003 — férias de verdade pela primeira vez, aos quarenta e
poucos anos! Mas os dois sempre tinham feito planos de uma ida ao
Japão. Agora, com Jayne tão amedrontada que raramente saía de
casa, as aventuras para além do empório Sahadi’s, na Avenida
Atlantic, estavam fora de cogitação. Com uma única recarga os
carros mais novos chegariam ao Canadá, mas aquele seu BeEtle de
dez anos não conseguia passar de Danbury. Quando conseguiu
aquele emprego no Times, Carter já tinha chegado aos sessenta, e,
àquela altura, o “jornal de referência” dos Estados Unidos encolhia
cada vez mais e já havia se rebaixado a vender cursos de criação
literária e quinquilharias coloniais, estava absorvendo por uma
ninharia jornalistas mais velhos e desesperados. A aposentadoria
dele era uma farsa. Se ele e a esposa quisessem liberar algum
capital, enxugando as despesas no breve intervalo durante o qual
seu filho caçula tencionava morar fora de casa, isso significaria
encontrar algum lugar menor, pior e mais deprimente. Maravilha.
No entanto, uma vida descontraída e sem preocupações estivera
à vista durante toda a existência de Carter. O dinheiro estava preso,
como um chumaço daquelas fraldas descartáveis que dizem para a
gente nunca jogar no vaso sanitário. A espera por seu direito
hereditário o mantivera em suspenso em uma adolescência
prolongada. Esse estado de adiamento de décadas pressagiava o
momento em que começaria sua vida real. Ele estava com sessenta
e nove anos. A vida real seria curta.
O que Carter mais desejava não eram propriamente móveis nem
aparelhos eletrônicos, cruzeiros nem viagens para degustação de
vinhos — qualquer coisa que pudesse comprar —, e sim um
sentimento. Uma sensação de descontração e liberdade, de
generosidade e sabor, de possibilidade e franqueza, de caprichos e
humor e alegria. Sim, ele esperava demais do mero dinheiro, mas
também ficaria feliz descobrindo isso. Livre da espera interminável,
acolheria de bom grado até uma desilusão honrosamente adulta. É
que ele ainda se sentia uma criança. E, agora que estavam
próximos daquele Valhala teórico em que ele e Jayne poderiam
deixar o aquecedor ligado a noite inteira, ou ter um novo e animado
começo em um rancho amplo em Montana, onde Jayne pudesse
superar o pavor que associava a Carroll Gardens... Bem, nos
últimos dias, era bem provável que esse futuro tivesse ido para o
buraco.
É que a última semana tinha sido a mais selvagem da sua vida,
historicamente, mesmo levando em consideração o 11 de setembro
e a Idade da Pedra. Quanto a esta última, sem dúvida, a energia
tinha acabado e houvera saques, é claro, inclusive o da delicatéssen
chiquérrima de Jayne na rua Smith, de cuja destruição gratuita ela
ainda não se havia recuperado. O apagar dos sinais de trânsito
havia resultado em uma porção de engavetamentos pavorosos.
Carter podia dispensar a recordação de todos aqueles desastres
aéreos, dos desastres de trem, das reportagens — focadas no
interesse humano — sobre pacientes cardíacos cujos marca-passos
haviam duplicado o ritmo de suas batidas, como uma revigorante
aceleração do compasso em uma gravação de Miles Davis. Partes
do país ficaram sem água, embora isso tivesse sido um bom treino
para as secas que viriam. Os sistemas de telecomunicações e
defesa nacional tinham parado de funcionar, ainda que, na opinião
de Carter, fizesse muito tempo que a alardeada “defesa” dos
Estados Unidos tivesse posto o país no caminho de possuir mais
munições do que descarregava. Era compreensível, portanto, que,
para Florence, Avery e Jarred, 2024 tivesse constituído a pior das
calamidades. Mas Carter vinha de outra geração. Uma geração
criada procurando números de telefone em agendas de papel
rabiscadas e verificando os códigos postais em grossos catálogos
do correio, diluindo trabalhosamente o líquido corretivo endurecido
com pipetas plásticas de vidrinhos caríssimos de solvente e, mais
tarde, passando com imensa gratidão para as fitas autocorretivas
das máquinas Selectric da IBM, folheando retângulos de papel
amarelados nas compridas gavetas de madeira onde ficavam os
catálogos de fichas, e consultando artigos, na biblioteca, no Guia do
leitor para as épocas da literatura. Havia um limite para a gravidade
com que ele tendia a avaliar três semanas sem internet.
Apesar de misteriosamente invisível, misteriosamente silencioso,
o tumulto da última semana era de outra natureza. A Idade da Pedra
havia produzido consequências imediatas e palpáveis: as luzes não
acendiam; a comida apodrecia na geladeira; e nenhuma das poucas
lojas que permaneceram abertas tinha leite. Durante todo aquele
caos mais recente, nada se modificara. Um número convencional de
carros na Interestadual 84 rodava com os dez quilômetros de praxe
acima do limite de velocidade. O céu estava zombeteiramente
límpido. Ao sair da pista para uma recarga, Carter não teve de
ziguezaguear por entre cadáveres caídos na rampa, nem precisou
se abaixar para fugir de tiros. Com metade do estacionamento
ocupada, a Friendly’s continuava a vender sorvete de nozes com
xarope de bordo e sanduíches SuperMelt. Entre os carregadores de
bateria e as lojas de conveniência, nenhum dos motoristas parecia
apressado ou alvoroçado. Todo aquele plácido trecho comercial de
rua atestava o fato de que as pessoas mais afetadas pelo histórico
mau tempo da semana não estavam tentadas, por temperamento, a
atirar pedras nas vidraças. Era claro que um desses personagens
subviolentos seria o pai de Carter.

***

De acordo com seu material de marketing, a Braços Acolhedores


era a clínica de repouso mais luxuosamente equipada dos Estados
Unidos. A academia de alta tecnologia era um verdadeiro convite
para os potenciais moradores, prometendo a aposentadoria como
uma renovação, um tempo livre e desimpedido para o sujeito entrar
na forma física esplêndida que sempre estivera ocupado demais
para exibir; isso até a empolgação acabar e os residentes se
confrontarem com o odioso esforço de usar os aparelhos. O lugar
tinha até cavalos, embora Carter nunca tivesse visto ninguém
montar um deles. Repleta de hidroterapeutas e jatos de massagem,
a piscina era mais movimentada, já que uma parcela dos moradores
ainda era capaz de boiar. Nem era preciso dizer que a clínica
oferecia as instalações médicas de um hospital particular de
primeira linha. Dados os preços astronômicos do lugar, era
economicamente interessante para a instituição manter seus
clientes vivos, ainda que apenas nominalmente.
Embora Douglas Mandible não costumasse se separar do seu
fleX antes do encerramento do pregão da Bolsa de Valores de Nova
York, às quatro da tarde, ao entrar no estacionamento dos
visitantes, Carter avistou o pai na quadra de tênis mais próxima.
Houvera um tempo em que Douglas fora um tenista ofensivo e de
batidas vigorosas nas partidas de simples, disposto a se arriscar a
um derrame ou uma convulsão para recuperar uma bola paralela às
laterais — do mesmo modo que, como agente literário igualmente
competitivo, ele fizera de tudo para conseguir os autores mais
célebres. Naquela idade avançada, porém, ele havia aperfeiçoado
um jogo muito diferente, no qual fazia seu adversário muito mais
moço (de setenta e tantos anos, calculou Carter) correr de um lado
para outro na quadra. Mal devolvendo a bola, o outro sujeito rebatia
sua direita aos pés de Douglas, que conseguia manter a bola em
movimento sem se deslocar mais do que uns quinze centímetros em
cada direção. Era a mesma forma de manipulação hipereficiente e
poupadora de energia que Douglas sabia empregar para controlar a
família, sem o menor esforço e sem sair da cadeira.
Com uma bola cruzada traiçoeira, lançada do quadrado do
saque, Douglas despachou o ponto, no espírito de quem
simplesmente diz: chega. Carter não se iludiu com a ideia de que o
pai abreviara o jogo ao avistá-lo no estacionamento. Depois de
avisar com antecedência sobre sua visita, Carter havia chegado
pontualmente. Se o pai desse a mínima para não deixar o filho
esperando, não estaria jogando tênis, para começar.
Douglas enxugou o rosto dramaticamente e acenou com a toalha
para o estacionamento. Seu corpo estava mais para esquelético do
que para elegante, mas o porte continuava aprumado. A cabeleira
de fulgurantes fios brancos era mais espetacular que a versão mais
jovem, castanho-avermelhada. Em pleno outono, ele exibia um
bonito bronzeado. Embora a compressão na espinha dorsal
houvesse acabado com uns bons cinco centímetros da sua altura,
isso ainda deixava o patriarca um pouquinho mais alto do que seu
único filho. A idade marcara seu rosto comprido com uma expressão
de troça, antes fugaz, agora ininterrupta. Até dormindo ele devia ter
aquele ar de quem se divertia ironicamente.
— Carter! — A alegria insuflada em sua voz foi animadora,
embora Douglas esbanjasse o mesmo requintado que-prazer-em-
vê-lo com todo mundo. — Vou tomar uma chuveirada. Nos vemos
na nossa biblioteca, está bem? — O vestígio de inflexão britânica na
pronúncia era sempre hábil o bastante para que não se pudesse
acusá-lo propriamente de afetação.
Nos velhos tempos, Douglas Elliot Mandible tinha sido um ilustre
bon vivant e contador de histórias. Desde a mais antiga lembrança
de Carter, seu pai soubera evocar os nomes de autores obscuros,
falecidos desde longa data, e desfiar na íntegra trechos inteiros de
Philip Roth ou William Faulkner; uma habilidade que o homem se
descuidara cruelmente de transmitir ao filho, que era capaz de se
lançar na discussão sobre um filme recente e, em seguida, passar
cinco tediosos minutos tentando se lembrar do título da obra.
Quando menino, Carter havia aceitado o pai sem questionamento:
sua eminência literária era plenamente desenvolvida, um dado
factual. Mas, na idade adulta, o simples desenvolvimento da vistosa
persona de seu pai passara a confundi-lo. Como é que alguém
começava como um rapaz imaturo, com instrução insuficiente e, de
todas as formas que importavam, bastante idiota e, como um
patinho feio, sem qualquer transição perceptível, tornava-se um
adulto refinado, animado e encantador, para cujas recepções
afluíam com avidez celebridades e grandes intelectuais? Nem uma
única vez algum dos conhecidos numerosos e bem relacionados de
Douglas tinha chamado Carter de lado para confidenciar: “Durante
anos, o seu pai contava piadas que eram um completo fiasco. Não
se conquista todo esse estilo só vestindo um paletó. É preciso
treinar.” Então, será que Douglas tinha se isolado atrás de portas
fechadas por semanas a fio, decorando longas passagens
espirituosas, para melhor desfiá-las por sobre as taças de coquetéis
Gibson? Por fim, como é que se fazia a transição de um bacharel de
Yale de fala insolente, ingênuo e que só dizia besteira para um dos
Grandes Personagens de Nova York, capaz de usar gravata
plastron em todos os dias da vida profissional sem parecer ridículo?
Se bem que, agora, talvez a pergunta mais premente fosse: como é
que um temível mandachuva de Manhattan havia suportado as
indignidades da extrema velhice sem dar a impressão de se sentir
minimamente humilhado?
Carter assinou o registro de entrada no escritório, cujas colunas
dóricas e clássico revestimento de tábuas brancas, típico da Nova
Inglaterra, pretendiam evocar uma atemporalidade que destoava de
uma clientela cujo tempo estava acabando de maneira notável.
— O seu papai vai viver para sempre, sí? — brincou a
recepcionista corpulenta, ao que Carter respondeu, distraído:
— É, receio que sim.
A mulher lançou-lhe um olhar de censura.
Na verdade, nos encontros com estranhos nos últimos dias, o
impulso natural de Carter era conversar sobre essa história do
“bancor” e pressioná-los em relação ao que presumiam ser o plano
de ação em Washington, já que isso era o que tinha acontecido
depois do 11 de setembro, certo? Todas as barreiras sociais haviam
caído, e a pessoa se pegava tendo conversas francas e íntimas com
o balconista que cobrava pelos seus pretzels. Estávamos todos
juntos naquele barco, essa era a ideia. Só que não estávamos todos
juntos naquele ali, e Carter se conteve. Uma lat que cuidava da
recepção em uma clínica de idosos era justamente o tipo que teria
passado indiferente pela crise, possivelmente até na santa
ignorância de que havia uma crise: alguém que não possuía bens.
Douglas e sua infeliz segunda mulher dispunham de todo um
conjunto de aposentos para melhor absorver uma boa parcela dos
bens de sua antiga propriedade em Oyster Bay. (Carter aceitara um
sofá de couro vermelho-clarete das sobras, mas, desde o momento
de sua chegada, aquilo tinha feito todos os outros móveis da casa
parecerem esfarrapados. Eles o haviam descarregado na casa de
Florence.) Esta era a ideia da Braços Acolhedores: reconstruir da
melhor maneira possível a casa que havia ficado para trás.
Por conseguinte, a porta da frente era de madeira grossa e
chanfrada, com uma aldraba pesada de latão, como conviria à
entrada de uma residência imponente. Um auxiliar de enfermagem
todo de branco veio atender, calçando luvas de borracha.
— Estou acabando de trocar Luella.
Era provável que não estivesse falando da roupa dela.
Carter cruzou com passos silenciosos o felpudo tapete carmesim
do corredor. Os rodapés e as sancas entalhadas eram de mogno
lustroso, e as portas, encimadas por finos painéis de treliça. Tanta
opulência, esbanjada justamente durante o período da vida em que
as pessoas eram menos capazes de aproveitá-la, parecia sutilmente
obscena. Além disso, por mais que Carter pudesse vir a apreciar o
luxo de não ter mais que se preocupar com o valor da conta de luz,
desconfiava do luxo no sentido convencional. Para ele, a
extravagância saía pela culatra. Levada ao extremo, a coisa
esplendorosa só demonstrava os limites de quão maravilhoso algo
podia ser. Um vaso sanitário com assento aquecido e levantamento
elétrico da tampa podia soltar a descarga com um som discreto,
mas ainda se urinava nele. De latão ou de plástico, uma maçaneta
era uma maçaneta. Abria a porta. Carter nunca entendera o sentido
de acessórios que custavam centenas de dólares por unidade, a
não ser tapear as pessoas.
Os móveis e utensílios de Douglas acrescentavam um toque da
antiga classe. As paredes eram decoradas por quadros feitos a
partir das capas dos livros de alguns ex-clientes. Pelas portas
duplas envidraçadas via-se a biblioteca, coberta do piso ao teto por
bens literários que Douglas teria vendido em leilão às editoras,
inclusive valeriam muito mais dinheiro do que os royalties que elas
rendiam. (Se um autor recebia de volta o valor do seu adiantamento,
dizia a máxima dominante da Agência Mandible, o agente havia
fracassado.) Curiosamente, embora o livro físico só houvesse de
fato desaparecido nos últimos anos, o cômodo exalava a ambiência
de um diorama histórico do século XVIII. Todo o esforço investido
em cada volume — não apenas o de composição do texto, mas o de
escolher a fonte, selecionar o papel, definir o estilo dos símbolos
decorativos sob os títulos dos capítulos e desenhar a capa, até a
melindrosa questão do tamanho do nome do autor — parecia
pungente e patético. Mas Carter resistia ao sentimentalismo do pai
diante de um mero formato. Fazia tão pouco sentido se emocionar
com livros de capa dura quanto irromper em prantos por causa de
uma caixa manchada de disquetes. Os netos dele não faziam ideia
do que era um disquete.
— Se vir algo que lhe interesse, fique à vontade para pegar
emprestado. — Douglas fechou as portas duplas atrás de si. Havia
trocado a roupa por um dos ternos de cor creme que eram seus
favoritos em qualquer época do ano, embora a plastron desse dia
fosse de um tom ferrugem próprio da estação outonal. — Mas sou
meticuloso na minha política de devoluções. Nunca entendi o que há
nos livros que faz as pessoas se sentirem à vontade para roubá-los.
As malditas caçarolas sempre voltam.
Carter desviou os olhos das prateleiras.
— Ler é um ato de posse. A pessoa lê, vira dona.
— É o que parece! A maioria das pessoas supõe que o que
acabou com as editoras foi a Idade da Pedra. De repente, ninguém
mais se atrevia a comprar nada pela internet...
— Na verdade, os hackers praticamente tinham acabado com o
mercado on-line muito antes da Idade da Pedra...
— ...mas parece que os leitores já tinham dado o salto para o
digital e não queriam voltar para o equivalente textual do carro de
boi — prosseguiu Douglas, em tom decidido; era sempre inútil
interrompê-lo. — Na verdade, a pirataria já tinha deixado a indústria
de joelhos. Bem antes de 2024, não havia ninguém comprando
livros, em nenhum formato. O fim do comércio na internet foi só o
golpe de misericórdia. O que restou para ser baixado pode ser
abundante e grátis, mas é uma enorme pilha de manuscritos
rejeitados. Folheá-los é como cair num esgoto.
Carter já tinha ouvido esse discurso. Douglas ficaria mortificado,
caso se desse conta da frequência com que se repetia ultimamente.
Contar as mesmas histórias para os mesmos ouvintes jamais tinha
sido motivo de orgulho para ele.
— Quando a Shelf Life acabou — disse Carter —, a única coisa
em que Jayne teve lucro foi o café. Enquanto eu assistia a Amazon
virar fumaça, fiquei assando marshmallows.
— Eu nunca contei para você — Douglas já havia contado, sim
—, mas perdi uma pequena fortuna na Amazon. Chame de negociar
com o inimigo, mas eu tinha uma senhora quantidade de ações.
A referência à carteira de ações do seu pai era desagradável nas
melhores ocasiões. Carter não queria parecer interessado demais,
porém, Douglas nunca se deixaria convencer por uma indiferença
fingida. Carter sempre tinha de aceitar a ideia de que, é claro, as
decisões de investimento do pai não eram da sua conta — o que era
balela. Embora ele e a irmã fossem da mesma opinião em poucas
coisas, em relação a uma os dois concordavam: a irrefreada
especulação diária que o pai fazia com a herança deles era
preocupante. Se o pai parecia estar com a cabeça no lugar, talvez
eles só percebessem que ele não estava bem quando também
perdesse seu dinheiro.
Douglas destampou uma garrafa de cristal no armário de
bebidas:
— Um Noah’s Mill?
— É cedo para mim. E estou dirigindo.
— Pensei que ninguém mais dirigisse também.
Carter aceitou o bourbon que pensara ter recusado. Dada a pauta
da visita, ele o tomaria. Como os carros sem motorista haviam
praticamente eliminado o perigo de dirigir depois de beber, os
guardas já não ficavam à espreita nas rodovias interestaduais.
— O nosso BeEtle tem a função da direção sem motorista, mas
eu não a uso. Sou como você: um dinossauro.
— Então, à paleontologia! — Depois de tocar o copo de cristal
lapidado de Carter no seu em um brinde, Douglas afundou em uma
poltrona de couro junto à janela. Mesmo o tênis dos quinze
centímetros devia tê-lo cansado. — Foi uma vida esplêndida,
enquanto durou. Pelo menos, a Enola conheceu o sucesso.
— Mas Nollie se recusa a escrever de graça. O que significa que
uma romancista respeitada como é a minha irmã não escreve nada.
— Em tom bajulador, Carter acrescentou: — Um desperdício
terrível.
— Como ex-agente dela, só posso aprovar.
— Nunca descobri quanto ela faturou — disse Carter, jogando
verde. — Ela não escreveu outro best-seller depois de Antes tarde.
— Todos temos direito à nossa privacidade financeira.
Não era o prefácio mais promissor para o confronto vindouro
entre os dois, e a pronúncia da palavra privacidade à moda britânica
foi irritante.
— E como vai Luella? — perguntou Carter, embora não se
importasse.
— Ah, na mesma, na mesma. Em admirável forma, ao que me
dizem — acrescentou, soando consternado.
Ter trocado a mãe de Carter, Mimi, aos sessenta anos, por uma
assistente de trinta e oito, talvez tivesse dado a Douglas um gosto
renovado pela vida, mas, com o tempo, foi ele quem virou piada. Ah,
Douglas e aquela rameira da sua assessora de confiança tinham
vivido um bom período juntos — ou assim Carter fora informado, já
que Nollie virara amiguinha do papai depois do divórcio, enquanto
Carter passara anos evitando a suntuosa nova propriedade do casal
em Oyster Bay por lealdade à mãe. Mas a intrusa esbelta e elegante
— que, como ditava a última moda, era afrimericana, ainda por
cima, o que parecia uma traição aos olhos de uma família liberal
nova-iorquina — tinha sido atingida pela demência aos cinquenta e
tantos anos. Douglas conseguira esconder a doença durante anos.
Mas, por fim, havia encontrado a segunda mulher nua no chuveiro,
equipamento que ela já não sabia acionar e cuja função lhe
escapava. E tinha sido lamentável, pois ela também estava suja da
cabeça aos pés com uma substância marrom malcheirosa e
grudenta, a qual já não sabia identificar e que estava tentando
comer. Não fosse por Luella, Douglas poderia ter permanecido em
Long Island por muito mais tempo. E essa era uma ironia que Mimi
nunca se cansava de saborear: quando Douglas largou um
casamento de trinta e seis anos como se fosse um tijolo quente, sua
mulher dirigia a Fundação de Pesquisas sobre Demência, e, aos
noventa e cinco anos, ainda estava na diretoria — com o cérebro
obstinadamente saudável, nem que fosse por vingança.
Dispensado dos cuidados cotidianos com a mulher pela equipe
da Acolhedores, agora Douglas pautava seu casamento pelo
modelo da relação entre um bicho de estimação e seu dono. Dava
guloseimas a Luella, que respondia com o equivalente humano de
abanar a cauda — quando se lembrava de mastigar e engolir, e não
tirava o chocolate da boca para derretê-lo no aquecedor. Douglas
continuava a conversar com sua mulher, sim; Carter tinha ouvido o
monólogo quando os dois estavam no quarto ao lado. Mas, afinal,
as pessoas solitárias falavam do mesmo jeito com seus cachorros.
— Algum dia você já se perguntou se esta família é
amaldiçoada? — refletiu Carter, ainda de pé. Assumir a poltrona ao
lado do pai demarcaria o ponto em que eles realmente iriam
conversar. — Trabalho com jornalismo impresso, e agora Jayne
reclama que não consegue achar um jornal para limpar as janelas.
Quanto a Nollie, a carreira de escritor acabou. E você, papai, você
foi rei! Mas de uma daquelas nações insulares inundadas pela
elevação do nível do mar, que hoje já não são nem um pontinho no
mapa. Já não existem agentes literários. Nem motores a diesel, que
sumiram sem deixar vestígio. Tudo que nós fazíamos desapareceu.
A referência aos motores a diesel foi estratégica. O grosso do
dinheiro dos Mandible tinha sido acumulado pelo bisavô de Carter,
Elliot, um industrial do centro-oeste. Douglas havia contribuído um
pouco para a fortuna, mas sempre levara uma vida de luxo, e Mimi
extraíra uma boa lapa da receita da agência no divórcio. A herança
da Motores Mandible S.A. tinha sido protegida da depredação
conjugal por um fundo fiduciário. Portanto, se Carter não ganhara
por conta própria o dinheiro a que logo deveria ter direito, seu pai
também não. Agradava-lhe frisar que Douglas era um mero agente
fiduciário, mais um indigno beneficiário da injustiça capitalista.
Douglas expressou uma frustração repentina com as gentilezas
sociais preparatórias, levantando-se com certa dificuldade para
buscar mais um dedo de bourbon. Mau sinal. Ele nunca bebia antes
das oito da noite.
— Já que você foi jornalista, tem acompanhado o noticiário?
— Na medida do possível, sem cobertura detalhada, sem
verificação dos fatos...
— O fim do New York Times — interrompeu Douglas,
pacientemente — não foi o fim do mundo. Todos sentimos falta dele,
Carter. Mas ele se tornou uma sombra do que era.
— Quer dizer, era uma sombra quando eu trabalhei lá.
— A rabugice não lhe cai bem. Você não passou dos setenta?
— Ainda não.
— Mas tem idade suficiente para saber que o fim do mundo
acontece em escala bem maior. Como você deve ter começado a
entender. Uma semana e tanto!
— Bem — Carter respirou fundo —, com a bolsa de valores
fechada, imagino que você tenha tirado uma espécie de férias.
— Se sua ideia de férias é estar impedido pelo governo federal
de ter acesso às próprias contas, o que é pouco diferente de ser
trancado fora de casa, bem, sim. Foram só barracas de praia e
drinques no iate.
— E você sabe, ahn... digo, em números aproximados, o
tamanho do prejuízo que levou?
O pai escondia o jogo em seus assuntos financeiros. Carter não
fazia ideia do tamanho da carteira, nem mesmo do número de
zeros.
— Use a cabeça. O pregão é automaticamente suspenso quando
o mercado sofre uma queda predeterminada em percentagem ou
pontos. A Comissão de Títulos e Câmbios não se dignou a reabrir a
bolsa desde a paralisação de Nível 3, na quinta-feira. Não é preciso
ter muita imaginação para visualizar o que vai acontecer com o
mercado quando a reabrirem. Tenho certeza de que a CTC já faz
uma ideia. Logo, os valores em que as ações pararam são
meramente ilustrativos. A questão não é o que elas valem, mas o
que valerão três segundos depois da sineta. Imagine todos aqueles
computadores dos bancos de investimentos prontos para dar a
partida, computadores com os quais o meu pobre telafleX não pode
competir. Qualquer um poderia argumentar, é claro, que, quando
não temos acesso aos bens, talvez por tempo indeterminado, o
valor deles é igual a zero.
Novamente sentado, com ar confiante, Douglas havia assumido
uma expressão irônica. Parecia quase satisfeito.
— Qualquer um poderia argumentar? — repetiu Carter. — Ou é
isso que você está dizendo?
— Qualquer um também poderia dizer — continuou Douglas, com
exasperante moderação —, como um contingente da internet já vem
divulgando, que essa é uma histeria extraordinária e irracional, da
qual o mercado vai se recuperar prontamente. Depois de uma
queda sem precedentes históricos, sobre a qual acadêmicos como o
seu genro vão produzir quilômetros de cansativos textos analíticos,
o dólar e o mercado podem fazer mais do que se recuperar. E nesse
caso, o próximo mês, ou coisa assim, pode proporcionar uma
oportunidade única para se comprar na baixa e vender na alta. Com
uma forcinha, os investidores que nadarem contra a maré poderão
facilmente triplicar ou quadruplicar sua carteira.
Não era para esse tipo de múltipla escolha que Carter tinha ido
até lá: seu pai estava (a) na miséria, (b) rico e prestes a ficar muito
mais rico, (c) em algum ponto intermediário. Gratidão.
— Impuseram limites aos saques, você sabe disso — disse
Carter, mal-humorado. — Não posso sacar mais de trezentos
dólares dos caixas eletrônicos.
— Estão com medo de outras corridas aos bancos. Ao
exagerarem a tentativa de preveni-las, o que eles vão arranjar são
exatamente mais corridas... caso tenham a imprudência de deixar
as pessoas pegarem o seu dinheiro de novo.
— O presidente da Reserva foi enfático. Krugman disse que o
limite continuaria por alguns dias, no máximo.
— Qualquer pessoa num cargo de autoridade que lhe diga que
uma coisa absurda é “temporária” levanta uma bandeira vermelha. A
solução rápida dos controles sobre o capital pode parecer muito
sedutora. “Vamos apenas fazer a ralé manter seu dinheiro aqui.
Vamos aprovar uma lei!” A parte difícil é suspender os controles
sobre o capital, o que se torna impensável no momento em que eles
são instituídos. Quem quer manter fundos num país que confunde
conta bancária com indicador do mercado de ações? No instante em
que as restrições forem retiradas, o país estará falido. Logo, você
pode ter certeza de que pelo menos o congelamento das
transferências monetárias para fora dos Estados Unidos será
mantido por algum tempo. Veja o caso do Chipre. Os controles
impostos sobre o capital em 2013 só foram inteiramente anulados
dois anos depois. Sabe por quanto tempo se pretendia manter
esses controles? Quatro dias.
— Mas isto aqui são os Estados Unidos. Aqui eles não podem...
— Podem. E vão. Não há nada que a Reserva não possa fazer.
De novo, aquela animação. Douglas pegou um cigarro eletrônico
no bolso interno do paletó. Tempos atrás, o patriarca da família
fumava dois maços por dia, e Carter culpava os cigarros eletrônicos
pela longevidade hoje catastrófica do homem. O e-cigarro exalava
um aroma tentador de baunilha.
— Por que você parece achar esse desastre tão divertido?
— O que importa a minha diversão? Afinal, não foi interessante
— supôs Douglas, cortando o ar com sua varinha de aço inoxidável
como um regente de filarmônica — quando o Banco Central
Europeu, o Japão, o Banco da Inglaterra e a Reserva se juntaram
logo depois da alta dos juros para interceder pela moeda e todo
aquele papo de fazer “o que for preciso” para apoiar o dólar e tudo
saiu pela culatra? Tradicionalmente, os investidores curvam-se ao
inevitável se os bancos centrais entram em ação. Mas a aquisição
desenfreada de títulos dos Estados Unidos significou que a Reserva
estava tirando ainda mais dinheiro do nada para comprar os títulos.
E foi por isso que o dólar despencou, para começo de conversa.
Piorou ainda mais a venda do dólar a preço de banana. Eu adoro
quando as estratégias que seguem fielmente a cartilha não
funcionam conforme deveriam.
— Mas você não parece nem um pouco chateado! É porque
agora tem quase cem anos? Por não lhe restar muito tempo?
Porque, quanto a mim, não só eu planejo passar mais alguns anos
por aqui, como tenho filhos, e eles têm filhos...
— Nesse momento, todas as principais bolsas de valores do
mundo suspenderam o pregão. É relaxante. Você devia aproveitar
essa trégua. Porque o Tempo da Tranquilidade não vai durar.
Carter finalmente sentou na poltrona vizinha e apoiou o queixo
sobre o ombro, com a cara fechada. Devia se lembrar: por
enquanto, ele e o pai estavam do mesmo lado.
— Economia não é minha área. Não entendo esse negócio de
bancor. A cobertura dos noticiários americanos é tão hostil que a
coisa não tem pé nem cabeça para mim. Os convidados da CBS

simplesmente começam a gritar.


— Desconfio que o bancor é uma boa ideia, ainda que não tenha
sido uma boa ideia para Putin começar isso.
— Pelo menos, nestes últimos dias, o Presidente Vitalício tem
mantido a calma.
— O que me intriga é como toda uma nova moeda internacional
estava pronta para entrar em circulação. Isso não é o tipo de coisa
que se elabore rabiscando no verso de um envelope.
— Talvez eu esperasse um golpe financeiro da Rússia e da China
— disse Carter —, mas esse golpe também veio de aliados dos
Estados Unidos. Tudo bem, não da Europa, e vamos deixá-los para
lá, mas dos sauditas, dos Emirados, da Coreia... Depois das
dezenas de bilhões que transferimos para eles após a unificação?
Ingratos. Sem falar no Brasil, na Índia, na África do Sul. Até Taiwan!
Estão todos se juntando contra nós! O que está havendo?
— Deveríamos nos sentir gratos — retrucou Douglas. — Você se
dá conta de que, se o banco não estivesse preparado como moeda
de reserva substituta, a queda do dólar faria a economia mundial
mergulhar na Idade das Trevas? Compraríamos ovos com pedras.
— Mas como eles podem anunciar que o petróleo, o gás, todo o
mercado de commodities serão negociados nessa idiotice de
“bancor”? Também é a droga do nosso petróleo, e a droga do nosso
milho.
Um democrata de Nova York não deveria, na verdade, estar
cuspindo essa bobagem nacionalista. Era o excesso de notícias
sobre os Estados Unidos, vinte e quatro horas por dia, todas
entoando a mesma cantilena apopléctica. E depois, pai e filho
haviam escolhido seus papéis desde o começo. Douglas cooptara a
voz da sensatez e da imparcialidade, o que deixava para Carter a
função de espumar de raiva.
— Uma pergunta melhor é como foi que nos safamos,
empurrando nossa moeda goela abaixo do resto do mundo por tanto
tempo — observou Douglas. — Faz décadas que o mundo é
multipolar. Depois do refinanciamento da Seguridade Social, o
orçamento de defesa dos Estados Unidos não vai conseguir
comprar nem uma pistola de espoleta. Por que as commodities
deveriam ser negociadas em dólares no mercado internacional?
— Grande coisa! Aí você chama a moeda de bancor, em vez de
dólar. É como esse tal de “Novo FMI”: pura semântica.
— Não é só semântica. Novo significa administrado por um
consórcio de países que, no momento, não nos inclui.
— Então é só isso? — debateu-se Carter. — Zás-trás e o dólar
não vale nada?
— Teoricamente, os Estados Unidos poderiam comprar sua
participação no bancor, junto com todo mundo. Mas só bancando a
participação com ativos reais para respaldá-la. Essa é a diferença,
em síntese. Para trocar uma moeda fiduciária pelo bancor, você tem
que entregar ao Novo FMI uma cesta rigorosamente proporcional de
ativos reais: milho, soja, petróleo, gás natural, títulos de
propriedades agrícolas. Terras raras... cobre... Ah, fontes de água
potável! E ouro, é claro.
— De jeito nenhum Fort Knox vai se mudar para Moscou.
— Não espero que Washington coopere. É humilhante demais.
Porém, se isso faz você se sentir melhor, é possível que países
como a Indonésia e o Paquistão tenham se apressado a acolher o
bancor como um antídoto ao caos, mas este novo regime vai ferrar
justamente com os governos que o estão apoiando. Ele incorpora
uma flexibilidade modesta, para evitar outro desastre do euro. Os
países que vincularam suas moedas ao bancor podem recorrer à
desvalorização. Mas é fatal que o NFMI seja rigoroso nesse ponto, já
que a ideia toda do bancor é restringir a oferta de dinheiro. Desde a
década de 1970, todos os países do G-30 produzem dinheiro a
toque de caixa, como se fosse Banco Imobiliário, como quem
fizesse saques de um jogo de tabuleiro com uma combinação de
componentes de vários jogos. Vai bagunçar muito algumas cabeças
o fato de agora o sujeito ter que bancar suas despesas e pagar aos
parceiros comerciais com uma moeda que tenha valor real.
— Essa coisa toda parece bem suspeita. Talvez Putin e os seus
novos amigos estivessem esperando passivamente o momento
oportuno para dar o bote. Mas é muito mais provável que eles
tenham causado a quebra do dólar.
— Ah, é assim, com certeza, que a Casa Branca está lidando
com o assunto. Uma grande conspiração. Ameaça à segurança
nacional. Nada a ver com um Congresso que se recusa a restringir
benefícios sociais. Nada a ver com o déficit, nem com a dívida
pública, nem com uma política monetária esbanjadora. São apenas
forças maléficas externas, entrando em conluio para destruir o maior
país do mundo.
Carter passou os dedos pelo que lhe restava de cabelo; o fato de
o gene da calvície masculina ser transmitido pela mãe era uma
receita certa de ressentimento entre pai e filho.
— Não entendo como isso aconteceu — disse Carter.
— Carter. Vou te contar uma coisa que não é segredo para
nenhuma dona de casa que já tenha comprado um pepino. Hoje o
dólar americano não está valendo nada, não por causa da alta dos
juros, nem por causa da quebra no câmbio internacional, nem por
causa do bancor. Ele não vale nada agora porque não valia nada
antes.
— Isso é melodramático.
— Melodramático não, dramático. Nos cem anos passados desde
a criação do Sistema de Reserva Federal dos Estados Unidos, em
1913, o dólar perdeu 95% do seu valor, quando um dos objetivos
desse banco central era resguardar a integridade da moeda. Grande
trabalho, moçada! Você já se perguntou por que ninguém mais fala
em milionários, por que ninguém, a não ser os bilionários, figura
como rico? É que o homem que tivesse uns dez mil dólares em
1913 seria milionário cem anos depois. Diabos, hoje em dia, todo
mundo é milionário, todo membro da classe média que consegue
mais ou menos saldar suas dívidas. E a maior parte desse declínio
da moeda é recente. Ora, o dólar perdeu metade do valor nos meros
quatro anos entre 1977 e 1981.
Sem nunca ter sido fã de ficção científica, Douglas vinha agora
mergulhando no gênero mais recentemente criado da economia
apocalíptica, estudando proporções entre a dívida e o PIB como um
dia decorara trechos de Saul Bellow. (Quando mais jovem, Carter
nunca imaginara que sentiria saudade de ouvir sem parar citações
de Agarre a vida.) Se seu pai não conseguia se lembrar da idade do
único filho, era pouco provável que alguma parte daquele tutorial
instrutivo tivesse sequer uma exatidão aproximada. Os poucos
fragmentos de leituras febris de que o velho se lembrasse,
literalmente, seriam exagerados para aumentar o impacto. Mas o
limite eram as últimas estatísticas dos malucos.
— Talvez seja interessante você dar uma conferida nisso —
repreendeu Carter com delicadeza, preferindo fazer isso a dizer
“que monte de merda”. — Em 1981, eu estava no terceiro ano da
faculdade. Por que não me lembraria de uma queda livre tão
drástica da minha moeda?
— Porque é chato, filho. O governo americano conta com isto:
que as pessoas se entediem. Ora, eu mesmo quase não me lembro
das consequências do abandono do padrão-ouro por Nixon. Enterrei
a cabeça nos livros. Olhando agora, talvez tenham sido os livros
errados, mas agora é tarde demais. A questão é que, depois que se
degrada tão profundamente a moeda, não resta muito mais para ela
cair. Além da pura chatice disso tudo, o fato de o dólar resvalar para
o centavo não se fez notar tanto assim, porque todos os outros
governos estavam ocupados fazendo a mesma coisa: pondo as
prensas para trabalhar horas extras, com a justificativa de que a
moeda fraca beneficia as exportações. O mundo está imerso em
papéis sem valor. Mas os Estados Unidos, em particular, têm
pintado e bordado impunemente, jogando com desoladora confiança
internacional nos títulos do Tesouro como o derradeiro “porto
seguro”. Na verdade, essa confiança cega tem todas as marcas
irracionais da teologia. No que mais se pode acreditar, em termos
financeiros, além da plena confiança e credibilidade dos Estados
Unidos? Foi assim que nós tomamos empréstimos quase sem juros,
com base numa crença infantil, durante trinta anos. Você sabe que a
Reserva tem tentado sistematicamente monetizar a dívida...
— Pare com isso, papai. Você está se exibindo.
Nos tempos da agência, Douglas Mandible se exibia falando de
anástrofe, metonímia e onomatopeia, e agora era tudo arbitragem,
pedidos de cobertura e operações no mercado aberto. A rotina de
compra e venda de ativos infectara a cabeça do seu pai como um
fungo.
— Tente viver até os noventa e sete anos com uma mulher que
não consegue reconhecer um garfo. Você também encontraria
novos interesses, por desespero. E não é complicado. Ora, ensinei
a Willing o que é monetização da dívida na última vez que você
trouxe Florence aqui, e o garoto entendeu na mesma hora. Se bem
que preciso dizer que aquele garoto leva jeito para a coisa. Tem
aquela visão arguta e a compreensão rápida que era óbvia na Enola
quando ela estava com três anos.
Recorrendo a um autocontrole sobre-humano, Carter abafou um
“Porra, dá um tempo!”.
— Então — prosseguiu Douglas —, você me empresta uma nota
de dez. Eu tiro quatro cópias, devolvo uma delas e anuncio que
estamos quites. Isso é monetizar a dívida. Eu não devo mais nada a
você e te deixei empacado com uma tira de lixo. Durante anos, o
fato de ser possível trocar dólares por bens e serviços tangíveis tem
sido um milagre divino. Por que você acha que eu invisto no
mercado? Em tese, as ações implicam a posse de coisas reais.
Infelizmente, não levei em conta que a maioria dessas ações é
expressa em dólares. E, como qualquer outro idiota, fui vulnerável
ao preconceito de que manter a maior parte dos recursos investida
em companhias americanas é ser precavido. Então eu realmente
peço desculpas. Se fizesse alguma ideia do que o futuro traria, teria
diversificado de maneira bem diferente.
O pedido de desculpas foi o primeiro reconhecimento, por parte
de Douglas, de que a carteira que podia ou não, em um passe de
mágica, ter virado um coelhinho era, no longo prazo, mais de seu
filho do que dele.
— Eu ia perguntar — disse Carter, em tom derrotista, pois já
sabia a resposta. — Tenho um plano empresarial de aposentadoria
que é investido na bolsa, o 401(k), e uma pequena aposentadoria do
Times. Há alguma coisa que eu deva fazer para me proteger?
— Não há nada que você possa fazer enquanto esse
congelamento dos bens estiver em vigor... o que também é
relaxante, não? — Douglas finalmente abrandou sua diatribe com
um toque de ternura paterna. — Quando a CTC der o aval, eu
aconselharia que você passasse tudo para o ouro, mas é isso que
milhões de investidores concorrentes estarão tentando fazer ao
mesmo tempo. Simplesmente não existe uma quantidade tão
grande assim do metal no planeta, o que é uma das principais
razões de ele ser uma reserva essencial de valor há cinco mil anos.
Quando a CTC pediu tempo, o ouro já tinha chegado a uma alta sem
precedentes. Se e quando o jogo recomeçar, o preço dele vai subir
em disparada, num piscar de olhos. Receio que o mesmo conselho
se aplique a quaisquer commodities que dão lastro ao bancor. É
tarde demais — anunciou Douglas, em tom elegíaco. — Eu não me
daria esse trabalho.
Fazia muito que escurecera, e o abajur Emeralite na mesa entre
os dois emitia um brilho suave, protetor. Mais uma vez, Carter se
impressionou com o fato de nada, ou nada palpável, ter mudado.
Ele bebera uma quantidade pavorosa de bourbon, e ainda era
apenas o começo da noite. Não deveria dirigir naquele estado, e
não tivera a presença de espírito de descobrir como operar a função
sem motorista no BeEtle. Teria de dormir lá. Jayne ficaria aflitíssima.
Não estava acostumada a passar a noite sozinha. Definitivamente,
ela não se mantivera a par das notícias durante a semana, e não
seria sensível à ideia de que tempos excepcionais exigiam uma
longa consulta ao pai dele. Jayne se convertera com firmeza à
convicção de que era preciso ficar acima de qualquer tipo de notícia,
pois todas estavam fadadas a desaparecer se a pessoa as
ignorasse com bastante determinação. A estratégia de enfiar a
cabeça em um saco de papel funcionava em um número suficiente
de vezes.
Douglas deu um tapinha na coxa do filho.
— Que tal comermos alguma coisa? Podemos ir para a sala de
jantar, ou Grace pode nos preparar algo aqui mesmo, e não vai ser
nada sem sal, sem gordura e sem graça.
— Esta conversa não fez maravilhas pelo meu apetite — disse
Carter, ainda afundado na poltrona. Ele não telefonou para Jayne.
Mesmo que ela houvesse prestado alguma atenção à natureza
daquela visita, só ia querer saber o resumo. E Carter ainda não o
apreendera. Um pouco de coragem cairia bem, o que não era o seu
forte.
— Você estava tentando me dizer que nós... que você está
falido?
Douglas riu e respondeu:
— Não, não, não! Não é tão ruim assim.
O alívio não drenou de imediato a onda de adrenalina. Com o
coração pulsando nos ouvidos, Carter sentiu-se fraco e baixou a
cabeça.
— Você nunca me fala dessas coisas. Como se não confiasse em
mim.
Bebida alcoólica o deixava taciturno.
— Nada disso! Só não tinha entendido que você se interessava
pelos detalhes da coisa.
— Acho que eu não me interessava. Agora não há nada a não
ser detalhes.
— Certo. Então, alguns detalhes. Fiquei longe dos fundos de
índice, mas só porque tenho um pedaço de todas as empresas
listadas no Dow Jones. — O mesmo orgulho um dia acompanhara a
aquisição da obra completa de W. Somerset Maugham. — Essa
faceta do balanço pode ser amarga. Mas tenho ETFs ligados ao
ouro, ações de mineradoras e até o certificado de propriedade de
ouro em barra num cofre bancário particular no centro de
Manhattan. Sempre guardo 10% do dinheiro em espécie, com os
quais ainda se poderá comprar alguma coisa dentro do país, e você
não tem planos de viajar, tem?
— Não, o safári na Tanzânia pode esperar mais um ano. De
qualquer maneira, não sobrou nenhum animal.
— Ótimo, já que a próxima espécie ameaçada de extinção será o
turista americano. Fora isso, uma boa parcela da carteira está em
títulos do Tesouro. O rendimento é uma porcaria e o valor deles vai
cair, agora que a taxa de juros subiu, mas, se tudo der errado,
sempre se pode esperar o vencimento. Em momentos como este, a
gente precisa se agarrar ao principal.
— Mas você disse que comprar títulos do Tesouro americano era
um sinal da crença mundial.
— Isso mesmo! E por que eu seria diferente?
Os dois estavam se levantando para ir à sala de jantar — se
Carter não comesse logo alguma coisa, ia ficar enjoado — quando
ouviram uma batida leve na porta da biblioteca.
— Sr. Mandible? — O auxiliar de enfermagem que estivera
cuidando de Luella enfiou a cabeça pela abertura. — O presidente
vai falar com a nação pela TV. A recepção tinha certeza de que o
senhor gostaria de ser informado.
• CAPÍTULO 4 •

BOA NOITE, COMPATRIOTAS AMERICANOS

— Mãe! O Alvarado vai falar daqui a um minuto!


— Tudo bem, amor! — gritou sua mãe da cozinha. — Eu vejo
mais tarde.
Era mais um daqueles momentos onde-você-estava-quando-isso-
aconteceu, e era um horror quando eles se acumulavam. Com as
costas apoiadas no pesado sofá cor de vinho do Magno Grand Man,
Willing se aninhava no chão, com as pernas cruzadas, onde sempre
se sentia mais seguro, verdadeiramente sentado. A vibração da fala
do locutor — “dentro de alguns instantes ... fez apenas um outro
discurso à nação ...” — subiu pelo assoalho de parquê e estremeceu
nas palmas de suas mãos. Pela primeira vez ele não se sentiu
constrangido pelo fato de o som estrepitoso invadir o porão de Kurt.
Alvarado também era presidente do inquilino deles. Kurt devia estar
prestando atenção. “Senhoras e senhores, o presidente dos Estados
Unidos” era mais um sinal de que o troço ia tomando o rumo da
barra de barata. Quando eles precisavam dizer a coisa por extenso,
não só “o presidente”, mas “o presidente dos Estados Unidos”. Isso
era grave, mas era ainda pior com “o presidente dos Estados Unidos
da América”.
Milo latiu. Só uma vez, antes de se encolher sob a proteção da
coxa de Willing. Milo nunca parecera gostar muito do Alvarado.
Sua mãe estava cometendo um erro. Tudo podia ser copiado. As
duplicatas pareciam idênticas aos originais. Willing também poderia
esperar para ouvir o discurso mais tarde. No fleX ou na retrospectiva
da TV, o discurso seria indistinguível da imagem que ele
acompanhava no momento. Mas a segunda versão não estaria
acontecendo em tempo real. Ele não sabia explicar, mas isso
tornava a coisa totalmente diferente. Para todo o sempre, Willing
teria assistido a esse discurso enquanto ele acontecia. Aqueles
sons, a música artificialmente descendente da empolgação
reprimida dos locutores, sua voz forçada a assumir tons mais
sombrios, sussurrantes, quando na verdade eles gostariam de gritar,
garantiriam que depois o garoto ficaria contente e orgulhoso por ter
assistido àquilo na hora certa, e não a posteriori.
É que notícia importante envelhece depressa. Se esperasse, era
fatal que alguém viesse contar antes de você descobrir sozinho. E a
pessoa também mudaria as palavras, colocaria tudo na ordem
errada. Willing detestava que lhe contassem o que havia acontecido.
Os contadores de notícias sempre pareciam arrogantes e
poderosos, e preservavam seu poder guardando para si o
conhecimento especial pelo máximo de tempo possível. Assim, iam
dando pedacinhos de informação em gotas sádicas, como petiscos
de cachorro para Milo. E não se podia confiar nas pessoas que
contavam as coisas. Mesmo quando diziam estar transmitindo tudo
que sabiam, elas só passavam a parte de que gostavam ou que
detestavam em especial. Ouvir dos outros não era uma boa maneira
de descobrir algo.

Buenas noches, mis compatriotas americanos. Daré


instrucciones en español immediatamente después de esta
versión en inglés. Pero esta noche, y sólo esta noche,
presionen uno para inglés.

Boa noite, meus compatriotas americanos. No início deste


século, terroristas extranacionais sequestraram nossos
próprios aviões para quebrar o Pentágono e destruir o World
Trade Center. Mais recentemente, em 2024, nossa estrutura
vital de internet foi paralisada de uma forma cataclísmica por
potências estrangeiras hostis.
A guerra moderna tem muitas feições.
Durante essa última semana, nossa nação foi atacada mais
uma vez. Nenhum arranha-céu gigantesco desmoronou. Os
sistemas físicos e digitais de que dependemos continuam a
funcionar. No entanto, o ataque que enfrentamos neste
momento tem um potencial não menos devastador que o de
mísseis nucleares disparados contra nossas cidades.
O que foi transformado em alvo foi o próprio meio pelo qual
negociamos com as outras nações e conduzimos o comércio
uns com os outros; o meio pelo qual nossos trabalhadores são
remunerados, nossas dívidas são pagas, nossas mesas são
dispostas e nossos filhos têm assegurada a medicação para
suas indisposições.
O que está em risco é nada menos que o próprio e
poderoso dólar.
Coordenando a trapaça, países que desejam o mal desta
nação jogaram com a aquiescência covarde de nossos aliados.
Nos últimos dez dias, uma sucessão de dominós financeiros
cuidadosamente programada foi derrubada com o intuito de
elevar o custo do financiamento da nossa dívida pública, o que
significa que vocês, os contribuintes americanos, conservariam
uma parcela menor da sua renda arduamente conquistada.
Nossa moeda também foi sabotada nos mercados
internacionais de câmbio. E o mais pérfido foi que líderes
mundiais que se ressentem do poder, do prestígio e do
sucesso da nossa grande nação improvisaram às pressas o
chamado “bancor” — uma moeda artificial, falsa, sem qualquer
tradição como moeda oficial.
Não se deixem iludir. O bancor não pretende ser uma
alternativa inofensiva ao dólar. Ele foi criado para substituí-lo.
Em um gesto tão ameaçador quanto nos apontar um revólver
para a cabeça, fomos informados de que nossas colheitas e
nossas matérias-primas, com as quais contamos para nossa
vida e nosso sustento cotidianos, deverão agora ser
negociadas em bancores no comércio internacional. Em um
gesto de insolência excepcionalmente arbitrário, o
Departamento do Tesouro dos Estados Unidos também foi
informado de que os títulos do Tesouro americano em poder de
investidores estrangeiros deverão doravante ser resgatados
em bancores, a uma taxa de câmbio desfavorável,
caprichosamente escolhida por um Fundo Monetário
Internacional que se tornou um embuste. Os títulos americanos
vendidos a investidores estrangeiros deverão doravante ser
negociados em bancores — o que constitui um desafio à nossa
própria soberania como nação.
Ironicamente, os que estiveram por trás desse golpe fiscal
organizado logo sofreram com ele. O dólar americano é a alma
da atividade bancária internacional, bem como a espinha
dorsal dos mercados financeiros em todo o mundo. Foi por
isso, como a maioria de vocês sabe, que suspendemos o
pregão na Bolsa de Valores de Nova York na semana passada,
a fim de impedir uma perda vertiginosa de riqueza. Mas o
pregão também foi suspenso, na esteira do mesmo choque
para o sistema, em Londres, Paris, Berlim, Moscou, Hong
Kong e todas as outras grandes bolsas de valores espalhadas
pelo globo. As finanças internacionais estão prendendo a
respiração. Tal como aconteceu em todas as outras crises, há
mais de cem anos, o mundo aguarda a ação dos Estados
Unidos. E este bravo país nunca é insultado sem dar uma
resposta.
Pouco antes de me dirigir a vocês, o povo americano, esta
noite, convoquei uma sessão de emergência no Congresso.
Quase por unanimidade, os seus representantes aprovaram
uma lei determinando que, até segunda ordem, a posse de
bancores por cidadãos americanos, seja em nossas terras,
seja nos confins do nosso sistema financeiro, será considerada
um ato de traição. Em nome da preservação não apenas da
nossa prosperidade atual, mas também de nossa prosperidade
futura — em nome da manutenção da nossa integridade, da
nossa capacidade de manter a cabeça erguida como nação —,
os cidadãos americanos e as entidades americanas também
ficam proibidos de fazer transações em bancores no exterior.
Por ora, e apenas por ora, é claro, nenhum capital acima de
cem dólares deverá deixar o país. Esses controles são
temporários, de duração destinada a ser breve, e serão
suspensos no momento em que a ordem econômica estiver
restabelecida de modo seguro e definitivo.
Tal como acontece nos confrontos militares, a guerra fiscal
necessita de armas, e a produção de armas exige sacrifício.
Assim como mobilizamos nossas forças e nossa indústria para
defender a causa da liberdade durante a Segunda Guerra
Mundial, devemos agora mobilizar nossos recursos para
defender nossa liberdade no presente. Estejam certos de que
o maior ônus desse sacrifício será carregado pelos ombros
mais largos.
Usando os poderes conferidos a mim, como seu presidente,
pela Lei sobre Poderes Econômicos em Emergências
Internacionais, de 1977, estou requisitando todas as reservas
em ouro guardadas em bancos privados. As operações de
mineração de ouro dentro de nossas fronteiras deverão vender
o metal exclusivamente ao Tesouro dos Estados Unidos. As
ações do ouro, os fundos de investimentos indexados ao ouro
e o metal em barra serão igualmente transferidos para o
Tesouro. Diferentemente da nacionalização do ouro feita por
Franklin Delano Roosevelt em 1933, ao fazer sua aposta
ousada para resgatar nosso sofrido país da Grande
Depressão, não haverá exceções para joalheiros nem joias.
Todos esses confiscos patrióticos serão pagos por peso,
embora a uma taxa que não reflete a histérica inflação das
ações do ouro no período que conduziu a esta emergência. A
acumulação não será tolerada. Multas punitivas de até 250 mil
dólares serão impostas aos que não obedecerem. Conservar
qualquer forma de ouro após a data limite de 30 de novembro
de 2029 será doravante considerado um delito penal, com a
penalidade de não menos de dez anos de prisão.
A partir de hoje, todas as exportações de ouro de nossas
terras estão proibidas. Em retaliação às tentativas de
agitadores externos de esgarçar o próprio tecido da nossa
bandeira, todas as reservas estrangeiras de ouro atualmente
guardadas no Serviço de Reserva Federal estão confiscadas e
passam a ser propriedade do governo americano.
Por último, uma conspiração de potências estrangeiras quer
subjugar o governo desta nação ilustre com um ônus
intolerável e inviável, proveniente dos juros de sua dívida. Essa
dívida foi contraída com boa-fé e, no devido tempo, em
quaisquer circunstâncias, salvo as mais extraordinárias, teria
sido paga com boa-fé. Mas, quando retribuem nossa probidade
com má-fé e traição, continuar a agir com escrúpulos revela
apenas credulidade e fraqueza. As duas partes precisam
honrar um acordo para que qualquer contrato permaneça em
vigor. E mais, este grande país não honrará seus
compromissos a ponto de destruir sua própria existência no
processo. Uma nação concebida na liberdade não pode
conduzir de joelhos as suas negociações cotidianas.
A partir desta noite, eu, o ministro da Fazenda e o
presidente do Banco Central dos Estados Unidos declaramos
uma “reinicialização” universal. No interesse de preservar a
própria nação que deseja cumprir suas obrigações do futuro,
somos compelidos a deixar de lado as obrigações passadas.
Todas as letras, notas e títulos do Tesouro são doravante
declarados nulos e sem efeito. Muitos devedores choraram de
gratidão pela bênção de um perdão da dívida, pelo direito a
uma segunda chance, o que, tanto para indivíduos quanto para
empresas, todos os sistemas judiciários justos, como o nosso,
consagraram como lei. Do mesmo modo deve o governo ficar
apto a traçar uma linha e dizer: daqui nós recomeçamos.
Assim, lancemo-nos ao futuro com o passo mais leve e o
coração alegre — confiantes na resistência da maior nação do
mundo. Deus os abençoe. E Deus abençoe os Estados Unidos
da América. Boa noite.

No momento em que acabou, o discurso estava disponível na


internet, mas há ocasiões em que a acessibilidade exagerada nos
desanima de aproveitá-la, evaporando-se toda a urgência. Assim,
Florence contentou-se em ouvir o resumo do discurso feito por
Willing — com admirável detalhamento, para um garoto de treze
anos —, enquanto ela pendurava a roupa lavada na área de serviço
adjacente à cozinha. O ciclo de nível baixo de água da máquina de
lavar sempre deixava as trouxas de roupa mais leves encardidas.
— É muita coisa para digerir. — Florence olhou o filho de relance,
em posição de sentido ao lado da máquina, braços estendidos,
palmas das mãos nas laterais do corpo, olhos escuros cravados em
um ponto à frente, um perfeito soldadinho. Ela não fazia ideia de
como havia criado um menino tão sóbrio, disposto a carregar o
mundo nas costas sobre seus magros trinta e nove quilos. — Você
não está preocupado, está? Porque parece preocupado.
— Estou — comunicou ele.
— Escute — disse Florence. Ela largou as meias soquete dentro
da máquina e se ajoelhou mais do que seria necessário, já que
finalmente estava havendo um estirão na altura dele. — Pelo que
você me disse, não temos nada com que nos preocupar. Está vendo
algum ouro por aí que precisamos dar ao governo? Mesmo que
tivéssemos algum, o governo nos pagaria por ele, segundo você
disse.
— Se o governo pode fazer a gente dar tudo o que quiser, o que
mais pode nos obrigar a dar? Se ele disser que precisa de todos os
cachorros, eu tenho que dar Milo?
Florence riu.
— O presidente Alvarado nunca vai levar Milo. Ele é um bom
homem. Esteban e eu votamos nele, lembra? E esse dinheiro
moderninho, bem, eu não saberia o que é um “bancor” nem se ele
me desse uma dentada no traseiro. Alguma vez nós levamos
“bancores” ao Green Acre para comprar cereal? Não. Logo,
ninguém vai prender você, nem Esteban, nem a sua mãe por
andarem com uma moeda absurda que, na verdade, tem a ver com
negociações financeiras complicadas entre países. Quanto a essa...
“Moratória”...?
— Foi assim que os comentaristas chamaram.
— Sem grandes reflexões, aposto que a tal “reinicialização” de
que você falou vai manter baixos os nossos impostos. Isso é bom
para nós. Desse jeito, conservamos uma parte maior do meu
salário.
— O presidente pegou dinheiro emprestado com as pessoas e
agora se recusa a pagar. Isso não parece relapso. Parece meio
bostejanta.
Florence se endireitou com ar enérgico e bateu as palmas.
— Para começar, esse presidente não pediu quase nenhum
empréstimo. Herdou a dívida de outros presidentes, que não
conseguiam parar de socorrer umas merrecas de países que só
acabavam nos odiando pela nossa ajudinha. Além disso, a maior
parte desse dinheiro é dos chineses, que são grandes trambiqueiros
e as verdadeiras bostejantas, já que é quase certo que foram eles
que derrubaram a internet no nosso país há cinco anos. Eles que se
danem.
— Ninguém pegou os culpados. Ninguém apresentou nenhuma
prova.
— O que torna a operação ainda mais sórdida. Não confessar?
Ora, a pessoa teria que ser uma idiota para não saber quem fez
aquilo. — Florence se conteve. — Desculpe, eu não quis dizer que
você é idiota.
— Mas os chineses não vão gostar disso. Se conseguiram tirar a
internet do ar uma vez, podem repetir a dose.
— Não, não podem. Todas as vulnerabilidades anteriores foram
corrigidas. — Florence teve a incômoda consciência de estar
recitando em tom levemente cantarolado esse senso comum.
— Isso é o que dizem. Não quer dizer que seja verdade.
— Willing, não faço ideia de como você ficou tão cético aos treze
anos.
Ele fechou a cara.
— Eles podem fazer pior do que derrubar a internet —
argumentou.
— Pare. Você está se deixando levar pela imaginação. O
importante é que nada do que você me disse que o presidente
anunciou na televisão tem a ver conosco, está bem?
— Tudo tem a ver com tudo — declarou ele, em tom sinistro.
— De onde você tirou isso?
— Do universo.
— Caramba, meu filho virou místico. Relaxe. Vamos tomar
sorvete.

***

Considerando que ele tinha eterna liberdade de assistir aos outros


dois mil e tantos canais com transmissão en español, Florence sabia
que não dava para acreditar que Esteban estivesse assistindo à
segunda transmissão do discurso em espanhol “para manter a
fluência”. Ainda se regozijando pela vitória apertada de Dante
Alvarado em 2028, ele estava se deleitando. Durante esse primeiro
ano de lua de mel, para defensores convictos como Esteban, o
primeiro presidente lat dos Estados Unidos não podia fazer nada de
errado.
Os outros pouco menos de 50% do país estavam mais
emburrados do que em 2008, para dizer o mínimo, porém também
mais propensos a ficar de boca fechada. Dessa vez, nenhum
“natalista” dispéptico poderia objetar que o democrata nascera fora
do país. Com sua aprovação enormemente favorecida pela
candidatura fracassada de Arnold Schwarzenegger em 2024, a
XXVIII Emenda anulara a obscura exigência constitucional de que
os presidentes fossem nascidos em solo americano. (Florence não
era a única a atribuir a surpreendente derrota do Exterminador a
uma jogada de ocupação de cargos de última hora, que nomeara
Judith Sheindlin — conhecida como a “Juíza Judy” — para o
Supremo Tribunal Federal. Desde então, as sessões do Supremo
tinham sido mais animadas e mais curtas.) O fato de Dante Alvarado
ter nascido em Oaxaca ajudara em sua eleição. Além disso, o fato
de muitas coletivas de imprensa e debates do Congresso serem
agora conduzidos em espanhol era uma fonte permanente de
orgulho para a comunidade de Esteban. Embora a decisão de
Alvarado de proferir seu discurso de posse, em janeiro,
exclusivamente em sua língua natal fosse vista por alguns
democratas como uma provocação, Florence não se importava. A
transmissão daquele histórico e altivo discurso no Washington Mall
proporcionara uma boa oportunidade para que ela aprimorasse seu
espanhol.
Além disso, nos idos de 2024, ela fizera questão de entender que
Florence Darkly era racista.
Às 5h08min da tarde daquele fatídico sábado de março, ela e
Willing faziam compras em Manhattan, aproveitando a liquidação de
primavera na enorme filial de Chelsea de uma conhecida loja de
roupa de cama e banho. Os dois haviam acabado de passar pelo
caixa quando as luzes da loja se apagaram. Na rua, as calçadas
estavam lotadas de gente sacudindo seus fleXes em frustração.
Verificar se havia sinal no fleX fora tão compulsivo quanto inútil.
Blecaute era uma possibilidade — o bairro inteiro parecia estar sem
energia —, mas não explicava a falta de cobertura por satélite. As
pessoas saíam em bando das estações de metrô; os trens haviam
parado. Com os semáforos apagados, um acidente na West 19th
Street paralisara o trânsito na Sexta Avenida. A cacofonia das
buzinas era estranhamente reconfortante: sinais de vida.
Segurando a mão do filho, ela ainda não tomara conhecimento de
um mundo em que se recusar a abrir mão do novo cesto de vime
para a área de serviço era ridículo — até porque ele estava
sobrecarregado pelas outras pechinchas enfiadas lá dentro, e isso
tornava aquele objeto volumoso especialmente desajeitado.
Enquanto os dois abriam caminho com dificuldade por
aglomerações que se aproximavam da histeria, era provável que a
luta dela com aquele elefante fosse visível. Quando um mexicano
musculoso tentou tirá-lo de sua mão, ela presumiu que o homem era
um imigrante não reconhecido e ladrão que estava se aproveitando
daquele pandemônio para roubar. Ela puxou o cesto de volta com
violência.
Em um inglês tranquilizadoramente correto, o homem lhe jurou
que só estava tentando ajudar. Disse que ninguém com quem
houvesse falado parecia saber por que, de uma hora para outra,
nada estava funcionando, visto que os próprios aparelhos com que
essas perguntas eram respondidas tinham parado de funcionar. Ele
alertou Florence para o fato de que, segurando o cesto com um
braço e uma criança com outro, ela corria o risco de ser pisoteada.
Perguntou-lhe onde eles moravam; ela relutou em dizer, mas não
queria ser grosseira. O homem disse que também tinha de voltar
para sua casa no Brooklyn. Sugeriu que eles seguissem pela ponte
de Manhattan, cuja rampa de pedestres seria menos concorrida que
a da ponte do Brooklyn, que com certeza estaria abarrotada.
Levantou sobre um dos ombros o cesto carregado de compras. No
começo, os dois não conversaram. O homem a apavorava. Mas,
quando ele foi abrindo caminho pelas multidões na 18th Street,
depois descendo a Segunda Avenida até a Chrystie, Florence teve
de admitir que, sozinha, nunca teria chegado tão longe com suas
compras; nem teria, sem um aplicativo, transitado com tanta perícia
pelo caminho mais fácil para a entrada de pedestres da rua do
Canal. O homem estava certo quanto à escolha da ponte. O
empurra-empurra não estava forte a ponto de eles correrem o risco
de serem lançados no East River por cima da amurada.
Na rampa, todos concordavam que o mais difícil era não saber o
que tinha acontecido. Por todos os lados, outros pedestres
ofereciam suas teorias infalíveis: o cometa Halley atingira Nova
Jersey. O governo estava conduzindo um treinamento de
segurança. Houvera outro ataque terrorista. A famigerada previsão
de Harold Camping, de que o Arrebatamento ocorreria em 21 de
maio de 2011, estava atrasada em apenas treze anos, nove meses
e quinze dias.
Quando eles finalmente fizeram a curva e desceram a rampa
para o Brooklyn, Florence pediu para se encarregar do fardo e
prosseguir com a ajuda do filho de oito anos. O acompanhante
mexicano tinha dito que morava no Sunset Park, dez quilômetros a
oeste de East Flatbush, e não fazia sentido que ele continuasse a
avançar na direção errada — a menos que planejasse assediá-la.
Àquela altura, porém, estava escuro, obliterantemente escuro.
Apenas algumas luzes isoladas de fleXes penetravam a escuridão.
Atrás deles, Manhattan poderia ser uma cadeia de montanhas. Com
o trânsito parado, já que as funções de direção sem motorista e os
computadores de bordo dependiam da internet, a maioria dos carros
fora abandonada, embora houvesse famílias aninhadas dentro de
alguns sedãs, sem dúvida com as portas trancadas. Assim, o lat
insistiu não só em levá-los à porta de casa, mas em gastar a bateria
do seu fleX para iluminar o caminho. Quando o trio avançava a
custo pela Flatbush, perto do parque, a bateria do fleX dele acabou,
e foi preciso passar para o de Florence. Outros peregrinos se
enfileiravam na avenida, com o brilho cada vez mais fraco de seus
aparelhinhos, feito penitentes com velas votivas. Eles tinham
percorrido a pé todo o trajeto de quase dezesseis quilômetros em
quatro horas e meia. Assim, quando dobraram a esquina na Snyder,
Florence encarregou-se do cesto e deixou seu protetor carregar
Willing, que adormeceu no seu colo. Mais tarde, o homem viria a
explicar que é claro que sentira medo, como todo mundo, mas a
maneira mais segura de manter a cabeça no lugar fora concentrar-
se na segurança daqueles dois estranhos. Seu nome era Esteban
Padilla, e, quando os três chegaram à East 55th Street, exaustos, de
novo na escuridão completa, porque o fleX de Florence também
havia descarregado, eles precisaram se agachar para encontrar
velas e fósforos na cozinha, ela se tornara muito menos racista, e
estava apaixonada.
A eleição de novembro passado significara tanto para seu
companheiro que ela guardara para si a ligeira inquietação sobre o
novo presidente. Ah, ela se emocionou com o simbolismo; depois de
toda a acrimônia em torno da imigração, um lat na Casa Branca era
o emblema supremo da inclusão. Mas o homem tinha uma cara
meiga de bebê que só era enfatizada pelas consoantes
palatalizadas do sotaque mexicano, o qual, no caso de Alvarado,
parecia meio falso. (Quando falava com plateias brancas durante a
campanha, sua pronúncia ficava mais clara em um instante. Não se
tratava apenas de ele ser gordo — que diabo, dois terços do país
eram gordos —, mas do tipo de gordura. Ele tinha uma balofice de
filhinho da mamãe que poderia levar os chefes de Estado
estrangeiros a vê-lo como um banana.
***

Ao pegar as tigelas, Florence se perguntou se devia convidar Kurt


para tomar sorvete com eles. Sempre ficava em dúvida sobre o
quanto devia acolher no convívio social da família o inquilino do
porão, que trabalhava meio expediente como florista. Ele era gentil e
lhe trazia os buquês envelhecidos que seriam postos no lixo,
alegrando a casa com frésias. E Florence gostava bastante dele, e
ficaria feliz se ele entendesse isso e relaxasse. Afinal, ele era bem-
educado, solícito, inteligente, um bom falante e ávido. (Ávido
demais? E ávido de quê? De ser benquisto, é óbvio, e até ser
estimado o suficiente já bastaria.) Mas a sua gratidão exagerada por
qualquer gentileza banal era cansativa. O fato de ele nunca
reclamar facilitava a vida da família, mas ele tinha todo o direito de
reclamar. Alto para o pé-direito reduzido do porão, ele vivia batendo
com a cabeça nas vigas, as quais Florence deveria ter revestido
com espuma. Músico amador, só praticava saxofone quando não
havia mais ninguém em casa, ao passo que, no andar de cima, até
os passos leves e furtivos de Willing se traduziam em batidas de
elefante, ouvidos lá de baixo. E Kurt Inglewood algum dia pedira à
família para manter baixo o som da televisão? Não, não, não. Por
isso, naquela noite, o que fez a balança pender para três tigelas em
vez de quatro deixou Florence sem jeito.
Mais ou menos da idade dela, forte e bem proporcionado, com
um rosto longo de feições bem desenhadas, Kurt deveria ser
qualificado como bonito. Criado na classe média e tendo batalhado
de um emprego insatisfatório e mal remunerado para outro, tal como
Florence, Kurt devia passar a imagem de um trabalhador charmoso
e competente, à espera de uma oportunidade digna, quando era
mais moço. Porém, uma das coisas em que ele poupara trabalho e
dinheiro durante anos tinha sido o cuidado com os dentes. A
deterioração escurecera um sorriso cativante, transformando-o em
um esgar vampiresco. Sem uns cinquenta mil dólares de implantes,
obturações e pontes, ele ficaria solteiro pelo resto da vida. Agora na
casa dos quarenta e com aqueles dentes, Kurt resvalara de maneira
trágica, injusta e talvez permanente para a categoria dos
fracassados; um rótulo feio e desumanizador, do qual a própria
Florence havia escapado por pouco. Ela se deparava com uma
infinidade de casos de falta de higiene dentária no abrigo, e talvez
fosse esse o problema naquela noite. Ela não se importaria de
dividir o sorvete com o Kurt de sempre. Mas tinha sido um dia
cansativo na Adelphi, e ela não podia encarar aquele sorriso.
Florence serviu três bolas de sorvete. Sentindo aquela alegria
nervosa de quando algo grandioso acontece, mesmo que ainda não
soubesse dizer se era bom ou ruim, seguiu seu impulso e pôs um
punhado do sorvete na vasilha de Milo. Todos se reuniram na sala
com suas colheres, e Esteban desligou a televisão.
— E então, o que achou do discurso? — perguntou ela ao
companheiro, quando eles se acomodaram no sofá com a
sobremesa.
— Está maravilloso — declarou ele. — Aqueles republicanos
decrépitos, sempre resmungando que o Alvarado é fraco e medroso,
isso vai mostrar a eles. Isso é que é defender o país! Durante toda
minha vida, foram as decisões políticas mais corajosas que já vi
qualquer presidente tomar. Agora não vão mais poder chamar o
cara de maricas.
Florence deu uma risada.
— Podem chamar de outras coisas. Como vigarista.
— Os que foram prejudicados merecem — disse Esteban,
confiante. — Bando de asiáticos sacanas. Quem é que está se
importando com isso?
Em um silêncio denso desde a conversa dos dois na área de
serviço, Willing emergiu de sua apreensão com uma observação
desconexa que era digna de um prêmio:
— A gente sempre pode se mudar para a França.
— Ceeeerto... — comentou Florence, afagando com o indicador o
pescoço do filho, rigidamente sentado no chão. Seu sorvete estava
derretendo. — E por que nós faríamos isso?
— Nollie mora em Paris — disse Willing. — Talvez seja mais
seguro. O presidente disse que não vão deixar dólares saírem do
país. Não falou que não vão deixar as pessoas saírem. Por
enquanto.
Florence olhou de relance para Esteban e balançou a cabeça,
como quem diz “nem pergunte”:
— Suponho que você possa querer visitar a sua tia-avó algum
dia. Vocês pareceram se dar bem na última vinda dela a Nova York.
— Nollie faz o que quer. Todos os outros fazem o que se espera
que façam — disse Willing. — Jayne e Carter dizem que ela é
egoísta. Talvez isso seja bom. São as pessoas egoístas, um certo
tipo de egoístas, que convém termos do nosso lado.
Florence assegurou ao filho que não havia “lados”, disse que ele
estava muito cansado, insistiu para que terminasse o sorvete, já
transformado em sopa, e que fosse se deitar. Depois que o garoto
escovou os dentes, ela murmurou à sua porta que ninguém ia se
mudar para lugar nenhum e que uma porção de acontecimentos que
parecem estranhos e assustadores, vistos de perto, acabam sendo
os simples altos e baixos da vida comum, mais adiante. A Idade da
Pedra parecera o fim do mundo, não é? E não tinha sido.
Mais tarde, no entanto, ela mesma teve um sono agitado. A
inquietação era subterrânea. O leito de rocha, o alicerce estava se
deslocando — o que deveria permanecer igual para que outras
coisas pudessem mudar em segurança. Em 2024, Florence passara
a reconhecer a enorme diferença entre uma coisa ruim acontecer e
os próprios sistemas pelos quais tudo acontecia ficarem ruins.
Mesmo que os sombrios decretos do presidente não tivessem um
impacto concreto no dia a dia de East Flatbush, aqueles editos
pareciam questionar a vida dela no nível mais fundamental — não
tanto o vaivém banal do que ela ganhava e do que gastava, do que
fazia e de onde ia, mas quem ela era.

***

Ao andar para o ponto de ônibus na manhã seguinte, Florence


atravessou a rua para pôr a conta de luz na caixa de correio — um
método de pagamento que parecia tão primitivo quanto fazer fogo
com lascas de pedra. Ou seja, a história podia retroceder. Agora
que, por lei, qualquer transação que envolvesse a infraestrutura vital
ou as finanças tinha de ser conduzida fora da internet, os extratos
bancários e as contas de serviços, toda aquela porcaria de papel
que ocupava espaço, tinham voltado a encher as mesas
domésticas. O talão de cheques também fora resgatado da lixeira
do passado, com bolas de pelos e pedaços de fio dental usado
colados entre as folhas. Pelo menos, a necessidade de escrever em
um retângulo “Duzentos e quarenta e três dólares e vinte e nove
centavos” justificava, por si só, o domínio da redação manuscrita
das letras. Havendo perdido quase totalmente essa habilidade, ela
fora obrigada a anular o primeiro cheque preenchido para a
companhia de luz no café da manhã porque estava ilegível. Por
essas e outras é que tinha ensinado Willing a escrever o alfabeto à
mão, uma vez que isso já não era ensinado nas escolas. A maioria
dos colegas dele não sabia o próprio nome à mão. Isso era
progresso? Era o tipo de preocupação antiquada que a garotada
considerava uma chatice.
Quando o envelope esvoaçou para dentro da bocarra azul,
Florence franziu o cenho. Se as “vulnerabilidades da internet”
tinham sido resolvidas, por que ainda era preciso pagar com cheque
as contas de energia elétrica?
A “aristocracia” que vinha invadindo o Brooklyn, chegando cada
vez mais para o leste, usava transporte particular. Como de praxe,
Florence era a única passageira branca no ônibus lotado, onde só
havia lugares de pé, e se esforçou para captar alguma referência ao
discurso de Alvarado. Os afrimericanos falavam seu próprio dialeto,
apenas parcialmente discernível para os branquelos, infiltrado por
retalhos de um espanhol descaracterizado. Entre os lats, o único
espanhol urbano rápido que ela sabia traduzir com confiança dizia
respeito à última febre do panorama musical, o RapFera, feito a
partir de cantos de pássaros, uivos de lobo, rugidos de leão,
ronronar de gato e latidos. (Essa não era a praia dela, mas, quando
mixadas com arte, algumas músicas eram instigantes.) Os guinchos
de uma gaivota, com a superposição de uma trilha rítmica de
bicadas, pareciam gerar mais empolgação no ônibus B41 do que a
invalidação maciça dos títulos do Tesouro americano. Porém,
quando a notícia alcançasse a rua, a nacionalização do ouro não
cairia bem com esse pessoal, pois muitos desses durões possuíam
voltas e mais voltas de reluzentes correntes douradas. Era difícil
imaginar aqueles bros e muchachos musculosos fazendo fila no
quarteirão, patrioticamente, para entregar seus adornos ao Tesouro.
Será que a polícia federal planejava derrubar esses caras grandões
das salas de musculação, como aquele enorme junto à porta, e
arrancar seus dentes de ouro com alicates?
Uma geração antes, aquele trecho da avenida Flatbush ao norte
do Prospect Park era um lixo: caquéticos e espalhafatosos
depósitos de tapetes, drogarias que vendiam produtos com
desconto, salões de beleza e confeitarias com rosquinhas
besuntadas de cobertura cor-de-rosa. Mas, depois que construíram
o estádio na base da ladeira, o bairro tinha se embonecado. As
moradias “de preço acessível”, prometidas pela construtora como
parte da negociação com o município para a construção do estádio,
revelaram-se quase tão caras quanto os apartamentos de luxo. O
jeito barulhento da Flatbush emudeceu em um silêncio sepulcral. Os
pedestres eram poucos. O bi-bi das vans particulares que antes
transportavam a classe trabalhadora, por um dólar, para cima e para
baixo pela ladeira, foi substituído pela correria suave dos táxis
elétricos. A avenida ficou, ah, muito civilizada e, ah, muito, muito
morta.
Florence se deleitava com a ideia de que a transformação
comercial da região, antes espalhafatosa e vibrante, devia ter
causado um número infindável de inconvenientes aos novos
moradores endinheirados. Ah, era possível fazer uma plástica facial
ali perto, pôr o cachorro na terapia, ou gastar quinhentos dólares no
Ottawa, em um jantar chiquérrimo de cozinha canadense (a elite da
cidade estava ficando sem novas etnias cuja comida pudesse ficar
na moda). Mas não se podia comprar uma chave de fenda, buscar
um galão de tinta, levar a roupa para uma lavagem a seco, pôr
novas borrachinhas nos saltos dos sapatos, fazer a cópia de uma
chave ou comprar uma fatia de pizza. Os moradores ricos podiam
ter bicicletas de cinco mil dólares, mas nem mesmo uma só loja em
quilômetros poderia consertar seus freios. Ora, o supermercado
mais próximo ficava a uma caminhada de quarenta e cinco minutos,
na Terceira Avenida. Os aluguéis altos tinham expulsado o próprio
setor de serviços cuja presença um dia ajudara a justificar a moradia
na zona urbana. Para todos os efeitos práticos, os nova-iorquinos
abastados residiam em uma versão apinhada e atravancada da
zona rural, onde era preciso dirigir oito quilômetros para comprar um
litro de leite.
Florence saltou na rua Fulton e seguiu na direção leste, fechando
bem o casaco. Até então, o outono fora clemente, e era o primeiro
dia da estação em que o vento tinha aquele toque cortante,
anunciando mais um inverno perverso em Nova York. Como a
corrente de jato parecia ter se deslocado em caráter permanente
para o sul, o anacronismo “aquecimento global” fora
conclusivamente descartado nos Estados Unidos. Florence virou à
esquerda na rua Adelphi, cujo trânsito ficara mais leve, agora que a
passagem subterrânea estava fechada, alguns quarteirões mais
acima; desde o pavoroso desabamento da via expressa Brooklyn-
Queens na avenida Hamilton, não muito longe da casa dos pais
dela, ninguém tinha permissão para se aproximar da passagem.
Florence fez uma avaliação pro forma da fila de admissão: cerca
de vinte famílias, com os ubíquos carrinhos de bebê abarrotados de
todas as sacolas que conseguiam carregar sem capotar. Diversos
adultos fumavam. Aqueles eram alguns dos remanescentes que
continuavam tirando baforadas de cigarros de verdade, embora
agora eles fossem muito mais caros do que os cigarros eletrônicos.
Era ridículo, já que ela mesma nunca fora viciada, mas o aroma
tóxico e marcante do tabaco a deixava nostálgica.
Em uma rua arborizada de Fort Greene, a Residência Familiar
Adelphi tinha sido um prédio particular, mas fora doado à cidade por
um proprietário sem filhos. O prédio era mais um entre uma torrente
de donativos vertidos aos cofres públicos, bem como em instituições
privadas de caridade: os benfeitores pertenciam quase sempre à
geração pós-guerra dos baby boomers, já que uma proporção
abundante deles se esquecera de se reproduzir e não restara
ninguém com quem ser gentil. O prédio alto de tijolos castanho-
claros, com detalhes de época, era um grande avanço em relação
ao abrigo Auburn, dos projetos habitacionais, muito desacreditado e
agora extinto, a alguns quarteirões de distância. Para acomodar
mais moradores, os apartamentos foram divididos em unidades
mais miseráveis, sem cozinha e com banheiros comunitários, mas
também havia uma lanchonete e uma sala de recreação (cujas
mesas de pingue-pongue estavam sempre sem bolas). Engraçado,
ela e Esteban nunca poderiam bancar um bairro chique como esse,
nem em um milhão de anos.
Florence acenou para Mateo e Rasta, os guardas da entrada,
jogou sua mochila na esteira de segurança do saguão e deu um
rodopio estiloso no raio X. (Os meros detectores de metal já não
resolviam. As réplicas de armas feitas de plástico em impressoras 3-
D domésticas haviam melhorado.) Era péssimo que os intricados
ladrilhos oitocentistas do saguão fossem obscurecidos por cartazes
— LAR É ONDE SE ACHA O CORAÇÃO!; SUCESSO É APENAS O FRACASSO QUE
—, mas as admoestações animadoras
SE ARRISCOU MAIS UMA VEZ!
ajudavam a compensar o aviso mais sombrio: A AGRESSÃO VERBAL OU
FÍSICA DOS FUNCIONÁRIOS NÃO SERÁ TOLERADA.
A Adelphi não era um buraco de fim de mundo infestado de
vermes e fervilhando de predadores sexuais, como sem dúvida
imaginavam os vizinhos compassivos de Florence, como Brendan, o
Vidente Financeiro. O que a deprimia em relação a seu emprego,
portanto, não era a imundície, ou mesmo a pobreza e o desespero
que levavam as pessoas para lá. Era a falta de propósito. A
atmosfera coletiva trazida por tanta gente reunida em um só lugar
que perdera qualquer senso objetivo de transitar do ponto A para o
ponto B — aquele ar carregado que perpassava a instituição,
próprio de quem anda a esmo esperando a morte. Aquilo a deixava
inquieta não pelo contraste com sua história pessoal de avanço
impetuoso, mas por refletir o que ela mesma também sentia boa
parte do tempo. Na Barnard, ela nunca se imaginaria limpando
vômito com as melhores alunas, a não ser, talvez, em uma função
beneficente, em alguma corajosa e breve fase experimental antes
de levar adiante a própria carreira. Entendia tão pouco como tinha
ido parar na Adelphi quanto os moradores da instituição. Também
sabia tão pouco quanto eles sobre o que poderia estar reservado
para ela depois daquele lugar. Embora a sobrevivência nua e crua
de um dia para outro pudesse ser o supremo objetivo animal de todo
ser humano, durante gerações a família Mandible conseguira
adornar esse projeto como algo consideravelmente mais elevado. A
maternidade podia ter dado a ela um senso de direção, e Willing
decerto dava cada vez mais sinais de ser brilhante — porém, quanto
mais inteligente ele parecia, mais Florence se sentia impotente para
agir da maneira correta quanto a seus talentos. Ao contrário de
Avery, ela não via problema em que as aulas de Willing fossem
ministradas em espanhol, desde que elas existissem. Mas todo
dado que ele oferecia, toda habilidade que exibia, ou ela os havia
ensinado, ou o filho tinha aprendido sozinho. A escola era uma
droga.
Com um segurança armado às suas costas, Florence assumiu a
escrivaninha do saguão e processou as chegadas matutinas. Como
sempre, um punhado de famílias imaginou que podia simplesmente
aparecer na porta e pegar uma cama. Ha! Ela as encaminhou para o
setor de admissão do Departamento de Serviços para os Sem-teto
no South Bronx, com um vale para o transporte na caminhonete
estacionada do lado de fora. Poucas retornariam. Qualificar-se como
sem-teto era uma arte, e ai de quem mencionasse um tio-avô com
um quarto sobrando no Arkansas, pois estaria no ônibus corujão
para Little Rock na mesma noite. Quanto aos outros, os que tinham
feito todos os esforços, chegando munidos de gordas pilhas de
documentos em pastas de plástico grudentas, a Adelphi mal tinha
unidades vagas suficientes, e as famílias maiores precisavam ficar
espremidas. O abrigo operava em sua capacidade máxima, porque
dois terços das unidades tinham leitos permanentemente ocupados.
Em tese, a acomodação em abrigos era temporária. Na prática, a
maioria dos residentes morava lá por anos.
Florence conduziu as novas famílias às suas acomodações, com
os responsáveis segurando panfletos sobre normas e privilégios. No
raro caso de a família ainda não ter morado em um abrigo, o
ambiente era um choque. Os quartos eram equipados com colchões
no chão e cômodas em que faltavam gavetas, com uma ou outra
cadeira de cozinha, mas raras vezes uma mesa para acompanhá-la.
Embora a Adelphi tivesse alguns fanáticos por arrumação, a maioria
das unidades ocupadas tinha pilhas de roupa por todo canto, altas
como as dos brechós de caridade, e triciclos de plástico, bicicletas
quebradas e caixotes de leite carregados de produtos eletrônicos
ultrapassados ficavam espalhados pelo chão.
Por isso, a turma admitida sempre reclamava: “Tá dizendo que
tem um banheiro pra todo mundo? Onde que Dajonda vai dormir?
Ela tá com dezesseis anos... não vai ter um quarto pra ela? Como
assim, a gente não pode ter micro-ondas? Esse lençol tá todo
manchado. A dona lá no saguão disse que não pega Netflix nessas
TVs! A minha Melita, aqui, é alérgica a trigo, então nem vem servir
aquele macarrão empapado. A vista não é grande coisa. No nosso
antigo quarto no Auburn dava para ver o Empire State!”
Florence sempre oscilava entre duas reações distintas a essa
choradeira inexorável: “Eu sei, eu mesma detestaria ter que dividir o
banheiro com estranhos. Ser sem-teto não quer dizer que a pessoa
não valorize a privacidade, e, se tivesse uma filha adolescente num
lugar destes, eu a manteria por perto. A norma referente aos micro-
ondas não tem propósito, já que aquecer uma lata de sopa está
longe de significar que o quarto vai ficar infestado de bichos. As
pessoas sem-teto têm toda razão de valorizar a roupa de cama
limpa, de ter a esperança de diversão de boa qualidade e de
esperar que cuidem das suas restrições alimentares. Eu mesma
detesto macarrão cozido demais. No geral, em termos psicológicos,
faz todo sentido que, havendo caído tanto, a pessoa queira
estabelecer com firmeza que ainda tem preferências e aversões,
que ainda tem seus padrões.”
Um milissegundo depois: “Vocês estão na cidade mais cara do
país, se não do mundo. Acabaram de receber um lugar para morar
de graça, três refeições grátis por dia, eletricidade grátis e até ÁGUA
grátis, enquanto pessoas como eu, trabalhando longas horas em
empregos de que nem sempre gostam, mal conseguem esticar a
grana para comprar um frango. Por razões que ultrapassam minha
compreensão, vocês têm sete filhos, que esperam ser sustentados
por outras pessoas, enquanto eu tenho um só, a quem dou roupa,
comida e abrigo. Vocês podem ter que dividir o banheiro, mas a
cachoeira do seu chuveiro antiquado dá de mil a zero no meu
‘passeio na neblina’, portanto, fechem a matraca.”
Oscilar de um posicionamento para outro, o dia inteiro, induzia
uma estroboscopia intelectual fatigante.
No almoço, Florence pegou um sanduíche na lanchonete e se
recolheu à sala dos funcionários, animada nesse dia. O recheio de
proteína de gafanhoto deveria ter gosto de atum. Não tinha.
— Fantástico — dizia Selma, com as pernas em cima de uma
mesa; as panturrilhas eram da circunferência dos potes de
maionese em embalagem industrial. — Maligno, como diria o meu
garoto. Adorei a foto desses ricaços tendo que cuspir aquelas pilhas
enormes de ouro. Se dependesse de mim, não iam receber
“compensação” nenhuma. Alguém tinha que nivelar o campo de
jogo. O que aconteceu com aquela ideia do “imposto da riqueza”, de
uns tempos atrás? Foi a plataforma da candidatura do Colbert.
Aquilo é que era do cacete. Isso é só o começo do que eu queria
que Alvarado virasse de pernas pro ar.
— Você nem votou nele! — objetou Florence, comendo seu
sanduíche. Os afrimericanos tinham sido, em sua grande maioria,
hostis à candidatura de Alvarado.
— Eu me abstive — retrucou Selma, com ar afetado. — Não quer
dizer que el presidente não possa ser útil.
— Impostos sobre grandes fortunas equivalem a uma taxação
dupla — resmungou Chris, contraído de nervosismo por ser o único
homem branco na sala; e um branco pálido e magricela, ainda por
cima.
— Relapso — disse Selma. — Se você tá cheio da grana, é
porque o imposto não funcionou da primeira vez.
— E a história da dívida? — interpôs Florence, em tom neutro.
Por razões que não tinha identificado com precisão, aquilo a
incomodava.
— Sacada de gênio — respondeu Mateo, o guatemalteco parrudo
que estava fazendo uma pausa em sua função de guardar o
saguão. — Declarei falência há seis anos. Registrei o carro no nome
da minha irmã, então consegui manter até isso. Agora, tenho
cartões de crédito saindo pelo ladrão. Tudo resolvido bien bonita.
Não vejo razão para o país não poder fazer o mesmo.
— Você empresta dinheiro para caras que não podem pagar,
quem faz papel de bobo é você, certo? — concordou Selma. —
Depois, não vejo por que o governo tem que pagar alguma coisa. É
só aprovar uma lei dizendo “a gente não tem que pagar”. Pronto.
Chega de empréstimo.
— Mas quase todas as pessoas que emprestaram dinheiro ao
governo federal — argumentou Chris, fixando os olhos no saquinho
de chá, que só mergulhava duas vezes na água; gostava do seu
Lipton fraco — foram outros americanos.
— Mierda — disse Mateo. — Ouvi dizer que era tudo dos chinas.
— É — concordou Selma. — E eles querem o dinheiro de volta?
Venham buscar.
— Sabe, as forças armadas americanas já não são como
antigamente — disse Florence, cautelosa.
— Conversa. — Mateo deu um soco no ar. — O poder é nosso! É
o maior exército do mundo, porra.
— Na verdade, os chineses têm o maior exército do mundo —
discordou Florence.
— Mas os chineses não vêm ao caso — disse Chris. — São
nossos conterrâneos americanos...
— Não tem essa de “conterrâneo” nada — objetou Selma. —
Porque você tá falando é dos americanos ricos. Com os in-ves-ti-
men-tos deles.
— Não é só isso. — Chris acrescentou uma quantidade repulsiva
de leite a seu chá. — Os nossos fundos de aposentadoria estão
aplicados em títulos do Tesouro. Sempre fazem parte de uma
carteira de in-ves-ti-men-tos equilibrada.
Selma o encarou, buscando sinais de zombaria.
— A cidade não paga nossa aposentadoria? — Ela deu um
sorriso meigo. — A gente queima tudo.
Chris retrucou em voz baixa:
— Então talvez você tenha que fazer isso.

***

— É verdade? — Florence pressionou Chris depois que os outros


dois voltaram ao trabalho. — É verdade que a maior parte da dívida
é conosco?
O conosco soou dissonante. Era sempre preciso citar quem era o
nós.
— Foi o que andei lendo — respondeu Chris, balançando os
dedos de lado, em um gesto rotineiro cujo sentido era “se você
acredita em alguma coisa que lê, agora que já não existem New
York Times nem Economist nem Financial Times nem Guardian nem
Los Angeles Times nem Washington Post”. — E o governo federal
não está só decretando o calote dos juros, mas também do
principal. Quando me formei na faculdade, meu pai me deu um título
do Tesouro de dez mil dólares. Desde ontem à noite? Esse dinheiro
evaporou. E a minha família não é rica. Isso vai ser... explosivo.
Esses caras não entendem.
— Eles entendem alguma coisa — disse Florence. — Tanto
Selma quanto Mateo são casados. Eu sei, em parte, porque eles
têm um jeito tradicional de mostrar isso. Mas hoje de manhã,
quando chegaram ao trabalho, você percebeu? Não estavam
usando aliança.
Na volta de ônibus para casa, contrariando a norma, Florence
pegou seu fleX; muitos daqueles passageiros só podiam bancar
smartphones, e a cintilação característica da tela metálica poderia
transformá-la em alvo. Mas foi impossível resistir a uma passada
rápida pelos sites de notícias. E não deu outra: todos estampavam a
indignação em manchetes gigantescas. Pelo consenso
internacional, agora os Estados Unidos eram uma “nação pária”. No
mundo inteiro havia tumultos em frente às embaixadas americanas,
muitas das quais tinham sido invadidas e saqueadas. O serviço
diplomático do país suspendera as operações até segunda ordem.
Embaixadores e funcionários dos Estados Unidos estavam deixando
seus postos sob a proteção de guardas armados.
Enquanto isso, dentro do ônibus, Florence percebeu muitas
piadas e cutucadas no ombro a respeito de brincos, piercings e
correntes, todos perceptivelmente mais escondidos. Entre a ralé, a
única parte do discurso de Alvarado que fora internalizada dizia
respeito ao ouro, uma forma de riqueza que todos entendiam. Mas
nem em espanhol nem em uma porção de dialetos de rua ela
identificou um só comentário sobre a “reinicialização”.
Pensando bem, durante a tarde, nos intervalos para o café, ou ao
formar duplas com colegas para fazer inspeções aleatórias nos
moradores, verificando a limpeza e o contrabando, as conversas
não perpassaram a Moratória da dívida pública. Os funcionários
subalternos da Adelphi recebiam salários baixos o bastante para
não pagar imposto de renda, e muitos estariam habilitados para o
crédito fiscal às famílias de trabalhadores, o que implicava receber o
que era perversamente chamado de “restituição” de impostos que
nunca tinham pago, para começo de conversa. Quando o indivíduo
não era responsável pelo pagamento dos juros de um empréstimo,
talvez também não se considerasse responsável pelo empréstimo
em si. Nem os passageiros ao lado de Florence nem seus colegas
da Adelphi sentiam-se implicados.
No panorama vigente, a própria Florence pagava um valor ínfimo
de imposto de renda, embora decerto não parecesse ínfimo,
somado à Previdência Social, ao Medicare e, ainda por cima, aos
impostos estaduais e municipais. Enquanto isso, os velhacos de
Wall Street entravam em conluio para não pagar praticamente nada.
Quanto a uma aposentadoria que poderia ou não ter sido reduzida
pelo discurso de Alvarado, seu estipêndio mensal estava em um
futuro distante o bastante para ser abstrato. Mesmo que a
Previdência Social não tornasse a falir, era inevitável que a idade
oficial da aposentadoria continuasse a avançar, para sessenta e
nove, setenta e dois, setenta e cinco anos, como uma cenoura
amarrada adiante do focinho de um burro. A única forma de
salvação que ela via com alguma esperança, na sua decrepitude,
eram os benefícios que podiam advir da fortuna do Grand Man —
algo sobre o qual ela se mantinha de bico calado na Adelphi. (Na
faculdade, ao adotar o sobrenome da mãe, Darkly, em uma iniciativa
fracassada de animar sua genitora mais frágil e tirá-la de uma
depressão crônica, seu único medo tinha sido que a rejeição do
“Mandible” viesse a afastar seu avô de um modo que talvez tivesse
repercussões negativas. Por sorte, o velho temível nunca parecera
tão mesquinho.) Afora isso, Florence pertencia a uma geração
amplamente traída, sem motivos para crer que o futuro podia
reservar outras coisas a não ser mais traição. Mesmo assim.
Alguma coisa. Alguma coisa a estava incomodando.
Ela não pensava com frequência sobre ser americana, embora
isso, por si só, talvez fosse tipicamente americano. Não considerava
que ser americana fosse algo formador do seu caráter, o que talvez
fosse, também, tipicamente americano. O feriado de quatro de julho
era um pretexto para um piquenique vespertino no Prospect Park, e
ela sentia alívio pelo fato de que, no ano seguinte, Willing teria idade
suficiente para não se decepcionar demais se eles não
percorressem todo o trajeto ao longo do East River, até as multidões
sufocantes, para assistir à queima de fogos. Já fazia anos que
deixara de ser controverso supor que a era do “Império Americano”
estava chegando ao fim, e Florence não achava inquietante a ideia
de que seu país muito provavelmente já tivera seu dia ao sol. Muitos
outros países haviam florescido e entrado em decadência, e eram
tidos como lugares aprazíveis para se viver. Ela não via por que ser
cidadã de uma nação em declínio devesse diminuir sua vida ou
fazê-la sentir-se pessoalmente desanimada. Condenava com
veemência várias manchas no jogo de cartas histórico dos Estados
Unidos — a matança dos índios, a escravização dos negros —, mas
não de um modo que a ferisse em um ponto nevrálgico. Ela não
massacrara nenhum índio nem açoitara africanos nas fazendas.
Isso era diferente.
Florence se sentia envergonhada.
• CAPÍTULO 5 •

OS INTELECTUALOIDES

— Eu disse para você que não queria fazer isso.


Avery olhou com apreensão para o marido, parado junto à
bancada da cozinha, servindo-se de uma taça preparatória de vinho,
um Viognier francês. Depois que ele fizera todo aquele rebuliço a
respeito do jantar, ela não sentia vontade de lhe informar quanto
havia custado aquela garrafa. O câmbio da moeda francesa, o
nouveau franc, devia ter sido um horror. Para despistar, ela enfiara o
recibo da loja de vinhos na lata de lixo do lado de fora.
— Faz dois meses que não recebemos ninguém — objetou ela
—, e o Natal está chegando.
— Você notou que não fomos convidados para sequer uma festa
de gala este fim de ano? Está subentendido: se você ergue uma
taça, vai tomar um porre sozinho, com a porta trancada.
— Mas você vive dizendo que isto é temporário.
— Acho, sim, que é temporário. Mas, por enquanto, estamos
cercados por gente que acha que está arruinada.
— De acordo com você, se todo mundo simplesmente parasse
com a piração e agisse com normalidade, a economia se ajeitaria
em dois tempos. Como eu nunca passo tanto tempo sem receber
convidados para jantar, é isso que estou fazendo. Estou “agindo
com normalidade”.
— Isso passa a mensagem errada — resmungou Lowell. — A
cidade está agitada com a suspeita de que algumas pessoas tiraram
seu dinheiro do país antes de tudo acontecer. Ou pior: fizeram
fortuna às custas de todas os outras. Não é uma boa hora para
vivermos notavelmente por cima da carne-seca.
— Ótimo, não comeremos carne-seca — respondeu Avery, em
tom brusco. — E o cardápio não tem nada de pretensioso.
Não era totalmente verdade. Avery tinha seus padrões. As
pessoas achavam que não dava mais para comprar atum-rabilho,
mas era possível, sim. Bastava pagar o preço. Depois de todo
aquele alvoroço por causa das abelhas e da polinização irregular na
Costa Oeste, misturar amêndoas sem casca na salada era como
salpicá-la com ouro em folha. Desde que a massa de ar polar da
corrente de jato que cobriu a América do Norte congelara as
plantações da Flórida de novo, os limões e os abacates vinham da
Espanha; o rapaz que os empilhava com ar reverente no corredor
de frutas e legumes disse que os carregamentos vindos da Europa
tinham preços tão extorsivos que talvez o Wholemart parasse de
estocar produtos cítricos de vez.
O pior de tudo era que, como a maioria dos cozinheiros da sua
geração, Avery listava as necessidades primárias da vida na
seguinte ordem: água potável, abrigo, roupa e azeite extra-virgem —
de preferência, prensado no Chipre; todas as marcas italianas eram
uma farsa. Mas, quando passou a garrafa pelo caixa, ela pensou
que tinha havido algum engano. Talvez cansado de ter o mesmo
diálogo múltiplas vezes ao dia, o funcionário carrancudo lhe
assegurou que o preço tinha sido corretamente escaneado e
perguntou se ela queria que o produto fosse devolvido à prateleira.
O constrangimento venceu e Avery balançou a cabeça, dizendo que
não, que ia levá-la. Esse recibo também tinha ido para a lata de lixo
do lado de fora.
— Não é só o risco da ostentação — continuou Lowell. — Não
estou com disposição. Hoje topei com um sujeito da administração,
e ele disse para nos prepararmos para uma grande queda nas
matrículas do próximo semestre. Os pais estão tirando os filhos da
faculdade. Não conseguem pagar, se é que algum dia conseguiram.
Minha sorte é ter a estabilidade. Encarei isso como um elogio.
Agora, é uma tábua de salvação.
— Terapeutas não têm estabilidade, receio — alertou-o Avery,
ralando o gengibre. — Hoje tive mais quatro cancelamentos. Talvez
esses pacientes nunca mais voltem.
— Vão voltar. — Ele alisou a bunda da mulher, envolta em um
pretinho justo para a noite. — Nem que seja para pedir orientação
sobre “Ah, por que é que fui vender minhas ações da GM, depois que
elas despencaram daquele jeito? Se eu tivesse só mantido a calma,
estaria belo e cheiroso!” Como a minha mulher — Lowell apertou a
bunda dela —, que só vive bela e cheirosa.
— Obrigada. Escute, quero ter meu esforço reconhecido: quando
você se mostrou tão desanimado sobre a noite de hoje...
— Desanimado, não. Violentamente contrário.
— Quando você foi tão “violentamente contrário” — corrigiu-se
Avery —, eu cortei a lista de convidados até o sabugo. Serão só
Ryan e Lin Yu, Tom e Belle.
— Nossa, dois desses quatro eu realmente consigo suportar.
Boas probabilidades, em se tratando de jantares.
— É do seu interesse ficar nas boas graças de Ryan. Mark
Vandermire é um palhaço que deu sorte e não vai durar.
Considerando as suas opiniões, vocês sempre se detestariam. Mas
Ryan é seu chefe.
— Ele só é chefe do departamento, num desafio ao meu tempo
de casa, porque ameaçou partir de mala e cuia para Princeton. Eles
nunca deviam ter caído nessa chantagem.
— É que Ryan Biersdorfer é um astro do rock. A economia não
tem muitas celebridades, então você tem que ser bonzinho.
— O seu marido não é um astro do rock? — Ele tentou dizer isso
com leveza, mas saiu com um tom de mágoa.
Avery passou os braços em volta do pescoço de Lowell e cruzou
os pulsos, impedindo que as mãos sujas de gengibre manchassem
o colarinho da camisa dele.
— Meu marido está mais para músico de jazz. Muito mais
relapso.

***

Lowell foi dar uma olhada nos filhos, no andar de cima. Esperava
que, com aquela brincadeira de tapinhas no bumbum e os
resmungos sobre a lista de convidados, tivesse conseguido uma
imitação razoável do marido ranzinza, mas afetuoso, em uma noite
de sábado comum em que não estava com disposição para receber
ninguém. Nos últimos tempos, tudo que dizia e fazia parecia falso —
como um disfarce ou uma distração. No entanto, ele tinha mesmo
uma convicção feroz: isso também vai passar, e mais depressa do
que qualquer um esperava. Era só ver a Idapedra: o país tinha se
recuperado de repente. O PIB levara uma porrada em 2024, mas o
mercado se recuperara a mil por hora. Logo, todo esse arrancar de
cabelos era basicamente por nada. Mesmo ciclo, tudo de novo.
Deu uma batida leve na porta de Savannah, depois abriu um
pouco e enfiou a cabeça.
— Você pretende se juntar aos adultos, logo mais?
— Nhã... — A filha de dezessete anos estava esparramada na
cama, catando milho no fleX. Savannah era uma dessas garotas
que conseguiam fazer o cabelo castanho parecer exótico. Lowell
desviou o olhar para longe das pernas longas e à mostra; ela era um
arraso, poderosa, mas ele era pai dela. O que o tornava um cara de
sorte. Detestaria ser um dos adolescentes que ela transformava em
gelatina. — Quero terminar este formulário de admissão. Posso
pedir um omelete à Feiticeira.
— É melhor você mesma fazer. A mamãe desligou a Feiticeira
por hoje. Não queria que ela enterrasse os convidados no quintal,
ou algo assim.
— Tem um seriado novo na Netflix sobre isso, sabia? Sobre uma
Feiticeira assassina que fica pirada.
— É a trama de ficção científica mais antiga que existe. Bebe na
fonte de 2001: Uma odisseia no espaço.
Savannah franziu o cenho.
— Por que alguém faria um filme de ficção científica que se
passa no passado?
— É que quando o romance foi escrito, 2001 estava no futuro. Do
mesmo jeito que 1984. Quando Orwell escreveu o livro, o ano
parecia muito distante, mas aí, o 1984 real veio e passou, e não foi
nem de longe tão terrível, estranho ou triste quanto ele previra. As
tramas que se passam no futuro são sobre os medos das pessoas
no presente. Não são sobre o futuro, de jeito nenhum. O futuro é só
o maior monstro no armário, o grande desconhecido. A verdade é
que, ao longo da história, as coisas estão sempre melhorando. Em
média, a população mundial tem um padrão de vida cada vez mais
alto. Nossa espécie vai se tornando sistematicamente menos
violenta. Mas os escritores e os cineastas continuam a prever que
tudo vai desmoronar. Chega a ser quase engraçado. Então não se
preocupe. O seu futuro vai ser ensolarado, e só vai melhorar.
Savannah o fitou com curiosidade.
— Eu não estava preocupada.
Bem, isso faz de você uma idiota colossal: foi a frase que lhe veio
à cabeça, antes que ele conseguisse barrar o pensamento.
— O formulário é para qual faculdade? — perguntou ele.
— Risdee. Eu sei desenhar. Mas o que eles querem, acima de
qualquer outra coisa, é que a pessoa seja capaz de falar sobre
desenhar. Não sei se sou muito boa nisso.
— Já faz algum tempo que as artes visuais deixaram de ter a ver
com a criação de alguma coisa. Agora é tudo uma questão de falar.
O discurso é o que você cria.
— Arte “visual” não tem que ser alguma coisa que a gente veja?
— Acho que o texto é uma coisa que se vê.
— Não é mais. Na minha escola, ninguém lê nada. Eles colocam
os fones e os outros leem para eles.
— Parece maçante — disse Lowell, com desânimo.
— É fácil. É relaxante.
— Mas eles sabem ler.
Savannah deu de ombros, com um sorriso.
— Nem todos.
— Você precisa saber ler até para trabalhar numa agência do
correio.
— Na verdade, não precisa — retrucou ela, com ar sonhador e
matreiro. — Os escâneres manuais também sabem ler endereços
em voz alta. Relapso, não é?
Lowell revirou os olhos.
— Boa sorte com o pedido de admissão.
Fechou a porta. Não fazia muito tempo, ele ficara satisfeito por
Savannah ter fomentado a ambição marginalmente prática de ser
designer de estampas, e, é claro, ela era bonita o bastante —
embora se esperasse que nenhum pai continuasse tendo esse tipo
de pensamento — para que algum cara fatalmente a arrebatasse e
cuidasse dela, houvesse o que houvesse. Contudo, neste exato
momento, Lowell desconfiava de uma profissão tão desprovida de
senso prático quanto a de desenhar novas estampas — o mundo já
estava abarrotado de tecidos estilo caxemira. E, o que era ainda
mais premente, da última vez que ele verificara, um diploma de
lugares como a Faculdade de Desenho de Rhode Island custava
cerca de quatrocentos mil dólares — sem contar moradia e
alimentação. O Plano 529 que o avô de Avery criara quando
Savannah nasceu, destinado a cobrir também os estudos
universitários de Goog e Bing, valia agora uns dez centavos.
Quando Lowell parou no quarto de Goog, Bing também estava na
cama. Pálido e adepto de ambientes fechados, Goog conseguia
estufar o peito quando se sentava na cama apoiado na cabeceira
com um travesseiro. Os garotos normais de quinze anos não tinham
a postura péssima? Como sempre, seu cabelo castanho estava
penteado, e a roupa, bem-arrumada. O garoto parecia viver se
oferecendo para uma inspeção, e Lowell temia que ele pensasse
que era melhor que os adultos.
Os dois se calaram quando o pai apareceu. Mas, se estivessem
armando alguma coisa, Lowell ficaria sabendo. Goog ainda tinha o
mesmo jeito tagarela, ansioso por agradar e aflito para causar boa
impressão que Lowell identificara desde o momento em que o filho
aprendera a falar. Ele não era capaz de guardar um segredo nem
por cinco minutos. Bing conseguia fazer isso — mas por todas as
razões erradas. Flácido e um pouco acima do peso, o garoto de dez
anos vivia cronicamente amedrontado. Seria uma presa ideal para
pedófilos: caso lhe dissessem que se meteria em uma enrascada
terrível se desse com a língua nos dentes, Bing não contaria nada a
ninguém, nunca.
— Vocês estão planejando ficar aqui em cima hoje? Podem
descer e jantar conosco, se quiserem. Se bem que eu não sei se a
mamãe comprou peixe suficiente.
— Eca! — exclamaram os dois, em uníssono. Eles não
percebiam, mas, devido aos preços estratosféricos e à baixa
disponibilidade de qualquer coisa que não fosse proveniente de
criadouros, que tinham gosto de algas de reservatório, os meninos
tinham sido treinados para detestar peixe.
— A mamãe falou que a gente podia comer queijo grelhado —
disse Bing.
— Quem vem jantar? — perguntou Goog.
— A amiga da mamãe, Belle Duval... vocês se lembram, a
médica de câncer...
— Oncologista — corrigiu Goog, com ar de desdém.
— A oncologista. — Deus nos livre de insultar o vocabulário de
Goog. — O marido dela, Tom Fortnum, é advogado do Ministério da
Justiça. Também chamamos o meu colega Ryan Biersdorfer e a
mulher com quem ele vive, Lin Yu.
Goog estreitou os olhos.
— O cara que fez aquele documentário em dez capítulos sobre a
desigualdade.
O filho do meio de Lowell estava sempre alerta à proximidade da
fama e da influência. Era preciso ter uma maturidade extraterrena
para não ficar irritado com o fato de que o radar de fama do garoto
não registrava a presença do próprio pai. O papai também não
aparecera na televisão?
— O que fez o nome de Ryan foi um livro, acredite ou não. Um
dos últimos grandes best-sellers. Ele previu que os salários da mão
de obra americana não qualificada logo se tornariam tão
insignificantes que os chineses terceirizariam seus empregos para
nossos trabalhadores. — Com disciplina, Lowell tentou retirar o
escárnio da voz. — Uma das coisas que tornam um economista
popular em gente comum é a tendência para a hipérbole. O que
significa...?
— Tendência a exagerar — respondeu Goog, de pronto. — Mas
como uma coisa poderia ser mais hiperbólica do que o que de fato
aconteceu? A Olivia Andrews não está indo na escola porque o pai
dela se matou na cozinha de casa. Acho que vocês não exageraram
o bastante.
— Nesse caso, acho que vocês dois deviam descer. Participar da
conversa.
— Não quero escutar um monte de troços de economia — disse
Bing.
— Então, talvez você tenha nascido na família errada.
— É. Deve ser.
— Sabe de uma coisa, Bing? Hoje eu estou com você —
comentou Lowell. — Fiquem aqui em cima, e talvez eu dê uma
fugida para ficar com vocês. Ryan é um falastrão exibido. Aposto
que vocês conhecem esse tipo na escola. Quando crescerem, não
vai mudar nada.
Lowell se virou para a porta, mas Goog falou:
— Pai, posso fazer uma pergunta?
A atenção nunca era suficiente para esse garoto. Infelizmente,
falastrão exibido era um rótulo que poderia ser aplicado a seu filho
mais velho, pensou Lowell.
— É claro — respondeu ele com frieza.
— Um amigo meu da escola. Ele disse que a mãe tinha uma
barra de ouro que comprou há algum tempo em Dubai. Acho que lá
isso pode ser comprado, sei lá, como xampu, sem deixar nenhum
rastro. A mãe teve que explicar essas coisas, porque ele saiu para o
quintal bem quando ela estava cavando um buraco para esconder a
barra. Isso não é contra a lei?
— Neste momento, sim. Mas o seu amigo é burro, não devia ter
contado isso para você. Ele precisa fechar a matraca.
— Bem, ele me fez jurar que não contaria a ninguém.
— Então, por que está me contando?
Goog fez um ar sentido. Devia ser o único adolescente em
Washington que levava bronca por compartilhar segredos com um
dos pais.
— Porque fico sem saber o que fazer. Sem saber se devo
denunciar isso a alguém.
— Tipo a polícia?
— É, foi o que nos disseram para fazer na reunião.
— Isso é sinistro — disse Lowell. — E a resposta é não, você não
deve denunciar esse ouro à polícia, nem mesmo a um professor.
Fique de bico calado. A mãe do seu amigo poderia ser multada e
até jogada na cadeia.
— Mas e a lei?
— Não me interessa. Já houve lugares e épocas em que todo
mundo delatava todo mundo e ninguém confiava em ninguém.
Foram lugares e épocas ruins. Isto aqui são os Estados Unidos, e
não é assim que nós funcionamos, entendeu? Se eu tivesse algum
ouro que não estivesse entregando às autoridades federais, você
me denunciaria?
— Você está escondendo alguma coisa?
— Considerando esta discussão, eu não contaria a você, se
estivesse. — A frivolidade disso foi um baque.
— Mas, se as pessoas que entregam seu ouro recebem do
Tesouro um valor que é uma barra de barata, como você disse... E
se aí, os recalcitrantes — Goog fez um floreio enfático ao pronunciar
o recente acréscimo ao seu vocabulário — não apenas se safam,
escondendo seu ouro, como conseguem um preço melhor por ele
no mercado ilegal, ou no exterior... — Lowell estava inchado de
orgulho por seu filho ter dominado os pontos fundamentais sem
nenhuma ajuda —, isso não significa que as pessoas que obedecem
às regras são castigadas?
— Como seu pai, eu não deveria contar esta realidade bem feia
da vida para você, mas as pessoas que obedecem às regras quase
sempre são castigadas.
Com essa observação pesarosa, Lowell desceu para o térreo. Os
convidados tinham chegado.

***

— Fica o alerta — avisou Ryan. — Isso causa um atraso fantástico


na segurança.
Avery estava um pouco exasperada pelo fato de os convidados
não terem se refestelado na plenitude de assentos da amena sala
chocolate. Todos permaneciam de pé com suas taças de vinho,
cercando instintivamente o homem moreno e atraente, com sua
gravata chiquérrima estampada com formas de bronze trançado. Ele
empregava o gestual extravagante de uma pessoa influente
acostumada a receber atenção de admiradores. O cabelo começava
a exibir entradas, é verdade, mas Ryan Biersdorfer era o exemplo
de que beleza era metade convicção. Também não era tão
inteligente nem interessante quanto se imaginava, mas, como ele
achava que era, os outros também achavam.
— Na semana passada, pegamos um voo no Reagan porque eu
tinha que dar uma palestra em Zurique — prosseguiu ele. — As filas
eram de estarrecer. Eu diria para vocês que foi um acréscimo de
duas horas. Mesmo na Fila “Expressa”.
— Claro — disse Lin Yu. — Os que viajam a trabalho são os
piores infratores.
Metade chinesa, Lin Yu Houseman colhera o melhor de dois
mundos: os traços lisos e puros de um clássico rosto asiático, mas o
nariz afilado e os olhos grandes dos ocidentais, que as mulheres
chinesas, tempos atrás, tinham recorrido a cirurgias plásticas para
espelhar. (Avery tinha lido que agora os círculos mais jovens da
China continental consideravam o aumento das pálpebras
complacente e indigno.) Com trinta anos recentemente
completados, Lin Yu combinava aquele toque de Oriente que
cinquentões como Ryan achavam sensual com um tranquilizador
sotaque americano perfeito. Também em termos intelectuais,
mesclava a diligência da criação asiática — fora uma das melhores
alunas de pós-graduação de Ryan — com a compenetrada paixão
política dos liberais da Costa Leste. Avery teria admirado mais
aquela jovem se ela se separasse ideologicamente, nem que fosse
só de vez em quando, da pessoa que era sua combinação de
parceiro e mentor.
— Mas vocês deviam ter visto a cena — prosseguiu Ryan. — A
chateação quase vale a pena, em nome do teatro. Eles estão
revistando todas as bolsas, não só os pertences de alguns
azarados.
— Graças a Deus que, desde o Homem-Bomba do Creme de
Barbear, não se pode mais despachar a bagagem — comentou
Avery. — Caso contrário, o controle de segurança levaria uma
semana.
— Agora, eles não estão nem aí para bombas! — declarou Ryan.
— Mas estão examinando as divisões internas das maletas, e às
vezes até rasgando e arrancando o forro. Espiando as dobras de
todas as carteiras. Também estão autorizados a fazer revistas
manuais; deslizam a palma da mão por dentro dos bolsos, bem
junto da virilha, o que é execrável, para dizer o mínimo. Você tem
que tirar não só os sapatos, mas as meias também. Eles examinam
os saltos, procurando sinais de adulteração, e retiram as palmilhas.
Você poderia arrastar um lança-foguetes pelo Reagan sem que
ninguém pestanejasse. Mas não tente escapulir com dez dólares
extras!
— É incrível o número de trapaceiros que eles estão pegando —
disse Lin Yu, em tom alegre. — Nem dá para acreditar no
descaramento com que esses executivos ricaços tentam entrar nos
aviões com maletas cheias de dinheiro. Foi um nojo. Pilhas de notas
de mil dólares por toda parte. Todos aqueles cidadãos
supostamente honrados, e a impressão era de uma batida policial
em busca de drogas.
— A diferença é que as notas espalhadas em volta da máquina
de raio X não foram necessariamente obtidas de forma ilegal —
disse Tom. — Quer dizer, podemos ao menos supor que se trata do
dinheiro deles.
— Não podemos supor nada disso — objetou Lin Yu. — Aquilo é
riqueza que este país inteiro ajudou a criar.
Tom deu um suspiro ao estilo vai-ser-uma-noite-cansativa.
— Por esse raciocínio, ninguém é dono do seu próprio dinheiro.
O saldo da sua conta bancária, na verdade, pertence a todo mundo.
O tom de cortesia usado por Tom soou forçado. Com seu paletó
de gola fora de moda, ele era um homem amarrotado, descontraído
e bem-humorado, mais propenso a desfazer a tensão com uma
piada do que a aumentá-la, levando as coisas para o lado pessoal.
Normalmente, seu sotaque suave de Maryland burilava ainda mais o
tato com que emitia suas opiniões, mas os acontecimentos desse
outono haviam deixado tensos até os despreocupados.
— Moralmente, o seu dinheiro pertence, sim, a todo mundo —
afirmou Ryan. — A criação de capital requer que todo o aparato do
Estado proteja os direitos de propriedade, inclusive de propriedade
intelectual. A iniciativa privada depende da nação como um todo
para ter uma força de trabalho inteligente, redes de transporte e
ordem social. Sem país, não há fortuna.
— Blá-blá-blá — disse Lowell. — Todo mundo aqui leu Jogo
limpo. (Mentira. Em seu ressentimento com o estardalhaço feito em
torno do livro, o marido de Avery nunca conseguira ler mais do que
algumas páginas da introdução.)
— Eu admito isso. — Tom estava fazendo um esforço
extraordinário para se manter afável, e Avery sentiu-se grata. —
Certo, nos últimos anos, a inflação oscilou entre três e 4%.
Reconheço que, para especialistas como vocês, vou parecer burro
feito uma porta. Mas o número em que tropecei, um dia desses, foi
um choque para mim: com 3% de inflação, o dólar se reduz à
metade do valor a cada 23 anos. Isso vem da cunhagem federal da
moeda. Então, quando não controlo o valor do “meu” dinheiro, talvez
ele não seja mesmo meu, para começar. É um empréstimo, se
tanto. Que o Krugman pode transformar em cinzas enquanto ainda
está no meu bolso, como um super-herói.
— Receio que essa seja uma interpretação leiga, Tom. — Lowell
quase nunca dava ouvidos às reclamações de Avery quando
amadores entravam em sua seara. Ele não queria seduzir seus
companheiros sendo humilde e receptivo, em vez de altivamente
abalizado. — É simplista demais. A inflação tem que se manter
positiva para impedir a deflação, que é o verdadeiro bicho-papão. A
maior parte desses três a 4% vem do aumento dos preços dos
produtos, não de uma política monetária frouxa. Na verdade,
aumentar a base monetária trouxe todo tipo de benefícios para
nossa economia. Ficaram muito agitados com a flexibilização
quantitativa na década de 2010. O que aconteceu? Nada. A maior
parte do dinheiro escoou para os mercados emergentes, com lucro
para todo mundo.
— Olhe, não vou discutir a oferta monetária, que está fora da
minha alçada. — Agora Tom já soava irritado. — Eu estava tentando
dar uma opinião sobre essas revistas nos aeroportos. Porque,
antigamente, o que significa dois meses atrás, o sujeito podia tirar
do país ou trazer de volta o que era, na concepção popular, delirante
ou não, o dinheiro dele, na quantidade e com a frequência que
quisesse. Por isso, não vejo por que vocês estão ficando
aborrecidos com esses executivos terríveis, criminosos — Tom
carregou na pronúncia à la Maryland —, que têm a desfaçatez de
tentar transportar seu próprio dinheiro para o exterior, quando, em
outubro, esse mesmo comportamento era perfeitamente legal.
— Eu achava que havia um limite — disse Avery. — Como
naqueles formulários da Alfândega...
— Uma porção de gente se engana quanto a isso, meu bem —
respondeu Tom. — Antes do Discurso da Moratória de Alvarado, só
era preciso declarar quando se saía com mais de dez mil dólares,
num formulário FinCEN 105. Desde que fosse feita a declaração,
cruzar a fronteira com mais de dez mil não era ilegal, e com certeza
eles também não tiravam o dinheiro da gente.
— Espere aí: estão confiscando o dinheiro no aeroporto? —
perguntou sua mulher, Belle, horrorizada. Um horror muito contido,
diga-se de passagem, já que Belle Duval se manteria discreta e
comedida em meio a uma colisão de asteroides. Sua roupa era
tipicamente sutil: blusa de um rosa pálido cremoso e saia reta bege,
com uma echarpe branca fininha para acrescentar um toque de
animação. A voz era baixa; a maquiagem, suave; o cabelo, não
muito louro, talvez tivesse recebido uns retoques de luzes, mas o
penteado em si, leve e bem-arrumado, não poderia ser mais tímido.
Mas o comedimento de Belle era inteligente, sua reserva, uma
tentativa de suspender o julgamento.
— É, todo produto contrabandeado é apreendido — confirmou
Lowell. — Ouvi dizer que esses confiscos estão gerando comoção.
Desmaios. Brigalhadas aos gritos.
— Pior — continuou Ryan. — Um sujeito se deitou no chão e
chorou de soluçar. Tiveram de carregá-lo. Uma mulher na nossa
frente, tão grande que ninguém iria querer aborrecer, partiu para
uma troca de socos com um dos agentes. Outro sujeito, antes que
tirassem seu maço de notas, tentou pôr fogo no dinheiro. Enquanto
isso, alguém na máquina ao lado estava rasgando notas de mil
dólares, o que também é um crime federal e só fez agravar as
acusações.
— Tudo, menos deixar outra pessoa ficar com o dinheiro — disse
Lin Yu. — Nossa, faz a gente pensar que a riqueza não é capaz de
melhorar as pessoas.
— Os federais estão fazendo fortuna com o confisco — observou
Tom. — É praticamente um “imposto de partida nos aeroportos”, só
que eles cobram o que quer que o passageiro esteja levando.
Menos os cem dólares permitidos, é claro. É muita gentileza eles
deixarem o sujeito ficar com um trocadinho para o café.
Avery se deliciava com o sotaque provinciano de Tom. Tantos
“warshingtonianos”, como ele diria, apareciam de repente, vindos de
outros lugares, que os amigos nascidos na região eram uma âncora
abençoada. Tom dava a Avery a sensação de que ela morava em
um lugar definido.
— Pois então chame de imposto — afirmou Lin Yu. — Devem ser
os primeiros impostos que esses canalhas já pagaram.
— Você tem doutorado em economia — disse Belle a Lin Yu, em
tom educado, mas firme. — Deve saber que isso não é provável. As
pessoas ricas pagam uma vasta proporção dos impostos federais
sobre a renda...
— Sempre admirei essa jogada da “partida do aeroporto” —
interpôs Lowell, mantendo a leveza da conversa, enquanto servia
outra rodada de vinho. — Isso é comum na África. O sujeito tem que
pagar para ser autorizado a sair. Como se fosse mantido refém. Isso
mostra uma humildade saudável em relação à situação do país:
“Sabemos que você paga quase qualquer coisa para cair fora
daqui.”
— Logo, logo — disse Tom, baixinho —, talvez nos disponhamos
a pagar quase qualquer coisa para sair dos Estados Unidos.
Compartilhando o desejo do marido de que, ainda tão no
comecinho da noite, a reunião não se tornasse sombria demais,
Avery interveio:
— Pensem só: duvido que aqueles funcionários do aeroporto
fiquem perto de tanto dinheiro em espécie sem pegar, de vez em
quando, uma nota de vinte dólares.
Lowell deu uma risadinha.
— Mais que de vinte. Eu soube que os aeroportos de Nova York
estão numa competição desenfreada. Mas o que me aflige é esse
limite de cem dólares. Não se pode pegar um táxi do aeroporto para
casa com cem dólares.
— Mas por que tem tanta gente tentando tirar o dinheiro do país
— perguntou Belle —, correndo o risco de ter que abrir mão de
tudo?
— As moedas estrangeiras estão indefinidamente suspensas nos
Estados Unidos — explicou Ryan. — Desde a quebra inicial, o dólar
vem caindo, digamos, uns 0,2% todos os dias. Os ultrarricos estão
desesperados para correr com sua grana para Londres ou Hong
Kong, qualquer lugar em que possam transformar tudo em outra
moeda que conserve valor. Em geral, em bancores, já que seu valor
tem subido um pouco, para tristeza de Alvarado.
— Mas, se o valor do dólar fora do país está tão baixo —
ponderou Belle —, para que consolidar o prejuízo?
— Essas pessoas são gananciosas — disse Ryan —, para quem
alguma coisa é melhor do que nada.
— O que há de tão “ganancioso” — questionou Tom — em querer
resguardar uma fração mínima do valor do dinheiro que você
batalhou tanto para ganhar?
— Ah, por favor! — disse Lin Yu. — Você sabe alguma coisa das
pessoas de quem estamos falando? A única “batalha” deles no
trabalho é manusear um fleX para verificar seus hedge funds, ou, o
que é ainda pior, para transferir os proventos depois que um parente
arquimilionário morre. Eles não estão cavando trincheiras.
— Talvez seja um erro — argumentou Belle, com cuidado —
juntar no mesmo barco a classe média alta e os “ultrarricos”. Os
moderadamente ricos podem não cavar trincheiras, como você diz,
mas é comum trabalharem por longas horas e ainda lutarem para
pagar hipotecas e faculdades...
— Ah, não me venha com a história de coitadinhos dos ricos! —
exclamou Lin Yu. — Já ouvi as histórias lacrimosas sobre como os
ricos, em todo o distrito de Washington, não podem mais bancar o
custo dos cuidados com os filhos. Bem, as babás estão ficando
desempregadas. Sei com quem fica a minha solidariedade.
— Já reparou como, para essa turma — murmurou Tom no
ouvido de Avery —, injustiça só se aplica aos pobres? É impossível
que alguma coisa injusta aconteça com você se tiver mais de um
par de sapatos.
Recém-diplomada com o grau de doutora, Lin Yu trabalhava em
uma organização sem fins lucrativos, a Real American Way (tanto
na esquerda quanto na direita, todas as instituições que tentavam
cooptar o patriotismo pareciam iguais). Infelizmente, as medidas
redistributivas promovidas pela RAW — impostos muito altos sobre a
propriedade, a herança e as faixas mais ricas do imposto de renda,
além de um imposto geral de 2% sobre a riqueza, a incidir sobre
todos os valores em dinheiro, investimentos e ativos tangíveis —
eram o tipo de política que fazia qualquer pessoa em condições de
doar dinheiro fugir, de modo que a organização vivia sempre sem
verbas. Por isso, com seu salário de boazinha bem-intencionada,
era pouco provável que Lin Yu houvesse enfrentado uma queda
vertiginosa dos seus recursos líquidos nos dois meses anteriores.
Como Tom, Avery ficava incomodada com essas opiniões
descuidadas, que se aplicavam só aos outros e não custavam nada
a quem as defendia. A despeito das novas doses servidas de
Viognier importado, a história dos anfitriões de Lin Yu era bastante
diferente. Claro que Avery não fazia ideia da gravidade com que a
situação de sua família fora prejudicada; óbvio que, com sua
competência, Lowell cuidava desse lado das coisas, e ela andava
assustada demais para pedir informações específicas. Mesmo
assim, sentia o vento nas orelhas, como se estivesse em um
elevador em queda livre. Provavelmente convidar Ryan e Lin Yu
tinha sido um erro, anotou ela mentalmente. Depois escapou para
gratinar o peixe.

***

— Ainda hoje mais cedo, eu estava dizendo a Avery como fico


desolado ao ver todos esses cretinos em pânico, saindo em
desatino do mercado no ponto mais baixo — disse Lowell, à
cabeceira da mesa.
— Se for o ponto mais baixo — contrapôs Ryan, do outro extremo
da mesa.
— Toda essa ansiedade é uma armadilha — respondeu Lowell.
— Os otários entram quando o mercado está numa bolha
especulativa e ficam desnorteados quando ele despenca. O segredo
é manter a calma. Vou querer ser reconhecido por isto depois,
Biersdorfer: o dólar vai se recuperar com sobra. E o Dow Jones
também.
— Há um século — disse Ryan —, o Dow Jones só voltou ao
bom ritmo pré-1929 depois de vinte e seis anos. Se demorar assim,
você terá setenta e tantos anos.
— Estou até aqui dessa superstição de que a história se repete a
intervalos certinhos de base dez — retrucou Lowell. — Há setores
inteiros da economia que estão em ótima forma e, com o dólar tão
desvalorizado, nossas exportações vão ficar mais baratas que as do
Vietnã.
Avery gostaria que o marido não esfaqueasse tão distraidamente
o seu atum; aquele molho de gengibre estava maravilhoso. E ela se
sentia sedenta por uma mudança de assunto. Era só isto que seus
pacientes queriam discutir; os poucos que ainda apareciam: o que
tinha acontecido com seus investimentos. Uma tristeza.
Ryan balançou a cabeça com ar paternal.
— Você está se iludindo, Stackhouse. As ações vão continuar a
cair. Foram necessários três anos inteiros de declínio contínuo para
o Dow Jones despencar para o seu nadir, no final de 1932. De 381
para 41, está lembrado? Você deveria sair enquanto ainda pode
resgatar uns trocados.
— Obrigado por espalhar o desânimo, Biersdorfer. Ele joga os
preços lá embaixo, o que faz com que esta seja a hora de comprar
— insistiu Lowell. — Estou catando tudo quanto é ação rebaixada
que consigo de empresas de grande capitalização.
Avery ficou de orelha em pé.
— Você está o quê?
— Colhendo pechinchas. Nada que você não faça na Macy’s,
meu bem. — Macy’s saiu com um ceceio incipiente. Ele já havia
tomado uma boa quantidade de vinho. Todos tinham tomado. A
noite inteira fora entremeada pela histeria de Fim dos Tempos que
havia impelido o irmão caçula de Avery para uma campina
lamacenta em Gloversville, mas que levava as pessoas normais a
beber.
— Posso não conhecer os detalhes da nossa situação —
comentou Avery, mal saboreando seu atum —, mas apostar a
ninharia que resta em mais ações cujo valor está despencando é
loucura.
Da cadeira oposta, Belle procurou atrair a atenção de Avery.
Eram tempos difíceis, talvez, mas não ficava bem conduzir
briguinhas conjugais sobre dinheiro à mesa.
Avery retribuiu fuzilando a amiga com os olhos. O decoro que se
danasse. Ela e Lowell tinham três filhos em escolas particulares,
eles todos esperariam, e tinham o direito de esperar, uma educação
em universidades da Ivy League. A hipoteca da casa era enorme.
Com tudo aquilo em jogo, o que o marido dela fazia? Bancava o
otimista para se sentir otimista, como se, brincando de Flautista de
Hamelin ou de Poliana, pudesse conduzir todas as outras pessoas e
a própria história para a terra do faz de conta. Em geral, ele se
mostrava decidido a ter razão por causa do seu orgulho. Agora,
estava desesperado para ter razão pela sobrevivência deles. Mas
precisar, precisar muito estar certo, em vez de só querer ter razão,
não afetava em nada o estar certo, em contraste com estar redonda
e fatalmente errado.
— A queda já diminuiu — disse Lowell à sua mulher.
— Se você tem tanta certeza de que tudo vai ficar bem, por que
me mandou ao Chase, em novembro, para limpar as nossas
contas? Lembra disso? No dia que finalmente os bancos reabriram?
Lowell enrubesceu. Ela estava envergonhando o marido em
público, de propósito.
— O que eu lembro é que você não fez isso.
— Eu não ia passar o dia inteiro na chuva, numa fila que dava a
volta no quarteirão, para eles já estarem sem dinheiro, de qualquer
modo, quando eu chegasse no caixa. Mas foi você quem zombou de
todo mundo depois. Dos que ficaram do lado de fora dos bancos, na
chuva.
— Só zombei das pessoas que fizeram fila para sacar dinheiro
depois que a Reserva prometeu garantir a liquidez — explicou
Lowell, com frieza. — E depois que Alvarado esclareceu que os
títulos podiam ter sido cancelados, mas que o Seguro Federal sobre
Depósitos continuava em vigor. Antes dessa garantia, era racional
ter medo de que alguns bancos quebrassem.
— Eles “garantiram a liquidez” imprimindo dinheiro — comentou
Tom em voz baixa, sem se dirigir a ninguém em particular. — E vão
cobrir as queixas apresentadas ao Seguro Federal sobre Depósitos
imprimindo mais dinheiro.
— O que eu achei fascinante — disse Belle, orientando com
diplomacia a conversa para outro assunto — foi a diferença entre a
forma como o público se uniu em torno de Roosevelt e a maneira
como a população reagiu à ordem de entrega do ouro decretada por
Alvarado. As pessoas simplesmente estão se recusando a entregá-
lo.
— Uma paciente minha ficou tão indignada — contou Avery —
que queria sair para comprar ouro, por baixo do pano, só para poder
se recusar a entregá-lo.
— Por sorte, seguir essa ordem não depende da honradez nem
do patriotismo — disse Ryan. — Os fundos de índice, as ações de
mineradoras, os metais preciosos depositados, o Tesouro confiscou
direitinho tudo o que estava registrado, de um golpe só. — Ele
sorriu. — A indenização foi deliciosamente risível. Uma devastação
assombrosa do que os sobrevivencialistas econômicos imaginavam
ser o suprassumo da aposta segura.
— É, foi como os Prêmios Darwin — concordou Lowell. —
“Espécie elimina panacas agarrados a meio esotérico de troca como
se fossem ursinhos de pelúcia.” Rapaz, aquele pobre idiota do Mark
Vandermire deve estar falido.
— Cá entre nós — disse Avery, dirigindo-se à mesa —, alguém
aqui enterrou uma bolsinha tilintante no canteiro de rosas?
— Em tese — disse Belle, com uma olhadela para Tom —,
entendo por que alguns casais talvez queiram guardar suas
alianças.
— Eu achei mesmo que Alvarado deveria ter isentado as alianças
— concordou Avery.
Balançando a cabeça na direção de Ryan e Lin Yu, Lowell disse:
— A esquerda esbravejaria contra os astros esportivos e as
esposas de Wall Street que ficassem com anéis de noivado do
tamanho de bolas de boliche.
— Mas toda essa propaganda do governo — comentou Tom —
sobre termos sido “atacados”, e todos termos de “nos unir” e fazer
“sacrifícios”, isso não funcionou. Adorei o vídeo divulgado no
InnerTube com aquele sacana atirando joias da Golden Gate.
— Parte da oposição é contra os lats — observou Lin Yu. —
Esses vídeos são sempre de brancos. É significativo que essa
política seja de Alvarado. Eles se recusam a entregar seu ouro a um
estrangeiro.
— Os americanos desprezam o governo federal desde muito
antes de Alvarado, meu bem — contrapôs Tom. — A principal
diferença, desta vez, é que eles têm boas razões. Na Justiça, fomos
encarregados de ir atrás dos infratores da lei do ouro, e devo dizer
que não me sinto à vontade com esse trabalho. Eu pensava que
tinha crescido num país em que a pessoa podia ter ouro, ou prata,
ou lama, ou bancores, ou o que mais lhe aprouvesse, desde que
não fosse, digamos, heroína. Num país realmente livre, é provável
que também se pudesse comprar heroína. Essa política me irrita.
Não gosto de ser obrigado a implementá-la.
— Os Estados Unidos confiscam bens em massa desde que
criaram o imposto de renda — contrapôs Belle, com sensatez; era
perceptível que ela bebera menos que todos os outros. — E nem
vem ao caso a porcaria do dinheiro. Historicamente, o Tio Sam tem
pegado os filhos da gente.
— Por falar nisso, está correndo um boato quente em mais de um
ministério — continuou Lin Yu. — Ouvi dizer que na verdade o
governo pediu o ouro só para entregar tudo aos chineses. Para
comprar Pequim. Para evitar uma guerra. Para prevenir, sabem, até
uma invasão.
Era um pouco constrangedor. Lin Yu era nascida e criada nos
Estados Unidos, mas exibia os traços das lealdades divididas. Meter
o pau nos lats ou nas pessoas importantes, é claro, era
inadmissível. Mas, desde que a China tinha substituído os Estados
Unidos como a maior economia mundial, era exasperantemente
possível demonstrar desconfiança ou até uma franca execração aos
chineses. Ao que parecia, por mais leve e sem preconceito que
ficasse o país, sempre se consideraria apropriado odiar algum
grupo. Se absolutamente necessário, era possível atacar os próprios
intolerantes. E havia sido por isso que Avery tivera o escrúpulo de
esconder, até de Lowell, que não tinha votado em Alvarado.
— Acho que foi por isso que não demos calote só na dívida
externa — disse Belle. — Se os investidores americanos levassem
uma paulada ainda pior, seria mais difícil começarmos a Terceira
Guerra Mundial.
— Não sei bem se acredito nesse boato sobre o ouro, Lin Yu —
comentou Lowell. — Pequim não tem tantas queixas assim.
Acontece que o bancor vinha sendo elaborado fazia anos, e,
caramba, onde está toda a vigilância americana quando realmente
se precisa dela? Foi por isso que, sem fazer alarde, Pequim
começou a comprar títulos de prazo mais curto com seu excedente
na balança de transações correntes. No fim, seus ativos em dólares
estavam em títulos do Tesouro com vencimento em três meses, e
muitos já tinham vencido. Os chineses se prepararam para o calote.
O que é a melhor prova, até o momento, de que conspiraram para
derrubar o dólar.
— Tá certo, mas... — ponderou Tom —, desculpem o clichê, mas
Pequim ainda se incomoda com as aparências.
— Dane-se o ouro. Eles que fiquem com isso — disse Lowell. —
O importante é o bancor. Agora, eu ainda acho que vai acabar se
revelando um novo euro. Essas uniões monetárias movidas pela
ideologia nunca funcionam, e pode ser que a gente volte a ter o
dólar como principal moeda mundial de reserva em dois ou três
anos. Mas, enquanto isso, proibir as empresas americanas de ter
bancores é catastrófico. As grandes corporações sabem organizar
empresas de fachada, mas as pequenas empresas estão sendo
crucificadas. Como é que vão importar produtos se é preciso pagar
por isso em bancores?
— Alvarado está brincando com fogo. — Todos se voltaram para
a porta. Era Goog. — Ele acha que, se conseguir privar todos, até
os aliados dos Estados Unidos, do acesso ao mercado americano,
vai poder matar essa moeda recém-nascida ainda no berço. Mas o
mercado americano está muito menor do que era. Por isso, a
questão não é se nós podemos viver sem eles, mas se eles podem
viver sem nós.
Lowell bateu palmas.
— Bravo! Filho de peixe, peixinho é. Meio cínico, meu filho. Mas
gostei desta frase: “matar essa moeda recém-nascida ainda no
berço”. Tem classe.
— Estamos discutindo no Clube de Debates se “As entidades
americanas devem ter permissão de negociar em bancores”. Estou
na afirmativa. No ano novo, vamos discutir “Os Estados Unidos
conseguirão voltar a tomar empréstimos?”. Meu pai diz que devo
ficar com a afirmativa. Ele disse que a Argentina deu um calote em
2001 e ressurgiu com um sucesso estrondoso depois de apenas
quatro anos. E ele também disse que, em pouquíssimo tempo, todo
mundo estava “fazendo o possível e o impossível” para emprestar
dinheiro a ela, inclusive alguns dos mesmos bancos, fundos de
derivativos e empresas que tinham levado calote. Meu pai diz que
os Estados Unidos vão se recuperar ainda mais depressa.
— É, bem, se quiser vencer esse debate, garoto, é melhor você
esquecer o meu pai disse — comentou Tom.
Todos riram, menos Ryan.
A visita de Goog deixou os convidados um pouco mais relaxados,
então permitiram que ele se exibisse um pouco mais, antes de
Lowell enxotá-lo para a cama. Era óbvio: a loquacidade sabichona
de Goog era capaz de dar nos nervos de Lowell de repente, porque
o filho falava igualzinho a ele.
Dado o rumo da conversa da noite, a mudança de assunto de
Belle, que começou a discutir como até as cirurgias simples tinham
se tornado apavorantes em um mundo de antibióticos que não
surtiam efeito, qualificou-se como um ligeiro alívio. Ela disse que a
quimioterapia, que debilitava o sistema imunológico, tornara-se
muito mais perigosa com a prevalência de bactérias resistentes aos
antibióticos, justo no momento em que drogas sintéticas poderiam
ser perfeitamente criadas sob medida para cada paciente.
— Esses remédios de encomenda podem ser milagrosos, mas o
preço é exorbitante! — prosseguiu ela. — O Medicare está gemendo
com a pressão. Alvarado pode ter declarado uma “reinicialização”,
mas o ônus dos direitos individuais vai tornar a aumentar a dívida
em dois tempos, simples assim.
— Como é que se aumenta a dívida se você não consegue
empréstimo? — perguntou Avery. — Pode ser que a “Nação
Caloteira” recupere sua reputação em poucos anos, mas ninguém
vai emprestar um centavo aos Estados Unidos neste momento, de
jeito nenhum. Então, a não ser que nossos impostos dupliquem, o
que para nós significaria dar mais do que ganhamos à Receita
Federal, não entendo de onde vai vir o dinheiro para essas drogas
químicas feitas sob medida para cada paciente.
— Vão im-pri-mir o dinheiro — disse Tom, enfático.
— Tom, estou sentindo que há um tema recorrente aí — retrucou
Lowell, já não disfarçando a irritação.
Tom bebeu outra golada generosa de vinho e continuou:
— Acontece que andei refletindo sobre isso. Sua esposa acertou
na mosca: por um bom número de anos, ninguém vai nos emprestar
um tostão. Assim, o déficit vai ter que ser corrigido com dinheiro
tirado do nada. Como os estrangeiros andam querendo dólares
como querem um buraco na cabeça, esse dinheiro de mentirinha vai
inundar nosso país, e não vai para mais nenhum outro lugar. Estou
certo ou não? O especialista é você. — Dessa vez, a deferência foi
azeda.
— Bem, essa é apenas uma das direções que o governo federal
pode tomar... — respondeu Lowell.
— Bum! — disse Tom — A inflação explode e vai para as alturas.
— Não tem importância — anunciou Ryan, no extremo oposto da
mesa, onde fazia meia hora que ruminava suas ideias em silêncio.
Tom deu uma risada.
— Pergunte aos alemães da década de 1920 se “não tinha
importância”...
— Tom, nesse campo nada poderia ser mais batido — esclareceu
Lowell. — O governo sempre pode elevar as taxas de juros...
— Estou cansado — Ryan estava mais para bêbado, na verdade
— de ouvir esses tecnocratas keynesianos insensíveis, que acham
que a economia é um aparelhinho em que só é preciso apertar uns
parafusos, e não é feita de gente, e a maioria dessas pessoas está
numa situação muito pior que a dos preocupadinhos mimados em
volta desta mesa. Estou cansado de escutar os resmungos, a
choradeira e as aflições de um bando de brancos mimados e ricos,
preocupados em saber de onde virá seu próximo filé de salmão
defumado e quanto vai custar.
— Ele não está querendo dizer que não gostou do seu aperitivo
— disse Lin Yu a Avery, com um sorriso nervoso.
Ryan deu um soco na mesa e a prataria chacoalhou.
— Esse pacote todo. A Moratória da dívida, a quebra da bolsa de
valores, o confisco do ouro, as coitadinhas das empresas
predadoras que não podem ter bancores em caixa... A dizimação
das pensões dos ricaços influentes, a incineração das carteiras de
títulos inchadas dos ultrarricos... Essa é a melhor coisa que já
aconteceu com este país, estão ouvindo? Ele estava fora de
controle, estão me ouvindo? Com o pessoal vaidoso que vivia de
renda bebericando outro sabor esotérico de martíni, quebrando a
cabeça para descobrir como desperdiçar outro bilhão de dólares
hoje, à cata de qualquer outra coisa que ainda tenham possibilidade
de querer. Sugando o país até o caroço, enquanto todos os outros
ralam para ir tocando a vida, com muito medo de ligar o
aquecimento central mesmo quando faz vinte e seis graus
negativos. Os Estados Unidos nunca deveriam ter sido assim, estão
me ouvindo? Consideramos estas verdades como autoevidentes:
que todos os homens são criados iguais. Então fodam-se os
plutocratas. O alto escalão deste país foi eliminado. Acabou. O que
eu acho genial pra caralho. Como é mesmo a expressão da
garotada para “genial pra caralho”? Isso, maligno. Acho que é
maligno pra caralho.
— Ryan e eu estamos de acordo — interpôs Lin Yu.
— Que surpresa — cochichou Avery para Tom.
— Este momento — declarou Lin Yu — é, finalmente, o grande
nivelador. Aliás, Ryan e eu estamos pensando em escrever juntos
outro livro. Pensamos em dar o título de As correções, e devemos
distribuí-lo de graça na internet. Isto que estamos atravessando é
melhor que uma revolução. Mais parece uma intervenção divina.
Finalmente temos a chance de contar com uma justiça real neste
país.
— Como? — perguntou Tom, incrédulo. — Empobrecendo todo
mundo?
— É melhor ficarmos todos numa situação um pouco menos
confortável do que continuarmos a tolerar as grotescas disparidades
econômicas dos últimos trinta anos — afirmou Lin Yu. — Como
americanos, podemos voltar aos princípios fundamentais. Esta é
uma oportunidade de recomeçar e renascer. Uma chance de
transformação e redenção. Uma oportunidade de fugirmos da
corrupção, do favoritismo, da desigualdade e da divisão, e de
recriarmos este país do zero. De voltarmos a ser os Estados Unidos,
a viver numa nação unida. De devolvermos esta nação à utopia
igualitária contemplada pelos pais fundadores. Todos deveríamos
nos orgulhar de estar participando deste divisor de águas.
— Você está participando? — atacou Tom, de frente para ela. —
Porque participar significa perder alguma coisa. Perder uma
cacetada de coisas. Acordar e descobrir que a sua aposentadoria,
desculpe, aposentadoria de ricaço influente, como depreendo que
são chamadas até as pensões dos bombeiros e dos professores
primários, que as suas economias para a aposentadoria foram
reduzidas à metade, de um dia para outro. Mas você não pode ter
uma aposentadoria enorme, meu bem. Nem poupança; o mais
provável é que esteja afundada em dívidas com empréstimos
estudantis, as quais, com qualquer inflação galopante que possa
estar a caminho, desaparecerão maravilhosamente. A única
maneira de você sofrer um impacto nos investimentos seria aqui,
pelo nosso amigo Ryan. Que... — Tom se virou para a outra
cabeceira da mesa — misteriosamente, não se inclui entre os ricos,
perdão, ultrarricos, que parece ser a única forma de ser rico.
Desculpe tocar num assunto constrangedor, meu velho, mas você
deve ter levantado uma bolada de responsa depois de Jogo limpo.
— Não que as minhas finanças sejam da sua conta...
— Por que não? — questionou Tom. — Você encara as finanças
de todas as outras pessoas como sendo da sua conta. Na verdade,
ganhou uma bolada metendo o nariz nas contas bancárias dos
outros.
— Ficou longe de ser uma bolada — retrucou Ryan, em tom
desdenhoso. — A pirataria na internet já estava chegando ao auge.
No punhado de livros que restou, a Amazon estava dando
descontos de 70%. Quanto aos modestos royalties que de fato
recebi, minha ex-mulher levou a metade. Seria um absurdo me
chamar de rico.
— Sempre adorei que você usasse um tratado sobre as
crueldades dos ricos para entrar no clube.
— Tenha santa paciência, querido — interveio Belle. — Não se
enriquece escrevendo nada.
— A categoria é escorregadia, de qualquer modo — disse Lowell.
— Rico significa qualquer um que ganhe mais dinheiro que a gente.
— Eu não quis dizer que ele voe de avião particular — protestou
Tom. — A questão é que nosso amigo Biersdorfer, aqui, tem certas
posses. Sabem a última vez que todos nos reunimos para jantar?
Ele e eu levamos um papo sobre como ele havia saído do mercado.
Ele disse que estava “superaquecido”. “A porra toda está nos
imóveis para aluguel”, ele me disse. E, por enquanto, os ativos
físicos estão seguros. Vão resistir à desvalorização da moeda, vão
resistir à inflação. E tenho certeza de que ele não tinha nenhum
título do Tesouro. Sabem por que eu sei disso? Ele não está fulo da
vida. Portanto, não admira que Ryan e Lin Yu achem tão fabulosa
toda esta derrocada. Ela não os afeta!
— Você tem títulos, Tom? — perguntou Lowell, baixinho.
— Sim, nós tínhamos. E eu me sinto traído. Pelo meu
empregador. Pelo meu país. Não me parece haver nada de retorno
triunfal do verdadeiro espírito americano em instigar as pessoas a
lhe emprestar dinheiro, e depois exibir os bolsos vazios com um
risinho sem graça. “Moratória” uma ova. As pessoas comuns
chamam isso de roubo. Vocês se dão conta de que, afora a dedução
padrão de cinco mil dólares por perdas de mercado, eles nem
deixam a gente retirar dos impostos o calote que sofreu?
— Ora, e por que deveriam? — rosnou Ryan. — Todo
investimento implica riscos. Qualquer aplicação pode resultar em
calote, e a pessoa sabe disso na hora de aplicar o dinheiro.
— Não os Títulos do Tesouro dos Estados Unidos. Foi por isso
que saímos impunes, pagando juros tão miseráveis, durante
décadas: o investimento mais seguro do mundo! O que torna o
calote vergonhoso. Não culpo os caras desde a Turquia até a
Nicarágua por incendiarem filiais do KFC e do McDonald’s. Por aqui,
temos todas as razões para nos sentirmos mortificados. Sabem
aquelas duas bombas colocadas em prédios federais perto do
Passeio Nacional? Perfeitamente compreensíveis. — Depois do que
devia ter sido sua segunda garrafa de vinho, isso saiu como
perfitmente combrensiv. — O que eu não entendo é por que não
colocam fogo nesta cidade inteira.
— Porque as pessoas “de costas quentes” , as que perderam até
as cuecas — comentou Belle —, não são do tipo que cria tumulto.
— Fez um gesto apontando Tom e Ryan. — Ora, é só olhar para
vocês. Os dois de pé do lado da cadeira, com o rosto vermelho, as
mãos afastadas do corpo, para ver quem saca mais rápido, não é?
Mas nenhum dos dois atirou um copo nem desferiu um soco. A
gente tem é que se preocupar com o estado da masculinidade
americana. Talvez isso seja mesmo o fim do império. Agora, vamos
todos ajudar Avery a arrumar as coisas.
Recolhendo pratos que chacoalhavam alto no silêncio, Avery
sentiu-se desapontada; nunca havia oferecido um jantar que tivesse
se tornado tão descortês. Tempos depois, no entanto, rememoraria
essa noite belicosa como decididamente elegíaca; na verdade,
progressivamente civilizada. Em poucos meses, mesmo que a
pessoa se atrevesse a convidar outras para jantar, não saberia ao
certo se os amigos queriam mesmo vê-la, ou se só queriam uma
refeição grátis.
• CAPÍTULO 6 •

BUSCA E APREENSÃO

Já que não pensava em si mesma como o tipo de pessoa que


possuía ouro, Florence tinha levado dias para se dar conta, com
uma pontada repentina, de que tinha um pouco, sim.
Depois de sua formatura na Barnard, o Grand Man reunira a
família inteira para um almoço comemorativo, em um restaurante
em uma cobertura no Upper West Side. Depois da sobremesa, o
pater familias bateu de leve em sua taça. Julgava apropriado, disse,
que sua neta possuísse uma pequena lembrança da propriedade
que fora do avô dele: a majestosa mansão de estilo Segundo
Império, com ampla varanda frontal coberta, situada em Mount
Vernon, Ohio, da qual Florence herdara alguns instantâneos
digitalizados em tom sépia. Guardada em sua imaginação junto de
pratarias, roupas engomadas de cama e mesa e jogos de cristal, a
imponente residência dos antepassados de Florence, derrubada
desde longa data, era um emblema da própria opulência que no
plano filosófico ela deplorava. Mas aquelas fotos de arquivo
desbotadas da Casa da Abundância, transferidas com amor do
smartphone para o tablet, para o speX e para o fleX, sempre a
enchiam de um pesar perturbadoramente conhecido. Durante anos,
Florence fora incomodada por um sonho recorrente no qual uma
grande piscina azul reluzia, um pouquinho fora do seu alcance; ou
ela estava do outro lado de um portão trancado, ou restringida por
um ingresso proibitivo de tão caro, ou inútil sem uma roupa de
banho. Ela acordava agitada e melancólica.
Nos sonhos sobre essas piscinas sedutoras, Florence nunca
tinha permissão para mergulhar na parte mais funda, porém o
presente que seu extravagante avô lhe ofereceu naquela tarde
fomentou a sensação de balançar um dedo do pé na água. A caixa
era do tamanho das que guardavam artigos de papelaria na época
em que as pessoas enviavam bilhetes de agradecimento; manchas
no papelão resistente e cantos amolecidos e cinzentos completavam
o pacote. Só a fita era nova. Grand Man se desculpou pelo fato de o
conteúdo não ter a menor utilidade prática, e estava certo. Dentro da
caixa, aninhado em cetim amarelado e frágil, estava um par de
cálices em miniatura, de uns dez centímetros de altura — para
schnapps ou vinho do porto, talvez, embora houvesse uma boa
probabilidade de que ninguém tivesse bebido uma só gota de
nenhum dos dois. As hastes eram do mesmo azul-cobalto dos vitrais
de catedrais europeias. Trazendo gravados os nomes ELLIOT IRA
MANDIBLE em um e DORA ROSE MANDIBLE no outro, os cálices eram de

ouro. E não meramente folheados. Era engraçado como dava para


perceber: o folheado fino e de mau gosto refratava a luz já o metal
puro convidava a luz a entrar como manteiga. Grand Man não fazia
ideia do que simbolizavam os cálices; talvez marcassem um
aniversário de casamento, ou expressassem gratidão cívica. Elliot
Mandible havia doado uma porção generosa de sua fortuna, embora
nem de longe tanto quanto conservara.
Aquele par, finamente trabalhado, era uma rara ligação palpável
com um passado que, em outros aspectos, Florence repudiara.
Como muitos objetos absurdos que os ricos fabricavam e que os
atraíam, os cálices eram uma mera reconfiguração do dinheiro.
Nunca tinham sido destinados à inclusão despretensiosa na
condução da vida cotidiana, seriam sempre coisas agressivamente
concedidas. Assim, exibiam uma ostentação particular por parte do
doador, já que se tratava de um presente que nunca parava de se
apresentar. Os cálices eram uma bobagem e só serviam para ser
exibidos. O mundo em que existiam não diferia nem um pingo de um
mundo em que nunca tivessem sido criados, para começo de
conversa.
Consequentemente, Florence os adorava. Como uma pessoa de
pragmatismo ferrenho, ela prezava os pequeninos cálices por não
terem a menor serventia para ninguém na face da Terra. Todas as
cerca de dez vezes em que mudara de residência, embalara-os com
ternura em sua velha caixa e, no momento, guardava-os na
prateleira mais alta do que era ridiculamente chamado de quarto
principal, enfurnados tão junto à parede, à guisa de proteção, que
não era possível vê-los sem subir em uma cadeira. Florence se
sentia indiferente ao valor dos cálices em termos metalúrgicos. Eles
eram preciosos por serem seus. Por isso, a perspectiva de jogar
aquelas relíquias artesanais de família em um saco de miscelâneas
do Tesouro dos Estados Unidos, onde as hastes de cobalto se
espatifariam e os copos ficariam esperando para ser fundidos em
barras, tudo em nome do “patriotismo”, fosse isso o que fosse,
parecia-lhe não um simples anátema, mas completamente fora de
cogitação.
A primeira vez que ela se lembrou dos cálices da Casa da
Abundância foi na sala de funcionários do abrigo, onde um copo
sujo de café expresso junto à pia reavivou a memória. Passou o
resto do dia inquieta e correu para o ônibus no minuto em que
terminou seu turno. Já em casa, correu ao segundo andar, subiu em
uma poltrona e puxou as relíquias da prateleira, tirando o pó dos
copos antes de deitá-los na caixa cheia de manchas escondida na
cômoda. Durante todo esse tempo, sentiu que estava sendo
observada de forma estranha, e pulou ao ouvir rangidos tão leves
vindos do corredor que deviam ter sido imaginados. Usando o que
havia à mão, ela tirou de baixo da cama um cobertor extra, enrolou
múltiplas vezes em volta da caixa e enfiou a trouxa de novo embaixo
da cama, bem no meio, cercada por edredons e travesseiros para
hóspedes.
Um dia, com certeza aquela loucura passaria, e então seria
possível recolocar um par de bugigangas de um amarelo brilhante
em uma prateleira alta, sem levar uma multa de um quarto de
milhão de dólares, cuja simples ideia punha seus batimentos
cardíacos na zona do derrame. Depois que o “prazo final para a
abdicação”, marcado para 30 de novembro, passou sem incidentes,
Florence pôde pensar em outra coisa.
Isso, veja bem, até que uma batida rude soasse à porta da frente,
em um fim de semana de janeiro, dias depois de Willing fazer
quatorze anos.
— Mãe — disse o garoto, plácido, como se isso acontecesse
todos os dias —, é o exército.
— Você está de brincadeira?
Ah, ela ouvira boatos sobre buscas em todas as casas, mas
presumira que a polícia, a Guarda Nacional e o exército dos Estados
Unidos, convocados para essa operação, se ateriam a bairros
suficientemente grã-finos para justificar seus esforços.
Eram dois homens. O maior e mais alto usava o uniforme
regulamentar de combate, mas, por conta da simples rabugice,
conseguia parecer desleixado. O rosto pesado passava uma
impressão simultânea de estupidez e esperteza; talvez fossem os
olhos miúdos. Seu companheiro, franzino e de aparência indiana,
mantinha-se imperiosamente ereto, e nenhum dos dois exibia uma
postura pesarosa. Só de olhar, via-se que, contrariando o chavão,
nenhum deles desempenhava o papel do “policial bonzinho”.
— Em que posso ajudá-los? — perguntou Florence, com frieza,
mantendo a porta de tela fechada e apenas deixando a porta da
frente se entreabrir alguns centímetros. A temperatura estava entre
sete e dez graus negativos, com uma película de neve na varanda,
e ela estava esbanjando com o termostato em 15ºC.
— Não precisamos de ajuda nenhuma — disse o grandalhão,
mostrando a identidade plastificada que trazia no pescoço com uma
virada desdenhosa. — Estamos entrando, dona. — Ele mesmo abriu
a porta de tela.
Florence barrou-lhe o caminho.
— Desculpe, mas vocês têm um mandado?
— Tenho coisa melhor que um mandado — respondeu o
brutamontes. — Tenho uma lei. Vamos lá, Ajay.
— Não permito armas nesta casa — insistiu ela.
— Ora, não é uma pena? Porque o Exército dos Estados Unidos
não deixa os M-17 na varanda, feito sapatos do lado de fora das
mesquitas.
Também armados com detectores de metal, os dois marcharam
sem serem convidados para o hall, sem se darem ao trabalho de
limpar as botas no capacho e sujando o tapete com a neve preta.
— Por que vocês estão usando essa camuflagem, se não temos
nenhuma árvore? — perguntou Willing, examinando-os da escada.
— Se não querem que as pessoas vejam vocês nesse bairro, os
uniformes deveriam parecer revestimento de alumínio.
— Essa sua língua grande não vai fazer nenhum favor à sua
mãe, garoto — respondeu o soldado grandalhão.
— Vou dar uma última oportunidade para vocês dois, antes de
revistarmos o recinto — disse o soldado menor, com um sotaque
indiano afetado. — Declarem qualquer ouro, mesmo numa
quantidade muito pequena, ou um objeto maior que a senhora não
tenha entregado ao governo federal. As punições serão menos
graves se a senhora entregar o material escondido. Se nós o
acharmos, a senhora estará sujeita a um processo criminal.
— O que esses babacas estão fazendo na nossa casa, porra? —
Esteban tinha um problema letal com a autoridade.
— Eles vão vasculhar cada centímetro dessa pocilga — retrucou
o primeiro soldado —, caso integrantes das forças armadas dos
Estados Unidos tornem a ser chamados de babacas por um lat
esquentadinho que, obviamente, não sente nenhuma lealdade
verdadeira por este país.
— Destruam a nossa casa que eu processo vocês pelo resto da
vida, forças armadas ou não — rebateu Esteban.
— Sabe quantas vezes por dia eu escuto isso? Umas cem. Boa
sorte, palhaço.
— Posso processá-lo por racismo — argumentou Esteban.
— Eu disse lat — retrucou o grandalhão. — Não disse chicano
nem cucaracho nem merdixicano.
— Menção versus uso — disse Willing. Florence não fazia ideia
do que ele estava falando.
— A senhora tem alguma coisa a declarar? — repetiu o asiático.
— Estou declarando que vou fotografar qualquer destruição
desnecessária do “recinto”, e vou denunciá-la. — Embora Florence
se visse como corajosa mesmo sem ter pensado muito sobre isso,
suas mãos estavam trêmulas. Nenhum cálice, por mais encantador
que fosse, valia dez anos de prisão.
Enquanto ela tateava em busca da melhor maneira de introduzir
uma revelação ao estilo “acabei de me lembrar” de umas “velhas
bugigangas de família”, os homens começaram a revistar a sala,
onde o asiático tirou todas as almofadas de couro do sofá vinho do
Grand Man, proveniente de Oyster Bay. Era a única peça de
qualidade da casa, e talvez tivesse dado aos soldados uma
impressão equivocada da situação familiar. Depois de enfiar a mão
em todos os cantinhos do sofá, o soldado encenou ter encontrado
uma protuberância e cortou uma das almofadas com um estilete,
carregado com o claro objetivo de destruir o mobiliário mais
valorizado pelos cidadãos.
— O meu governo vai pagar o conserto desses estofados? —
perguntou Esteban, azedo.
— Foi para isso que inventaram a fita adesiva, meu senhor —
respondeu o soldado, arrancando o estofo.
A retalhação gratuita daquele sofá suntuoso inundou Florence de
um ódio bem característico: aquele tipo de fúria reprimida, com o
punho tampando a boca, ao qual a pessoa não deve se entregar.
Então, tudo bem, ela não passaria uma descompostura nesses
soldados e não usaria palavrões. Apesar de enrijecida, manteve o
corpo imóvel; trincou os dentes com força, mas sua expressão
permaneceu impassível. Agora, porém, não suportava a ideia de dar
aquele prêmio a eles, revelando-se mais uma “acumuladora”
mentirosa, e de deixá-los sair flanando de lá com seu adorado
presente de formatura, com o qual ela podia facilmente imaginar
aqueles cretinos brindando à degradação dela com uísque barato,
mais tarde.
O grandalhão pisou em cada milímetro do piso, como se
procurasse tábuas com som oco. Mas o assoalho fino de madeira
assentava-se sobre uma armação frágil, de modo que tudo soava
oco. Ao arrastarem os móveis de um lado para outro, os pés
deixaram arranhões no piso, e os homens não repuseram as peças
no lugar. Depois de tirarem os quadros das paredes, empilhando-os
no sofá arruinado, os soldados bateram nas paredes de painéis de
gesso, em uma encenação de diagnóstico forense, embora todas
elas também soassem ocas. Tiraram livros das prateleiras,
folheando-os com ar de incredulidade por alguém guardar aquelas
coisas para outro propósito que não servir de esconderijos.
Quando passaram para a cozinha, o grandalhão despejou um
pote de farinha de trigo na bancada e a remexeu, como se
planejasse fazer massa de macarrão caseira. O asiático arrogante
tirou panelas e frigideiras dos armários e as empilhou no chão,
enquanto seu parceiro virava a bacia na pia e respingava água
cinzenta e gordurosa em todos os utensílios limpos a seus pés.
Chegaram até a abrir a geladeira, como se o ouro se conservasse
melhor dentro dela; Midas parecia não ter tocado na gaveta de
legumes, então eles se contentaram com duas coxas de galinha.
Saindo pela porta dos fundos, caminharam com seus detectores de
metal até o arremedo de horta que Florence cultivava, e ficaram
tremendamente empolgados perto do pé de alecrim, a única erva
que ela conseguira manter no frio cortante do inverno. Golpeando o
solo endurecido com sua própria pá, deram um jeito de cortar as
raízes da planta, mas o chaveiro enferrujado que fizera disparar o
seu detector, do qual os chineses fabricavam versões mais
reluzentes aos borbotões, não seria uma contribuição substancial
para quitar a dívida pública.
Quando os defensores do mundo livre chegaram ao segundo
andar, Florence entrou em um silêncio histérico. Agarrando a mão
de Willing, acompanhou, horrorizada, a reta que a dupla desenhou
até o quarto do casal. O asiático esvaziou a caixa de joias na
cômoda, futucando com impaciência relógios de pulso quebrados,
alfinetes de gravata, tubos de protetor labial e algumas peças de
strass que Florence já não usava, remanescentes de um breve
período de predileção por enfeites chamativos. Depois de jogarem
no chão um sortimento de meias, sutiãs e calcinhas — “A senhora
não imagina quanta gente esconde coisas na gaveta das roupas de
baixo”, disse desdenhosamente o soldado mais alto —, os dois
começaram a puxar de debaixo da cama todos os edredons,
cobertores e travesseiros extras, desdobrando tudo um a um.
Florence começou a suar frio, com o coração batendo nos dentes.
Talvez não fosse tarde demais para fazer uma “declaração” e
escapar de uma sentença de prisão. Antes que os soldados
chegassem ao meio, ela soltou:
— Esperem, há uma coisa que talvez eu devesse...
— Não, mãe — interrompeu Willing, enfrentando o olhar dela com
um abanar da cabeça. — Eu olhei aquele colar com que você
estava tão preocupada. Fiz até o teste do arranhão, com um dos kits
gratuitos que a polícia estava distribuindo na rua Jay. É só latão. Sei
que Esteban queria parecer legal e tudo, mas ele enganou você no
seu aniversário.
— Que história é essa de colar? — perguntou o boçal,
desconfiado.
Willing apontou para a pilha de cacarecos que o asiático juntara e
separou um colar bonito, com um minúsculo pingente de opala.
— Esse aí.
O soldado pesadão pegou o colar, vergou o metal e o deixou cair.
— Tem razão, garoto. É uma bosta.
Nesse exato momento, o asiático chegou ao cobertor colocado
mais no meio sob a cama e o desenrolou com um floreio.
Nada caiu com estardalhaço. Foi sorte, porque Florence estava
prestes a vomitar, e puxar a descarga ao meio-dia seria um
desperdício de água.
Com a mesma rapidez com que haviam feito um estrago na casa,
os soldados pareceram cansar-se da pilhagem. Desceram em um
tropel e deixaram a porta de tela bater, largando aberta a porta de
entrada para garantir que o interior esfriasse mais uns cinco graus.
Não fazia o menor sentido. Eles tinham peneirado a farinha de
trigo, mas nem puseram a cabeça no sótão, assim como não deram
nem uma passada pelos cômodos de Kurt, no porão, sendo que
qualquer desses dois espaços poderia armazenar todo o ouro do
túmulo de Tutancâmon.
Zonza de tanta adrenalina, Florence se arrastou por entre os
pedaços de estofo do sofá para fechar e trancar a porta, dando duas
voltas na chave. Empurrando os móveis de volta para o lugar,
Esteban espumava de raiva na sala em que a mulher o exilara, para
que seu mau gênio não incitasse os soldados a uma destruição
maior. Depois de uma espiada pela janela da frente para confirmar
que os homens tinham ido estragar o dia de outras pessoas, ela se
virou para Willing, que reocupava seu poleiro favorito, no terceiro
degrau da escada. Ao perscrutar o rosto do filho, era comum
Florence se pegar procurando dicas sobre quem seria o pai dele.
Tinha sido naquele período das joias espalhafatosas.
— Como é que você sabia...? — murmurou ela.
— Eu sei tudo que preciso saber — respondeu Willing.
— Era você — disse Florence. — Os rangidos quando eu estava
enrolando a trouxa.
— Você escolheu um esconderijo que era uma barra de barata.
— E você escolheu outro, diferente.
Willing assentiu com um meneio da cabeça.
— E isso não foi muito arriscado?
— Não se o lugar fosse bom. Pense só, mãe. Todas essas casas.
Todos os armários. Todos os assoalhos e caixas. E isso enquanto as
coisas de ouro são muito pequenas. É impossível. As buscas de
casa em casa são ridículas. Só que não.
— Só que não.
— Eles tentam apavorar a pessoa. Se apavorarem o bastante,
não têm que procurar. A pessoa dá o ouro a eles. Até com você,
quase funcionou.
— Qué estás conspirando? — indagou Esteban, fazendo uma
pausa ao recolocar os livros de Steinbeck desgastados na
prateleira. — Tenemos mucho trabajo aquí.
Era comum ele e Willing conversarem em espanhol, no qual
Florence era menos fluente que o filho, e esse laço da língua criava
uma intimidade característica. Mas Florence e Willing geravam uma
intensidade com que nem mesmo um namorado residente na casa
era capaz de rivalizar, e às vezes Esteban parecia enciumado.
— Es mejor si no lo sabe — respondeu Willing.
— Você vai me dizer onde os enfiou? — perguntou Florence,
baixinho.
— Não. É melhor você também não saber.
— Assim, quando essas bostejantas voltarem, eu vou ficar
petrificada, não importa onde eles resolvam procurar.
— Eles não vão voltar — afirmou Willing, confiante. — O governo
vai perceber que não está apavorando as pessoas a ponto de tirar
ouro suficiente para pagar os soldados e a polícia para cuidarem da
intimidação. O governo não pode mais pegar dinheiro emprestado.
Por enquanto, isso significa que não vai desperdiçá-lo.
— Por enquanto. Você é um garoto muito esquisito.
— É mais complicado que isso. Mas sim. Por enquanto. Depois
teremos um problema diferente. O governo vai ter um monte de
dinheiro. Só que não vai valer nada. O que é o mesmo que não ter
dinheiro nenhum. — Não era frequente, mas Willing deu um leve
sorriso. Parecia satisfeito consigo mesmo.
— Garoto, um tempinho na internet é uma coisa perigosa.
— Tem razão — concordou ele. — Um tempinho na internet é um
perigo monstro. Muito tempo na internet é perigoso de outra
maneira. Perigoso para os outros. Não para a própria pessoa.

***

Na ocasião, o ataque das forças armadas pareceu um grande


drama. Em pouco tempo, seria possível encontrar um palco de
guerra mais majestoso no supermercado.
Nas tardes de domingo, Florence fazia compras para a semana,
e Willing empurrava o carrinho de metal caquético em que levava as
sacolas para casa. Alguns anos antes, era comum eles passearem
por um quarteirão e meio até um trecho comercial da rua Church
para, por exemplo, comprar pela pechincha de dois dólares um
saquinho de paus de canela de um vendedor ambulante, além de
absorver o alvoroço dos tecidos flamejantes com que se vestiam as
mulheres peitudas da Jamaica. Mas, nos últimos tempos, já não se
davam o trabalho de fazer esse desvio. Agora que empresas tinham
sido substituídas por academias de pilates e de ioga e por pet
shops, Florence sentia saudade das lojas que trocavam cheques,
dos salões de beleza que faziam tranças afro, das casas de penhor
e das lojas de doces com três pirulitos grudentos no fundo de um
único pote, que eram fachadas óbvias para a venda de cocaína.
Havia um bom tempo que as carroças de raspadinha, com seus
xaropes espalhafatosos em tons de azul-cobalto, verde-limão e
rosa-choque, tinham sumido das esquinas, e a região tivera suas
cores literalmente drenadas.
Claro que, com o passar dos anos, ela foi levando mais dinheiro
para o supermercado, considerando a inflação rotineira, as
destruições de safras, a alta nos preços da energia e o aumento
implacável da demanda asiática. Os modestos reajustes que ela
recebia da Adelphi, conforme a alta do custo de vida, nunca
refletiam o aumento absurdo dos gastos com a alimentação.
Mas isso era diferente.
Ah, pode ter certeza disso; no Natal, Florence já havia aprendido
a ignorar qualquer mercadoria importada. A família estava
acostumada a prescindir de frescuras como azeitonas gregas,
parmesão italiano, vinagre japonês de arroz e até pimenta mexicana
(para desolação de Esteban). De qualquer forma, os importados
logo desapareceram das prateleiras. Segundo Brendan, o vizinho
que era gerente de investimentos (ex-gerente de investimentos; toda
a indústria financeira derretera da noite para o dia), o comércio
internacional do país estava quase paralisado. Os exportadores não
podiam depositar bancores em bancos americanos, tendo de
empregar desajeitados intermediários que ficavam no exterior. Com
os controles sobre o capital ainda em vigor, os importadores
americanos precisavam obter aprovação com o sobrecarregado
Ministério do Comércio para toda transferência internacional de
dólares. Em fevereiro, no entanto, alguma coisa estava ficando
esquisita com os produtos nacionais.
— Eu me lembro bem de comprar um repolho por vinte dólares
em outubro — disse Florence a Willing, pegando um exemplar
vagabundo do vegetal. — Este é menor e mais mixuruca, e custa
vinte e cinco dólares. Na mesma loja. Faça as contas: nesse ritmo,
quanto vai custar um repolho em outubro do ano que vem?
— Quarenta dólares — respondeu Willing, prontamente. — Mas
não se preocupe. Estou cansado de repolho.
— Bom, eu também! Mas olhe em volta. O que mais vamos
comprar?
Para uma mercearia urbana, a Green Acre Farm, na avenida
Utica, tinha um bom estoque, havendo passado por uma reforma
impressionante depois que a turma do agrião com wasabi começara
a expulsar sistematicamente os imigrantes caribenhos que antes
dominavam o bairro. Agora, porém, as pilhas de abobrinha (a vinte e
quatro dólares o meio quilo), os pacotes de duzentos gramas de
espinafre (antes trezentos gramas; quinze dólares cada um) e a
ervilha (trinta e um dólares o meio quilo) bem poderiam ser
exposições de museu. Florence conformou-se com um maço
ordinário de couve (dezoito dólares) e um saquinho solitário largado
na seção de produtos em oferta: uma alface de pontas queimadas
que ela não sentia muita vontade de levar.
Em abril, o repolho se adiantara à previsão. Custava trinta
dólares.
Os colegas de trabalho de Florence viviam obcecados com o
custo das refeições. Embora as etiquetas de fita crepe coladas nas
embalagens de papel pardo dos sanduíches, na geladeira da sala
dos funcionários, estivessem cada vez mais cheias de pontos de
exclamação, os furtos se tornaram comuns; Selma nocauteou uma
faxineira por causa de um sanduíche de pão de centeio com
mortadela. E o assunto dos preços da comida de lanchonete era
incendiário. Nos intervalos, o pessoal competia para ver quem
conseguia citar o aumento mais escandaloso da semana.
— Trinta e cinco dólares e quarenta e nove centavos por um wrap
de frango com bacon no Subway! — informou Mateo. — Joguei o
saquinho na cara da mulher e fui embora. Disse que ela devia achar
que eu era Howard Buffett, ou coisa assim, e Buffett não come wrap.
— Repararam que a Taco Bell enfiou o cardápio atrás das caixas
registradoras? — perguntou Rasta. — Agora é tudo digital. Para
eles poderem aumentar o preço do combo de enchilada/tostada
toda semana sem terem que subir a escada.
Com a despensa já abastecida de modo frugal, Florence estava
com dificuldade de saber onde economizar. Eles não comiam
alimentos processados, e a carne era tão pouca que ela temia por
seu cabelo. Falando com sinceridade, a ração seca comprada na
loja era uma indulgência, mas Willing preferiria raspar a comida do
próprio prato na tigela de Milo a deixar seu spaniel passar fome.
Assim, ela parou de comprar ervas frescas e rejeitou os
condimentos. Com pesar, renunciou ao sorvete. Fazia Willing comer
arroz cozido com leite no café da manhã, em vez de cereal, e
comprava o arroz branco de grão longo, em vez do arroz integral,
mais saudável, porque os grãos refinados eram um pouco mais
baratos. Seria de se supor que houvesse um limite para a
quantidade de macarrão que uma pessoa podia suportar, mas,
aparentemente, não havia.
Para agravar a crise, a hipoteca de Florence, com taxa de juros
flexível, subira dois pontos percentuais inteiros, e, para cobrir os
pagamentos, ela precisaria mesmo aumentar o aluguel do seu
inquilino. Alugar o porão era ilegal, já que o bairro era uma zona
destinada a residências unifamiliares. Sem contrato formal assinado,
Kurt confiava nas boas graças de Florence para que ela não
elevasse seu aluguel por capricho. Até ali, ele mantivera os
pagamentos em dia, mas ela se preocupava com o emprego de
meio expediente que ele tinha na loja de flores. Naquela situação
econômica, Florence gostaria de saber se havia alguma coisa que
as pessoas pudessem dispensar com mais facilidade do que as
vincas cor-de-rosa. Embora não a agradasse pensar em si mesma
como uma pessoa de coração mole, a ideia de cobrar um dinheiro
que ele não teria a menor possibilidade de pagar era detestável.
Em uma tarde de domingo, em maio, eles fizeram sua visita
tradicional à Green Acre Farm; agora que compravam tão pouco,
deixavam o carrinho em casa. Na compra semanal, era comum
levarem o cachorro para passear, mas Willing insistiu em também
deixar Milo em casa. Alegou que deixar o bichinho amarrado do lado
de fora da loja trazia o risco de algum transeunte inescrupuloso ter o
tipo mais macabro de dedos compridos. “Alguém pode comê-lo.”
Florence ficou ainda mais surpresa, no trajeto de volta para casa,
quando Willing disse:
— Vi aquela notificação que você deixou na mesa de jantar. As
prestações mensais da sua hipoteca subiram. Isso pode ser um
problema.
— Escute, meu chapa, isso não é assunto seu...
— É assunto nosso. Meu e de Esteban e de Kurt. Nós também
moramos na casa.
— Quando eu tinha a sua idade, nem sabia o que era hipoteca.
— Já disse: eu sei o que preciso saber. Talvez, aos quatorze
anos, você não precisasse saber nada sobre hipotecas.
— Bem, não quero que você se preocupe — uma advertência
sempre inútil —, mas, sim, é meio problemático.
— Os juros sobem de acordo com a inflação. As suas prestações
da casa vão continuar a ficar mais pesadas.
— E por quê, senhor especialista?
— Ninguém quer emprestar dinheiro bom e ser pago em dinheiro
de segunda. — O tom monótono e entediado de Willing deixou
implícito que isso era óbvio.
— Mas sempre há alguma inflação. As taxas de juros nem
sempre sobem por causa dela. Na verdade, nós precisamos da
inflação. Parece que a alternativa seria meio terrível.
— Isso é o que eles querem que você pense.
Uma das poucas preocupações de Florence com seu único filho
era que ele tendia a ser presunçoso.
— Tudo bem. Qual é? Porque, na minha vida inteira, sempre ouvi
que precisamos de uma inflação regular, assim, de uns dois ou 3%.
— Sei que você ouviu. Você passou por uma lavagem cerebral —
disse Willing, soando muito animado. — Poderíamos lidar muito
bem com um índice pequeno, regular e previsível de deflação. A
inflação é um imposto. Dinheiro para o governo. Um imposto que as
pessoas não veem como imposto. É o melhor tipo deles, para os
políticos. Mas a inflação não é inevitável. A partir de 1300, a libra
esterlina manteve quase o mesmo valor por seiscentos anos. E isso
foi durante o Império, quando o povo inglês dominava quase o
mundo todo. O Magno Grand Man disse que o que aconteceu com a
libra é uma “tragédia”. Todas essas expressões que nós temos
vieram dessa moeda: In for a penny, in for a pound. Penny wise and
pound foolish. (Um centavo, uma libra. Economizar tostões e torrar
milhões). Até a palavra esterlino, como adjetivo, tem o sentido de
“excelente” e “valioso”. Mas a moeda em si, segundo ele, agora é
“uma piada”. E isso é por causa da inflação. Eu disse ao Magno
Grand Man que eu achava que, quando o seu dinheiro é uma piada,
as pessoas acham que você é uma piada. E agora, o dólar também
é uma piada.
— Você se sente uma pessoa de menos valor porque o dólar tem
menos valor?
— De certa maneira. Ainda não pensei bem nisso. Mas o que
está acontecendo pode não ter a ver só com o que nós podemos
comprar. Também pode ter a ver com como nos sentimos. Tipo
assim, menores. Talvez eu me sinta menor. Pode ser que você não
perceba, mas talvez também se sinta menor.
— Eu me sinto menor porque, com o preço das coisas, estou
emagrecendo!
Não era para se gabar. Florence não acreditava que precisava
emagrecer, e a aparência definhada com que se deparava no
espelho expressava justamente a sensação de se tornar menos
substancial, impressão que seu filho parecia compartilhar.
— E então — Willing introduziu, com ar descontraído —, você
acha que, agora que subornamos os chineses com todo aquele
ouro, eles vão nos deixar em paz?
— Acho que Pequim recebeu o que queria. Mesmo que a entrega
tenha sido embaraçosa para os Estados Unidos.
— O Magno Grand Man diz que, a menos que o ouro tenha sido
usado para respaldar um “padrão-ouro modificado”, ou para investir
no bancor, dá-lo para os outros não tem grande importância. Apenas
parado ali, ele disse, o ouro era “só bonitinho”.
— Bem, com certeza eu não sinto falta dele — disse Florence.
— Não me incomodo com o espanhol. Mas não quero ter que
aprender chinês. Nunca gostei do som dessa língua. Agudo demais.
Nasalado demais.
— Os chineses não vão invadir Nova York, se é disso que você
está falando.
— Talvez não com um exército, mas você não tem visto os
grupos no noticiário? Eles estão por toda parte, na região de
Midtown. Na Saks, na Lord & Taylor. Há uma fila de chineses na
porta da Tiffany’s. Junto com uns coreanos, indonésios e
vietnamitas.
— Eles podem fazer bons negócios aqui. Por causa da taxa de
câmbio.
— Eu sei — disse Willing, desdenhoso. — Detesto quando você
me diz coisas que eu sei. Só quis dizer que existem muitas
maneiras diferentes de dominar os lugares.
— É bom você ter cuidado, falando desse jeito. Cuidado para não
parecer racista.
— O Magno Grand Man diz que nós devemos ser gratos. Sem os
turistas estrangeiros, não haveria ninguém comprando nada. Já
estaríamos numa outra depressão. O Magno Grand Man disse que,
para as pessoas de fora, tudo aqui é praticamente grátis.
— Bem, nada é grátis para nós! Nem deu para acreditar no
quanto a simples e velha água sanitária aumentou hoje.
Eles haviam optado pela embalagem de um galão, já que o
alvejante só custaria mais caro na vez seguinte, e a sacola com a
qual o carregava estava machucando o ombro de Florence.
— Os preços não estão subindo — declarou Willing, com ar de
autoridade.
Florence bufou.
— Quase que eles me enganaram!
— E enganaram. — O andar de Willing tinha adquirido um ar
emproado. — Esse é o erro que as pessoas vivem cometendo. Elas
acham que as coisas estão ficando mais caras. Na verdade, tudo
custa a mesma coisa. Os preços não estão subindo, a moeda é que
está caindo.
— Ora, qual é? Eu entendo que a taxa de câmbio afete as
importações, mas não as coisas que nós produzimos e plantamos
aqui.
Agora estava estabelecida a inversão dos papéis: Willing falando
pacientemente com a mãe, como se falasse com uma criança. Ela
achava estar sendo condescendente com ele, ele achava que
estava sendo condescendente com ela. De algum modo, a coisa
funcionava.
— Deixe de lado o fato de que os Estados Unidos não produzem
nada. A coleta de impostos está lá embaixo. O déficit é grande. O
governo não pode pegar empréstimos, porque ninguém acredita que
vamos pagar. A Moratória serviu para cortar despesas no curto
prazo: eliminou os pagamentos da dívida. Mas a Agência Federal de
Garantia de Depósitos teve que pagar valores imensos depois da
falência dos bancos menores. Os grandes bancos tiveram que ser
socorridos. Muitas perdas de fundos de aposentadoria tiveram que
ser cobertas pela Agência de Garantia dos Benefícios de
Aposentadoria. O seguro-desemprego está subindo. E isso em cima
do Medicare, do Medicaid e da Previdência Social, que já são mais
da metade do orçamento.
— Você quer que eu acredite que, aos quatorze anos, você sabe
a diferença entre o Medicare e o Medicaid? A maioria das pessoas
da minha idade não consegue entender direito esses programas.
Willing explicou, com ar de desdém:
— O Medicare é para os idosos; o Medicaid, para as pessoas
pobres. Não é astrofísica. Mas você disse que queria entender! —
Willing nunca ficava satisfeito quando alguém interrompia sua linha
de raciocínio. — Eles estão numa sinuca. Não podem tomar
empréstimos. Poderiam aumentar os impostos. Mas os ricos já
pagam impostos altos. E agora, seus investimentos se foram. Os
ricos não estão ricos. Logo, as únicas pessoas que sobram para
pagar impostos são gente como você e Esteban. Que não podem
comprar repolho. É tirar sangue de pedra, como diz o Magno Grand
Man. O que mais se pode fazer? Fotocopiar o dinheiro.
Florence olhou para o filho.
— Que discurso agitado. E você era tão tímido.
— Nunca fui tímido. Ficava esperando ter alguma coisa para
dizer.
Willing parou e se virou para ela na calçada com um formalismo
característico, embora os dois estivessem quase na East 55th Street.
— Mãe, escute. Talvez seja uma sorte você trabalhar para o
município. Pesquisei isso. O município recebe umas verbas do
governo federal. Isso significa que os seus patrões têm acesso ao
dinheiro falso. Foi por isso que você recebeu um aumento tão
grande em março. E vai continuar a receber aumentos. Isso é parte
do problema. Muitas despesas do governo, como o pagamento de
salários, pensões e benefícios, estão atreladas à inflação. O que
significa que eles têm que continuar a imprimir cada vez mais
dinheiro para cobrir as despesas do orçamento, que aumentam
porque eles imprimem cada vez mais dinheiro. É o que o Magno
Grand Man chama de circuito de realimentação. A coisa toda vira
uma bola de neve, ganha vida própria. Ninguém consegue
acompanhar direito. Por isso, pode ser que os seus cheques de
pagamento não aumentem com rapidez suficiente. Verifiquei o
repolho na Green Acre. Está custando trinta e oito dólares.
— Que maluquice — disse Florence.
— Outra coisa — prosseguiu Willing, como se percorresse uma
lista. — À medida que o seu salário subir, você vai ser atingida por
alíquotas mais altas de imposto de renda. Eles não vão mudar as
faixas.
— Mas isso não é justo! Que saco!
— Saco fiscal — corrigiu Willing, carrancudo. — Sabe, é porque
pessoas como você entendem o contrário do que está de fato
acontecendo que os governos se safam e ficam impunes. A história
do “tudo está ficando muito caro!” faz parecer que o problema vem
de fora. Como se eles não pudessem controlar. Enquanto isso, eles
acham que estão controlando. Se controlassem em sigilo, isso
poderia ser desonesto. Mas não seria tão ruim. Acho que não. De
vinte para trinta e oito dólares em sete meses. Acho que estamos
num carro sem motorista, mas também sem computador de bordo.
Porque os erros realmente grandes foram cometidos há muito
tempo. Não dá para desfazer. É preciso pagar por eles, simples
assim. Foi isso que Alvarado não entendeu. Não se pode sair de
uma dívida fazendo um discurso. É preciso pagar, de um jeito ou de
outro. — O tom de Willing se tornara doloroso. — Acho que
começamos a pagar.
Recomeçaram a percorrer o restante do caminho.
— E quando foi que você teve todas essas conversas com o
Magno Grand Man?
— Nós não conversamos. Trocamos mensagens pelo fleX. Assim
fica mais claro. Ainda mais nas coisas que são complicadas. Ou que
parecem complicadas, quando não são.
Florence continuava inquieta com a afirmação anterior do filho de
que “os ricos não estão ricos”. Principalmente se pudesse presumir
com segurança que ele se apropriara dessa generalização, assim
como de grande parte da sua dissertação, tirando-a de Douglas
Mandible. Em um mundo ideal, ela estaria perturbada porque uma
reviravolta da sorte poderia forçar seu avô idoso a cercear os
prazeres finais da vida. Mas ela não tinha como se enganar: não era
isso.
— Nunca se esqueça da fonte de onde vêm as informações,
filhote. Eu não aceitaria tudo que o seu bisavô diz como se fosse lei.
Ele é liberal nas questões sociais, mas a riqueza sempre puxa as
pessoas para a direita, porque elas não podem se impedir de querer
conservá-la. Todo mundo tem segundas intenções.
— É por isso que eu faço uma triangulação — respondeu Willing,
obscuramente.
— Tenho andado distraída e não mantenho contato com ele há
algum tempo. O Magno Grand Man está bem?
— Acho que talvez esteja triste. Mas não é disso que falamos
pelo fleX. Sei que ele é monstro de velho, mas não parece velho nas
mensagens. E ele tem tempo para gastar, já que Luella tem a
cabeça de uma trava de porta.
— Não seja cruel. A culpa não é dela.
— Eu poderia chamá-la de trava de porta na cara dela. Ela não
se incomodaria. Não vejo por que não se fuzila gente assim. Seria
melhor.
— Willing, não fale assim.
Ele deu um suspiro.
— É gente como Luella que ajuda a explicar o que está
acontecendo. Ela é uma trava de porta cara.
— Espere até você ficar velho e de miolo mole. Também vai
querer que o fuzilemos?
— Vou.
— Ah, isso é o que todos dizem. Mas não falam sério, ou não
fazem a menor ideia do que é envelhecer de verdade. “Pode me
fuzilar!” é o tipo de afirmação inconsequente e barata que só pode
ser feita por gente saudável e sem imaginação.
— O Magno Grand Man diz que preferiria morrer a acabar como
Luella. E é mais velho do que ela.
— Quer dizer que, se eu ficar assim, você me fuzila?
— Se você quiser. Acho que não seria fácil — respondeu Willing
em tom sombrio.
— É um alívio ouvir você dizer isso.

***

Nessa noite, antes do jantar, Florence e Esteban dobraram a roupa


limpa no quarto, onde ainda guardavam a cesta de vime que ele
havia carregado desde Manhattan, no primeiro dia da Idade da
Pedra. Nem todo mundo podia achar romântico um cesto de vime.
— Você reparou como Willing tem ficado mais falante? —
mencionou Florence. — Ele foi muito introvertido durante anos.
Agora, tem esse jeito quase profético. Ele exorta. Faz preleções. É
cativante e assustador ao mesmo tempo.
— Você está elogiando ou reclamando? — Esteban casou
vitoriosamente um pé de meia perdido com um órfão de uma
lavagem anterior.
— As duas coisas, acho.
— Não é um recurso doméstico ruim termos nosso próprio
oráculo.
— Esse discurso de profeta não vai cair bem com os colegas dele
no colégio.
— Tenha fé — disse Esteban. — Aposto que na escola ele
guarda para si esse negócio de “eu vos trago a boa nova sei lá do
quê”. Ele não é um boboca social.
— Não tenho tanta certeza. Nesses sermões, ele parece
estranhamente motivado.
— Se ele é “motivado” a fazer alguma coisa, é proteger você.
— De quê?
— Talvez ele possa intuir alguma coisa que vem por aí. Nós, lats,
temos certa intuição do mistério, do invisível. E você é toda
pragmática, toda realista, toda pão, pão, queijo, queijo.
— Você está elogiando ou reclamando?
— Os dois, eu acho.
Ele a puxou para a cama e bagunçou suas pilhas de roupa. Para
não confirmar a caracterização de rigidez feita por Esteban, ela não
objetou.
— Mãe, quando você tiver um minuto, pode vir aqui? — veio a
voz da porta.
Certo, eles não a haviam fechado, mas também não tinham ido
muito longe. Willing, contudo, era desconcertantemente
desembaraçado diante do sexo. Talvez a educação pragmática e
realista de sua mãe nesse assunto tivesse feito aquilo parecer
corriqueiro.
Depois que se endireitou e brindou Esteban com um beijo que
prometia outras coisas mais tarde, Florence deixou-se arrastar para
o quarto do filho. Ele o mantinha arrumado, afora uns papéis
esvoaçando na escrivaninha e espalhados pela cama, todos
cobertos de equações, colunas de números e algo que, para olhares
distraídos, poderiam ser mapas astrológicos. Se é que lia alguma
coisa, a geração de Willing lia no fleX. Era frustrante, para o pai ou
mãe modernos, já não poder inferir coisa alguma sobre a vida íntima
de um adolescente a partir de uma reveladora prateleira de livros,
ou de pilhas igualmente reveladoras de revistas de interesse desse
nicho etário.
Willing fechou a porta e anunciou, em tom grave:
— Eu quero dar Milo.
— Mas que diabos? — exclamou Florence. — Você adora o
cachorro.
— É por isso que quero dar — insistiu o adolescente, com ar
militar.
— Fico estarrecida por você se dispor a sacrificar a única coisa
sua que você adora.
— Não sou dono do Milo. Assumi a responsabilidade por ele. Por
isso, tenho que agir em prol dos interesses dele. No longo prazo,
confiá-lo aos cuidados de outra pessoa também é do meu interesse.
Não quero me repreender por não ter feito o que era necessário
quando tive a chance.
— Está bom, benzinho, sei que você misturou um monte de
embromações confusas e ominosas com terríveis premonições
vindas do Magno Grand Man, que está tão velho que talvez sua
cabeça não esteja nos seus melhores dias. Essa é uma decisão
séria, e você vai ter que se explicar melhor.
— Eu vejo múltiplas possibilidades de cenários — disse ele,
metodicamente. — São todos sentimentaloides. Willing leva Milo
para o Prospect Park. Solta o cachorro da guia. Milo levanta os
olhos, cheio de expectativa. “Vá embora”, pede Willing. Milo arfa e
faz uma expressão confiante. Willing joga um pauzinho. Milo corre
atrás dele. Willing sai furtivamente do parque, com ar abatido, mas
resoluto. O cachorro pega o pauzinho. Willing chuta o cachorro. Milo
parece magoado, sobretudo pela traição. As lágrimas correm pelo
rosto de Willing. Ele chuta o cachorro com mais força e começa a
atirar pedras. Por fim, o cachorro entende a mensagem. Milo vai se
arrastando para o arvoredo, de cabeça baixa. Dá uma última
olhadela para trás, para o seu dono, com ar de incompreensão e de
amor imorredouro. Corta.
“Ou então, Willing tempera a última refeição de Milo com veneno.
É um pedaço de filé. O único filé que a mãe dele comprou em anos.
Milo come vorazmente a carne. O menino observa, enlutado. Passa
a hora seguinte segurando seu bicho de estimação, enquanto ele
gane e entra em convulsões. Por fim, Milo amolece em seus braços.
Cena pungente no quintal, com Willing insistindo em cavar
pessoalmente o buraco.
“Ou — concluiu ele, triunfal — curto e doce. Sem aviso prévio, em
um anoitecer comum de verão, na escadinha da frente, Willing
levanta uma marreta acima da cabeça de Milo e lhe arrebenta o
crânio, com expressão estranhamente impiedosa.”
Willing levantou os olhos, como se esperasse aplausos por sua
apresentação.
— Eu avisei — acrescentou. — Nauseante.
Florence não soube ao certo o que era mais perturbador no
recital, se a distante terceira pessoa, as imagens violentas ou o lixo
à la Disney.
— O que devo depreender disso — perguntou Florence —, além
do fato de ter sido crédula demais ao confiar que você não está
usando drogas?
— Não vamos conseguir comida para ele.
— Ah, meu bem — disse ela, baixinho. — Talvez você não deva
mais fazer compras comigo. Está levando a nossa situação muito a
sério. Talvez seja um desafio fazer o meu salário esticar até o fim de
mês, mas ainda podemos bancar a comida de Milo.
— Sei que podemos. Mas, na hora que não pudermos, ninguém
mais vai poder alimentar seus bichos de estimação, e não vamos
conseguir doá-lo.
— De onde você tira essas coisas? — intrigou-se Florence.
— Não sigo apenas o Magno Grand Man, se é com isso que você
está preocupada. Mas não pretendo dar o Milo a qualquer um. Com
certeza não vai ser para a Sociedade Americana de Prevenção da
Crueldade contra Animais, que, mais cedo ou mais tarde, vai virar
um campo de extermínio. Brendan. Que mora do outro lado da rua.
Ele tem dois filhos pequenos. Gosta do Milo. Ele é um bom cachorro
para crianças pequenas. É amável, nunca é bruto e não morde.
— Por que justo Brendan?
— Ele tem dinheiro. Dinheiro de verdade. Você me disse. Foi ele
que deu uma dica para você. O que significa que ele recebeu uma
dica.
Completamente desnorteada, Florence chegou a insistir que
Willing esperasse uma semana para pensar no assunto. Ele
esperou a semana. Continuou inflexível. No fim, Florence concluiu
que aquela era uma oportunidade para dar uma lição ao garoto. Se
tinha de invocar nuvens tempestuosas de presságios e portentos,
talvez esse profeta do apocalipse devesse pagar o preço, ao ver
que o céu não caía, afinal. Ficaria triste, mas eles poderiam arranjar
outro cachorro.
Por fim dando sinais de um temperamento afetivo normal e
saudável, Willing não quis entregar Milo pessoalmente. Para
surpresa de Florence, Brendan não só ficou agradecido por ser
presenteado com um bicho de estimação tão agradável e afetuoso,
como não questionou por que o filho dela decidiria privar a família
de um dependente de quatro patas. Pouco depois disso, Brendan e
sua família mudaram-se de lá, dando um adeus superficial aos
vizinhos e explicando apenas que iam “para o exterior”. O que era
esquisito, porque continuava a ser ilegal tirar mais de cem dólares
do país. Até que essa restrição fosse suspensa — esperava-se uma
suspensão dos controles a qualquer momento —, ninguém ia “para
o exterior”. A família levou Milo. Em vez de melancólico e
arrependido, para aprender sua lição, Willing pareceu aliviado.
Anunciou que pelo menos Milo estava a salvo.
• CAPÍTULO 7 •

A RAINHA GUERREIRA CHEGA A CARROLL


GARDENS

— Sua mãe e seu pai deviam ter fechado a conta e saído às onze
horas da manhã, comprende? — disse a recepcionista da Braços
Acolhedores, que já não usava crachá. As mangas estavam
arregaçadas acima dos cotovelos. Ela mascava chiclete. E era rude.
Carter detectara o mesmo esgarçamento do decoro em Nova
York. Os policiais se arrastavam em suas rondas, com o colarinho
aberto e os sapatos sujos. Os porteiros não abriam portas para
moradores mais vulneráveis nem se ofereciam para carregar
sacolas de compras, e pareciam ter dormido com seu uniforme. Às
vezes, as mudanças eram sutis — um maître que não acompanhava
os clientes até a mesa, apenas sacudia a cabeça, irritado, para
indicar que eles podiam sentar onde bem quisessem —, mas a
transformação sensível da vida cotidiana era substancial. A
anulação de algumas regras parecia haver aberto as comportas
para a anulação de todas.
— Fechado a conta e saído? — repetiu Carter. — Isto aqui não é
hotel.
— É uma empresa, chico — disse ela, estalando os lábios. —
Uma empresa com fins lucrativos, não uma obra de caridade, como
estou um monstro de cansada de explicar a vocês, se quer saber a
verdade.
— Imagino que não exista uma longa fila de candidatos
pleiteando as acomodações do meu pai, não é? — Carter deixou
cair a caneta do alto. Agora, a formalidade de assinar o registro na
entrada parecia uma asneira. — Você devia agradecer pelos
residentes que ficaram tanto tempo aqui quanto meu pai, porque é
graças a eles que ainda tem seu emprego.
As superfícies revelavam que já estavam cortando pessoal. Uma
linha de poeira preta marcava os rodapés. Os sapatos de Carter não
rangeram quando ele caminhou pelo corredor de mármore, onde o
fedor de urina era pungente — embora metade das portas ao longo
dele permanecesse aberta, com as unidades desocupadas. Do lado
de fora da porta dos fundos, que dava para os complexos
residenciais de primeira classe, a grama estava com quinze
centímetros de altura. Um tumulto de amores-perfeitos e
crisântemos em junho do ano anterior, agora os canteiros eram só
terra. Carter não ouviu nenhum cavalo. Não se surpreenderia se
tivessem sido sacrificados.
A porta de entrada do complexo de Douglas e Luella também
estava escancarada. De um modo assustador, capas de livro
emolduradas, embrulhadas em papel-bolha, estavam encostadas
nas paredes do corredor; nenhum desses objetos decorativos
caberia no carro. O tapete carmesim estava achatado por pisadas e
salpicado de barro.
Carter encontrou o pai na biblioteca, como sempre. As prateleiras
estavam vazias. Douglas mantinha-se imóvel, olhando para lugar
nenhum, cercado por torres de caixas de papelão. O terno creme
estava amarrotado, e ele não usava gravata plastron — um toque de
afetação que podia ter sido irritante um dia, mas cuja ausência era
pior. Ele não tinha uma aparência elegante e em forma, parecia
frágil e abaixo do peso. Sua postura desabara. Douglas Elliot
Mandible finalmente parecia ter cada dia dos seus noventa e oito
anos.
Carter perguntou, com um gesto amplo:
— Pai, o que é isso tudo?
— A biblioteca, é claro.
— Bem, é claro que estamos na biblioteca — disse Carter,
pacientemente.
— Não me transformei na Luella, filho. Refiro-me aos livros, não
ao cômodo.
— Se você tem o juízo tão perfeito, também deve estar lembrado
do que eu disse antes. Algumas roupas, seus remédios e artigos de
higiene pessoal, e talvez um punhado de recordações. Recordações
pequenas, não do tipo que enche um caminhão de mudança.
— Supus que você alugaria um veículo apropriado para a tarefa.
— Eu vim no BeEtle, no qual mal caberão você, Luella e pouca
bagagem. Não precisamos incorrer nessa despesa desnecessária
neste momento, e nossa casa já está abarrotada de porcarias. Você
pode baixar pela internet, num chip do tamanho de uma joaninha,
tudo que há dentro dessas caixas de papelão. Este é o momento
ideal para você ingressar no mundo moderno.
— Mas são primeiras edições autografadas! Se é de dinheiro que
necessitamos, esta biblioteca vale uns números grandes, na casa
dos seis dígitos!
— Nova York está inundada de velhos livros impressos, pai. —
Carter tentou dizer isso com gentileza, mas a exasperação levou a
melhor. — A sua geração deixou milhares de livros impressos, e as
pessoas mais jovens não querem isso. Então os colecionadores
escolhem. E mais, quais colecionadores? Você conhece alguma
pessoa de carne e osso que se separe do seu dinheiro, neste
momento, para comprar celulose suja de tinta? Se não conhece,
todas essas caixas vão ficar aqui.
A severidade de Carter foi descaradamente paternal. Mas ter
enfim recebido o status pleno de adulto não foi tão gratificante
quanto um dia ele havia esperado.
Retrocedendo para sua poltrona junto à janela, Douglas mais caiu
do que se sentou, e disse:
— Descartar uma coleção desta qualidade numa lixeira é um ato
de barbárie.
Carter ajoelhou-se junto à poltrona.
— O que existe de importante nesses objetos você pode levar
consigo. Você leu, certo? Eles estão na sua cabeça.
— Tudo que resta na minha cabeça é tristeza e confusão.
Ao ver o pai ficar choroso, Carter pôs a mão no seu ombro, que
lhe pareceu muito estreito e ossudo.
— Caramba, eles têm dado comida a você?
— Não muita. Não depois da ordem de despejo. Esqueça os
aspargos com molho béarnaise. São uns pãezinhos duros que eles
quase atiram na gente e uma espécie de presunto com jeito de
comida de cachorro. Que eu poderia ter tolerado, se o pessoal não
tivesse assaltado o meu bar. Tudo que eles deixaram foi um licor,
um donativo horroroso, casca de laranja macerada em gasolina.
— Desde quando os atendentes se servem do que é seu?
— Ouvi reclamações dizendo que os salários deles não cobrem
as despesas, por isso eles começaram a roubar. Por falar nisso, a
única coisa para a qual você precisa encontrar espaço nessa sua
miniatura de carro é o faqueiro de prata dos Mandible. — Douglas
deu um tapinha em uma caixa retangular de mogno sobre a longa
mesa central. Carter estava familiarizado com seu conteúdo; o M
floreado em cada talher pesado era inconfundível. — Ele poderia ser
útil pelo simples metal, a não ser que agora o governo federal passe
a confiscar prata. Faz semanas que não o perco de vista. Durmo
com essa caixa embaixo do travesseiro, e nem sei dizer como tem
sido desconfortável.
— Se você tivesse me dito que isto aqui estava indo para o
espaço, eu o teria resgatado mais cedo.
— É melhor adiar isso o máximo possível, pelo seu bem, filho.
Receio que a novidade de cuidar de Luella tenda a se esgotar
depressa.
— Você está se encontrando com Mimi de novo! Mimi, olhe para
mim. Não pense que eu não sei!
Por falar no diabo, Luella tinha vagado a esmo para dentro da
sala, usando o que um dia teria sido um vestido elegante, mas cuja
bainha estava em frangalhos, toda rasgada por ela, e cujo tecido
azul-celeste estava cheio de restos de comida grudados. A
protuberância da sua barriga fazia eco ao volume da fralda geriátrica
no traseiro. Carter se acostumara com essa encarnação decadente
da segunda mulher de seu pai, mas, quinze anos antes, o choque
havia sido profundo. Claro, ele se ressentira do modo como a
mulher mais jovem tinha se insinuado para seu patrão em 1992,
tornando-se, oh, totalmente indispensável em todos os
departamentos. Na época, ele também havia suspeitado que a
situação financeira do pai tornara a diferença de vinte e dois anos
mais palatável para Luella. Mas, logo que Douglas contraíra
segundas núpcias, Carter admitira que a mulher era um avião:
gloriosos 1,78 metro de altura, esguia e majestosa, postura
impecável, unhas primorosas e olho aguçado para o vestuário. Era
difícil culpar seu pai (embora ele o tivesse culpado, é claro). Mesmo
aos setenta e alguma coisa, ela não havia perdido de todo o corpão
— mas todo o resto se fora.
— Aquela mulher se dá ares de importância — acrescentou
Luella, com a irrefutabilidade ocasional que se tornara mais
desconcertante que seus disparates. — Mas eu sou descendente da
Rainha Guerreira da Costa do Marfim, Nana Abena Pokuaa! Que
governou o reino baúle dos Akans durante trinta anos! Tinta ramos!
Eu sou da realeza, e Mimi é plebeia. Princesa e teteia! De
comerciantes e lojistas. Assaltantes e oculistas! — Inclinou-se com
ar acusador sobre o rosto de Douglas: — Não pense que eu não sei.
— De vez em quando, ela se convence de que estou saindo de
novo com a sua mãe — explicou Douglas. — O que é emocionante,
porque, nesse caso, ela parece saber quem eu sou. Afora isso, a
parte do cérebro que inventa rimas para cartões de cumprimentos
continua intacta.
— Oi, Luella — disse Carter, inutilmente. — Hoje nós vamos
viajar.
— Viajar, virar, faniquitar. Agora! É hora!
Deu um risinho de menina, com uma tímida mão no rosto, depois
passou a língua no ar, como se tentasse pegar uma mosca. Esse
movimento rápido de espichar e lamber era um dos tiques de Luella
que ele menos gostava.
— Vai ser difícil fazer Luella entrar no carro?
— Ela pode ter acessos de pirraça sem aviso prévio —
respondeu Douglas. — Mas talvez tenhamos sorte. Lamento pelo
estado dela, mas, depois de atrasarmos o primeiro pagamento, os
auxiliares de enfermagem entraram em greve. Não tenho força para
trocar o vestido dela mais de uma vez por dia. Tem certeza de que
Jayne está disposta a fazer isso?
— Ah, Jayne é uma batalhadora — disse Carter, pensativo. Mas
o que teve vontade de dizer foi: “Faz diferença se Jayne está
‘disposta a fazer isso’? Qual é a alternativa: largar sua mulher em
uma cesta na porta de alguém?”
Porque, na verdade, Jayne estava fora de si. Para acabar com o
assunto logo de uma vez, Carter aplicara uma combinação de
golpes: sabe aquela herança com que eles estavam contando para
a aposentadoria? Não existia mais. O pai dele não fugira do
mercado rápido o suficiente para salvar a pele. Os títulos eram
reivindicações sobre a ponte do Brooklyn. O ouro e os investimentos
em ouro tinham sido confiscados. Quase todo o dinheiro vivo fora
absorvido pela dívida, já que, anos antes, algum idiota tinha
convencido Douglas a investir contando com a margem de seu
corretor. A Braços Acolhedores tinha sugado o pouquinho de
liquidez que restara, à razão de 27.500 dólares por mês. Surpresa
número dois: adivinhe quem vem jantar?
Jayne não era uma pessoa desprovida de generosidade, mas era
reservada e, desde o seu colapso nervoso, achava a companhia de
outras pessoas incomensuravelmente estressante. Parecia ter
perdido a facilidade elementar de bolar, com espontaneidade, temas
para conversa, ao mesmo tempo que sofria de um tremendo pavor
do silêncio social. Antes da chegada de amigos para um drinque, ela
passava uma hora espremendo Carter para saber sobre o que iam
falar — um desperdício, já que o convívio social não funcionava
assim e nenhum desses assuntos premeditados surgia com
naturalidade. Em pânico, ela introduzia os assuntos pré-fabricados
de forma arbitrária e acabava com qualquer incipiente pequena
interação que fosse bem-sucedida. Para Jayne, era medonha a
perspectiva de ter que interagir com hóspedes residentes, em
caráter permanente.
Além disso, para qualquer mulher de sessenta e nove anos,
adotar Luella, que era pouco mais velha que ela própria, significava
confrontar todos os dias seus maiores temores a respeito do futuro.
Quanto a Douglas, ele nunca havia realmente notado Jayne, que
era uma pessoa sensível, inteligente e intuitiva, mas que, mesmo
em seus tempos menos fóbicos, nunca se destacara especialmente.
Seu caráter se estruturava em uma escala pequena demais para
Douglas, que, justamente por isso, passara décadas aceitando com
descontração a hospitalidade dela, além de sempre retribuir
despachando-a com igual descontração, sem prestar a menor
atenção a quem estava enchendo seu copo, ou ao copo de quem
ele enchia. Sem um tostão, aos noventa e oito anos, talvez o sogro
nunca tivesse parecido menos intimidante, contudo, nenhum dos
dois podia recorrer a uma longa história compartilhada de
receptividade mútua.
Em suma, eles estavam diante de um desastre da pior espécie:
não um cataclismo único, como 2024, do qual as diversas partes
poderiam recuperar-se, mas um pesadelo ininterrupto e sem limites,
que só terminaria com a morte. Em menos de uma semana, Carter
talvez pedisse para morrer primeiro.

***

— E o Medicaid? — perguntou Jayne, de imediato, tateando em


busca de uma saída para a situação. — Se Douglas está na miséria,
pode se candidatar à internação numa clínica de repouso do Estado.
— Seis meses atrás, você estaria certa — disse Carter. — Mas
eu já falei para você: eles mudaram as regras. Se a pessoa tem
parentes próximos vivos que possuam bens, o Medicaid não paga a
conta. Os nossos planos de previdência privada e as nossas
aposentadorias foram trucidados, mas nós somos proprietários
dessa casa.
— E Nollie? Por que seu pai e aquela mulher perturbada dele são
um problema só nosso?
— Você sabe que a minha irmã está na França.
— Faça-a voltar da França. Foi você quem passou anos visitando
New Milford.
— É isso mesmo, porque são sempre as pessoas decentes que
se ferram. Nollie não foi parar na Europa só porque é metida.
Aquele oceano entre ela e a família é um muro protetor. Foi o que a
deixou livre de casamentos, enterros, aniversários e Natais durante
décadas, sem falar os deslocamentos até a Braços Acolhedores.
— Mas ela deve ter algum recurso escondido. Daquele suposto
“best-seller internacional”, não? Mesmo de longe, ela poderia pagar
a conta de um asilo. Talvez não tão opulento quanto o anterior. Mas,
com tantos idosos falidos, as instituições mais baratas devem ter
vagas. Em qualquer lugar do país.
— Nollie e meu pai sempre foram reservados ao falar sobre o
ganho de direitos autorais dela. E ela não deve estar recebendo
muita coisa agora. Como a ficção virou um pega-pra-capar, com
todo mundo escrevendo e ninguém lendo, e absolutamente ninguém
comprando, você quer apostar que ela vai dizer que está pobre?
Qualquer que seja a real situação financeira dela, essa é uma
alegação plausível.
Jayne começou a esvaziar a máquina de lavar louça, para poder
dispor de pratos para bater.
— Nunca a perdoei por ter sido tão categoricamente contra você,
quando você por fim conseguiu arriscar a afirmação de que talvez,
apenas talvez, uma velha solipsista sem filhos e um irmão mais
novo, com três filhos e quatro netos, não devessem dividir meio a
meio uma herança enorme. Quer dizer, o que ela ia fazer com esse
dinheiro? Comprar uma ilha e morar nela com um garotão de
programa, para cobrir o seu lombo murcho? Enquanto a pobre da
Florence tem que aceitar um inquilino...
— Agora isso não tem importância — interrompeu Carter. A rigor,
agora a profundidade daquele abismo entre irmãos era uma fonte de
tristeza. A discussão ácida a respeito de ele estar moralmente
habilitado a receber bem mais do que a irmã quando o pai morresse
por ter tido descendência e ela não, agora parecia uma versão
macabra de “O presente dos magos”.
— Douglas devia ter modificado o testamento assim que ficou
óbvio que Nollie era uma solteirona estéril...
— Esse vocabulário não combina com você. E eu levantei o
assunto com papai, sim, só porque você insistiu, e você está
lembrada de que foi muito constrangedor. Ele me fez calar a boca.
Disse que recebemos dinheiro para a faculdade dos filhos e netos,
além de ajuda para dar entrada na compra da casa, enquanto Nollie
não recebeu nenhuma dessas coisas, e que isso era suficiente; ele
não queria “escolher favoritos”. Mas nós conversamos até enjoar
sobre isso, e agora é uma discussão inútil.
— Não me interessa se o dinheiro acabou — prosseguiu Jayne,
indiferente, atirando talheres em uma gaveta. — A postura
gananciosa e implacável da sua irmã ainda quer dizer alguma coisa.
Aquela frase ressentida, “Mas é a minha metade, para eu fazer o
que quiser!”. Toda aquela indignação moralista a respeito da escolha
de ter filhos ter sido sua, e que ela “não deveria ter que pagar por
isso”, só porque era egocêntrica demais para se tornar mãe...
— Chega! — gritou Carter.
Era espantoso como a animosidade em torno de quem receberia
o que podia sobreviver além do ponto em que já não havia nada
para receber. Causava espanto ver que os sentimentos de Jayne
sobre a herança do marido sempre tinham sido mais exacerbados
que os dele — como se a cobiça em segundo grau se tornasse mais
aguda, pelo fato de o prêmio estar a mais uns tentadores
centímetros de distância, fora do alcance. No entanto, em nenhum
outro contexto Carter vira sua mulher como uma pessoa
gananciosa. A ferocidade com que ela havia cobiçado a herança
talvez derivasse do descaso do seu sogro: bem que poderia tirar
algo de uma relação que, afora isso, fazia com que ela se sentisse
insuficiente e desinteressante. Ou talvez a voracidade fosse
resultado do vigor com que ela tomava o partido do marido no
tocante às tensões contínuas entre ele e a cunhada. Infelizmente, o
partidarismo conjugal tem um caráter grosseiro e sem rodeios, e
perde de vista todas as nuances. Jayne tomava partido em uma
rivalidade sutil e conflituosa — o ressentimento e admiração
simultâneos que Carter nutria pela irmã combinavam-se em um
sentimento singular, que ele não sabia nomear — e a reduzia a um
simples antagonismo. Assim, muitas vezes Jayne o obrigava a
defender sua irmã, quando ele teria preferido reclamar.
Era fato que Carter se ofendia quando Jayne sugeria que, por
não lutar mais com Nollie por uma parcela mais justa da herança,
ele deixara de apoiar a própria família. Jayne tinha se tornado filha
única depois de sua irmã caçula cometer suicídio na adolescência
(uma tragédia, sim, mas cujo prazo de validade psíquica já deveria
ter prescrevido a essa altura — não que alguém conseguisse fazer
Jayne abrir mão desse trauma, que parecia conferir-lhe o status de
proteção especial reservado aos grandes marcos arquitetônicos).
De acordo com Jayne, somente a certeza de que a única filha que
lhes restara teria uma boa vida, providenciada pela Motores
Mandible S.A., fizera os pais dela se sentirem à vontade para gastar
suas economias. Seria impróprio objetar a que o casal fizesse uso
de seus próprios recursos, de modo que Carter e Jayne haviam
mordido a língua quando os dois resolveram passar férias em Bali,
obtendo para isso um refinanciamento da hipoteca. Quando
morreram em um acidente de balão no Marrocos, alguns anos
antes, os sogros de Carter não tinham deixado nada além de
dívidas. De algum modo, tudo isso também era culpa dele. Fazia
quarenta e três anos que ele e Jayne estavam casados, e já tinham
netos. Como quer que fosse, o fato é que ele deixara escapar
alguma coisa sobre o patrimônio dos Mandible quando os dois ainda
eram namorados. Inconscientemente, talvez houvesse exibido o
dinheiro como uma isca. A união do casal resistira à prova do
tempo, mas às vezes Carter se solidarizava com o pai — por ter de
viver com aquela interrogaçãozinha sobre o que havia realmente de
tão extasiante naquela relação de companheirismo.
— Ela é uma pessoa fútil e egoísta — disse Jayne, para resumir,
batendo com uma última panela ao guardá-la no lugar —, que, ao
menos uma vez na vida, deveria ser obrigada a contribuir.
Enquanto Carter ainda ponderava sobre como coagir a irmã a se
portar como membro da família, seu fleX tocou. E eis que Nollie
propôs não exatamente ajudar a resolver um problema, mas a se
tornar outro.
— Você não acredita no antiamericanismo deste país — começou
sua irmã mais velha. — E eu que pensava que antes era ruim.
Assim que eu abro a boca...
— Eu pensava que o seu francês era tão perfeito que ninguém
conseguia adivinhar que você é americana — interrompeu Carter,
em tom seco.
Antes fino e sedoso, agora sem vida, o cabelo de sua irmã,
pintado em um tom de caramelo, ficara ainda mais ralo, expondo
vislumbres de couro cabeludo. Aos setenta e três anos, ela ainda se
portava com alguma soberba e impetuosidade juvenil. Por conta de
uma vida inteira de sarcasmo, a ruga em volta do lado esquerdo da
boca era ligeiramente mais sulcada que a da direita. Sua
compleição magra e musculosa não impedira, no entanto, a
inexorável formação da papada que herdara da mãe deles. O
pescoço de Nollie — a única parte do corpo humano que nunca
mente — tinha estrias e um inchaço incipiente embaixo do queixo.
Não restava dúvida de que a irmã estava fazendo uma avaliação
similar da imagem do irmão, com a mesma mescla agridoce de
triunfo e tristeza. Carter tinha sido de uma beleza mediana em sua
época; Nollie fora um desbunde. Era engraçado, mas ele se
acomodara à flacidez das bochechas e ao esmirrar das madeixas.
Mas via qualquer desintegração da aparência de sua dominadora
irmã mais velha como um choque. A pessoa sempre imagina que
vai saborear a decadência dessas mesclas de ícone com nêmesis.
Está sempre enganada.
— Eu nunca disse nada disso — declarou ela. — Você vive me
imputando toda sorte de presunções só porque moro em Paris. Meu
sotaque é ligeiramente melhor que o do americano médio, o que
significa que é pouco menos que tenebroso. Eu nunca disse que
minha nacionalidade era indetectável. Quem me dera! Eles sempre
nos detestaram por sermos grosseiros e por dominarmos o mundo.
Agora nos detestam por não dominarmos o mundo. Agora, somos
os ladrões traiçoeiros que levaram todo o sistema monetário
internacional à beira do colapso, e só Putin e companhia, com seu
corajoso bancor, é que correram para resgatá-lo. A coisa ficou
estranhamente pessoal. Os franceses andam descontando nos
estrangeiros que vivem aqui, porque, agora que uma bisnaga custa
o equivalente a cinquenta dólares, já não existe nenhum turista
americano. Ontem à noite, uma mulher no supermarché jogou um
pote de crème fraîche no meu cabelo.
Nollie sempre fora arrogante em suas opiniões, e Carter não se
surpreenderia se ela fosse agredida com crème fraîche por se
recusar a guardar suas opiniões, mesmo em um supermercado. Em
sua melhor fase, Enola Mandible tinha sido uma ótima palestrante,
apresentando-se em inúmeros festivais literários, na esteira de seu
único grande sucesso. Ele a vira falar, certa vez, na Associação
Hebraica de Moços da 92nd Street Y, dirigindo-se àquele tipo de
plateia cativa que não era preciso conquistar — que já estava
satisfeita com a atração principal e só queria comprazer-se ainda
mais. Assim, ela pudera soltar umas opiniões que, para qualquer
pessoa medianamente inteligente, teriam constituído um repertório
prosaico nos jantares, mas que foram transmitidas a seu bando de
fãs entusiasmados como revelações capazes de alterar o curso da
vida. Por isso mesmo ela pôde contar a mesma velha piada sem
graça, mas, como os escritores tinham a merecida fama de
conservadores e maçantes, a plateia encantada por antecipação a
havia achado hilariante.
— Tudo isso é muito interessante — disse Carter —, mas nós
temos que conversar sobre o papai...
— É claro que temos, mas podemos fazer isso cara a cara. Aí é
que está, Carter. Estou voltando para casa. — Fazia décadas que
Nollie não se referia aos Estados Unidos como casa.
— Voltando para casa onde? — indagou ele, ressabiado.
— Bem, com todos os seus quartos extras... Achei que, como de
praxe, você sabe, eu poderia ficar na sua casa.
— Nada feito. É isso que estou tentando falar. O papai e a
companheira amalucada dele estão de mudança para cá. Ele não
pode mais pagar aquele curral de engorda. Espero que você não
esteja contando com a “fortuna” da família Mandible, porque ela
acabou.
— Puta merda! Você está querendo dizer que ela... diminuiu,
não?
— Quero dizer que acabou.
O silêncio, que estava longe de ser a forma de comunicação
favorita de Nollie, disse tudo: ela estava contando com a herança. É
claro que sim. Todos estavam.
— Suponho que eu não deva me surpreender — disse ela por
fim, em tom soturno. — Por que a nossa família haveria de ser
diferente. — Não era uma pergunta. — Cacete, sobrou algum
americano rico?
— Se sobrou, está se mantendo na moita. Então, se você voltar
mesmo para cá, não reclame e fique de boca fechada. Não é uma
coisa que vem com naturalidade para você, então trate de ser
cuidadosa. O país inteiro está convencido de que os “ultrarricos” se
mandaram, levando a grana com eles. A verdade é que, para ser
roubado, o sujeito tem que ter alguma coisa roubável. De modo que
a turma que se deu realmente mal é, claro, aquela de que ninguém
tem pena.
— Talvez a gente não deva esperar solidariedade — comentou
Nollie, despertando do susto —, já que nunca merecemos o
dinheiro, de qualquer maneira...
— Pode esquecer o papo furado de boa moça comigo, irmãzinha.
Jayne e eu estávamos pensando em levantar acampamento e ir
para um rancho em Montana, quando o navio dos Mandible
atracasse. Agora, estamos na mesma titica velha em Carroll
Gardens, na expectativa de uma segunda carreira como enfermeiros
geriátricos em horário integral.
— Bem, você tem aqueles outros dois quartos...
— Papai não pode dormir com Luella, ela precisa de um quarto
individual, parece que sofre de “agitação noturna”. Então Jayne vai
precisar mais do que nunca do Quarto Silencioso dela.
— Ah, certo. Eu tinha esquecido. O Quarto Silencioso de Jayne.
— Não seja debochada. Você mesma ocupa um bocado de
espaço, minha querida. Se está precisando de um lugar para ficar,
por que não faz as pazes com a mamãe? Aquele apartamento dela
é do tamanho de um campo de futebol americano.
No acordo do divórcio, Douglas ficara com os móveis e
apetrechos vindos da Casa da Abundância, mas a mãe deles havia
conservado o apartamento de quatro quartos do casal, na esquina
da avenida West End com a 88th Street. Infelizmente, quando Nollie
aplaudira a “redescoberta do desejo” feita por seu pai, em 1992, a
fúria de Mimi foi avassaladora e durou tanto quanto lixo radioativo.
Em resposta a ela, Nollie endurecera, e, embora até hoje não
gostasse de admitir, ser deserdada pela mãe e banida da casa em
que fora criada tinham sido mágoas profundas. A briga ajudava a
explicar a precipitação da partida dela para a Europa, alguns anos
depois — bancada pela renda de um romance baseado fortemente
em fatos reais, que recapitulara o triângulo Mimi-Luella-Douglas em
termos que eram suficientes para manter vivo o ressentimento
materno.
— Não vamos entrar neste assunto — disse Nollie. — Além
disso, ela perceberia logo que qualquer reaproximação teria como
objetivo me garantir uma cama grátis. Ela é velha, não é idiota.
— Talvez seja melhor você ficar na França.
— Não posso. Para uma americana, qualquer lugar na Europa é
fisicamente perigoso. Estamos sendo agredidos. E não é só com
crème fraîche.
— Fique em casa à noite, então. Com certeza isso vai passar.
— Além disso, este país está longe de ser uma grande soirée
regada a vinho. Metade da população está sempre em greve. De
que adianta um sistema ferroviário sensacional que nunca funciona?
Eles ficam apopléticos por não poderem se aposentar todos aos
cinquenta e dois anos. Todos esperam receber seus subsídios para
a criação dos filhos, suas aposentadorias milionárias, pagar uma
ninharia simbólica pela assistência à saúde, contar com uma carga
horária de trabalho reduzida e com dois anos inteiros de seguro-
desemprego, com um salário que a maioria dos advogados não
ganha, e tudo isso são direitos humanos. Junto com tantos feriados
e períodos de férias, os sacanas passam um terço do ano de pernas
para o ar. Ah, e todo mundo quer trabalhar para o governo, e a
maioria consegue. É um caso típico de pôr a carroça na frente dos
bois. E assim, o país inteiro entra no trem da alegria e se pergunta
por que ele não anda.
— Com certeza é melhor do que aqui.
— E depois, toda essa coisa dos muçulmanos está fora de
controle — prosseguiu Nollie, indiferente, em sua fala provocadora.
— Se eu ando pela Champs-Élysées, sou agredida por ser caloteira.
Se ando em algum lugar menos central, tomo porrada por não estar
vestida de saco de lixo. Até na França eles desistiram da jogada da
assimilação e optaram pela pacificação servil. Na verdade, há
regiões inteiras desse país que são zonas proibidas para os próprios
franceses. Agora é a mesma coisa na Europa inteira, então não há
nenhum lugar para ir.
— Está me parecendo que você se tornou muito popular por aí.
— Ah, é igualzinho aos Estados Unidos. Estão todos resignados.
Agora os Estados Unidos são o Grande México, e a Europa
continental é uma extensão do Oriente Médio.
— Escute, você tem algum dinheiro?
— Algum — respondeu Nollie, cautelosa. — Em bancores, por
sorte.
— Não se pode ter bancores aqui nos Estados Unidos.
— Cara, essa é a terra dos homens livres! Mas, oficialmente, não
se pode fazer uma porção de coisas. A taxa de câmbio está louca,
mas pelo menos está a meu favor, e enlouquece mais a cada dia
que passa. Que raios está acontecendo aí? Toda vez que olho, o
dólar tornou a despencar.
— Eu ia dizer... não quero falar por ela, mas, se você tiver
recursos, talvez a Florence possa te receber. O inquilino não está
pagando nem perto do valor do aluguel no mercado, e se tornou
mais um dos casos de caridade dela. E você e Florence sempre
parecem se dar bem. — “O que ultrapassa a minha compreensão”,
foi a frase que Carter não acrescentou.
— Gosto daquele garoto, Willing. Não sou muito chegada a
crianças. Engraçado, ele falou comigo pelo fleX uns meses atrás.
Queria saber se era muito difícil emigrar para a França. Eu disse
para ele esquecer a ideia, mas a pergunta, apesar de peculiar,
mostrou garra. Enfim, vou levar uns meses para resolver as coisas
por aqui, então temos tempo para explorar as alternativas.
— Pense nisso. Você sabe — Carter teve de se forçar a dizer —,
vai ser um prazer revê-la.

***
Recapitulando: ele não conseguira deixar a irmã tentada a dar
algum apoio ao pai e à mulher/bicho de estimação dele, fosse
financeiro ou logístico. Típico. Nollie tinha passado a vida inteira
fazendo o que queria. A ideia de “obrigação” era estranha a ela, e só
as pessoas que reconheciam e respeitavam o dever é que ficavam
sobrecarregadas por ele.
Carter se permitiu um último passeio pelas acomodações do pai,
para se despedir de uma porção de objetos que haviam mobiliado
sua infância, usando o fleX para tirar com discrição algumas fotos
de recordação. Escurecidos por horas de absorção em todo aquele
futuro aterro da biblioteca, o sofá de couro acolchoado com quatro
lugares e as poltronas que o acompanhavam exibiam uma
habilidade artesanal que o mundo nunca mais veria. O mesmo se
aplicava à mesa de jantar, de madeira de bordo, com nós
desenhando ondas e pés em forma de patas, da qual ele e Nollie
tinham sido exilados em ruidosos jantares só para adultos, com as
sumidades e os eruditos da época; era provável que também já não
se fizessem sumidades e eruditos daquela qualidade. As superfícies
estavam salpicadas de tesouros, os detritos francamente inúteis,
mas caríssimos, que eram dados aos ricos, como o requintado
relógio em formato de livro aberto, cujos números pequeninos eram
muito mal posicionados para dizer a hora certa e cuja bateria havia
acabado na década de 1980. Era presumível que os funcionários da
clínica de repouso fizessem um grande bazar de objetos usados
depois que os residentes da estirpe de seu pai tivessem ido embora,
mas não levantariam muito dinheiro. Carter havia entrado em
contato com alguns corretores patrimoniais sobre a liquidação dos
bens de seu pai, mas eles deviam estar inundados de pedidos
semelhantes, pois não houve retorno de nenhum de seus
telefonemas.
Na época em que imaginar o empobrecimento repentino de
Douglas, da noite para o dia, teria sido um simples jogo de sudoku
emocional, Carter teria acreditado que o efeito da retirada completa
do dinheiro da equação do relacionamento deles seria, digamos,
“considerável”. Não teria previsto que seria mais como um “abalo
sísmico”. Constatou-se que a fortuna perdida por Douglas não tinha
sido apenas um elemento preponderante no trato entre eles; para
todos os fins e efeitos, tinha sido o único elemento. De forma
aterradora, aquela grana que espreitava nos cantos controlara tudo
que Carter fazia na presença do pai, assim como tudo que dizia.
A surpresa da súbita penúria não estava apenas na escala da
mudança, mas na do seu caráter. Em retrospectiva, a fortuna
distorcera a própria natureza de Douglas Mandible. Tornara-o
desconfiado, cético e distante, sigiloso, manipulador e superior.
Havia exagerado uma hierarquia pai-filho que, na idade avançada
do pai, deveria estar se desarticulando. Nesses últimos dias,
Douglas se mostrava espantosamente aberto, carente e direto.
Quanto a Carter, antes que o elefante saísse da sala, ele não
fazia ideia do quanto se ressentia dele. Passar décadas girando em
volta do dinheiro, ser de uma deferência exagerada, agitar-se ao
pensar em quando aludir a ele ou evitar criteriosamente a sua
menção. Questionar-se sobre por que, na verdade, fazia aquelas
peregrinações obedientes a New Milford, e, ainda que pelos mais
fugazes momentos, ansiar pela morte do pai. Tudo isso o fizera
sentir-se venal. Vulgar. Indigno, escabroso e moralmente falido. E
ele se ressentira do pai — da cumplicidade do homem em fazer com
que ele se sentisse um verme fraco e dissimulado, e do seu franco
abuso de poder (a exemplo daquela demora sádica, antes do
Discurso da Moratória, em que Douglas havia brincado com ele,
arrastando o veredito sobre o que restara dos investimentos, e se
divertindo com isso; a cena voltou à lembrança de Carter em uma
onda de repugnância). Por isso, embora esperasse sentir-se
consumido pela fúria, já que Douglas não protegera bem o cofrinho
da família, a sensação dominante foi de alívio.
É que era impossível ficar zangado com o pobre sujeito.
Despojado do seu poderoso porrete financeiro, Douglas Mandible
era apenas um homem muito idoso com uma porção de vaidades
comoventes, nenhuma influência e montes de amigos mortos.
Carter teve a sensação de ver seu pai com clareza pela primeira
vez. Não havia nenhum edifício colossal contra o qual enfurecer-se
— apenas um homem meio acabado, que precisava da sua ajuda. É
óbvio que Douglas ainda sabia ser exasperante, e as consequências
práticas de sua insolvência foram cataclísmicas. Mas, de modo
geral, para assombro do filho, em todas as visitas feitas à clínica
naquele ano, Carter fora inundado de ternura, às vezes a ponto de
chegar às lágrimas. (Purgado das intenções ocultas, ele havia
continuado a fazer as visitas, não é? De uma forma perversa, o
despojamento dos bens trouxera uma dádiva: certa manhã, Carter
acordou e descobriu que não era um monstro. Até então, nem se
dera conta de que se sentia um monstro. Era o mais monstruoso de
tudo.) Diante dos choramingantes pedidos paternos de desculpas
por haver administrado mal o patrimônio, Carter havia afirmado
repetidas vezes que os acontecimentos do outono anterior eram
imprevisíveis, que quase todos os outros americanos ricos tinham
sofrido o mesmo destino e que a aniquilação da fortuna não era
culpa do seu pai. Não importava se Carter acreditava mesmo na
letra dessa canção de ninar, ele pôde enfim gostar do pai e gostar
de si mesmo. Livre para ser genuinamente bom — a bondade
praticada por um objetivo oculto não se chamava bondade —, ele
também ganhou uma nova liberdade para ter um comportamento
brusco, mal-humorado, entediado, irritado, impaciente e desatento,
se não indiferente, como uma pessoa de verdade. Só então pôde
avaliar o quanto o desejo de agradar impunha distância, criava
falsidade, mesmo quando uma afirmação feita para ser agradável
era verdadeira; aquilo estragava o senso de humor.
Com afeto, Carter se lembrou de pôr a caixa de mogno do
faqueiro dentro de uma surrada sacola de lona usada para carregar
livros e distribuída pela Barnes & Noble, extinta desde longa data.
Levou-a tranquilamente para o banco de trás do carro, certificando-
se de voltar a trancar o automóvel antes de retornar para buscar a
bagagem. Para sua consternação, Douglas se apegara a uma
enorme mala de couro da década de 1940, coberta de etiquetas de
destinos exóticos e criada para viagens marítimas com enxurradas
de carregadores. Sem rodinhas! E também não havia carregadores,
já que os funcionários da Braços Acolhedores tinham ficado de mau
humor com os moradores cujas contas estavam em atraso. Aos
setenta anos, Carter não deveria estar puxando fardos tão
desajeitados e pesados, não com sua artrite nos joelhos e com um
disco meio duvidoso na coluna lombar. Dos degraus da recepção,
alguns musculosos auxiliares de enfermagem latinos observavam as
suas dificuldades com desdenhosa indiferença.
Finalmente arrastada até o BeEtle, a maldita bagagem não entrou
no porta-malas do carro. Sob o olhar implacável dos tais auxiliares,
foi humilhante desconstruir o trabalho de embalagem feito por seu
pai e enfiar os ternos brancos, as gravatas, as cuecas com
monograma e os sapatos de cordovão, com delicadas costuras
manuais, nos sacolões de lona guardados sob o banco dianteiro do
carona para as viagens a Fairway. Espremidos entre as pilhas de
fraldas geriátricas que Carter tivera a prudência de surrupiar dos
armários da clínica, os pertences pareciam doações para um bazar
de caridade. Ele não conseguia imaginar Jayne passando todas
aquelas peças de linho.
Luella caminhara para longe. Os dois homens levaram meia hora
para encontrá-la, choramingando e com a roupa presa no arame
farpado do perímetro. De modo inquietante, em vez de ajudar a
soltar o vestido de sua mulher, Douglas voltou para o carro,
arrastando os pés. Ao se debater, Luella tornava a prender o vestido
quase com a mesma velocidade com que Carter conseguia soltar o
tecido, aos gritos de “Phasers regulados para tontear, Capitão!”.
Carter bateu palmas depois que ela se soltou.
— Vamos lá, Luella! Isso, menina, vamos andando!
Quando ela o atendeu, Carter percebeu como seu pai havia caído
naquela história de tratá-la como bicho de estimação. No carro,
porém, ela empacou, menos como um cachorro do que como uma
vaca que sente o cheiro do abatedouro.
— Nunca, não quero, não posso, não! — gritou, sacudindo os
braços para a frente e para trás. Como as crianças pequenas, era
comum Luella situar seu único senso de ação na negativa.
— É melhor deixar que ela se canse — recomendou Douglas, do
banco do carona. Dito e feito: após se debater por alguns minutos,
Luella arriou no cascalho feito roupa amarfanhada, e Carter pôde
levantá-la e depositá-la no banco traseiro, com os olhos revirados
para trás e os braços e pernas moles.
— As vacinas dela estão em dia? — perguntou Carter, dando a
partida no carro. — É que ela se arranhou naquele arame farpado
enferrujado. Pode haver perigo de tétano.
— A gente sempre pode ter esperança — disse Douglas.
No trajeto melancólico para a cidade, Carter indagou:
— Vocês têm alguma fonte de renda neste momento?
Rendimentos, aposentadorias, debêntures de empresas?
Agora que não havia dinheiro, eles podiam falar de dinheiro. O
risinho de Douglas transformou-se em tosse.
— Sempre temos o Seguro Social!
— Não zombe. Muita gente só está se aguentando por causa do
Seguro Social.
— Mas de onde vem o dinheiro deles? A retenção sobre as folhas
de pagamento deve ter despencado.
— Eles têm que entregar aqueles cheques, ou haveria uma
insurreição nacional.
— Na minha idade, eu não assustaria muitos burocratas num
piquete.
— Você ainda pode votar.
— Por enquanto — disse Douglas. — Sei que nós, as relíquias,
tendemos a ver as coisas com pessimismo. Mas eu não contaria
com mais nada, e isso inclui o direito de chutar os vagabundos para
fora do governo.
Fazer previsões sobre o fim da democracia americana parecia
tolice, e Carter não levou o assunto adiante.
Após um trajeto que se tornara sinuoso desde o fechamento
parcial da autoestrada Brooklyn-Queens, eles entraram em Carroll
Gardens.
— Eu achava que este bairro tinha se transformado na reluzente
fortaleza da classe dos profissionais liberais — comentou Douglas.
— Não é tão chique quanto eu lembrava.
Todos os quarteirões sofriam o flagelo das propriedades
comerciais fechadas. Restaurantes da elite que, nove meses antes,
mantinham longas listas de espera, tinham janelas sujas, cobertas
por cartazes de “aluga-se”. Lojas que vendiam quinquilharias de
luxo, como móbiles para berços, estavam fechadas com tábuas de
madeira. A cidade reduzira os gastos com a limpeza urbana, de
modo que havia lixo acumulado nas calçadas. Os mendigos eram
não só mais numerosos, como também mais velhos e mais bem-
vestidos. A mendicância sempre aumentava nas fases de declínio
da atividade econômica, mas os cartazes que os pedintes
carregavam eram característicos desta fase: ARRUINADA POR MEU
PRÓPRIO GOVERNO! ALVARADO ME DEIXOU LISA — DOE, POR FAVOR! MINHA
FILHA E O MEDICAID SE RECUSAM A ME ACOLHER!! EU PODERIA SER SUA AVÓ.

Carter não tinha renovado o aluguel do estacionamento, e parar


na rua era difícil por conta dos carros abandonados, que os policiais
demoravam a rebocar. Encontrar uma vaga levaria algum tempo, de
modo que ele deixou os passageiros e sua bagagem na frente de
casa. Alertada sobre sua chegada por meio de uma mensagem no
fleX, Jayne estava na escada para recebê-los, com uma expressão
cristalizada de boas-vindas que vinha direto de uma foto de reação
a um filme de terror. Ela esvoaçava em um daqueles vestidos
escuros até os tornozelos, nos quais passara a se aninhar desde o
colapso nervoso — aquelas massas de tecido com que as mulheres
mais velhas frequentemente escondem o aumento de peso, embora
Jayne fosse uma neurótica que beliscava a comida e era
perturbadoramente magra. Aquela expressão torturada — que ela
decerto imaginava ser um ar de satisfação, franqueza e alegria —
pareceria dor aos olhos de qualquer outra pessoa. O fato de ela
pintar o cabelo de um tom severo, preto como azeviche,
intensificava a sugestão de fraudulência. Era uma pena. Jayne
Darkly tinha sido uma linda mulher, uma mulher sincera, e aquela
imagem era injusta.
Mas, por falar em dar a impressão errada, com uma elegância
que fazia lembrar a que havia atraído o pai de Carter no começo do
relacionamento, Luella segurou graciosamente acima do joelho a
bainha esfarrapada do vestido e pisou na calçada de forma
majestosa.
— Muito prazer — disse, tocando as mãos de leve nos ombros de
Jayne e beijando afetadamente sua anfitriã nas duas faces. — Ora,
sinto incomodá-la, mas estou louca por uma xícara de chá.
Jayne olhou de relance para Carter, surpresa, e ele deu de
ombros.
— Não se acostume.
• CAPÍTULO 8 •

AS ALEGRIAS DE SER INDISPENSÁVEL

Quando Lowell marcou uma “reunião de família”, os filhos nem


sabiam o que era isso.
— Significa que vocês todos aparecem na sala de estar na
mesma hora, sem desculpas, e calam a boca.
Nos últimos meses, as sensíveis habilidades parentais de Lowell
tinham se desgastado.
— Mas minha equipe de debate vai planejar a estratégia na
quinta-feira à noite — objetou Goog.
— Não dou a mínima para sua equipe de debate, e logo — Lowell
temeu estar deixando escapar a pauta da reunião — você também
não vai dar.
Como essa prática formal nunca fizera parte da rotina dos
Stackhouse, a convocação foi ressentida. Goog fechou a cara no
sofá, de braços cruzados. Bing ficou chutando repetidamente a
banqueta para apoio dos pés. Savannah enroscou-se no chão,
emburrada, polindo as unhas, com o corpo virado para a janela
panorâmica escura, como se ninguém mais estivesse presente.
Lowell e Avery tinham discutido qual dos dois tomaria a palavra.
Justiça seja feita, Avery se oferecera voluntariamente.
— Eles vão detestar qualquer um que descreva a situação tintim
por tintim — admitira.
— Muito em breve, eles vão detestar nós dois. Eu bem que
poderia agir como homem. Já são bem poucas as minhas
oportunidades — contra-argumentara Lowell.
E assim, Lowell permaneceu de pé, enquanto Avery se
empoleirou no braço de uma poltrona reclinável, como que
preparada para lidar com os filhos que tentassem dar no pé.
— Quando eu era garoto — começou o pai, no que não era a
introdução mais propícia, uma vez que quando ele era um garoto
teria descartado de imediato qualquer discurso iniciado por Quando
eu era garoto —, só tinha uma noção extremamente vaga do que
meus pais faziam para ganhar a vida, e não me importava muito, na
verdade. Não me importava em saber como eles garantiam que
sempre houvesse comida e coisas na geladeira. Só o que importava
era que, quando eu quisesse comer, podia fazer um sanduíche. Eu
não tinha carta branca para fazer ou comprar o que bem
entendesse, mas, dentro do razoável, era privilegiado... embora nem
de longe tão privilegiado quanto vocês três. Mas vocês todos devem
estar cientes de algumas grandes mudanças ocorridas neste país
desde o outono passado, porque nós os criamos para que
prestassem atenção a esse tipo de coisa. Receio que isso também
signifique grandes mudanças para nossa família. Mamãe e eu
queremos que vocês saibam que não estamos fazendo isso por
sermos dois grandes malvados. Não temos alternativa.
— Qual é a dos tambores rufando? — perguntou Goog. — Na
aula de oratória, eles desaconselham o excesso de preparação.
Quando há muito tchã-tchantchã-tchã, não importa o que você diga
depois, a plateia fica desapontada.
— Vocês vão ficar desapontados — rebateu Lowell. — A partir do
próximo semestre letivo, você e Bing serão matriculados na escola
pública. Não podemos mais pagar a Gates e a Sidwell. Goog, você
vai para a Escola Secundária Theodore Roosevelt, em Petworth.
— Mas Petworth é... — objetou Goog.
— Petworth é o quê? — Lowell queria fazê-lo dizer a palavra.
— Lat — resmungou Goog, ao menos parecendo se sentir
envergonhado.
— E qual é o problema disso? — A pergunta de Lowell ficou no
ar. — Bing, nós tentamos pôr você no Ginásio Deal, que fica mais
perto e talvez tenha um corpo discente... com a mentalidade mais
parecida. Só que eles não têm nenhuma vaga. Há muitos pais como
nós, que estão na mesma situação. Por isso, no ano que vem, será
a Escola Elementar Tubman, em Columbia Heights.
— A Tubman tem orquestra? — perguntou Bing, em uma vozinha
miúda.
— Ora, qual é, todos os meus amigos estão na Gates, e a
Roosevelt é uma barra de barata! — exclamou Goog. — Muitas
escolas públicas não têm a menor participação no circuito de
debates interescolares! Aposto que a Roosevelt nem tem time de
lacrosse.
— Não, Goog, não tem lacrosse, e não, Bing, hoje em dia, eu não
levaria um instrumento que valesse cinco centavos para aquele
bairro, mesmo que eles tivessem orquestra.
— Vou ter que levar e buscar vocês de carro na escola, meu bem
— explicou Avery a Bing, que estivera fazendo a pé os quatro
quarteirões para frequentar a Escola Sidwell Friends. — Só por
segurança.
— Como você vai fazer isso? — perguntou Savannah em tom
frio, ainda virada para longe do resto da família e concentrada em
suas mãos. — Pensei que você trabalhasse fora.
— O consultório da mamãe — disse Avery, curiosamente
impelida a usar a terceira pessoa — é parte do problema. Os
pacientes não podem mais pagar por suas sessões. O que significa
que a mamãe não consegue arcar com o aluguel do consultório.
A completa falta de envolvimento no mundo profissional dos pais,
já mencionada por Lowell, era palpável na sala. Os detalhes do que
os levara a retirar os filhos do ensino particular eram, claramente,
fonte de uma perfeita indiferença. A garotada deve ser assim em
qualquer lugar: tudo que importa é o que acontece com eles.
— Talvez, se você fizesse o tipo de terapia que é útil de verdade
— disse Savannah —, se não fosse uma besteirada meio mística,
as pessoas ainda pagassem por ela.
— O que é útil para as pessoas muda — argumentou Avery, com
controle admirável.
— Quanto a você — Lowell virou-se para a filha —, estamos
todos muito orgulhosos por ter sido aceita na Risdee. É uma grande
conquista. Mas receio que precise optar por postergar o ingresso, e
também não posso fazer nenhuma promessa sobre o ano que vem.
Savannah virou-se para encará-lo. Ele nunca tinha visto a filha
olhá-lo com uma expressão tão desdenhosa. Quando menina, ela
fora cegamente afetuosa, e Lowell se contraiu ante a frieza distante.
Talvez não se pudesse conhecer uma pessoa a fundo, até ela parar
de conseguir tudo do jeito que quer.
— Isso tem a ver com as finanças, certo? Se estou identificando
o padrão aqui, posso pleitear o apoio de uma bolsa. Se vocês estão
tão falidos assim, pode ser que eu me qualifique para a bolsa com
base na necessidade.
— Fique à vontade — retrucou Lowell. — Mas boa sorte. As
dotações universitárias foram devastadas em todo o país. Isso inclui
a Georgetown, que nem me pagou este mês. Deve ter sido apenas
um lapso, mas dificulta mais a vida, por enquanto.
— O que é dotação? — perguntou Bing.
— Uma espécie de fundo de poupança. Quando tudo está
normal, as escolas podem funcionar usando os juros e dividendos
dele.
— Mas você disse que o mercado ia se recuperar! — acusou
Goog. — Você disse que seria mais depressa do que todo mundo
esperava. Você disse que íamos ganhar uma fortuna!
— Talvez eu ainda esteja certo, no longo prazo...
— “No longo prazo, todos estaremos mortos” — citou Goog. —
John Maynard Keynes. No longo prazo, isso não vai nos ajudar nem
um pouco a obter uma educação decente.
— Eu nem me daria o trabalho de explicar isso à maioria dos
garotos, mas você é inteligente o bastante para entender — disse
Lowell. — Os juros da nossa hipoteca dobraram. Com o aluguel
atual do consultório, a renda da mamãe é negativa. Os alunos não
conseguem arcar com o custo de frequentar a universidade em que
leciono. Seja franco, será que alguns dos seus colegas também não
tiveram que se transferir da Gates?
— Olivia Andrews ia se transferir, mas conseguiu uma bolsa de
estudos. Porque o pai dela se matou.
— Você está querendo me dar alguma ideia?
Goog deu de ombros.
— Foi uma jogada muito bem-sucedida. Qualquer coisa que
funcione, certo?
— Fofinho — interveio Avery. — Isso não tem graça.
— Nenhum de vocês jamais acreditou no meu talento — disse
Savannah. — Nunca desejaram que eu me formasse em arte.
Agora, acham que podem me intimidar com cara feia para eu fazer
alguma coisa prática, como me formar em mandarim.
— Não quero que você se forme em coisa alguma — retrucou
Lowell. — Quero que você arranje um emprego.
— Fazendo o quê?
— Não me importa. Qualquer coisa que contribua para o cofre da
família.
— Se eu for fritar hambúrguer, não vou dar o dinheiro a vocês.
Como é que isso havia acontecido? Eles tinham feito alguma
coisa errada? Durante todo aquele tempo, será que deviam ter se
recusado a dar o que os filhos queriam, e que estava em seu poder
oferecer, em nome de uma dedicação abstrata à construção do
“caráter”?
— Se eu tiver que fritar hambúrguer — contrapôs Lowell —, darei
o dinheiro a vocês. Será que isso soa como dois pesos e duas
medidas?
— Ah, desculpe, voltamos ao asilo dos pobres! Isso é
dickensiano.
— Vamos fazer o seguinte — propôs Goog. — Você tira um
empréstimo no meu nome e me manda para a Gates. Nós
calculamos uma fórmula para ver quanto do meu salário, depois da
graduação, vou dedicar para lhe pagar o empréstimo. À medida que
o meu salário aumentar, podemos elevar a percentagem.
— Ninguém vai me dar um empréstimo, parceiro — disse Lowell.
— Mesmo que desse, os únicos termos disponíveis seriam juros de
11% ou mais.
— Então, qual é a situação do patrimônio? — perguntou Goog,
destemido.
— Só estamos pagando os juros. Boa tentativa.
Goog perdeu as estribeiras.
— Não acredito que isso esteja acontecendo!
— Você não tem que acreditar para que continue a acontecer —
retrucou Lowell. — A realidade tem isso de engraçado.
Apesar de todo o seu pretenso fascínio pela área de atividade do
pai, o garoto não confiava de verdade no primado da economia.
Lowell atribuiu essa discrepância ao tipo particular de precocidade
do filho: o envolvimento do garoto nos muitos assuntos sobre os
quais sustentava opiniões tão veementes era quase só retórico. Ele
ainda estava para estabelecer uma ligação visceral entre um debate
da escola sobre alguma emenda maluca, criada para equilibrar o
orçamento, e um sistema de rodovias interestaduais com verbas tão
insuficientes que centenas de americanos morriam todo ano em
engavetamentos na I-85, só por causa dos buracos — uma conexão
que registrava a possibilidade muito real de que qualquer um
poderia ser um desses mortos. Tendo se distinguido pela mesma
precocidade na idade de Goog, Lowell se perguntou se essa relação
puramente retórica com as questões urgentes da sua profissão o
teria perseguido até hoje. Avery sempre o censurava por se importar
demais com a ideia de ter razão. Mas talvez ele não se importasse
com estar certo, efetiva e verdadeiramente certo, o que seria válido.
Talvez só se importasse com a vitória.
— Quando a pessoa tem um monte de filhos — disse Savannah
—, não se espera que ela jogue as mãos para o alto e diga:
“Desculpem, não temos como ganhar dinheiro, ganhem vocês!” Meu
professor de artes diz que eu tenho um talento enorme, e vocês não
vão arruinar a minha vida!
Mas, quando ela se levantou para correr para fora da sala, com
ar desdenhoso, Lowell a segurou pelo braço, ao que a filha o fitou,
incrédula.
— A reunião de família não acabou. Mais alguns anúncios,
crianças. Neste verão, não vai haver acampamento de debates, de
artes nem de quartetos de cordas, entenderam? Nada de
acampamento de ciências, de esportes aquáticos nem de
sobrevivência no deserto, ainda que este último pudesse realmente
acabar valendo o dinheiro.
Soltou o braço de Savannah, que começou a chorar. Avery o
acusou de ser intimidador. De fato, ele fizera os pronunciamentos
com um toque de vingança. Tirar todos os brinquedinhos dos filhos
deu-lhe uma satisfação perversa.
— Você está descontando neles no lugar de castigar a si mesmo
— comentou Avery, em voz baixa, depois que eles se recolheram
para dormir.
— Na-na-ni-na-não — disse Lowell. — Estou descontando neles
como uma forma de castigar a mim mesmo.
— Isso é confuso demais para mim, e olhe que sou terapeuta. —
Ela parecia cansada.
— Olhe, será que quero atirar os garotos para aqueles animais
na escola pública? É claro que não. Bing será comido vivo. E Goog?
O amplo conhecimento geral dele, sua lucidez, seu jeito ardiloso de
seduzir os professores para cair nas boas graças deles, tudo que
torna esse garoto popular na Gates vai transformá-lo num pária na
Roosevelt. E Savannah... Uma coisa é adiar a faculdade por um ano
para ir aprender italiano na Europa. Outra, muito diferente, é se
refestelar em casa, procurando encrenca e perdendo o ímpeto de
crescer. Que desperdício! Tudo aquilo pelo que pagamos centenas
de milhares de dólares para enfiar na cabeça deles vai escorrer aos
poucos. E tenho a sensação de que falhamos com eles. Mas não do
jeito que você supõe. Acho que nunca dissemos não a essas
crianças. E, agora, esperamos que eles aprendam sobre
adversidade, abnegação e o desapontamento da noite para o dia.
— Não se pode fingir adversidade — disse Avery. — Quando
dispúnhamos dos meios, nós os proporcionamos. Agora, não
podemos fazer isso. E, se você não tivesse comprado todas aquelas
ações idiotas...
— Em 1919, a Coca-Cola era uma ação idiota — interrompeu
Lowell. — E não se pode investir, ou dirigir minimamente a vida
fiscal, de um modo que abranja uma coleção infinita de
contingências. A destruição da riqueza ocorrida neste país desde
outubro se deu numa escala que é, bem, quase impossível. Se você
tivesse procurado qualquer consultor financeiro, um ano atrás, e
dado instruções a ele...
— Ou a ela — disse Avery.
— Ou a ela — corrigiu Lowell, azedo —, dizendo: “Eu gostaria
que você protegesse meus investimentos da destruição do mundo
tal como o conhecemos. Por favor, escolha fundos que invistam de
olho no Dia do Juízo Final, na inundação de todas as cidades
litorâneas da Terra, por causa da elevação do nível do mar, na
guerra nuclear e em pestes incuráveis”, ele, ou ela, teria mandado
você pastar, não importa o valor líquido da sua fortuna. Participar
minimamente de qualquer economia, inclusive recebendo
remuneração e comprando costeletas de porco, significa acreditar
que as regras dessa economia não vão virar de pernas para o ar.
Não existe seguro contra a mudança das regras do jogo. Por isso,
não importa o que aconteça, você continua jogando. Isso quer dizer
que, quando a Apple está sendo vendida por trocados, você compra
ações da Apple. Do mesmo jeito que sempre fez. Se isso não
funcionar, por razões que escapam ao seu controle, o jogo inteiro
sai de cena. E nada mais funcionaria mesmo.
— É só que, se tivéssemos guardado mais dinheiro vivo...
— O dinheiro vivo também é um investimento — interrompeu
Lowell com brutalidade. — Aliás, um péssimo, historicamente
falando. Um dos piores. Você não pode deixar de fazer algum tipo
de investimento se quiser ter qualquer capital.
— Mas admitir que se cometeu alguns erros pode trazer um alívio
surpreendente...
— Não cometi erro nenhum! Todos aqueles fundos de
aposentadoria com gráficos de 62% de ações e 27% de títulos...
Todos os fundos de investimento, com suas estratégias
contrastantes de “crescimento” ou “renda”... Os questionários
solícitos da Morgan Stanley sobre o grau de “risco” que você se
dispõe a tolerar, questionários que tendem a minimizar o fato de que
não há nenhum quadradinho no formulário em que se possa
assinalar “zero”... O “grande capital” contra o “pequeno capital”
contra os “mercados emergentes”... Todos aqueles ajustes
delicados, tipo “Talvez fosse melhor passar um pouquinho mais para
o setor energético e tirar a ênfase do setor farmacêutico”... Bem,
todas essas contas foram arrasadas. As estratégias não ajudaram
em nada.
— Então, que desperdício de esforço — resmungou Avery.
— Manteve uma porção de gente ocupada. Mas há um lado bom:
se ninguém estava certo, também não havia ninguém errado. Se
todos se ferraram, não importa o que tenham feito ou deixado de
fazer, todos estão isentos de culpa. Inclusive eu. Infelizmente,
quando estou de olhos abertos no meio da madrugada, essa lógica
nunca parece convincente.
No entanto, depois que houve uma batida na porta do quarto do
casal, Lowell ficou sem jeito por ter abraçado com tanto zelo seu
novo papel paterno de “grande malvado”. Era Bing, segurando um
bolo de notas amassadas: a mesada que andava economizando
para comprar um arco novo para o violino.
— Eu quero ajudar — disse o menino, oferecendo seu tesouro ao
pai.
Foi chocante que apenas o filho de onze anos parecesse
apreender a gravidade da situação. Mais chocante ainda foi que...
sabe aqueles trezentos e poucos dólares? Lowell os pegou.

***

Se Lowell parecia suscetível, é porque vinha levando pontapés de


várias direções. Quando seus pais se aposentaram da função de
cientistas de verdade — o pai como microbiologista da Tufts; a mãe
como um tipo de zoóloga empática, que descobriu uma família de
tritões-de-crista em um canteiro de obras e causou a paralisação de
um projeto de construção de dez bilhões de dólares —, recorreram
ao filho mais velho em busca de orientação sobre investimentos.
Desejando ser útil (ou se exibir?), ele oferecera uma profusão de
dicas. Será que agora era ao menos reconhecido por tê-los afastado
do ouro? Não. Seus pais estavam histéricos, porque seus
investimentos de proporções impecáveis — diversificados com
inteligência e criteriosamente divididos entre crescimento e renda —
tinham se esborrachado no chão, tal como faz um prato
nutritivamente equilibrado de grãos integrais, verduras e filés de
peixe ricos em ômega-3 que cai virado para baixo. A visão dos dois
no fleXface, fazendo de tudo para explicar que não o culpavam em
absoluto, não requeria a acuidade psicológica profissional da mulher
de Lowell para ser traduzida: eles atribuíam toda a culpa a ele.
Para piorar as coisas, por insistência do filho que tinham vendido
a ampla residência da família, em Brookline, Massachusetts, dois
anos antes. O capital assim liberado e a renda do investimento dele
destinavam-se a financiar pequenas excursões pseudocientíficas ao
exterior, que não coletariam dados significativos, mas estimulariam a
inofensiva ficção de que eles continuavam a ter um trabalho. Mas o
apartamento “aconchegante” de Fort Lauderdale para o qual eles
haviam se mudado, reduzindo seu espaço, só fazia sentido como
um ensolarado descanso das excursões ao Ártico ou à tundra russa,
que eles já não podiam financiar. Restara-lhes o apartamento
confinante, como seu único bem sólido; empacados lá, eles odiavam
a Flórida.
Não adiantaria lembrar-lhes, supôs Lowell, de que, ao longo de
toda a sua infância, seus pais haviam frisado quão pouco se
importavam com a riqueza e como era crucial concentrar o foco não
no dinheiro, mas no trabalho que interessava a cada um (uma
homilia que Lowell quase virara de cabeça para baixo, já que o que
lhe interessava era o dinheiro). Apesar disso, seus pais sempre
tinham sido acumuladores, e por esse motivo haviam conseguido,
com seus salários modestos, construir reservas saudáveis, para
começo de conversa. A pose de indiferença financeira era uma
balela, pois Lowell não conhecia outro casal que falasse mais
incessantemente sobre dinheiro. Isto ou aquilo estava em oferta, o
preço de uma outra coisa era escandaloso, o prêmio do seguro tinha
disparado, embora não tivesse havido sinistros o ano inteiro... Todas
as decisões deles, até a de comprar as vagens finas e macias, em
contraste com as grossas e fibrosas, continuavam a ser
determinadas pelo que era o melhor negócio. E fora assim que eles
tinham acabado em um apartamento bem furreca na Flórida: tinha
sido uma pechincha. Apanhados na ideia do dinheiro como um jogo,
os dois haviam confundido seus bilhetes de rifa com o prêmio. É que
a única coisa que a busca de pechinchas “ganhava” era mais
dinheiro — o qual só tinha valor como um caminho para comprar as
vagens finas e tenras, em vez das grossas e fibrosas.
Antes da Grande Moratória, Lowell praticamente tinha de
encostar um revólver na cabeça dos pais para levá-los a fazer uma
refeição fora de casa. Depois, assegurados de que seus dois filhos
estavam prosperando — Aaron trabalhava com segurança de TI e
tinha enchido o bucho de dinheiro a partir da Idapedra —, Dave e
Ruth afirmaram que não apertariam as contas só para deixar uma
herança a seus meninos. Mas como, para os mortais, a satisfação
indefinidamente adiada era igual a nenhuma satisfação, a
incapacidade deles de mudar de hábitos na velhice, de ir em frente
e esbanjar a grana, acabara por implicar uma ilusão da vida eterna.
Se Dave e Ruth tivessem registrado em seu íntimo, na casa dos
setenta anos, que logo haveriam de morrer, teriam encomendado
camarão graúdo todas as noites da semana.
Quanto a seus pais “não se importarem” com o dinheiro, bem,
alguns acontecimentos recentes deveriam ter acabado com esse
mito. Os dois estavam fora de si. Mas, por outro lado, Lowell não
conseguia pensar em uma só alma que não fosse extremamente
sensível ao que concernia ao seu capital, qualquer que fosse o
montante dele; tente tirar dois dólares do chapéu de um mendigo e
veja o que acontece. Viver em uma perfeita apatia em relação à
grana exigiria tanta energia, tamanho fanatismo ideológico artificial,
que a indiferença equivaleria a uma espécie de dedicação. Esta era
uma das qualidades fascinantes do dinheiro: ele exacerbava as
paixões.
Pois bem! Havendo confiado na orientação sensata e
benevolente do filho mais velho sobre os investimentos, agora Dave
e Ruth tinham de comprar as vagens grossas e fibrosas, não por
patologia, mas por necessidade. E Lowell se sentia culpado? Sim,
Avery. É claro. Mas será que essas agruras parentais eram mesmo
culpa dele? Nem que fosse um pouquinho? NÃO! É claro que Aaron
também pedira conselhos ao irmão mais velho sobre investimentos
— conselhos que não se afastaram substancialmente da orientação-
padrão de qualquer grande instituição financeira, na época, a não
ser pela dica para ficar longe do ouro, a qual tinha se revelado um
acerto em cheio (o fato de que a Lei dos Poderes Econômicos de
Emergência de 1977 ainda estava em vigor deveria ser conhecido
por qualquer consultor financeiro que se prezasse, homem ou
mulher, mas, quando Alvarado se valeu dessa legislação, todos
agiram como se estivessem escandalizados). Por acaso, o fato de
um espertalhão digital, com mulher e dois filhos pequenos, ter
passado de rico a desesperado, em um piscar de olhos, também era
culpa de Lowell? NÃO!
Mais frustrante ainda, agora que os conselhos dele eram
importantes — agora que eles realmente contrariavam a ortodoxia
do momento (venda, venda, venda, que era o equivalente a “procure
um edifício alto, pule”) —, nem seus pais nem seu irmão se
dispunham a aceitá-los. Levariam a melhor os investidores que
mantivessem o sangue frio. A única resposta racional às
valorizações derrisórias era guarde, guarde, guarde. O fato de, em
vez disso, seus parentes estarem pulando no precipício e
consolidando seus prejuízos deixava o estoico Lowell Stackhouse
com vontade de chorar.
Pois que se danassem. Ele e Avery tinham os próprios
problemas.
Ora, Lowell nem sempre estivera em boa situação. Durante a
graduação no MIT, vivera de um estipêndio magro, auxiliado por
alguns períodos como auxiliar docente. Antes da sua primeira
nomeação propriamente acadêmica na Amherst, ele fizera alguns
trabalhos temporários como professor substituto, inclusive em uma
ou outra faculdade comunitária: — um chafurdar nas trincheiras que
ajudara ainda mais a convencê-lo de que ele sabia o que era o
fundo do poço. Mas ele nunca estivera no fundo. Estivera na parte
inferior do topo.
Portanto, Lowell nunca recebera uma conta que não pudesse
pagar. Fazia tempos que, sem maior reflexão, ele relegara as
pessoas que não mantinham nenhuma reserva em suas contas, que
gastavam só por ter dinheiro no bolso, que recorriam a pequenos
empréstimos de curto prazo para pagar a conta da luz, que viviam
cronicamente em dívidas e com medo de batidas na porta, à remota
categoria dos incorrigíveis, dos irresponsáveis, dos incompetentes.
Quanto ao endividamento, um lubrificante das engrenagens
econômicas de que ele era grande fã, em termos ideológicos, Lowell
o promovia como uma ideia esplêndida para empresas e países,
mas sempre pagava integralmente suas faturas do cartão Visa.
Evitar o crédito era uma questão afetiva para ele. Lowell não
gostava da sensação de ter obrigações para com alguém, de ficar
na mão de outras pessoas.
Era isso que o deixara fissurado nos valores protestantes cafonas
que a maior parte do país abandonara alegremente. A economia
internacional havia castigado os frugais e premiado os esbanjadores
durante a maior parte da sua vida profissional. Era estranho que um
homem na posição dele não tivesse aprendido essa lição. Bastava
olhar para a Europa meridional, no fim das contas. O Club Med da
zona do euro pegou trilhões emprestados, gastou tudo e não pagou.
Não foi bonito. Foi esperto. A economia não premia o que é bonito.
Premia o que é esperto.
Por isso, Lowell se sentia uma besta completa. Com seu histórico
impecável de crédito, deveria ter tomado um monte de empréstimos
e, quando viesse a Moratória, simplesmente dado o fora —
mediante falência formal ou saindo de circulação de mansinho,
como todo mundo vinha fazendo. E era por isso que o cartão Visa
Super Platinum que ele usava desde 2001, junto com todos os
outros em sua carteira, acabara de ser cancelado. A menos que
parassem de emprestar dinheiro a cidadãos insolventes da Nação
Caloteira, as companhias de cartão de crédito iriam à bancarrota:
era mais uma corda salva-vidas cortada.
Enquanto isso, o “atraso” de junho no seu salário da Georgetown
prolongava-se em julho. Lowell não conseguia assimilar a ideia de
que uma instituição que tinha a obrigação contratual de fornecer
determinada soma, em determinado dia do mês, pudesse um dia
não o fazer, simples assim. Ele parecia crer que, como a
universidade lhe devia seu salário, por isso mesmo ela o pagaria,
em uma confusão que beirava o disléxico entre o dever e o fazer.
Lowell ganhava a vida analisando sistemas, avaliando em que
circunstâncias eles funcionavam bem ou menos bem. Não tinha o
menor conhecimento do que acontecia quando eles não
funcionavam em absoluto.
Assim, à medida que o verão foi avançando, ele observou,
horrorizado, o sumiço dos recursos líquidos da família. Eles se
aproximavam rapidamente do ponto em que Avery se absteria de
comprar um melão-cantalupo, não por eles não sentirem vontade de
comê-lo, nem por terem descoberto, de repente, que essa fruta
concentrava toxinas de modo ainda mais virulento que os morangos.
Não era porque Avery não estava disposta a carregar sacolas muito
pesadas, em um dia em que não levara o carro. E, isso mesmo,
mamãe, nem mesmo pelo fato de o melão não ser muito bom
negócio. Não, logo, logo, Avery não compraria um melão-cantalupo
porque eles não teriam dinheiro.
Seguindo o exemplo da Georgetown, portanto, Lowell fez uma
descoberta na qual os “incorrigíveis do crédito” o haviam superado,
há muito tempo. O que você faz quando vence uma prestação da
hipoteca e os fundos necessários não estão na sua conta bancária?
Você não paga. Não paga em junho. Não paga em julho. Em agosto,
você já vai ter entendido o esquema.

***

Quando Avery fizera sua especialização, traçar uma linha rígida


entre o sofrimento mental e o sofrimento físico tinha parecido um
flagrante equívoco, já que tratar o paciente como um todo
significava abordar o que a pessoa vivenciava em todos os sentidos.
Depois de concluírem um projeto exaustivo, mas de forte motivação
e orientado para uma meta, muitos pacientes ficavam deprimidos
após a quimioterapia. De repente, a simples manutenção da vida
deixava de se qualificar como uma diretriz primordial respeitável.
Acostumados com o energizante pavor do contato íntimo e pessoal
com a morte, alguns pacientes sentiam falta da doença. Outros, que
lutavam com sofrimentos mais brandos, como a artrite, tinham
opiniões fortes sobre qualquer restrição que as artroplastias dos
joelhos houvessem imposto aos seus programas de Corrida
Extrema, e ansiavam por dar vazão ao seu desespero ao ter de
renunciar à ambição de correr cem maratonas, em igual número de
dias, estando na casa dos oitenta anos. Homem ou mulher, todos os
pacientes idosos de Avery surpreendiam-se por estarem velhos — o
que, pensando com seus botões, ela via como uma grave falta de
atenção. O MenteCorpo era uma disciplina eclética, que recorria ao
tai chi, a uma variedade de terapias da fala, à ioga, à análise dos
sonhos, à musculação e ao choro forçado — o que quer que
funcionasse.
Ao se habilitar como terapeuta clínica, a última coisa que ela
procurara saber era se o MenteCorpo era um tratamento
reconhecido pelos programas Medicaid e Medicare. Durante quase
toda a sua carreira, a exclusão desses programas fora uma bênção
(as tabelas de reembolso do governo eram uma barra de barata),
mas, em 2030, isso a privou dos únicos pacientes que poderiam ter
tido a possibilidade de bancar o tratamento. Ela não deveria ter
tomado como ofensa pessoal a enxurrada de deserções, mas
algumas tinham ferido tão fundo que ela agira sem profissionalismo.
Talvez deixando transparecer suas próprias prioridades, ela havia
gritado para uma paciente anteriormente fiel: “Aposto que você
continua a incluir uma caixa de vinho todo mês no seu orçamento!”,
ao que a mulher retrucara, serenamente: “Duas caixas.”
Lowell era tão dominador que, sem o lastro do seu próprio
trabalho, Avery temia pelo equilíbrio do casamento. No entanto, ele
tinha sido de uma meiguice incrível ao ajudá-la a fazer a mudança
do consultório que ela alugara por nove anos. Foi durante tal
mudança que eles consideraram, na base do copo meio cheio ou
meio vazio, que talvez fosse melhor assim, já que as crianças teriam
de lidar com as próprias decepções, e um pouco de cuidado
materno à moda antiga poderia ajudá-las.
O verão em Washington era quente e rabugento, ainda mais
agora que Lowell banira o ar-condicionado. Eles também tinham
desligado a Feiticeira, cuja manutenção mensal era de matar, e essa
perda era estranhamente íntima; agora que já não se podia dar um
grito imperioso, pedindo brownies feitos em casa, era como se uma
empregada doméstica submetida a maus-tratos durante um longo
período tivesse fugido em um rompante. As crianças andavam
sorumbáticas, sem nada para fazer, e sentiam uma raiva
compreensível por terem cancelado todos os seus planos para a
estação.
— Talvez vocês descubram — disse Avery aos meninos na copa,
enquanto eles lançavam olhares furiosos para seus fleXes — que,
numa escola pública, terão mais oportunidade de se sobressair. Na
Gates e na Sidwell, a admissão é tão seletiva que é mais difícil as
pessoas se destacarem...
— Eu já me destaco na Gates — resmungou Goog. — Não tente
me vender a ideia de que ser jogado numa pocilga é uma grande
oportunidade.
— Mas estamos vivendo tempos extraordinários, meu bem.
Como diz o seu pai, até mesmo dentro de alguns meses...
— De acordo com tia Florence — Goog a interrompeu —, ela se
formou na faculdade num ano de muita barra de barata. Todos os
que se formaram na mesma época ficaram condenados, mas os
estudantes que estavam só um pouco atrás dela se deram bem.
Florence precisava mesmo calar a boca sobre suas teorias
questionáveis a respeito de por que tivera um desempenho abaixo
do esperado, quando o verdadeiro problema tinha sido sua escolha
por um bacharelado duplo e vago de boa samaritana.
— Não acho que trabalhar num abrigo para pessoas sem-teto
signifique que você foi “condenado”...
— Você gostaria de fazer isso?
— Não. Mas tia Florence é mais abnegada do que eu.
— Mesmo que o país se recupere, eu também poderia fazer parte
de uma geração marcada. Podemos acabar todos andando por aí
com uma marca de cinza na testa, como Caim.
— Diga ao papai — declarou Savannah, ao passar deslizando de
micro-short, com aquele ar permanentemente ofendido que ela
aprimorara — que não vou mais me candidatar a nenhum desses
empregos idiotas.
Era verdade: com os turistas estrangeiros inundando a cidade, os
setores de hotéis e restaurantes de alta classe vinham prosperando.
Mas agora os adolescentes tinham de competir com ex-gerentes
quarentões de hedge funds que imploravam para servir mesas.
— Por que você e Goog não vão para a Cidadela, em
Gloversville? — sugeriu Avery. — Falei com tio Jarred na semana
passada, e não faria mal a ele receber uma ajuda para colher
legumes e alimentar o gado. Não sei quanto ele poderia pagar, mas
será mais do que eu pagaria a vocês para ficarem à toa na cozinha,
fazendo torradas.
— Ótimo — disse Savannah. — Não só sou uma perdulária sem
qualquer perspectiva de diploma universitário, como agora também
sou trabalhadora rural!
— É, mamãe — concordou Goog. — Diga a tio Jarred que foi
para isso que inventaram imigrantes sem documentos oficiais.
— Na verdade, desde a anistia — disse Avery, embora isso não
ajudasse sua própria causa —, a maioria dos imigrantes também
não quer fazer esse trabalho.
— O nome não foi anistia — objetou Goog. Aos treze anos, tinha
escrito uma redação sobre a tão demorada lei de reforma da
imigração de 2020, justamente o ano usado para promovê-la como
uma marca de lucidez, o que qualificava o garoto como especialista.
— Eu vou para a Cidadela — disse Bing, baixinho. — No
acampamento de biologia, aprendemos a colher cenoura. Achei
relapso. E alguém precisa ganhar dinheiro, senão a gente não vai
poder ir ao supermercado.
— Você é meio novo para ser mandado para o campo —
comentou Avery, desarrumando o cabelo do filho. — Eu poderia ser
processada por violar as leis sobre trabalho infantil. Mas gosto da
sua atitude, meu amor.
— Ele é um medrosão puxa-saco filhinho da mamãe — acusou
Goog, desdenhoso — que sabe muito bem que você não vai
mandar que ele colha batatas. Só está dizendo o que você quer
ouvir.
— Medrosão puxa-saco é uma metáfora confusa — ralhou Avery.
Os meninos passavam por fases em que eram próximos, mas,
em última análise, ao batizar seus dois filhos, Avery criara dois
sistemas rivais de buscas. (Gostava dos nomes deles, é claro, que
haviam parecido muito originais, excêntricos e contemporâneos ao
serem escolhidos por ela e Lowell, e, a esta altura, ela não
conseguia imaginar que os filhos se chamassem outra coisa. Mas
talvez os produtos da tentativa exagerada de ser moderna fossem
justamente os que tinham a garantia de ficar obsoletos. Além disso,
um daqueles sistemas de buscas derrotara o outro de maneira tão
decisiva que ela temia que os meninos internalizassem essa
hierarquia como destino.)
Envergonhada por dispor de tempo em uma cidade que
valorizava o overbooking, às vezes Avery arrastava os filhos para as
compras, a fim de se refrescar. No entanto, muitas lojas também
tinham passado a economizar o ar-condicionado, o que a deixava
com saudade dos tempos em que fazer compras em julho, nos
Estados Unidos, exigia uma parca acolchoada. Somente as lojas de
luxo, populares entre os estrangeiros, mostravam-se animadas. Ao
circular com outras famílias locais que também buscavam algum
alívio do calor, Avery encontrava a Macy’s e outras lojas similares
quase desertas. Ir às compras se tornara um esporte com
espectadores. Chegava a ser quase emocionante descobrir por
quanto estava sendo vendido esta semana um shortinho minúsculo,
feito no Sri Lanka.
Por sorte, a esta altura, as crianças andavam entediadas com os
museus, já que as caminhadas pelo Passeio Nacional estavam fora
de cogitação. O icônico passeio público nacional era tão
frequentemente tomado por violentos protestos contra o custo de
vida que o gramado comprido estava queimado e pisoteado. As
autoridades municipais não conseguiam impedir os grafites que
desfiguravam a escada do Capitólio — O MERDIXICANO TRAIU A GENTE
PARA SE DAR BEM — ou que manchavam a orla do espelho d’água do
Lincoln Memorial: AQUI A RESPONSABILIDADE É... O aforismo abreviado
era de dar calafrios.
As convocações rivais para o Mall exibiam uma incoerência
clássica. Festas joviais muito loucas, com dança e bebidas,
comemoravam a extinção dos “ultrarricos”, universalmente
desprezados, com faixas que declaravam: OS PODRES DE RICO VIRARAM
SÓ PODRES, ou ACABOU A SOPA DOS MAIORAIS, BUU! No entanto, as

mesmas pessoas voltavam no dia seguinte para demonstrar


indignação com o fato de os ricos haverem escapado ilesos, e
balançavam cartazes como WALL STREET FOI AVISADA DO GRANDE
CALOTE, ou REPATRIEM OS COFRES DO EXTERIOR!,
ou OS BANQUEIROS QUE
PAGUEM O PATO! Essa distorção perversa fazia Avery se lembrar da
reação do Oriente Médio ao 11 de setembro, quando ela estava com
quatorze anos: os mesmos muçulmanos que respondiam a
pesquisas dizendo que o World Trade Center tinha sido derrubado
pelos judeus também usavam camisetas para homenagear Osama
bin Laden. Quem disse que não se pode assoviar e escovar os
dentes?
Até os exércitos de turistas asiáticos que inundavam o
Smithsonian na primavera estavam minguando. Exibindo maços de
notas de cem dólares feito gueixas com leques baratos, um número
exagerado de visitantes com jeito de menina e sapatos ridículos
vinha levando surras. Quando saiu na internet a informação de que
os chineses distraíam seus agressores, sistematicamente, atirando
punhados de dinheiro pelos quais os residentes locais preferiam se
atracar a lhes dar pontapés nos rins, esse boato instigou
aglomerações ainda maiores de arruaceiros, ansiosos por tirar
proveito dos ataques xenofóbicos.
O fechamento do consultório de Avery poderia tê-la desolado
ainda mais, se o seu pequeno fracasso profissional não constituísse
uma única pincelada em um quadro grande e estranhamente
instigante. Aqueles tempos tumultuosos não deveriam ser
instigantes, e ela se sentia constrangida com a empolgação que se
esforçava para esconder. Muitos americanos mal conseguiam
alimentar suas famílias. Mesmo assim, ela se lembrava da urgência
revigorante que o contato íntimo com a doença terminal havia
proporcionado a seus pacientes. Sentia-se privilegiada por se
beneficiar da mesma energia, do mesmo frisson trazido pelo risco,
do mesmo descarte da complacência, sem ter também de perder o
cabelo. Embora o adiamento da entrada de Savannah na faculdade
e o rebaixamento dos meninos para escolas públicas fossem um
desperdício, mais tarde Goog e Bing saltariam para o primeiro plano
com notas altas nas provas, e todos três voltariam a entrar nos
trilhos quando o país voltasse a entrar nos trilhos. Até lá, iam
receber um tipo de educação diferente, que o dinheiro não podia
comprar.
Por uma questão de orgulho, Avery não confiara indevidamente
em um direito hereditário pendente como respaldo. Ganhar a própria
vida era mais respeitável do que contar com a herança de um
industrial morto desde longa data. Os bens dos Stackhouse sempre
haviam manifestado uma pureza moral que a riqueza herdada
conspurcaria, e Avery dizia a si mesma que, de qualquer maneira,
não teria desejado aquele dinheiro velho e maculado. Mesmo assim,
a erosão de uma bolada que poderia chegar em algum momento
futuro fazia lembrar aquelas bolhas finas e irritantes causadas por
tênis que calçam mal, os quais vão desgastando justamente aquela
camada superior de pele de que a pessoa mal pode prescindir. Se o
atrito continuar, porém, a camada seguinte, mais abaixo, vai arder. A
fortuna dos Mandible, como pano de fundo, tinha oferecido uma
película extra de proteção, sem a qual sua família ficava um pouco
mais exposta.
Certo, eles já não comiam atum, mas não estavam passando
fome. Tinham um teto sobre a cabeça, um belo teto. Avery podia ter
se sentido perseguida pela observação ferina de Savannah em
junho — a de que, se ao menos sua mãe houvesse se especializado
em uma terapia “útil”, sua clínica poderia ter sobrevivido —, mas a
filha tinha razão, de certo modo: o essencial de ontem era o
extravagante de hoje. Pressionadas, as pessoas podiam viver sem
exercícios de musculação para os tríceps e sem exames de
consciência personalizados. Que alívio, portanto, em uma era de
turbulência concentrada justamente na área de especialização do
seu marido, saber que ao menos os americanos sempre precisariam
de professores de economia.

***

Ao ser chamado para uma reunião com a reitora, em agosto, Lowell


presumiu que Ellen Packer queria pedir desculpas pelo atraso
inadmissível do seu salário. Em épocas de aperto, cortava-se o
orçamento do centro estudantil e reduzia-se o horário de
funcionamento da piscina. Não se castigava o corpo docente.
Essa queixa incontestável conferia uma sensação de poder, e ele
debateu consigo mesmo de antemão se deveria repreender
severamente a mulher ou bancar o magnânimo. Sentindo-se
animado, Lowell tinha calçado seus sapatos cor-de-rosa, que ficou
sacudindo para cima e para baixo enquanto Packer o manteve
aguardando na sala de espera. Em momento algum o rapaz que era
secretário da reitora o olhou nos olhos, nem mesmo quando
anunciou que ela o receberia naquele momento.
Ellen Packer era gorda. Não gorducha nem rechonchuda, mas
gorda com requinte de crueldade, do tipo está-olhando-o-quê, com
uma impenitência que era a única coisa a inquietar as expectativas
de Lowell nesse encontro. É claro que ele nunca usaria a palavra
gordo, visto que esse adjetivo discriminatório passara a fazer
companhia a negro e mexicano como não relapso, ponto. Além
disso, outras coisas além da linguagem tinham se modificado nos
quinze anos anteriores. Sentada atrás de uma escrivaninha
igualmente maciça, a enormidade de Packer era uma afirmação
política. Desde que os obesos tinham chegado à condição de
maioria, as pessoas pesadas haviam conquistado uma ligeira
vantagem sobre seus contemporâneos mais miúdos. Afinal,
substantivos como peso e gravidade implicavam importância e
seriedade; um artigo poderoso causava impacto. Gente como
Packer exibia sua massa para enfatizar que era uma força a ser
respeitada. Confrontado com aqueles braços carnudos, francamente
esparramados de um lado e outro do fleX da reitora, Lowell não
sentiu pena dela. Sentiu-se intimidado.
— Professor Stackhouse, não vejo nenhum benefício em usar de
rodeios — anunciou Packer, depois que ele assumiu a berlinda
diante da escrivaninha. Era sempre surpreendente: a voz dela era
aguda e musical. — Eu gostaria de lhe agradecer pelos longos
serviços prestados a esta universidade, e espero que o senhor não
tome isto como um reflexo da insatisfação da reitoria com seu
ensino ou suas habilidades de pesquisa. Mas receio que tenhamos
de encerrar seu contrato.
Lowell ficou tão perplexo que sua réplica veio um tantinho
atrasada:
— Isso é impossível. Tenho estabilidade.
— Ontem à noite, já tarde, a diretoria aprovou uma revisão do
regimento da Georgetown. A partir de setembro deste ano, a
universidade não mais oferecerá estabilidade, e as promessas
anteriores de emprego permanente ficam doravante rescindidas. Os
salários dos professores têm consumido uma proporção inaceitável
do orçamento.
— Mas a estabilidade protege a liberdade acadêmica...
— A estabilidade é um anacronismo — interrompeu ela. — Que
outra ocupação oferece empregos vitalícios?
— Existem procedimentos para a dispensa de professores com
estabilidade — disse Lowell, procurando impedir que seu ânimo
esquentado o levasse à autoimolação. — Mas é um protocolo
complexo, muito mais do que uma única visita ao gabinete do reitor.
Os raros casos envolvem, quase sempre, acusações de assédio
sexual ou de insensibilidade racial. Não fui acusado de nenhum dos
dois, a menos que a senhora tenha outras boas notícias a transmitir.
— Fique à vontade para nos processar — retrucou ela, em tom
displicente. Antes desta reunião das quatro da tarde, ela devia ter
conduzido a mesma conversa várias vezes. — Se bem que, na sua
situação, eu pensaria duas vezes a respeito de arcar com os custos
judiciais. A universidade também consultou os advogados. O senhor
verá que fomos meticulosos. O que está em jogo neste momento é
a própria existência desta instituição. Se o senhor e outros colegas
demitidos tivessem ganho de causa nos tribunais, não poderia haver
universidade. Lá se vai a sua indenização.
— Mas, deixando de lado a estabilidade, esta é uma demissão
totalmente injusta.
— Demissão injusta não se aplica quando o cargo que a pessoa
ocupava é eliminado. Extraoficialmente, concordo que, excetuado o
sentido jurídico, sua perda do emprego é injusta. Olhe em volta e o
senhor verá uma injustiça similar por todos os cantos desta cidade.
— Dada a natureza dos acontecimentos atuais, fico estarrecido
com a sua capacidade de demitir qualquer pessoa do Departamento
de Economia.
— Admito que é irônico — disse ela, em tom brando. — Mas, se
sua disciplina fosse uma ciência mais exata, talvez os
acontecimentos atuais fossem de outra natureza.
— O simples fato de a Economia incluir alguns mentecaptos fora
de série não quer dizer que todos tenhamos minhoca na cabeça. —
O sarcasmo foi autogratificante. — Por falar nisso, importa-se em
me dizer que outros membros docentes do meu departamento estão
sendo demitidos?
— Eu não deveria. É confidencial. Mas imagino que logo venha a
ser de conhecimento público.
Ela soltou os nomes de um punhado de seus colegas. Era
metade do departamento. Mas o que Lowell mais notou foram os
nomes que não ouviu.
— Vocês vão manter Mark Vandermire? Ele é um bestalhão
populista, agitador das massas!
— Não vou justificar o raciocínio por trás de cada decisão difícil.
Mas, com o confisco do ouro e a quitação da dívida com a China, a
pesquisa do professor Vandermire sobre metais preciosos continua
a ser oportuna.
— Quer dizer que a ideologia desempenhou, sim, um papel
nessa triagem. Lá se foi a liberdade acadêmica.
Packer rolou a tela do seu fleX.
— O senhor publicou ou não que os Estados Unidos poderiam
“administrar prontamente” a dívida interna de 290% do PIB que
estávamos caminhando para atingir em 2050? Ou que, na verdade,
o Banco Central havia “subutilizado” a política monetária, que
poderia ser “mais expansionista”? Ou que a inflação é um “bem
social” que ajuda os pobres, por aliviar o endividamento, e que
“moeda sólida” é apenas “um fetiche dos ricos”? Não tenho certeza
de que os meus vizinhos nada ricos concordariam com o senhor.
Não agora, que estão pagando vinte dólares por uma balinha de
chocolate.
— Vandermire passou essas citações para você, não foi? —
Eram as mesmas tiradas que aquele fuinha vinha esfregando na
cara de Lowell havia meses. — Mas eu defendo cada uma dessas
afirmações, uma vez que esta calamidade não tem nada a ver com
a dívida interna nem com a política monetária, mas tem tudo a ver
com o bancor! Além disso, e Ryan Biersdorfer? A senhora está me
dizendo que vai mantê-lo porque a universidade endossa a visão
dele de que o colapso financeiro foi a melhor coisa que aconteceu
com os Estados Unidos desde que inventaram o freezer que
dispensa o descongelamento?
— Cá entre nós, acho exagerado todo esse iconoclasmo. Mas o
tratado dele, As correções, tem recebido muita atenção no âmbito
internacional, e pode ajudá-lo a angariar fundos para a Georgetown
no exterior. Pelo menos, é uma perspectiva positiva, que parece
fazer algumas pessoas se sentirem melhor.
— Então, agora é assim que vocês escolhem seu corpo docente.
Resgatando os acadêmicos que fazem os alunos se sentirem
melhor.
— Desculpe, professor Stackhouse, eu não pretendia me
envolver nos conflitos internos do seu campo. Creio que teremos de
encerrar esta reunião.
Lowell começou a entrar em pânico. Não tivera a intenção de ser
antagônico.
— Escute, e se eu aceitar uma redução do salário?
— Nesse caso, eu diria que o senhor é mesmo um mau
economista. Este país está com uma taxa anual de inflação de 80%,
e essa é a cifra oficial. Dificilmente seria hora de propormos cortes
salariais, mesmo que eu tivesse o poder de oferecer uma coisa
dessas.
— Bem, e quanto a meus salários atrasados?
Noutras circunstâncias, Lowell teria medo de parecer chorão,
mas sua cabeça vociferava a respeito da hipoteca, dos filhos e,
santa mãe de Deus, de como dar essa notícia a Avery.
— Nesse aspecto, o senhor tem uma sólida argumentação a seu
favor. A universidade está fazendo todo o possível para pôr em dia
os salários dos professores dispensados.
Rolando a cadeira para trás em majestosa câmera lenta, a reitora
levantou-se formalmente atrás de sua escrivaninha.
— Espero que o senhor reconheça que estou optando por
conduzir pessoalmente estas conversas dolorosas, embora pudesse
delegar esse dever desagradável a um subalterno. Também gostaria
de pedir desculpas por dispensá-lo de última hora, logo antes do
começo do período letivo. A diretoria torcia muito para que os alunos
da Ásia e do subcontinente indiano viessem a compensar a queda
devastadora no número de matrículas nacionais. Mas a violência no
centro da cidade, amplamente divulgada e, muitas vezes, de
motivação racial, levou a uma súbita retirada em massa de
estudantes estrangeiros, que pagam níveis muito mais lucrativos de
anuidade. Agora, eles estão dando preferência a campi satélites de
universidades da Ivy League em Nova Déli, Pequim e Jacarta, onde
se sentem mais seguros. Nossos próprios campi satélites são os
únicos setores da Georgetown que não estão no vermelho. Mas seu
superávit não consegue suplementar o déficit de Washington,
porque estamos tendo dificuldade de repatriar os bancores. Coisa
que o senhor, justamente, deve compreender.
Com esse único aceno para a competência de Lowell, a reunião
foi encerrada.
• CAPÍTULO 9 •

MATERIAL DESCARTADO

Para Florence Darkly, contornar a pobreza sempre fora contaminado


por um toque de pretensão. Ao longo da fila de empregos ruins para
os quais era instruída demais, ela sempre soubera que, em um
aperto, poderia recorrer ao Grand Man. Seu avô tinha uma
tendência à parcimônia, mas era generoso nos aniversários e
acessível a apelos ponderados para fazer “bons investimentos” —
fora assim que Jarred deitara a mão em uma fazenda meio falida no
norte do estado, o que estava começando a parecer um tiquinho
menos biruta. Sem o Grand Man, ela nunca teria conseguido pagar
a entrada da compra da casa, e, na Adelphi, mentia para os colegas
sobre morar de aluguel. Por prestar serviços a uma população em
situação absolutamente crítica, Florence tinha vergonha daquele
apoio. O favorecimento gerava separação. Ter até mesmo um
acesso limitado à riqueza, a duas gerações de distância, era como
possuir poderes secretos. E super-heróis eram sempre solitários.
Mas, no último mês de julho, seus pais haviam organizado uma
conferência no fleXface e revelado aos três filhos, de uma vez só,
que afinal o papai não tinha levado Grand Man e Luella de volta
para Carroll Gardens apenas para aproveitar mais momentos
privilegiados com o próprio pai, em seus últimos anos de vida.
Recebendo a notícia com sombrio estoicismo, Avery fizera uma
grande pantomima de preocupação com os pais, que eram as
verdadeiras vítimas da fortuna levada pelos ares. “Ah, não, e aquele
rancho em Montana?” (A encenação exagerada havia usurpado o
tradicional papel de pessoa atenciosa desempenhado por Florence.
E era um pouquinho fácil demais para Avery reprimir um “Porra, lá
se foi aquela ampliação da cozinha”, considerando-se sua riqueza
da vida inteira, com a qual Florence só podia sonhar.) Jarred cuspiu
sua besteirada de praxe sobre a traição governamental; que diabo,
já tinha descolado sua fazenda. Com seu grande coração e
reconhecida indiferença à prosperidade mundana, apenas Florence
ficou perceptivelmente sofrida. Mas, sejamos francos, alguém tinha
de achar um pouquinho triste a aniquilação de sabe Deus quantos
milhões de dólares.
Tornar-se de repente mortal deveria tê-la feito se sentir mais
próxima dos outros em sua “comunidade”, que nunca tinham
desfrutado do recurso sub-reptício a um velho cheio da grana em
New Milford. Em vez disso, ela ficou com medo. Estava longe de ser
um consolo estarem todos no mesmo barco, porque o barco estava
afundando. Toda aquela conversa sobre dar a mão — sobre
recorrermos uns aos outros nas horas turbulentas — só funcionava
quando quem estava sob pressão variava de uma semana para a
outra. Não funcionava se todos sofriam uma crise ao mesmo tempo
— ponto em que a comunidade se pulverizava em um grande
número de pessoas na mesma situação, querendo e precisando das
mesmas coisas, e não dispor dos meios para consegui-las podia
levá-las a tomar aquilo de que precisavam pela trapaça ou pela
força. À medida que houve uma escalada da criminalidade urbana
em toda a nação, Florence admirou-se de um dia ter sido possível
andar pela rua com uma carteira, ou usar um relógio chique.
Tardiamente, valorizou o milagre da civilização, mediante o qual as
pessoas desfilavam com sacolas de compras, ou balançavam as
chaves de um carro, e não eram atacadas de imediato. Até mesmo
todos aqueles pedintes no centro do Brooklyn: eles continuavam
pedindo.
Pobreza real diz respeito a fazer o que se tem de fazer, em
contraste com o que se quer. Por isso, embora Florence não
gostasse da sugestão de seu pai para que acolhesse a tia que vivia
na França, as previsões de Willing vinham se mostrando exatas: os
juros da hipoteca continuavam subindo em disparada; os aumentos
salariais dela, com base no custo de vida, ficavam muito atrás dos
preços exorbitantes. Toda ida à Green Acre Farm gerava estresse
pós-traumático. Florence evitava passar roupa para não precisar
pagar pela eletricidade. A fim de evitar os banhos de chuveiro,
passou a cultivar a bandana no estilo pirata como uma preferência
permanente no trabalho. Durante algum tempo, Kurt havia
continuado a trabalhar na floricultura; os dólares dos turistas
asiáticos respingavam no Brooklyn, e os buquês dos restaurantes
mantinham a loja funcionando. Mas as notícias sobre assaltos e
assassinatos praticados por gangues racistas desestimularam os
viajantes endinheirados, os restaurantes sofreram e a floricultura
fechou. Kurt atrasara o pagamento da ninharia de praxe por dois
meses seguidos, e Florence não suportou dizer alguma coisa. Além
disso, mesmo que seu inquilino se mantivesse em dia, o que era
improvável, o valor do aluguel fora estipulado em 2027 e já não
cobria a parte dele na despesa com as contas.
Ela teria de substituir Kurt por um parente que dispusesse de
“recursos”.
— Sei lá — disse Esteban em voz baixa no sofá, agora
devidamente consertado com fita isolante. — Kurt é um baba-ovo,
mas fica na dele. Já a família... eles se metem na vida da gente.
Não consigo imaginar a sua tia rodando quietinha pelo porão, sem
nunca reclamar sobre o barulho dos passos, do falatório e da
televisão em cima.
Esteban valorizava sua privacidade, uma vez que circulava pela
casa o dia inteiro. No início, ao perder seu emprego na Flor da
Idade, ele se sentira quase aliviado. Em uma excursão que guiara
na primavera, um banqueiro arruinado tinha se atirado dos
Palisades, em um mergulho de centenas de metros em que errara o
rio Hudson com um baque repugnante. Numerosos outros casos de
clientes idosos que haviam perdido tudo, e que raspavam as sobras
de suas economias para morrer com estilo, tinham transformado
guiar excursões em algo estressante. Já era bem difícil se
preocupar com clientes idosos que pudessem escorregar por
acidente e rolar montanha abaixo, sem também ter de se preocupar
com a possibilidade de eles se atirarem de propósito no ostracismo.
A Flor da Idade ficou com uma reputação duvidosa, e nenhuma
empresa podia prosperar por muito tempo com uma base de
clientes que eliminava a si mesma — não quando essa base era
suicida e falida.
Depois disso, ele arranjara trabalhos temporários em cozinhas de
Manhattan, atividade também facultada por estrangeiros em busca
de pechinchas, para quem as refeições completas custavam menos
que um refrigerante em sua terra natal. (Houve quem dissesse que
alguns turistas tardios, insensíveis à violência, tinham sido culpados
pelo que lhes aconteceu — por exemplo, por cantarem bem alto
versões debochadas do hino nacional americano, enquanto
ziguezagueavam bêbados pela Sexta Avenida.) Esteban detestava
esse trabalho; seus conterrâneos haviam cumprido pena diante de
pilhas de louça suja de massa à bolonhesa, e esse emprego furreca
e invisível parecia rebaixamento geracional. Mas ele detestava
ainda mais o ócio. Rebaixou-se a frequentar as esquinas, à procura
de trabalho como diarista, tal como fizera seu pai, mas a
concorrência era dura, inclusive dos gringos, e, quando as turmas
da construção civil apareciam para achar operários, ele raramente
era escolhido. Esteban perdera a postura encurvada do faço-
qualquer-coisa-sem-pedir-nada que a geração de imigrantes a que
seu pai pertencera tinha evidenciado. Era empertigado demais.
Olhava as pessoas nos olhos. Dava a impressão de ser um homem
que esperava receber o que tinha sido combinado no começo, e que
faria um escarcéu se lhe passassem a perna. Quem quer contratar
gente assim?
— Minha tia é escritora, ou foi, de modo que deve valorizar sua
solidão — disse Florence. — Não a conheço bem, porque ela se
mudou para a Europa no fim da década de 1990 e só veio aos
Estados Unidos fazer turnês literárias. Fica furiosa com o fato de os
escritores já não ganharem direitos autorais, então esteve em greve
nos últimos dez anos; nem meu pai acha que isso é bloqueio de
escritor. Mas ela circulou por Nova York, sim, por uma questão de
princípios, há cerca de três anos, quando você estava fora, numa
excursão. Ela e Willing participaram de uma maratona de
caminhada até Manhattan, só os dois, o que me surpreendeu, já que
meu pai diz que Nollie “detesta crianças”. Sempre houve um certo
atrito entre ela e meu pai, mas, quando eu era pequena, achava que
ela era muito legal... relapsa. Meu pai era do tipo que se
resguardava, mas Nollie era a valente. Respondona, aventureira,
sempre às voltas com romances tórridos, que terminavam em meio
a muitos gritos e coisas quebradas. Ela era um pedaço de mau
caminho. Sarada. Mas, caramba, deve estar com uns... setenta e
três anos? Não é o tipo de mulher que a gente imagine chegando
aos setenta e três anos.
— Depois da Flor da Idade, posso imaginar qualquer pessoa com
setenta e três anos — comentou Esteban. — Todo mundo que eu
vejo é só pré-velho.
— Inclusive eu?
— Continuo esperando que você complete dezesseis anos — ele
a beijou —, para que não possam me processar por estupro por
presunção de violência. Agora, você quer mesmo trocar um puxa-
saco tímido, que não cria problemas, por uma velha maluca que
você mal viu desde os doze anos?
— Eu não quero ninguém nesta casa, a não ser nós três. Mas
precisamos do dinheiro.
Florence tinha pavor de despejar Kurt. Ao aceitar um inquilino
pela primeira vez, ela não considerara que, para os senhorios
conscienciosos, alugar estava mais perto da adoção temporária que
do comércio. Não suportaria pôr na rua alguém que não tivesse para
onde ir.
Armando-se de coragem na cozinha na noite seguinte, ela bateu
com delicadeza na porta do porão. Não punha os olhos em Kurt
desde que ele atrasara o primeiro pagamento do aluguel. O homem
deve ter ficado mortificado.
— Posso descer?
— É claro, é a sua casa, Florence!
Quando ela chegou lá embaixo, Kurt enfiava febrilmente um par
de meias no cesto de roupas.
— Olhe, sinto muito mesmo, se eu soubesse que você vinha,
teria feito uma arrumação.
— Arrumação em quê? — perguntou ela, examinando a ordem
germânica dos domínios do inquilino. Os lençóis estavam bem
esticados e lisos. O tapete era fino e de um quase-azul
estranhamente triste, mas estava impecável. Uns grãozinhos
espalhados na bancada, junto ao fogão, só se destacaram porque
todas as outras superfícies estavam imaculadas. Kurt acompanhou
a linha do olhar de Florence e começou de imediato a passar uma
esponja na bancada.
— Desculpe — repetiu. — Andei aprendendo a fazer tortilhas.
A queixa era estranha para uma senhoria, mas o porão era limpo
demais. Afora um pacote de fubá e um pote de sal, as prateleiras
acima do fogão estavam vazias. Em um palpite, ela chegou perto da
pequena geladeira e, dito e feito, só havia uma garrafa de suco,
cheia de água da torneira, e um pedaço amassado de papel-
alumínio.
— Kurt, você tem que comer melhor do que isso.
— Ah, eu não sou muito chegado a fazer compras, e vou
adiando.
Ele estava mais magro. As bochechas encovadas combinavam
com os dentes e lhe davam um ar vampiresco.
— E isto aqui está gelado! — acrescentou Florence. — Estamos
em novembro. Um pouco de calor vaza lá de cima, mas eu lhe disse
para usar o aquecedor portátil à vontade. É muito eficiente, e me
garantiram que não trazia risco de incêndio. Além disso... — ela
cheirou o ar — não quero deixar você com vergonha, mas é preciso
puxar a válvula daquela descarga.
Kurt enrubesceu e fez as honras.
— É que eu sei, você sabe, que a água é...
— Cara, mas é uma necessidade. Avisei que essa locação era
ilegal, mas isso significa que eu estou violando as regras. Não
significa que você não tem direitos.
Kurt curvou a cabeça e cruzou as mãos.
— Olhe — disse, olhando para o piso —, fico surpreso por você
não ter batido na porta antes. Você tem sido super, super boa gente,
muito além das suas obrigações. E tenho me candidatado a
empregos por toda...
— Como todo mundo — disse Florence em tom gentil, sentando-
se à pequena mesa laminada. — E, como o seu emprego na
floricultura era de meio expediente, acho que você não tem direito
ao seguro-desemprego. Você tem família?
— Nós, humm, meio que perdemos o contato.
— O problema é que eu mesma tenho familiares. Uma tia que
está voltando do exterior e precisa de um lugar para ficar — disse.
Deixou de fora a parte referente a Nollie ter “recursos”.
— Eu compreendo, supercompreendo — Kurt se apressou a
dizer. — Eu saio da sua vista, tipo, amanhã. E prometo, assim que
me reaprumar, pago esses aluguéis atrasados...
— Mas para onde você vai?
— Se você puder me emprestar uma lona impermeável, soube
que os acampamentos do Prospect Park são malignos — comentou
ele, com animação forçada. — Todo mundo canta, toca instrumentos
e conta histórias. Igualzinho a Woodstock! Talvez seja uma grande
experiência. Uma coisa para contar aos netos.
Você não vai ter neto nenhum com esses dentes, pensou
Florence, reflexiva.
— Não é assim que eu soube que são os acampamentos. Está
mais para malignos no sentido antigo da palavra. O Central Park é
ainda pior. E o inverno está chegando.
— Sempre existem, você sabe, os centros habitacionais...
subsidiados pelo município...
— A lista de espera para a habitação social está chegando perto
de um milhão de candidatos.
Florence exasperou-se ao se descobrir do lado errado daquela
conversa, e tentou brigar para recuperar seu papel de direito.
— Mas sempre existe o sistema municipal de abrigos.
Embora ela a houvesse ensaiado, a sugestão foi hipócrita. Os
abrigos estavam abarrotados. De manhã, as filas eram tão longas
quanto tinham sido as dos bancos, um ano antes. A Adelphi tentou
espalhar a notícia de que todos os seus cômodos estavam tomados
por clientes que eram de fato permanentes, mesmo depois de a
organização ter duplicado o nível de ocupação do prédio, forçando
mais de uma família a compartilhar as mesmas pequenas unidades,
o que resultava no tipo de condições que, no antigo mundo dos
repórteres investigativos, poderia produzir uma denúncia
dilacerante. A equipe não tinha como policiar a proibição de comida
nos quartos e havia desistido. Ratos e baratas corriam pelos
corredores. Os vasos sanitários transbordavam. Os encanamentos
davam refluxo. As porções servidas nas refeições da lanchonete
eram miseráveis. Brigas surgiam por causa de pãezinhos. E eles
continuavam a chegar. Mas os que chegavam tinham mudado. As
roupas com que as pessoas tinham dormido eram da L.L. Bean. Os
carrinhos de bebê eram largos, com capota removível para proteger
do tempo inclemente e bolsos laterais expansíveis para compras e
petiscos; os cobertores de bebê eram de caxemira. Um dia esses
carrinhos haviam custado milhares de dólares, e mais de uma vítima
desgrenhada das execuções hipotecárias, acampada na calçada,
havia sofrido assaltos por causa do seu transporte de luxo. Quando
Florence recusava candidatos desse tipo, era frequente ouvir
queixas sobre o quanto eles haviam pagado de impostos. Quando
ela informava a essa linhagem mais recente dos sem-teto que
primeiro eles tinham de se registrar no Departamento de Serviços
para os Sem-teto, no Bronx, eles não queriam saber disso e se
recusavam a ceder seus lugares na fila. Florence estava
acostumada a ouvir histórias dos sem-teto sobre um dia também
terem sido físicos nucleares — vez por outra, ouvia histórias de ex-
profissionais liberais instruídos, mas desequilibrados, que tinham
sofrido colapsos algum tempo antes e sumiram do mapa, ou, com
mais frequência, de malucos delirantes. Mas os novos sem-teto
tinham sido físicos nucleares de boa posição, ainda na semana
anterior. Se estavam dementes, era por ódio.
Florence levantou-se e correu as mãos pelo cabelo. Com toda a
boa vontade, Kurt sairia porta afora, arrastando seus poucos
pertences em sacolas de lona, e seguiria para o parque. Mas,
comparada ao abrigo, esta casa tinha espaço.
— Existe o sótão — introduziu ela, relutante. — Não tem
acabamento, mas é grande o bastante para um colchão e uma
cômoda.
— Puxa, cara, Florence, não tem problema, e eu juro que ficaria
tão quieto lá em cima que você nunca saberia...
Florence levantou a mão.
— Você me entendeu mal. Você tem um metro e oitenta e
quanto? Morreria de hemorragia em cinco minutos. Andei pensando
que poderíamos pôr minha tia lá em cima. Ela mal passa de um
metro e meio. Você poderia ficar aqui embaixo. Mas só se me ajudar
a tirar todas aquelas tralhas de lá, limpar a poeira e o cocô de rato e
tornar o espaço habitável. E você vai precisar arrumar mais espaço
para depósito aqui, para qualquer coisa do sótão que decidamos
guardar.
Ao lhe pedir favores, Florence estava fazendo um favor a ele.
Kurt havia começado a chorar. Esteban ia matá-la.

***

— Todo aquele tempo em Paris, e nunca tive uma mansarda de


verdade — disse Nollie, em tom de aprovação. Bem arrumado, todo
em madeira e iluminado pela luz indireta, estrategicamente cálida, o
sótão era aconchegante, embora a recém-chegada também
estivesse demonstrando espírito esportivo.
Baixa e ossuda, Nollie se vestia como uma garota, com jeans
batidos e ultrapassados, tênis All Star vermelho, camiseta com os
dizeres A VIDA É CURTA DEMAIS PARA SE TOMAR VINHO RUIM e uma jaqueta
de couro enorme e surrada, que parecia ter dado a volta ao mundo
duas vezes. Preso em um rabo de cavalo, o cabelo era fino, e era
impressionante que estivesse tão comprido. O rosto tinha rugas
marcadas, mas era fácil discernir nele a jovem cáustica e metida a
espertinha que ela parecia crer que ainda era. Movimentava-se com
uma autoridade abrupta, angulosa: estava acostumada a fazer o
que queria. Florence não podia dizer que o pai não avisara.
A septuagenária subiu com agilidade os três últimos degraus e
jogou a jaqueta no colchão. A camiseta sem mangas revelou o tipo
de braços de que Esteban tinha zombado na Flor da Idade: fibrosos
e torneados, com músculos fortes, duramente conquistados, mas
assim mesmo tendo abaixo dos bíceps a pele flácida e murcha que
a geração dos baby boomers tentava evitar com um esforço de dar
dó. Parada no meio do sótão, ela bateu com os braços nas laterais
do corpo, depois os levantou em arco acima da cabeça, até os
dedos se tocarem, e por pouco não bateu nas vigas do telhado.
— Confere! — anunciou. Florence não entendeu.
O fato de Nollie ter chegado com um monte de malas era um
saco, mas era também uma indicação de que, se podia pagar pelo
excesso de bagagem, ela devia mesmo ter umas economias. Willing
ajudou a içar os baús pela abertura do sótão.
— Tenho umas contribuições para o jantar — anunciou a nova
moradora, jogando uma sacola para Willing. — Mas primeiro eu
preciso merecê-lo. Sacudir o cansaço do voo.
Com um sorriso impaciente, ela os enxotou do sótão e recolheu a
escada.
Na cozinha, Florence desempacotou os presentes suntuosos:
linguiça, presunto pata negra, carne de cavalo defumada, imagine, e
queijos franceses exóticos. Eles fariam um banquete.
— Porra, qué es eso? — exclamou Esteban. A estrutura da casa
tinha começado a chacoalhar, pou, pou, pou.
Florence e Willing tornaram a subir, pé ante pé, e olharam para o
teto.
— O que acha que ela está fazendo? — cochichou o garoto, por
cima da barulheira ritmada.
— Reformas? Já? — intrigou-se Florence. — O som é de
construção.
Os dois deram de ombros e tornaram a descer. A bateção durou
cerca de meia hora — uma meia hora longuíssima — e se mostrou
especialmente irritante pelo fato de as marteladas serem
inexplicáveis.
— Caramba — resmungou Florence. — Que foi que eu fiz com a
gente?
No devido tempo, Nollie reapareceu no andar de baixo, com as
bochechas coradas e usando uma versão mais limpa do mesmo
uniforme exposto em todas as lojas baratas; ela passaria por uma
mulher em boa forma para seus setenta e três anos, se usasse
roupas condizentes com a idade. Aquilo era uma cegueira
geracional. Os jovens podiam fazer trapos de mau caimento passar
por estilosos; Savannah, a sobrinha de Florence, ficaria sensual
vestindo um saco de papel. As legiões do passado tinham
compreendido que, para lá dos sessenta, mais ou menos, a pessoa
compensava a decadência da embalagem de nascença cobrindo-a
da maneira mais chique possível. A Grande Mimi usava brocados de
seda, meias de nylon e escarpins de bom gosto para ir ao correio.
Mas a geração seguinte se vestira mal, primeiro para marcar um
posicionamento político, depois por indolência e, mais
recentemente, por delírio: a turma da geração dos baby boomers
considerava a velhice mais uma conspiração a ser denunciada,
como o escândalo de Nixon.
Com um gesto, Florence indicou os comestíveis variados.
— Nollie, isso é muito generoso. Mas como você conseguiu
passar com essas coisas pela alfândega?
— Ah, é um terror tirar alguma coisa dos Estados Unidos — foi a
resposta. — Mas dá para pôr quase qualquer coisa para dentro. —
Nollie agitou três garrafas de vinho tinto e um litro de conhaque.
Eles tinham convidado Kurt, que já ia mudando seu status de
bicão para membro da família. A insistência dele em ser útil
impunha um fardo adicional à sua anfitriã; com meio limão, não
havia muita limonada a se fazer. Florence já não só trabalhava em
um abrigo para os sem-teto: também morava em um.
Regado a álcool, o jantar foi barulhento, sob a presidência de
Nollie. Florence tentou saborear a animação das opiniões
estridentes da tia, que logo poderiam se desgastar. Ela começava a
sentir a tensão da verdadeira generosidade, em contraste com a
caridade mais formal pela qual era remunerada, afinal de contas. A
verdadeira generosidade não traz recompensas. Significa dar algo
que se valoriza intensamente e que não se pode substituir. Nesse
caso, o sacrifício era a privacidade, a intimidade e o silêncio. O
acréscimo da senhora tagarela e do ex-inquilino prestativo à vida no
andar de cima transformara completamente o que Florence sentia
ao circular por sua própria casa, mesmo na eventualidade
improvável de que aqueles dois ficassem de boca fechada. Em seu
novo acanhamento, ela se sentia observada e julgada; ao fazer um
pedido banal para que Willing fosse buscar uma toalha para Nollie,
um leve cheiro de exibição parental poluiu a instrução: Veja como
criei meu filho para dar uma mãozinha. Apesar do estilo informal da
noite, um jantar de pratos no colo, ela não se arriscou a mergulhar
com voracidade na travessa de frios e queijos sobre a mesa de
centro, mas se conteve para garantir que primeiro seus convidados
tirassem uma quantidade suficiente de presunto. Esta foi a maior
mudança: agora Florence verificava tudo que fazia e dizia, para
conferir se era bem-educado — com certeza, a verdadeira antítese
do que devia ser o sentir-se em casa.
— Era fatal que a dívida pública acabasse atingindo um ponto
culminante — disse Nollie, empunhando sua terceira taça de vinho.
— Só era difícil prever quando aconteceria. E os profetas que se
adiantam demais à sua época são sempre ridicularizados. Pense no
problema da população. Na minha adolescência, diziam que a
espécie estava se reproduzindo num ritmo que levaria à extinção.
Da última vez que verifiquei, a raça humana continuava por aqui.
Agora estamos chegando aos nove bilhões: em setenta anos,
triplicamos o número. Mas, e se os histéricos da “superpopulação”
estivessem certos, só que cedo demais? Com a dívida, é a mesma
coisa. Vinte anos atrás, os grandes pessimistas espumavam pela
boca ao falar do excesso de empréstimos contraídos. Na época,
também não aconteceu nada... até um ano atrás, quando aconteceu
tudo. Conhecem a teoria da complexidade? Ela ajuda a explicar por
que tudo pode ficar ótimo durante um longo tempo, depois virar um
inferno de uma hora para outra.
— Aposto que, mesmo se todos tivéssemos doutorado na “teoria
da complexidade” — disse Esteban —, você ainda nos falaria dela.
Nollie era o tipo de sabichona que Esteban não suportava.
Depois da Flor da Idade, ele não dava folga a ninguém só porque a
pessoa era velha.
— Em si, a teoria da complexidade não é tão complexa assim —
prosseguiu Nollie em tom agradável, sem morder a isca. — À
medida que se tornam mais complexos, os sistemas passam a ser
exponencialmente mais instáveis. Podem continuar a enrolar por
algum tempo, ficando mais e mais bagunçados, até que uma
perturbação mínima faz a coisa toda desmoronar. Como aqueles
castelos de cartas, nos quais a gente acrescenta uma única rainha
de copas e, de repente, são cinquenta e duas cartas para catar. Ou
os malabaristas que conseguem manter dez bolas no ar, mas não
onze. Dar comida, água e emprego a nove bilhões de pessoas, e
mais até, é o suprassumo do sistema complexo. Nunca se sabe
quando o acréscimo de um último bebezinho pode derrubar todas as
bolas que estão no ar.
— Isso é absurdo — declarou Esteban.
— É? — disse Nollie, em tom brando. — A gota d’água que faz o
copo transbordar é a síntese da teoria da complexidade. Com a
economia é a mesma coisa. Extremamente complexa,
extremamente instável. Não é preciso muito. Veja, a outra regra é
esta: os sistemas complexos desmoronam de maneira catastrófica.
É só olhar lá fora.
— Isso não é nada — comentou Willing.
O grupo virou-se para o menino.
— Pode dar mais detalhes? — perguntou Nollie.
— Não.
O pronunciamento obscuro de seu filho tinha sido sinistro, e
Florence se sentiu aliviada quando seu fleX tocou.
— Pai! Acho que você vai querer dar um oi para Nollie. Ela está
bem aqui.
— Acho que sim, mas, antes disso, eu queria perguntar se você
tem falado com a sua vó Mimi. — O pai de Florence parecia aflito.
Mas, afinal, ele não era sempre assim?
— Faz algum tempo que não, por quê?
— Não consigo falar com ela. Bem, ela nunca liga o fleX que eu a
obriguei a ter. Mas mamãe é uma das últimas resistentes que ainda
tem um telefone fixo. E ela não o atende há semanas. Talvez ela
tenha viajado, e o fato de a secretária eletrônica estar cheia poderia
ser uma simples desatenção. Mas agora a linha está muda.
— Mas todas as linhas de telefone fixo estão mudas. As
companhias de telecomunicações não estão fazendo a manutenção
das redes. Eu não me preocuparia com isso. Ela tem uma
empregada que mora com ela.
— Quando se mudou para lá, Margarita parecia vigorosa e
competente, mas isso foi há quinze anos. Ela também está velha
para danar.
— Se você está tão preocupado assim, talvez deva dar uma
passada por lá.
— Não posso, aí é que está — retrucou o pai, irritado. — Você
não faz ideia do problema que nós temos aqui. Digo nós como modo
de falar. Sua mãe passa o dia inteiro barricada no Quarto Silencioso,
e eu tenho que implorar para que ela banque a babá, enquanto eu
saio para comprar leite.
— Grand Man não pode cuidar da esposa dele?
— Ele não tem força suficiente. Ela fica violenta de vez em
quando. E ele passou a ser muito passivo. Sem investimentos para
administrar, papai perdeu todo o senso de objetivo. Usa o fleX, dá
uma bisbilhotada na internet. Mas raras vezes se levanta da cadeira.
Tentamos deixar os dois sozinhos, uma tarde, e, quando voltamos,
foi como se tivesse passado um tornado pela casa. Você vive nos
convidando para jantar. Por que acha que não aceitamos?
Florence deslocou-se discretamente para a cozinha.
— Eu sou responsável por um emprego de horário integral, um
filho, um marido desempregado e um inquilino sem nenhum recurso,
sem falar na sua irmã, que, pelo que já percebi, ocupa um bocado
de espaço. Tipo a casa inteira. Não vai ser fácil para mim arranjar
tempo para outra missão. Será que Nollie não poderia passar por
lá?
— Boa sorte com isso! — brincou seu pai. — Essas duas não se
falam há trinta e cinco anos.
Florence prometeu que alguém daria uma olhada na vó Mimi. O
telefonema terminou antes de ela se dar conta de que o pai não
tentara falar com a própria irmã. Desde que havia acolhido o pai e a
madrasta, ele se remoía em um estado contínuo de ira, e parte
dessa raiva parecia voltar-se contra Nollie. Essa pose de vítima era
uma pena. Embora tivesse colocado a própria vida de lado para
cuidar dos pais idosos, ele passava a impressão de ser impiedoso.
Quando Florence voltou para o banquete, Willing se dirigia à tia-
avó com uma concentração irritante.
— A verdadeira razão não pode ser essa. Você não sairia da
França só porque as pessoas não gostam de você. Afinal, devia
estar acostumada com isso.
— Ah! — exclamou Nollie. — Nisso você tem razão. Acho que
houve mais coisas. Tenho uma tendência a estar onde se encontra a
ação. Sou escritora. Gosto de histórias.
— Mamãe disse que você não escreve mais nada.
Ela sorriu.
— Você também não se esforça demais para agradar ninguém,
não é? Quanto a escrever, não, não vejo a razão. Mas a gente não
perde certa mentalidade.
— Os Estados Unidos são um lugar ruim para se viver —
constatou Willing, com ar pesaroso. — Você devia ter ficado o mais
longe possível.
— Vivi muito tempo como estrangeira — refletiu Nollie. — Sempre
achei que não me incomodara em obter a cidadania francesa
porque dava muito trabalho passar pelos obstáculos burocráticos.
Quando o dólar despencou, percebi que minha relutância em jurar
fidelidade à França ia mais fundo que a preguiça. É esquisito,
porque não acredito em nacionalismo. Sempre descartei o
patriotismo como uma espécie de torcida cega e impensada. Não
me restaram muitos amigos nos Estados Unidos e não tenho sido
muito próxima da família. Mas me senti chamada de volta. Não
tenho como evitar... me importar. Foi insuportável observar tudo isso
de longe, no ano passado.
— Você é americana — traduziu Willing.
— Sempre serei americana para os europeus, e talvez esteja
cansada de lutar contra isso.
Willing não pareceu achar a explicação satisfatória.
— Acho que você é maluca. — Ele cortou outro naco de
Camembert. — Este queijo não vai durar, e aí, o que acontece?
***

No fim da tarde seguinte, Florence voltou do trabalho e encontrou


uma caminhonete grande parada em fila dupla na frente da casa.
Um interiorano musculoso estava descarregando caixas na calçada.
Willing carregava a entrega para dentro. Inspecionadas à luz dos
postes de rua, todas as caixas eram endereçadas a Enola Mandible,
a/c Florence Darkly. As letras rabiscadas na lateral da caixa de cima
diziam: ATDQ, BR—RU.
— O que é isso? — perguntou ela a Nollie, que estava
supervisionando a operação. — Primeiro o queijo, agora alface,
tomate e não sei quê, mais creme de amendoim?
Sua tia riu.
— Antes tarde do que. Brochura, Reino Unido.
Florence não o tinha lido. Nos primeiros anos de sua
adolescência, todo mundo parecia estar lendo o best-seller de Enola
Mandible, exceto sua própria família. Visto de relance, ATDQ parecia
dominar a remessa: ATDQ, CD – PORTUGUÊS; ATDQ, TRAD – SÉRVIO; ATDQ.
CLIV – FINLANDÊS.
— Sabe — observou Florence, com cuidado —, esta casa já está
bem atravancada.
— Ah, deixei para trás todas as cadeiras e não sei mais o quê,
até mesmo a maior parte da roupa. Mas não estava disposta a
deixar os livros.
— Tudo isso são livros? — Florence ficou estarrecida ao ver
alguém pagar para transportar uma coisa tão supérflua. O pai
contara com gosto a história do Grand Man embalando sua
biblioteca, na expectativa ridícula de que ele fosse guardar em casa
todos aqueles anacronismos formais. À medida que foi decifrando
as etiquetas em tinta preta, porém — FV = Família virtual; VC =
Vantagem contra; BAT = Do berço ao túmulo; TED = Tempo é dinheiro
—, Florence se deu conta, com assombro, de que aquilo eram
múltiplos exemplares dos mesmos livros, a maioria em línguas que
ninguém em casa falava, inclusive a própria Nollie, e que era
presumível que a destinatária já os tivesse lido, uma vez que os
escrevera. A vaidade daquela remessa era inacreditável.
— Eles terão de caber no sótão — disse Florence, sem jeito por
ditar uma ordem a uma pessoa mais velha. — Ele é todo o espaço
de que podemos dispor para você, sinto muito.
— Ah, acho que daremos um jeito. Na-na-nã! Esta eu vou levar.
— Nollie interceptou uma caixa com os dizeres “Material
descartado” e lutou possessivamente para subir a escada com ela.
Como Material descartado era o único bom título do conjunto,
Florence sentiu-se impelida a indagar sobre ele.
— É uma expressão artística para designar os manuscritos
originais e suas permutações, no caminho para a publicação —
explicou Nollie. — Material de valor inestimável para críticos
literários, biógrafos e alunos de doutorado. Vendidos a uma
biblioteca universitária, esses papéis podem valer muito dinheiro.
Willing e sua tia-avó por milagre conseguiram organizar as
dezenas de caixas em fileiras compridas e apertadas sob o beiral,
embora Florence tenha ficado cabisbaixa ao ver que sua
redecoração do espaço fora substituída por uma aparência cafona e
atravancada. Porém, mais desolada ainda ela ficou com a flagrante
incapacidade de sua tia de digerir o que estava acontecendo nos
Estados Unidos. Talvez a mulher precisasse mesmo ver de perto
uma boa dose do país — agora os “críticos literários” eram
compostos apenas por alguns excêntricos na internet que
deploravam qualquer lenga-lenga que fosse baixada por mais de
dez pessoas; além de alguns autores autopublicados que falavam
bem do próprio trabalho usando pseudônimos. Era um país onde as
pessoas ressentiam-se demais por terem de abrir mão de seus
sonhos pessoais para ler biografias dos predecessores sortudos que
tiveram a liberdade de realizar algo; um país onde nenhum aluno
que conseguisse permanecer estudando desperdiçaria seu dinheiro
de mensalidade em uma coisa tão banal quanto literatura. As
universidades vendiam com rapidez os próprios imóveis, e eram
eles que, de modo improvável, poderiam acomodar os débeis
manuscritos originais de um prodígio envelhecido, com um único
sucesso, que se exilara na França.

***

Florence se mantivera a par dos problemas de sua irmã em


Washington, mas tinha sido difícil levá-los a sério. A vida da Avery
sempre lhe parecera encantada. A irmã caçula era a mercenária, a
materialista, a conformista, a conservadora cuja política só fizera
tornar-se mais de direita. Ela nunca parecera trabalhar muito, mas o
leite e o mel fluíam sem esforço em sua direção: a casa, os carros
de luxo, os jantares suntuosos, os três filhos espevitados, nascidos
com bons intervalos e transbordantes de talentos artísticos. Sua
clínica terapêutica idiota recebera o respaldo de um marido com um
sólido cargo acadêmico em uma instituição situada bem no coração
da Washington convencional e dominante. Avery escolhera o
caminho seguro, a estrada larga e bem pavimentada.
Em suma, sua irmã era rica — no círculo de Florence, uma
designação permanente, que retirava dos assim ungidos qualquer
direito ao sofrimento. Florence ia levando cada mês a duras penas,
mas gente como Lowell guardava dinheiro em jarros espalhados
pela casa. Ele podia ter perdido o emprego, mas pessoas iguais a
ele arranjavam outro. Se Florence tivera de reprimir um toque de
satisfação por sua irmã estar finalmente enfrentando dificuldades,
precisava esforçar-se ainda mais para reconhecer que os problemas
eram reais, que eram grandes, que eram insolúveis.
— Estamos vendendo a casa — declarou Avery, sem sequer
dizer olá.
Com o absurdo carregamento recebido por Nollie recém-instalado
no sótão, Florence ficou decepcionada com o estilo sem rodeios de
sua irmã no fleXface. Estava doida para contar a Avery sobre o
descaramento delirante com que a tia delas esperava que seus
papéis fossem comprados pela biblioteca de uma universidade de
prestígio.
— Bem, não é má ideia reduzir o espaço, não é? — supôs
Florence. — Com Savannah prestes a ir para a faculdade...
— Savannah não vai para a faculdade.
— Pensei que você tivesse dito que ela aceitou adiar e começar
no próximo ano.
— O adiamento é uma fantasia. E não estamos reduzindo o
espaço. — Em contraste com suas ruminações meditativas de
outrora, o discurso de Avery tinha se tornado contundente e
categórico.
— De que adianta vocês se mudarem, se não estiverem...
— Se-nós-não-ven-der-mos-a-ca-sa — Avery foi separando as
sílabas —, te-re-mos-de-en-fren-tar-a-e-xe-cu-ção-da-hi-po-te-ca. É
para isso que “adianta” nós nos mudarmos.
A frustração da irmã levou Florence a temer que certo traço de
condescendência de sua parte pudesse ter infectado as conversas
delas até ali — conversas em que ela nunca esperaria ouvir uma
expressão como execução da hipoteca. Intrigada, ela perguntou em
tom neutro:
— E qual é o plano?
— Felizmente, os imóveis valorizaram. Mas nós não acumulamos
nenhum capital, exceto pelo aumento do valor, um naco do qual
será retido para cobrir pagamentos de juros.
— Mas vocês podem usar o dinheiro para dar de entrada em
alguma coisa mais barata, não é?
— Florence, sua idiota! Não se paga entrada quando não se pode
obter financiamento!
Se as duas estivessem na mesma sala, Florence teria dado um
passo atrás. Tudo que ela dizia parecia enfurecer a irmã, e a
pergunta seguinte não foi diferente.
— Por que vocês não podem obter um financiamento?
— Eu não tenho emprego! Meu marido não tem emprego! Não
temos outra renda senão a miséria dos cheques de seguro-
desemprego do Lowell! Que banco vai nos dar um empréstimo,
digamos, de um milhão de dólares?
— Você também não recebe o seguro-desemprego...?
— Não na condição de autônoma! Florence, você precisa mesmo
começar a prestar atenção! Eu tenho três filhos. Estamos vivendo
de bolo de carne moída. Goog vive apanhando na escola. Virou alvo
porque não fala espanhol.
— Talvez tivesse sido boa ideia você incentivá-lo a estudar...
— Nos velhos tempos, não era ilegal aprender alemão: a língua
de Goethe e de Günter Grass e de Bertolt Brecht, da qual, aliás, ele
gosta. E que, a propósito, também não é ensinada na Roosevelt.
Eles não ensinam nada na Roosevelt, pelo que eu saiba, além da
letra de “Guantanamera” e de como socar um garoto com a dose
certa de comedimento para que ele possa voltar no dia seguinte e
você possa lhe dar outra surra.
Florence concluiu que não era o momento de questionar a
insensibilidade racial da irmã.
— Então, vocês poderiam alugar alguma coisa por uns tempos?
— Os senhorios também não vão ficar entusiasmados com um
casal desempregado. Talvez nos aceitassem, se exibíssemos o
dinheiro da casa. Mas ele não duraria muito, já que os novos
aluguéis são astronômicos. Seria melhor se pudéssemos dar um
tempo em algum lugar. Até a economia se recuperar. — Avery tinha
se disciplinado para usar um tom mais sensato, até suplicante.
— Onde? — perguntou Florence, ressabiada.
— Em algum lugar urbano, de preferência. Onde Lowell pudesse
agarrar qualquer vaga universitária.
— Quais são as perspectivas de emprego dele?
— Nesse momento? — Apesar da sugestão de uma bufadela,
Avery continuou tentando se controlar. — Catastróficas. Entendi,
meio tardiamente, a ironia de que os economistas têm uma utilidade
econômica muito limitada. E ele também é inútil em todos os outros
aspectos. Tenho que fazer tudo. Fui eu que achei um comprador
para a casa.
— Quem pode comprar imóveis assim, a não ser que tenha
mexido os pauzinhos antes da quebradeira? Ouvi dizer que uns
magnatas com ligações no Congresso encheram a carteira.
— Desculpe não dar asas às suas teorias esquerdistas de
conspiração. Quem pode comprar uma bela casa americana? Um
cara de Xangai. Os asiáticos estão comprando tudo. Não só imóveis
residenciais, mas também empresas. Verdadeiros marcos. Um dia
desses, vamos ter um Monumento a Mao Tsé-Tung no meio do
Passeio Nacional.
Florence suspirou.
— Por falar em teorias da conspiração, papai disse que
passamos pela mesma coisa na década de 1980 com os japoneses:
Ah, aqueles caras de olho puxado estão tomando conta de tudo,
estão comprando o Rockefeller Center; e agora, olhe só para eles.
— Florence. — Ela se preparara um pouco durante o período
anterior de silêncio. — Você se importaria? Só por um pequeno
período. Tudo bem se... se ficássemos com você?
No silêncio de Florence, o pavor.
— Nós levaríamos o dinheiro — continuou Avery. — Não
seríamos um fardo. Poderíamos ajudar nas despesas. Ajudar em
outras coisas também. E tudo está ficando muito esquisito. Talvez
devamos nos juntar como um grupo. Reunirmo-nos como uma
família, Florence. Já perguntei ao papai se poderíamos ficar em
Carroll Gardens, e ele disse — a essa altura, ela estava com a voz
embargada — que não. Só fez reclamar sobre Luella.
A cabeça de Florence estava dando voltas. O dinheiro teria sido
mais tentador se Nollie não lhe houvesse entregado discretamente
um envelope de notas para cobrir as despesas justo naquela
manhã.
— Mas essa é só uma casa de dois quartos, e está cheia até o
gorgomilo. Com um inquilino só no nome. Com Nollie... Vocês não
têm que ficar num centro urbano, têm? E Jarred?
— Também falei com Jarred — disse Avery, abatida. — Ele disse
que, se eu tivesse pedido mais cedo, no verão, talvez, mas ele
contratou uns lavradores “temporários”, e agora eles não querem ir
embora. Com famílias e tudo. Soou meio assustador. Como se não
tivesse sido ideia dele. A meio caminho entre ter servos e ser refém
deles. Ele disse que chegou até a apontar um rifle para essas
pessoas, e elas riram. Viram que ele não teria coragem de usar. Eu
não poderia levar as crianças para lá, nem se ele dissesse que
quanto mais, melhor. Não parece seguro.
— Por que não recorrer à família de Lowell? Por que isso é um
problema só dos Mandible?
— Meus sogros também moram num apartamento de dois
quartos, em Fort Lauderdale. Para onde o meu cunhado, a mulher e
os dois filhos acabaram de se mudar. Eles também ficaram sem
nada com a Moratória, graças aos conselhos de investimento
ímpares do meu marido.
— Você não ajuda em nada o seu casamento culpando Lowell
desse jeito. — Florence estava tentando ganhar tempo. — Não foi
ele que deu um calote na dívida pública.
— Desculpe, mas a ânsia de culpar alguém em quem a gente
possa pôr as mãos é irresistível. Nos últimos tempos, responder
pelos pecados do mundo é a única função construtiva de Lowell.
Vez por outra, quando se tem muita coisa em jogo, como
transformar um pequeno pesadelo silencioso em um pesadelo
enorme e fora de controle, o cérebro realmente funciona.
— Escute, por que você não procura a vó Mimi?
A inspiração foi um alívio tão grande que Florence se sentiu
fraca.
— Mas eu mal a conheço... — Avery relutou. — Ela sempre foi
tão distante...
— Como você disse, isso tem a ver com a família, com nos
juntarmos. E ela tem dois quartos acumulando poeira. Está com o
quê, noventa e cinco, noventa e seis anos? Mas não está tão
desligada. Deve ter alguma ideia do que vem acontecendo. Não é
um pedido tão grande para se fazer, ainda que ela seja meio
reservada.
Ao discutirem a proposta com mais calma, as duas irmãs
relaxaram. Era um bom plano. Os Stackhouse só precisariam ficar
no seu canto e ser respeitosos. Margarita, a cuidadora, era uma
mulher de bom coração, mais companheira do que enfermeira, e
certamente também veria que essa era uma emergência dos
Mandible. Mas, quando Florence veiculou a ideia à mesa do jantar,
Willing foi cético.
— Por que ela faria isso?
— Porque ela é da família — reiterou Florence, com um
sentimentalismo em que ela mesma não acreditava muito. —
Estamos falando da neta e dos bisnetos dela.
— Tenho a impressão de que ela não sente a menor ligação
conosco. Sempre me olhou como se eu fosse uma espécie de
abajur.
— Willing tem razão — concordou Nollie. — Minha mãe sabe ser
uma figurinha fria.
— Ela nunca fala comigo — disse Willing. — É só, sabe, Quer um
biscoito?
A vó Mimi cumpria seus deveres familiares oferecendo um
coquetel bastante formal, todos os anos, na véspera do Natal, e
sempre parecia contente quando as crianças corriam para o lado
dos pais querendo ir embora. Mimi mal conseguia se aproximar dos
netos adultos, e dar qualquer importância a mais uma geração era ir
longe demais.
— Talvez seja melhor eu ir embora — sugeriu Kurt. — Para dar
espaço aos seus parentes.
— Mesmo que eu me dispusesse a jogar você no olho da rua —
retrucou Florence —, não me ajudaria perder um hóspede e ganhar
cinco.
— Isso não vai nos ajudar — disse Esteban, mal-humorado. Ele
era melindroso a respeito dos pronomes que usava para se referir a
uma casa cuja escritura continuava no nome de Florence. Com seus
jantares agora apinhados pela presença de duas pessoas com
quem ele não se importava, Esteban andava melindroso, ponto final.
— Nollie — implorou Florence —, eu disse que meu pai esperava
que você pudesse dar uma olhada na vó Mimi, e você não se
interessou muito pela ideia. Mas, agora, você poderia ir até lá com
uma missão. E, o que é melhor de tudo, não em benefício próprio.
— Eu seria a pior emissária possível com aquela mulher, fosse
em benefício de quem fosse.
— Seria um choque se você aparecesse lá — pressionou
Florence —, e isso demonstraria que passamos por tempos
extraordinários, que requerem medidas extraordinárias.
Nollie se encolheu, parecendo agoniada. Era bizarro ver uma
mulher de setenta e três anos com medo da própria mãe. Mas, com
um número suficiente de apelos manipuladores à sua “valentia”, ela
cedeu.

***

Nollie mobilizou-se com um espírito de determinação e raça.


Apegada à sua fama de intrépida, insistiu em ir de ônibus até a
estação de metrô da rua Jay, embora, à luz do envelope gordo da
manhã anterior, pudesse facilmente bancar a corrida de táxi. Era
uma tarde de sábado, e, depois de instruir a tia sobre o trajeto,
Florence alegrou-se, para variar, com o fato de a mulher se vestir
tão mal. O transporte público estava cada vez mais arriscado. Tênis
e jeans sem marca famosa reduziam a probabilidade de ser
assaltada. Florence quase pediu a Esteban que fosse de
acompanhante, mas isso lhe pareceu condescendente, e, se mãe e
filha entrassem em uma conversa franca, ele poderia passar horas
esperando.
Só que Nollie voltou mais depressa do que se previa. No trajeto
de volta, de fato pegou um táxi — do qual saltou trêmula, olhando
aflita para um lado e outro da rua, enquanto guardava o troco da
corrida. Quando Florence se afastou da janela, Nollie entrou, fechou
o trinco superior e prendeu a corrente. Foi direto para o conhaque.
— E então...? — indagou Florence. — Como foi?
Nollie afundou no sofá e pôs os pés embaixo das coxas,
segurando seu copo de bebida. Parecia uma menina de seis anos
que sofria de progéria.
— Ela foi má com você? Será que ela ainda guarda mágoas por
conta de Antes tarde do que? Mesmo depois de todos esses anos?
— Não faço ideia — disse Nollie, feito um robô.
Willing desceu de mansinho e se sentou no terceiro degrau da
escada para bisbilhotar.
— Você voltou muito rápido — cutucou Florence. — Ela não
estava em casa?
— Não, não estava.
O corpo rígido de Nollie não transmitia a ideia de uma campainha
não atendida.
— Você se disporia... a tentar de novo? A família de Avery tem
que entregar a casa daqui a alguns dias...
— Não podemos tentar de novo.
— Nollie, o que aconteceu? Que parto essa conversa.
Willing veio até o vão da porta e comentou:
— Ela disse que gosta de histórias. E histórias são sobre não
contar de uma vez o que aconteceu. Se você deixa escapar o final,
não é uma história.
Nollie olhou para o sobrinho-neto.
— Não sei direito se gosto de histórias. Histórias reais. Acho que
talvez eu só goste do tipo que é de mentirinha. Ou só de histórias
reais sobre outra pessoa.
Willing virou-se para a mãe.
— Viu? Ela continua a fazer a mesma coisa. Carter diz que ela é
“uma escrevinhadora”. Que só escreveu “um sucesso, do tipo que
conta tudo, e isso deixou os círculos literários em polvorosa, na
época em que existiam círculos literários”. Mas acho que ela é boa
nisso. Acho que ela leva jeito.
Florence enrubesceu.
— Nollie, por favor, não leve a sério os comentários do meu pai.
Willing está citando o que ele disse, super fora de contexto.
— Estou familiarizada com o contexto — disse ela. — Sei o que
Carter pensa do meu trabalho. E se eu não soubesse, ficaria grata a
Willing por me informar.
Já parecia haver um laço entre aqueles dois, e nessa hora
Florence reconheceu como Esteban devia ficar enciumado.
— Continue — pediu Willing.
— Eu me assustei com Manhattan. — Nollie bebeu um gole
grande. — Todos aqueles pedintes. Tão agressivos. Ameaçadores.
Quando eu morava no Upper West Side, os vagabundos eram
malucos. Agora, são bastante sãos, mas rancorosos. Fiquei
surpresa: o rancor é pior. Os malucos fecham-se no seu mundo e a
energia deles gira sem parar, como se batesse num liquidificador.
Mas agora a bile é uma flecha. Mira nas outras pessoas.
“Vocês estão acostumados com isso. Mas, para mim... Aquelas
famílias acampadas nos pontos mais altos, no meio da Broadway.
Inúmeras lojas fechadas. Os restaurantes ainda abertos mantendo
as persianas baixadas. Os noticiários da Europa... eles não falam
sobre como é andar pelas ruas. Está menos para Nova York e mais
para Lagos.
“Eu tinha descido uma estação antes, na 79th Street. Pensei em
passar na Zabar’s e aparecer na casa da mamãe com o bacalhau
defumado favorito dela, como uma oferenda de paz. Há cem anos a
Zabar’s fica na esquina da 81st Street com a Broadway. Eu ia lá
comprar mostarda em grão e esponjas para louça desde pequena.
Mas a loja foi vandalizada. Alguém pichou os dizeres COMA SALMÃO
nos compensados de madeira. Achei aquilo quase espirituoso.
Resolvi desistir de levar o presente.
“No prédio da minha mãe já não havia porteiro. Por sorte, eu
tinha levado as chaves, que carreguei por toda a Europa desde
1996. — Nollie virou-se. — Sabe, eu não me opus tanto assim a
essa missão, Florence. Nunca me conformei com o fato de não
voltar a ver mamãe. Nós duas somos muito voluntariosas e nos
refestelamos em nossos ressentimentos. Mas gerar toda essa raiva,
ano após ano, me cansou. E a essa altura, toda essa coisa da rixa é
não apenas exaustiva, como já se esgotou. Faz um bom tempo que
eu me sinto meio idiota.”
— Muito amadurecida, aos setenta e três anos — disse Florence.
— Então, ainda há esperança para nós.
— O chão estava imundo. Havia caixas de correio abertas. A
caixa do apartamento cinquenta e oito tinha um exemplar do
Foundation Journal pendurado, mas a edição era de setembro. O
elevador estava quebrado, por isso subi a escada. Um sujeito que
vinha descendo me deu um esbarrão com força, como se fosse de
propósito. Estava com a roupa toda desalinhada, com uma exceção:
um chapéu borsalino branco, imaculado. Achei aquilo esquisito,
porque, quando eu era pequena, meu pai tinha um igualzinho
àquele.
“Estava tremendo quando toquei a campainha. Eu não fazia ideia
de como mamãe reagiria à minha chegada, sem aviso. Não queria
ser a causa de um infarto. E ainda existia outra preocupação: e se
ela não tivesse atendido o telefone por causa de uma crise de
saúde?”
— Se a Grande Mimi estivesse no hospital, alguém... — Florence
começou a dizer.
— Não me refiro a esse tipo de crise de saúde. A questão é que
eu não estava tremendo só porque ela ainda poderia se recusar a
falar comigo. Ou porque poderia estar indisposta. Parecia haver algo
errado. Depois que toquei a campainha, a tampa do olho mágico foi
levantada. Apareceu um olho. Não era da minha mãe.
— Margarita... — tentou Florence.
— A tampa do olho mágico baixou e deu uma volta, como se
alguém tivesse dado um peteleco. Ninguém abriu a porta. Tornei a
tentar a campainha, e ouvi risadas do outro lado. Vozes juvenis.
Depois, o homem da escada voltou, carregando uma garrafa de gim.
Ele me deu um tranco de lado e disse: “Algum problema, dona?”
Pegou um chaveiro. Eu o reconheci. Tinha uma etiqueta vermelha
de doador de órgãos. Só podia ser o chaveiro da minha mãe.
Aquele homem não parecia doador de órgãos, a menos que
estivesse planejando doar os de outra pessoa.
— Talvez ela tenha sido forçada a aceitar inquilinos...
Nollie ignorou a teoria improvisada da sobrinha.
— Sei que eu me meto em encrencas. Sou geniosa. Meu ex-
marido, Gerard, dizia que eu precisava aprender a controlar o meu
gênio. Dizia que eu não faço ideia de como sou pequena, de como
estou velha e de como não sou tão forte quanto suponho. Gerard
dizia que eu tinha de aprender a ser submissa. Mas não tenho
talento para isso. Assim, quando o tal homem começou a me
intimidar perto da porta, perguntei: “Onde está Mimi Mandible? Este
apartamento é da minha mãe, e preciso ver se ela está bem.” Ele
repetiu “Mimi Mandible”, como se fosse o nome mais engraçado e
idiota que já escutara. Insisti para que ele explicasse o que estava
fazendo lá, e ele disse alguma coisa do tipo “Cai fora, velhota”. Me
deu um empurrão e eu caí.
— Você está bem? — perguntou Florence.
— Dolorida, mas não quebrei nada. Enquanto eu ainda estava no
chão, o homem tirou o chapéu, fingindo cavalheirismo, e repetiu
“Mimi Mandible! Mimi Mandible!”, antes de entrar. Ninguém nunca
achou o nome da minha mãe tão hilariante.
“Àquela altura, eu devia ter ido embora, agora percebo. Mas eu
estava com muita raiva. O apartamento 58 é a minha casa, e, de
algum modo, ter sido banida dele por mais de trinta anos o tornava
ainda mais meu. Eu pensei: esse lugar já foi tirado de mim uma vez,
e duas ultrapassam os limites. Carter e eu apostávamos corrida
naquela escada. Cresci do outro lado daquela porta, que está cheia
de coisas da minha mãe, suas joias, seus perfumes, seus sapatos
lindos... e nós calçamos o mesmo tamanho. Um dia, aquelas coisas
deveriam ser minhas, como lembranças da minha infância e da
minha mãe. Durante décadas eu me agarrei à ideia de que ela é que
havia puxado a briga, para começo de conversa, e ela me devia
desculpas. Depois de morar com papai por tantos anos, a mamãe,
justamente ela, devia reconhecer a importância de um livro, e saber
que a arte tem preferência sobre os sentimentos. — Se Nollie
estava de gozação, era consigo mesma. — Mas enfim, de repente,
tudo me pareceu um desperdício. Nem eu me incomodava com o
meu livro, ou com qualquer livro. Tinha de entrar lá. Na minha
imaginação, eu ia salvá-la daquele homem horroroso que zombava
do nome dela, e ela se agarraria a mim, e choraria de gratidão e me
perdoaria.”
— Você usou sua chave — disse Willing.
— Tudo aconteceu muito depressa, mas eu vi o suficiente... e
gostaria de não ter visto. O lugar estava destruído. Lixo, sanduíches
secos, seringas hipodérmicas pelo chão. No corredor, alguém
dormindo ou chapado estava enrolado num dos tapetes persas da
mamãe. Uma garota nua da cintura para baixo passou
perambulando, usando os retalhos do casaco de visom da mamãe;
essa garota me olhou bem de frente e não me viu. O apartamento
estava gelado; devem ter cortado a energia. E fedia. Pedaços sujos
da louça de casamento dos meus pais, aquela porcelana azul com a
borda prateada, estavam espatifados por toda parte, aos cacos.
Eles pareciam ter usado a coleção de vasos artísticos da mamãe
para treinar futebol; havia pedaços deles rolando pelo corredor. Pela
entrada da sala de estar, vi outros jovens, quase todos dopados. O
forro creme do sofá estava coberto por alguma coisa que parecia
vômito. Carter e eu nos meteríamos em encrencas terríveis, se um
dia comêssemos chocolate sentados naquele conjunto estofado.
— Me diz que você saiu de lá — pediu Florence.
— Passei apenas uns segundos parada na porta. Depois, o
homem do chapéu veio andando calmamente pelo corredor, perto
da sala de jantar, bebendo o gim na garrafa. Seus olhos se
iluminaram e ele partiu para cima de mim. Peguei um pedaço de
vaso que estava a meus pés, aquele art déco transparente com
entalhes de cristal, que sempre achei feio, e atirei no sujeito. Pegou
só no joelho, mas acho que doeu. Aí, saí correndo. Quando Carter e
eu apostávamos corrida naquela escada, eu sempre vencia. Nem
virei para trás para ver se o homem estava me seguindo, apenas
disparei para a Broadway e fiz sinal para um táxi. Cinquenta anos de
todos aqueles exercícios maçantes finalmente provaram valer para
alguma coisa.
A história, mais do que a corrida, parecia ter esgotado Nollie.
— Precisamos chamar a polícia — disse Florence.
— Já chamei — informou Nollie, em tom monocórdio. — A
atendente da central telefônica prometeu mandar alguém, mas não
estou convencida. Ela avisou que os incidentes com “invasores”
eram comuns, e, quando expliquei que minha mãe tinha noventa e
seis anos, percebi que ela perdeu o interesse. A polícia estava
“sobrecarregada”, disse. Tinha que “estabelecer prioridades”.
— Lá na escola — comentou Willing —, todo mundo diz que
chamar a polícia é perda de tempo. A maioria dos policiais está
obcecada em proteger a si mesmo.
— O que essas pessoas fizeram com vó Mimi e Margarita? —
perguntou Florence.
— Não tenho certeza de que valha a pena pensar nisso —
respondeu Nollie.
— Mas como é que entrariam estranhos lá, para começo de
conversa?
Nollie deu de ombros.
— Deve ser fácil seguir duas senhoras idosas com suas compras.
Você nunca se sentiu vulnerável, ao pôr a chave na fechadura da
porta da frente? Com certeza eu vou me sentir, de agora em diante.
— Nollie tem razão — concordou Willing. — Não podemos voltar
lá. Não sem uma arma.
— Willing! — repreendeu Florence. — Não usamos armas nessa
família!
— Eu devia ter engolido meu orgulho, lá pelos anos noventa —
continuou Nollie —, e feito as pazes com minha mãe. Achei que era
uma questão de integridade artística me recusar a pedir desculpas
por ter escrito justamente o romance que me deu fama. Mas era só
teimosia mesmo. A verdade é que o retrato que fiz da mãe no ATDQ
não é lisonjeiro. Com certeza, eu não gostaria que ninguém
publicasse, para todo mundo ler, que eu era “tão sensual quanto um
peixe morto”. Eu não precisava desescrever o livro, o que seria
impossível, aliás. Tudo que eu precisava dizer era que sentia muito
por tê-la magoado, e isso não me custaria nada.
Nollie levantou-se para servir outro dedo de bebida.
— Cometi um erro terrível — afirmou.
— O erro — concluiu Willing — foi não levar uma arma.
• CAPÍTULO 10 •

REVESES NUNCA TRAZEM À TONA O QUE


AS PESSOAS TÊM DE MELHOR

Em tese, Avery admitia que os bens materiais eram uma


preocupação banal em uma emergência, e que a única coisa que
importava era a segurança de sua família. Os personagens
competentes dos filmes de tragédias não se afligiam, nos edifícios
em chamas, pensando em como salvar o sofá. Mas esperar que ela
ficasse indiferente ao fato de abandonar uma poltrona de seis mil
dólares era o mesmo que supor que alguém podia entrar na
configuração do fleX e escolher “tornar-se uma pessoa
completamente diferente”.
Então ela se desgastava, girando em círculos. Eles não podiam
chegar à casa tacanha e deprimente de Florence com uma
caminhonete cheia de móveis de luxo. Poderiam enfiar suas coisas
em um depósito, mas a taxa mensal sairia cara. Ela ouvira dizer que
uma família vizinha, também obrigada a vender a casa para um
china oportunista — pronto, ela havia usado a palavra, nem que
fosse em sua cabeça —, tivera todo o trabalho de armazenar suas
coisas em um depósito, o que tinha sido tão complicado quanto a
mudança, só para não conseguir pagar a mensalidade e perder
tudo, de qualquer maneira.
Os Stackhouse poderiam ter feito um gigantesco bazar de objetos
usados, ou entrado em contato com uma empresa de desocupação
de imóveis, mas Washington estava inundada de objetos de todo
tipo, e o mercado, excepcionalmente favorável aos compradores.
Ninguém queria o jogo de mesinhas de centro feito de madeira de
mangueira, embora houvesse quem espichasse as orelhas à
menção de um pacote de cinco quilos de arroz. Nos acampamentos
às margens do Potomac, os sem-teto dormiam em colchões
ortopédicos Posturepedic, top de linha, resgatados das calçadas.
Arranjar bebida vagabunda era um leve desafio, mas a turma que
morava na rua podia escolher os copos de cristal lapidado Waterford
em que iria tomá-la; nas enormes feiras improvisadas de objetos
usados que haviam surgido por toda a cidade, jogos de cristal
completos eram vendidos por dez dólares. Um dia, em uma tirada
inesquecível, Belle Duval refletira sobre a descoberta
desconcertante de se tornar abastada: acima de um limiar
surpreendentemente baixo de necessidades primárias, “não há tanta
coisa assim para se comprar”. Visto que, mesmo assim, os ricos
costumavam comprar horrores, os detritos de alto luxo que
inundavam as cidades americanas enfatizavam a colocação de
Belle: se não enchia a barriga nem protegia das forças da natureza,
era lixo.
Por isso, a única opção inteligente fora aceitar a oferta ridícula
que o comprador da casa fizera pelo “conteúdo”, já que o corretor
havia informado que, de outro modo, eles poderiam ter de pagar
pela retirada dos móveis e utensílios. Também em termos afetivos,
era mais fácil largar tudo do que se apegar a uma mesinha de
centro e deixar que o par dela fosse embora. Pelo menos, o simples
fechar a porta e sair poupava as crianças de um confronto do tipo A
escolha de Sofia com seus pertences, e Avery tinha conseguido
convencer Bing de que eles estavam partindo para uma “aventura”
— uma conversa mole na qual os dois mais velhos, infelizmente,
eram espertos demais para cair.
No entanto, depois que aceitou a inevitabilidade da alienação
quase completa dos bens, Avery sentiu-se surpreendentemente
poderosa — não apenas mais leve e menos sobrecarregada, como
também forte, tirando dos ombros escrivaninhas e armações de
camas, como um sobrevivente cheio de adrenalina depois de um
terremoto. Ela foi impelida a considerar o duplo sentido da própria
palavra posse: um objeto de que a pessoa assumia a custódia, mas
também um espectro que se apossava dela. Será que algum dia
Avery tinha possuído aquelas mesinhas de mangueira, ou os móveis
é que se haviam apossado dela?
Enquanto isso, Lowell era um caso perdido. Jogava tudo em cima
dela. Descartar produtos de limpeza parcialmente usados. Escolher
os cinco melhores pares de meias de uma gaveta com trinta.
Lembrar que, apesar do tumulto histórico, eles eram obrigados a
guardar comprovantes financeiros durante sete anos, para fins da
declaração do imposto de renda. Cancelar o fornecimento de
serviços. Conseguir falar com o Exército da Salvação, apenas para
descobrir que as instituições beneficentes estavam abarrotadas de
donativos de produtos e aparelhos domésticos, e que seus
utensílios de cozinha, as ferramentas de jardinagem, a roupa de
cama, mesa e banho, os enfeites de Natal e a quase totalidade de
seus guarda-roupas estavam destinados ao lixo. Fazer o
levantamento dos poucos postos de gasolina que ainda venderiam
combustível para seu SUV, a caminho de Nova York. Enquanto isso,
seu marido, antes afável, escondia-se no escritório, de roupão,
teclando no fleX e alegando que alguém precisava apresentar uma
“contra-argumentação” a Ryan Biersdorfer e “restabelecer a
confiança”. Contudo, um acadêmico despenteado e sem emprego
não restabeleceria a confiança de ninguém, muito menos a de
Avery. Não era hora de escrever.
No cômputo geral, ela se espantou por não ficar mais aflita. É que
a necessidade é a mãe da reinvenção. Avery acordava cedo sem
despertador. Seus últimos dias na 36th Street NW foram impregnados
de uma motivação nunca propiciada pela tarefa de achar costeletas
grossas de vitela. Protegida dos infortúnios, durante muito tempo,
por uma clínica bem-sucedida e um cônjuge bem-remunerado,
Avery sentia como se tivesse jogado fora um cobertor em uma casa
superaquecida. O tempo ameno sufocara a maior parte de sua vida
adulta, e, de repente, o ar do fim de novembro tocou sua pele com
força. Foi como se as coisas voltassem a ter importância. A maneira
como ela passava o tempo, ou o que ela dizia aos filhos, pareceu
importante. Ora, era tentador se perguntar se, enquanto gente como
os Stackhouse ponderava, confortavelmente, se devia forrar de
malva ou castanho-acinzentado o banquinho para apoio dos pés,
não era o pessoal da periferia que levava vidas de verdade, tomava
decisões reais e mantinha relacionamentos verdadeiros, cheios de
atrito, gritos e valor. Será que, durante todo aquele tempo, os pobres
é que haviam ficado com toda a diversão?

***
Quando a família saltou em bando do Jeep Jaunt (para simplificar,
eles tinham sido obrigados a vender o elegante GMFord Catwalk de
Lowell), o clima era alegre. Abraços apertados e cumprimentos
empolgados lembraram visitas anteriores, da época em que as
crianças eram menores e ansiavam por passar algum tempo com a
tia e o primo em Nova York. Recém-saída do abraço da irmã, Avery
pôde tirar da cabeça a lembrança de que eles não eram convidados,
mas parasitas por prazo indeterminado. Além disso, desde que se
casara com Lowell, ela fora designada como a irmã que vivia na
moleza, de modo que a inversão de papéis era libertadora. Desde
quando ela conseguia se lembrar, ter vantagens neste país havia
conferido uma clara desvantagem social.
Eles puxaram as malas pela entrada até o porão escuro, de onde
um inquilino sem um centavo fora retirado; por razões que
escapavam à compreensão de Avery, o homem não tinha sido posto
no olho da rua, mas deslocado para a sala do andar de cima. O ar
era bolorento. Havia um colchão de casal no chão, ao lado de dois
colchões infláveis para solteiro. O carpete — um daqueles tons de
azul que não combinam com nada — era fino como feltro. O
banheiro não tinha banheira. Uma cozinha compacta exibia uma pia
e um fogão pequenos e uma minigeladeira com decalques
horrorosos de flores amarelas e brancas. Era vertiginosa a queda —
vindo de uma espaçosa cozinha em Washington, com paredes
revestidas de couro e um robô chamado Feiticeira, programado para
preparar frango à caçadora. A animação inicial de Avery
desapareceu; o que ela foi obrigada a disfarçar imediatamente.
— Viram? — disse em tom animado aos filhos, que examinavam
com incredulidade a nova moradia. — Será como acampar.
— Detesto acampar — respondeu Goog.
— Mamãe! — Bing se encolheu diante de algo que passou
correndo. — Tem bichos aqui!
— E cheira mal — acrescentou Savannah.
— Tivemos uns problemas com a umidade — argumentou
Florence, monocórdica.
— Ah, não ligue para Savannah — respondeu Avery. — Ela não
entende que todos os porões ficam meio bolorentos.
— O nosso não ficava — Goog a contradisse. — E tinha uma
mesa de sinuca.
— Nesse caso, foi uma pena você não ter trazido — disse
Florence. — Poderia dormir em cima dela.
Avery detectou na irmã uma frieza pragmática. Uma recusa, que
era nova, a se deixar provocar. Em tempos idos, ela fora uma
esquentadinha moralista. Florence havia mencionado ser
continuamente “sitiada” no seu abrigo, onde esse estilo não reativo
devia ser uma mão na roda.
— O porão foi impermeabilizado contra umidade há dois anos —
continuou Florence, dirigindo-se a Avery —, mas quando tentei fazer
a companhia cumprir a garantia de cinco anos, o site estava fora do
ar. A empresa fechou as portas.
— Sei como é — afirmou Avery. — Eu quase trouxe o nosso
aspirador robô. Mas uma aba de plástico sem a qual ele não
funciona quebrou, o fabricante faliu e é impossível achar qualquer
peça.
— Uma verdadeira tragédia americana — disse Willing da escada
que levava ao térreo. Por sua inflexão neutra, era impossível dizer
se estava sendo sarcástico.
— Uma verdadeira tragédia americana é a gente acabar nessa
pocilga — rebateu Goog.
— Obrigada — disse Florence, com uma olhadela para a irmã.
Belo trabalho de criação de filhos, fofinha.
— Tragédia é acabar na rua — sapecou Avery — e não ter
parentes generosos que ofereçam refúgio.
— Se isto aqui é um “refúgio” — disse Savannah em tom seco,
postada a certa distância do resto da família, como uma
observadora indiferente —, quer dizer que somos “refugiados”?
— Sim — respondeu Avery. — De certo modo, somos refugiados.
— Que bobagem, querida — disse Lowell, da escada da entrada
externa, onde lutava com o maior baú da família. — Estamos nos
Estados Unidos, não no Iêmen. Logo, logo, vocês se lembrarão de
comentários exagerados dessa natureza e se sentirão ridículos.
— Não entendo por que não podemos alugar um lugar decente
— choramingou Goog. — Não estamos falidos. Você disse que teve
lucro com a venda da casa.
— Sem ter renda fixa? — disse Avery, cerrando os dentes. —
Nem locação nem financiamento. O que qualquer filho de um ás da
economia deveria saber, mesmo que eu já não tivesse dito isso dez
vezes.
Tendo abandonado a mala, Lowell estava vasculhando o porão
com o cenho franzido; testava a estabilidade de uma mesinha,
desligava um abajur e arrastava-o pelo cômodo, depois, de joelhos,
procurava alguma coisa ao longo da parede.
— Meu bem — chamou Avery —, o que você está fazendo?
— Tentando encontrar uma tomada. Preciso montar um espaço
de trabalho. No caminho para cá, tive umas ideias que preciso
anotar.
Avery tentara tolerar a presunção do marido a respeito do seu
“trabalho”; alguma análise econômica vital, sem a qual o mundo viria
abaixo. Como o mundo já viera abaixo, a tolerância dela se
transformara em desdém. Em retrospectiva, parecia muito
engraçado que a família inteira, sem a menor sutileza, houvesse
descartado sua clínica, a MenteCorpo, como charlatanice, quando
todo o campo de Lowell tinha sido desmascarado como uma
embromação muito mais suspeita. Na pior das hipóteses, os
tratamentos de Avery apenas prometiam demais, ao passo que o
bando de charlatães de Lowell provocara um caos nacional. No
entanto, ela cuidara humildemente de fazer todas as malas e toda a
limpeza, e de acalmar as angústias e indignações dos filhos; tinha
saltado todos os obstáculos burocráticos para providenciar a venda
da casa, enquanto Lowell fechava a cara para seu fleX, digitava
febrilmente e, de vez em quando, passava segundos seguidos
apertando a tecla “apagar”, na extrema direita, com desgosto
melodramático. Ele fazia Avery se lembrar, incomodamente, de
quando ela brincava com o antigo BusyBox do pai na casa da vó
Mimi, aos quatro anos; girando uma manivela que não movia nada,
rodando um disco de telefone que não fazia nenhuma ligação,
abrindo uma gaveta dentro da qual não havia coisa alguma e
acertando um relógio que não dizia as horas.
— Lowell, você trancou o carro? — perguntou Florence. — Não é
só em Nova York, mas, sobretudo aqui, não se pode deixar nada
aberto.
Com um suspiro meio bufado, Lowell voltou a se arrastar para o
lado de fora.
— Acho que esgotamos os colchões, para não falar do espaço no
piso — disse Florence. — Então, pensei que Goog poderia dividir a
cama com Willing lá em cima. É uma cama de solteiro, mas Willing
está mais para magrinho.
— Puxa, cara! — exclamou Goog. — Ser gay é muito démodé.
Prefiro dormir no carro.
— Você está bem com isso, Willing? — Avery conhecia tão bem a
territorialidade dos garotos adolescentes que não precisaria ter
perguntado.
— Não faz diferença se está bom para mim — respondeu Willing.
Era embaraçoso que ele tivesse razão.
— Sinto muito por estas acomodações não serem o que vocês
estavam acostumados — disse Florence à irmã, em voz baixa. —
Eu avisei que seria um aperto.
— Eu é que devo pedir desculpas — respondeu Avery entre
dentes. — As crianças têm sido umas bostejantas...
— Foi um choque para eles — apaziguou Florence. — Já vi isso
inúmeras vezes. Todo mundo se adapta sem esforço a uma vida
mais luxuosa, e a melhora da situação sempre parece merecida.
Mas ir no sentido inverso parece contrariar a natureza. O mais
venenoso é que isso também parece injusto. Existe toda uma outra
classe de pessoas que sempre enfrentaram dificuldades, e elas
encaram a adversidade como um fato corriqueiro. Podem não achar
que merecem aquilo, mas aceitam; é com isso que estão
acostumadas, e não reclamam muito com os deuses. Mas nunca vi
ninguém cuja vida tivesse dado uma guinada súbita para pior que
achasse que essa reviravolta do destino era justamente o que ela
merecia. A indignação, a consternação, a fúria, todos impotentes...
bem. Reveses nunca trazem à tona o que as pessoas têm de
melhor.
Lowell voltou, abanando a cabeça.
— Não acredito que roubaram os salgadinhos.

***

— O que é essa bateção infernal? — perguntou Avery à tardinha,


enquanto Florence mexia uma mistura de cuscuz no fogão.
— Finalmente perguntei a ela — disse Willing, da porta da
cozinha. — São polichinelos. Nollie faz três mil, todos os dias.
— Ela diz que leva trinta e dois minutos, mas parece uma vida
inteira. Benzinho — Florence dirigiu-se a Willing —, não temos
pratos suficientes. Acho que Nollie levou um para o sótão, mas não
a interrompa até ela acabar a ginástica. Eu tentei, uma vez. Ela
soltou os cachorros em cima de mim.
— Mas ela tem setenta e três anos! — exclamou Avery.
— Você conhece os baby boomers — respondeu Florence, com a
cabeça baixa sobre a tábua de fatiar. — São todos malucos. Até
papai passou de repórter afável a maníaco homicida. Mamãe fica
barricada no seu Quarto Silencioso, como se a casa tivesse sido
ocupada pela Al-Qaeda. Luella vive tentando redecorar o ambiente.
Na semana passada, ela raspou todo o papel de parede do banheiro
de cima. Por isso, só mamãe virá aqui amanhã à noite, como
“emissária” deles. Caso contrário, os quatro teriam que vir, e seria
“provação” demais. Eu ficaria comovida se o motivo fosse que
mamãe não quer me dar trabalho. Mas acho que ela quis dizer que
seria trabalho demais para ela.
— Alguma notícia sobre a vó Mimi? — perguntou Avery.
— Oficialmente, ela está desaparecida, mas o mesmo acontece
com uma porção de outras pessoas.
A tábua de picar estava impondo uma intensidade de
concentração que não combinava com a competência de sua irmã.
Florence era uma cozinheira eficiente, capaz de picar tomates
dormindo, mas não estava estabelecendo contato visual. Avery
sentiu-se constrangida e não pôde deixar de suspeitar de que
estava sendo levada a se sentir constrangida, ainda que não de
propósito, por uma ira que sua irmã não tinha possibilidade de
controlar. Sentiu-se indesejada.
— Ei. — Ela tocou na manga da irmã. — Sinto muito que as
coisas tenham tomado esse rumo.
— Eu também. Digo, é pior para você. Perder tudo, e tudo o
mais. — Não soou sincero.
— É diferente de uma visita. — Avery olhou para o chão.
— Não, com certeza, não é como uma visita! — A risada soou
como um soluço. — O que aconteceu com a água cinza da pia?
— Na cuba de plástico? Joguei fora. Era nojenta.
— Não faça isso. — Os músculos do rosto de Florence se
contraíram. — É para a louça.
Nesse caso, Avery tinha acabado de salvar sua família do cólera.
— Escute — disse —, posso ajudar com o jantar?
— Esteban! — gritou Florence, ignorando a oferta. — Mi querido?
A mesa não comporta oito pessoas! Precisamos de assentos extras!
— Não quero me sentar na mesa das crianças! — lamuriou-se
Bing na sala.
A garotada estava assistindo televisão, e já tinha havido um
conflito por conta da preferência peculiar de Willing pelo noticiário de
negócios. Estava claro para Avery que seus filhos nunca passariam
muito tempo naquele porão lúgubre. Ela se sentia mortificada por
não cumprir sua promessa de não atrapalhar Florence. Não
conseguia se imaginar preparando as refeições de sua família
naquela cozinha de brinquedo, com decalques de margaridas.
Pensar nisso instigou-a a mentir:
— Espero que você não ache que vai precisar cozinhar para nós
o tempo todo.
— Vamos lidar com as coisas à medida que elas forem surgindo,
está bem?
Florence transpirava aquela densa qualidade de guardar muitas
coisas para si, e, por enquanto, Avery se deu por satisfeita com a
possibilidade de que o que quer que estivesse sendo remoído
naquela cabeça permanecesse dentro dela.
Sentindo-se grata por ter uma tarefa — será que Florence estava
se recusando a delegar a mais ínfima atividade porque isso faria sua
irmã se sentir útil e, portanto, menos em dívida? —, Avery se
ofereceu para ajudar Esteban a buscar a mesa de centro da sala de
estar, cuja mistura cafona de peças de brechó, feita de abajures
com franjas, cestas, almofadas de crochê com espelhinhos e
tapetinhos orientais desbotados, não era do seu gosto. Isso não
deveria ter importância — a única coisa que importava era a
segurança de sua família —, mas ela sentia falta dos interiores
suaves, dóceis e simples que tinham levado anos para ser
perfeitamente projetados. Essa sala poderia ao menos parecer
aconchegante, mas a pilha de porcarias daquele parasita, em um
dos cantos, fazia o cômodo pender para bazar de caridade de porão
de igreja e levava os outros a se sentirem intrusos no único espaço
comum da residência.
Os dois colocaram a mesinha de centro junto à mesa de jantar e
arrumaram nela três lugares adicionais, embora fosse muito baixa.
Kurt e Willing se ofereceram para ocupar esses lugares de segunda,
e Savannah acabou por se juntar a eles, com a intenção de se
distanciar ao máximo de todos. Avery correu lá embaixo para
anunciar que o jantar estava pronto. Recurvado em seu escritório
improvisado, Lowell fez parecer que tinha de terminar algum trecho
vital, e manteve todos esperando por dez minutos, enquanto o
cuscuz esfriava.
Enfim reunido, o grupo poderia ter exalado o júbilo de um
reencontro familiar, não fosse a natureza indefinida da presença dos
Stackhouse naquela casa, que pairava sobre a reunião como a
baixa pressão barométrica — aquele clima sombrio e pesado de céu
ameaçador, que podia persistir por dias seguidos antes de se
agregar em um temporal purificador, mas violento. A ocasião era
ainda mais adulterada pelo bizarro inquilino — ex-inquilino —, que
pouco falava e cuja gratidão era opressiva. Aqueles dentes eram o
bastante para tirar o apetite de Avery. Por que Florence não se
livrava do sujeito? Ou sua irmã tinha o coração mole, ou se apegava
à ideia dela mesma como sendo uma pessoa compassiva, uma
fantasia pela qual todos eles tinham de pagar. Sem aquele bicão,
que nem ao menos era parente, e com Nollie mais sensatamente
empurrada para o pai delas, e não para uma sobrinha — Avery
achava a velha imperiosa e imprudente em suas opiniões —, todos
caberiam ao redor daquela mesa, ela e Lowell poderiam ter alguma
paz e sossego no sótão, e as crianças poderiam ter seu próprio
canto lá embaixo. Era um arranjo tão vividamente exequível que
Avery ficou irritada. Era aquele refugo social extra que fazia com
que a chegada da sua família parecesse tamanha imposição.
— Florence, isso está com uma cara ótima. — Avery remexeu
sua porção, desolada com a escassez de frango. Poderia ter
passado por cima da deficiência de proteínas, não fosse a
deficiência de álcool. As duas garrafas de vinho que ela e Lowell
levaram tinham sido uma contribuição, não três pães e cinco peixes
para alimentar cinco mil. As gotas servidas por Florence para todos
os seis adultos em copos de suco eram do tamanho de uma medida
de antisséptico bucal, o que era quase pior do que nenhum vinho. A
segunda garrafa tinha sido pudicamente retirada e posta em uma
prateleira alta.
— Está picante demais! — gritou Bing. — Faz minha boca arder!
— A pimenta jalapenha é uma iguaria — explicou Florence. —
Nós não compramos muita, é só para dar sabor.
— Que alívio comer alguma coisa estimulante! — disse Esteban.
— Isso está maligno.
— Mãe! — choramingou Bing. — Parece que tem diabos
atacando a minha língua com forcados!
— Nós gostamos de comida apimentada — disse Willing sem
rodeios, sustentando o olhar de Bing e, de algum modo,
conseguindo comunicar: Aqui começa a fase da sua vida em que
nem sempre, não muitas vezes, ou talvez nunca, você consiga
aquilo que quer, e é uma fase que pode durar muito. Bing se
encolheu diante desse olhar, apavorado.
Tendo chegado à mesa com seu pote particular, Nollie foi
salpicando pimenta em flocos no seu prato. Na sua idade, bem que
poderia ter ultrapassado a vaidade adolescente de ter uma
constituição supostamente de ferro. O cuscuz tinha ficado vermelho
e parecia intragável.
— Isto é uma multidão danada para alimentar, Florence —
comentou ela. — Talvez eu precise aumentar a doação para o pote
de biscoitos.
— Eu também! — emendou Avery. — Não pense que você tem
que sustentar esse bando sozinha.
— Quando eu era garoto, em Long Island — disse Esteban —, só
dez pessoas numa casa de dois quartos pareceria palaciano. O
lugar em frente à nossa casa, em North Bellport, numa área de uns
noventa metros quadrados, abrigava sessenta e cinco lats. Eles
dormiam em turnos. Nossa casa nunca teve menos de quinze.
— Logo — Nollie meneou a cabeça para o grupo —, em vez de
nós assimilarmos os imigrantes ilegais, os imigrantes ilegais nos
assimilaram.
— Nollie, você esteve fora do país — murmurou Florence no
silêncio acanhado —, mas hoje ninguém fala em ilegal. Não é
relapso.
— De qualquer modo, eu não sou ilegal — disse Esteban, de
forma tendenciosa. — Nasci no Brookhaven Memorial, em
Patchogue, Nova York. Sou tão americano quanto você, mi tia...
— Graças à nossa generosa Constituição — retrucou Nollie, com
os olhos brilhando, pois a mulher adorava puxar briga —, você é,
com certeza. Embora, para um americano, seja bem irritadinho.
Esteban avaliou a velha com olhar implacável e rebateu:
— Florence, Deus a abençoe, é exceção. Fora ela, toda essa
família tem um problema de comportamento. Ainda se acha
especial.
— Este país inteiro tem um problema de comportamento —
retrucou Nollie, sem se alterar. — Foram vocês, hispânicos, que se
deixaram levar pela ideia de que a América era especial, e a culpa
não é da minha família se vocês foram tapeados.
— Eu ainda não descartaria os Estados Unidos! — interveio
Lowell. — Viu que o Dow Jones está voltando a subir, Goog? Que
foi que eu disse?
— Só está subindo em dólares — comentou Willing, da mesinha
de centro.
— E em que mais ele deveria subir? — caçoou Goog.
— Numa economia hiperinflacionária...
— Epa, espere aí, Willing — disse Lowell. — Hiperinflação é um
termo técnico. Na minha área, a definição de Philip Cagan é de
aceitação geral: pelo menos 50% ao mês. Não estamos nem perto
disso. Na década de 1920, a inflação alemã era de 30.000%, e a
sérvia era de 300.000.000%. Na Hungria, depois da Segunda
Guerra Mundial? Era de 1,3 vezes dez elevado à décima sexta
potência... o que literalmente vai além da imaginação. Não há como
comparar.
— Desculpe — murmurou Avery para a irmã. — Acho que Lowell
sente falta de dar aulas.
— Numa economia com a inflação elevada, então — corrigiu
Willing, e era difícil dizer quem estava sendo mais condescendente
—, todos os ativos parecem valorizar-se, inclusive as ações. Mas os
ganhos são falsos. Em bancores, o mercado continua em queda.
Foi meio perverso: Avery bem que gostou de ver o marido ser
contrariado por um garoto de quatorze anos. Lowell treinara o filho
mais velho para ser uma miniatura fluente dele, mas Willing não
tinha decorado o mesmo roteiro. Ah, não havia dúvida de que seu
sobrinho não fazia ideia das coisas de que estava falando —
retalhos de conhecimento podiam ser piores do que a ignorância
pura, e não havia fanatismo mais cego que o do autodidata —, mas
estava se saindo admiravelmente bem em perturbar o controle
mantido com tanto cuidado por Lowell.
— Quando o seu país tem uma moeda própria, filho — disse
Lowell —, você não é obrigado a medir seus lucros na comparação
com outra moeda. É um sistema fechado.
— Só é um sistema fechado porque os Estados Unidos mal estão
participando do comércio mundial — retrucou Willing.
— Estamos num cabo de guerra prolongado, para saber qual
moeda reinará suprema no mundo — argumentou Goog. — É um
confronto entre o dólar e o bancor.
— Não se dá o nome de confronto quando não existe disputa —
contra-argumentou Willing, com calma.
Dois anos mais velho que o primo, Goog não estava disposto a
ceder terreno.
— O dólar é uma moeda histórica, que estabilizou a economia
internacional durante mais de um século, Wilbur. O bancor é um
pretendente iniciante cujas limitações são de um rigor impraticável.
Só temos que manter a calma. Afinal, veja o que aconteceu com o
bitcoin.
— Histórica? — indagou Willing. — A história do dólar é ele se
tornar sistematicamente sem valor. Uma pilha de papel contra notas
promissórias que podem ser trocadas por trigo, petróleo, ouro e
terras raras? Sei o que eu gostaria de ter na carteira.
— Seria traição ter bancores na sua carteira, Wilbur.
No começo, o nome trocado que Goog inventara naquela tarde
parecera afetuoso. Talvez não fosse.
— O bancor vai virar fumaça. Você é aquele tipo de pateta
crédulo que ficou atolado com baús de notas falsas dos
confederados no fim da Guerra da Secessão.
— Eu sou crédulo? — Willing lançou um olhar cáustico para
Lowell, antes de se inclinar para o primo. — Quem está ficando na
casa de quem?
— Meninos! — disseram Avery e Florence ao mesmo tempo.
Florence tirou a mesa e Avery correu para ajudar. Ficou mortificada
por seus filhos mal terem tocado na refeição, mas foi ainda pior
quando, em vez de raspar no lixo a comida não consumida, sua
irmã a guardou em uma vasilha de vidro na geladeira. Era uma
prática insalubre!
Elas voltaram com o que antes tinha sido uma embalagem de
dois quilos de sorvete. Goog e Bing não deviam mesmo ter pedido
uma terceira concha. Willing não quis aceitar nenhuma. Avery se
recusou a acreditar que ele não quisesse sorvete. É que seiscentos
gramas não alimentariam dez pessoas.
Kurt estava externando opiniões sérias a Savannah.
— Sabe, os republicanos não podem culpar as potências
estrangeiras maléficas e um presidente supostamente não
qualificado...
— Quem se importa com o que os republicanos fazem? —
Savannah parecia tão entediada que chegava a estar mole. — É
como ficar preocupado com, sei lá, os zoroastristas.
— Sabe quem não pode mesmo se dar o luxo de deixar que o
Partido Republicano seja sugado pelas entranhas da terra? —
perguntou Nollie. — Os democratas. Quando o sujeito fica
permanentemente no poder, é tudo culpa dele.
Nollie proferia veredictos com uma autoridade de última palavra
que deixava Avery com desejos homicidas.
— Mas os méritos também são reconhecidos — disse Florence.
— Por exemplo, ter passado os reajustes da Seguridade Social de
anuais para mensais. Isso fez uma diferença enorme para nossos
pais, e também para Grand Man e Luella.
— Coisa contra a qual os republicanos lutaram com unhas e
dentes — emendou Kurt.
— Os republicanos querem acabar com o Medicare, imaginem!
— disse Florence, em tom apaixonado. — Limitar o seguro-
desemprego! Reduzir o número de inscritos no Medicaid! Que
espécie de plataforma é essa? Não admira que eles tenham sido
massacrados nas eleições municipais.
Quer dizer que a velha Florence dos piquetes ainda estava ali,
em algum lugar; seus insultos ineficazes contra as injustiças
cansava Avery. Naquela casa, ela jurou que nunca deixaria escapar
que algum dia votara nos republicanos, ainda que, nesse momento,
isso significasse enfiar o punho dentro da boca. Talvez fosse uma
sorte haver tão pouco vinho.
— É o erro habitual da austeridade do Partido Republicano —
respondeu Lowell. — Porque agora é a hora de aumentar os gastos
do governo. Investir na infraestrutura, como num segundo New
Deal. Revigorar a base industrial dos Estados Unidos e reduzir a
necessidade de importações.
Ocorreu a Avery que seu marido precisava sair mais. Seus
conhecidos chavões econômicos não se conectavam com as
multidões agitadas do centro de Washington, os acampamentos às
margens do Potomac, os numerosos carros na rodovia
interestadual, no trajeto para Nova York, com colchões e trouxas e
roupas amarrados em cima, como uma encenação moderna de As
vinhas da ira. Avery experimentava a mesma sensação ao ouvir as
coletivas de imprensa na Casa Branca. A gestão fingia ser o
governo americano, e dizia as coisas que dizem as autoridades
americanas, mas tudo parecia imitação: tinham a mesma
intensidade calculada das crianças pequenas que fazem tortas de
lama.
— A propósito, atenção todo mundo, na sexta-feira minha mãe
recebe — anunciou Willing. — O que significa que saímos para
fazer compras. Imediatamente.
— Qual é a pressa? — perguntou Lowell.
— No próximo pagamento, os preços estarão mais altos.
— Umas duas semanas não podem ter tanta importância assim
— insistiu Lowell. — Você não está sendo um pouquinho teatral,
garoto?
— Está na cara que é a tia Avery que faz as compras na sua
família — respondeu Willing.
— Isso me-e-esmo! — cantarolou Avery. — E todo o re-e-esto!
— Os preços sobem toda semana — afirmou Willing — e, às
vezes, todos os dias. E não são previsíveis. Alguns produtos
permanecem iguais, e aí, de repente, o preço dos sacos de
embalagem dobra. Nós não usamos mais plástico. Usamos vidros.

***

Enquanto Goog, por ser hóspede, era o primeiro a ir ao banheiro de


cima, Willing foi empilhando diante de si os fatos incontestáveis,
como se fossem cubos de brinquedo: (1) Segundo os costumes
deste país, enquanto ele continuava a manifestar algum tipo de
cultura unificada, cuidar da família era uma obrigação. Os laços de
união podiam ter se esgarçado no correr dos anos, mas ainda não
se haviam rompido; (2) Era irrelevante se vocês “amavam” uns aos
outros; (3) Os Stackhouse não tinham onde morar; (4) O porão não
podia acomodar colchões para todos os cinco membros da família;
(5) Se todos tinham de fazer sacrifícios, Willing também tinha. Isso
queria dizer que o fato de ele achar insuportável a invasão do seu
pequeno reino do segundo andar por Goog era tão irrelevante que
nem chegava a receber um número.
A ideia de que o quarto era “dele” não passava de mera fantasia,
talvez uma fantasia para a qual ele devia estar muito velho. Sua
mãe era a dona da casa. Ele tinha permissão para dormir ali, e
agora sua mãe também dera permissão ao seu primo. Mas Willing
sempre valorizara uma porta que ele podia fechar, bem como o
protocolo, por mais artificial que fosse, de que, para outras pessoas
poderem abri-la, primeiro elas tinham de bater. A solidão era vital
para suas pesquisas. Isso soava pretensioso. Pois que fosse.
A antipatia dele por Goog era leve, então não significava muita
coisa. O corpo do garoto era arredondado. Não gordo, mas com
membros sem articulações, sem reentrâncias nem ângulos. Tudo
que o primo dizia vinha de outra pessoa. O que levava Willing a
temer ser também derivativo. Talvez, por instinto, ele recuasse de
outro garoto que repetia opiniões convencionais, já que ele próprio
fazia a mesma coisa. É claro que Willing se orgulhava de triangular.
Mas até a triangulação podia ter sido outra ideia que ele tirara de
algum lugar. Ia pensar nisso. Depois, pensou mesmo. E concluiu
que essa não era uma época em que a originalidade tivesse a
menor importância.
Willing estava decidido a não encher a paciência da mãe. Mas
era incapaz de se obrigar a gostar de ter o primo em seu quarto,
mesmo que a hospitalidade acolhedora fosse conveniente. As
roupas e artigos de banho na mala aberta não podiam ser colocadas
em outro lugar, e traziam desordem para onde antes houvera um
sistema.
Quando o primo voltou do banheiro, com o andar arrastado e a
cara fechada, o mais difícil de encarar no novo companheiro de
quarto foi a condição física de mamífero: o fedor de suas meias
quando ele tirou os sapatos; o azedume do seu hálito, porque Goog
era um daqueles idiotas que só escovavam os dentes de manhã; o
aspecto de fralda de suas cuecas; e a obrigação de se virar para
não vislumbrar os pelos do outro por trás da braguilha. Foi uma
repugnância animalesca. Willing teve a desagradável impressão de
haver trocado Milo por um bicho de estimação maior e mais burro,
que nem sequer fora adestrado.
Willing deitou-se, rígido, bem na beirada do colchão, por cima da
colcha, com um xale diáfano tirado do sofá lá embaixo, e abdicou do
resto da cama. Os dois não conversaram. Goog parecia ressentir-se
tanto quanto Willing de sua própria invasão do espaço do primo.
Mas, afinal, também não gostava dele. Willing se perguntou se esse
traço comum seria base suficiente para manter uma relação de
trabalho.

***

Quando sua mulher propôs a primeira contribuição do casal para o


orçamento de Darkly, na manhã seguinte, Lowell achou o montante
uma loucura. Tudo bem, vamos fazer um gesto de gratidão, mas
agir de forma muito extravagantemente agradecida aumentava a
dívida, na verdade. E depois, ele estava de mau humor. As costas
doíam por causa do colchão mole, e ele sentia falta dos seus lençóis
de seiscentos e cinquenta fios. Os travesseiros eram achatados. A
família não tinha privacidade, o que exigia que ele usasse cueca e
camiseta, justo ele que dormia nu desde os doze anos; e, com filhos
irrequietos deitados dos dois lados, ele não fazia ideia de como ele
e Avery chegariam a transar algum dia. Lá em cima, não havia nada
para comer além de torradas — nem ovos, nem bacon, nem um
simulacro de café, nem ao menos um pó com 90% de cevada. Vez
por outra, ele tinha dificuldade de tolerar até mesmo a companhia
dos próprios familiares, e agora era obrigado a acordar diariamente
como se comparecesse a uma conferência caótica, cujos convites
tivessem sido indiscriminados. Não havia lugares suficientes para as
pessoas sentarem. Por isso, o “café da manhã” significava ficar em
pé na cozinha, chutando migalhas no chão. Ele voltou correndo para
o porão.
A primeira providência a tomar era fazer outra busca de vagas
acadêmicas disponíveis. Originalmente, Lowell limitara a procura às
universidades de alto padrão, que eram seu lugar: as da Ivy League,
é claro, a Universidade de Chicago, Stanford, o MIT. Mas teria de
lançar uma rede maior, talvez rebaixando-se à Emory ou a Chapel
Hill, onde a família poderia atravessar a fase de declínio da
atividade econômica em uma das casas bastante agradáveis do
corpo docente e, pelo menos, servir taças de vinho com uma
quantidade decente da bebida. Logo a inevitável reemergência de
forças de ordem no mercado incluiria uma valorização renovada dos
economistas keynesianos clássicos. Isso restabeleceria o
crescimento regular e previsível do PIB e diria adeus a fanáticos
idiotas do padrão-ouro, como Vandermire — no momento, preso à
impressão ridícula e equivocada de que agarrar-se a castiçais como
meio racional de troca tinha sido justificado pelo bancor —, e a
agitadores incendiários como Biersdorfer, o evangelista de esquina
da sua área, com seus gritos de “Arrependei-vos!”. Lowell rejeitava o
menosprezo de sua disciplina como uma “ciência não exata”,
conforme manifestara sua ex-reitora, porém, entendia a economia
como uma ciência insegura, cujos praticantes, tomados pela
histeria, perdiam depressa o contato com os pilares fundamentais.
— O que foi?
Avery cruzou os braços diante da escrivaninha improvisada do
marido.
— Eu gostaria que você fosse ao supermercado com Florence.
— Vocês não precisam da minha ajuda para carregar sacolas, se
levarem o carro.
— Não dos seus bíceps poderosos — respondeu ela, com uma
rispidez ofensiva. — Você diz que se interessa pela economia. E
disse que o que eu sugeri darmos a Florence era mais do que
demais. Então, vá em frente. Faça um trabalho de campo.
— Talvez na próxima.
— Não, agora mesmo. Não vou passar nem mais um dia nessa
casa sem demonstrar que vamos bancar nossa despesa.
Avery continuou tão irritantemente inflexível que ele cedeu.
Despacharia em dois tempos a ida idiota às compras. As mulheres
eram dadas a fazer um alvoroço danado por causa de um simples
abastecimento da despensa. Se ele fosse junto, ao menos poderia
garantir que o jantar da noite incluísse mais do que trinta gramas de
frango. Poderia comprar uma embalagem com meia dúzia de
cervejas e algumas garrafas de Viognier — embora, se todos os
seis adultos se equiparassem ao seu consumo médio, eles
terminariam com uma caixa a cada quatro dias. Toda essa história
de compartilhar era para os otários. Ele deveria mandar Avery
sozinha fazer compras, para instalar uma reserva privada.
O aspecto mais chato dessa saída era ser posto na companhia
da cunhada, que ele não conhecia bem o bastante para saber com
firmeza se gostava ou não gostava, e Lowell preferia que essas
questões estivessem resolvidas. Apesar da sua vocação honrosa,
havia em Florence um traço de dureza que a tornava difícil de
interpretar. Lowell associava vagamente benevolência a
imbecilidade, mas essa funcionária de abrigo que desperdiçara seus
estudos em política ambiental não era a galinha-morta piegas que
se poderia esperar.
No entanto, depois da conversa cansativa do jantar na noite
anterior, Lowell tinha formado uma opinião sólida sobre o filho dela
— um pirralho metido a sabichão que parecia imaginar-se como um
adivinho das finanças. Certo, tal como Goog, o garoto era precoce.
Mas, como ele mesmo fora precoce, Lowell nunca se deslumbrava
com adolescentes capazes de recitar a tabela periódica dos
elementos químicos, ou fosse lá o que fosse. Ficava de olho neles.
Precoce não era o mesmo que inteligente, muito menos sábio, e era
o oposto diametral do bem-informado, já que, quanto mais o sujeito
se orgulhava de já saber, menos escutava e menos aprendia. Pior
ainda, com dedicação, era comum que os pares menos
lisonjeiramente dotados alcançassem ou superassem os prodígios
no começo da idade adulta, e, enquanto isso, o garoto para quem
tudo vinha tão sem esforço nunca dominava a rotina do simples
trabalho árduo. Era isso que ele vivia instilando em Goog, ou pelo
menos o que fizera antes de seu filho mais velho ser tragicamente
atirado aos leones da escola Roosevelt High.
Mas esse garoto, o tal de Willing, tinha esbanjado um nível extra
de tolice e, a menos que seu desempenho da véspera tivesse sido
uma apresentação única, para impressionar os parentes em visita,
podia ser que Lowell esganasse o sacaninha antes do fim da
semana. O garoto reluzia, cheio de inspiração divina, como se
tivesse um canal psíquico preferencial e exclusivo de comunicação
com o falecido editor-chefe do Wall Street Journal. Desocupado,
enquanto Avery ajudava a tirar a mesa e arrumar a cozinha, Lowell
estudara o sobrinho depois do jantar. Ele ficava à vontade demais
com o silêncio. Tendia a olhar fixo para as pessoas e não se
constrangia ao ser apanhado. Passava muito tempo sem fazer nada
— e nunca parecia perdido em seu próprio mundo, nem vegetando
feito um desmiolado; estava presente, estava bem ali. Quando
efetivamente falava, como fizera enquanto comia aquele ensopado
horroroso de cuscuz, ele se afirmava com uma convicção obstinada
que não era possível que tivesse conquistado, e exibia uma
tenacidade, uma perseverança, que devia ter herdado da mãe. Em
um garoto dessa idade, mostrara-se difícil de abalar, e também não
se deixava insultar com facilidade, além de não ser natural
conseguir esconder tão bem seus sentimentos feridos. Mas, de
verdade, como é que aquele moleque cuspia toda essa baba
econômica? Alguém estava dando dicas a ele.
Por isso, Lowell ficou em uma irritação descomunal ao saber que
o pirralho também ia às compras.
— Nós temos uma lista? — perguntou, ao volante do Jaunt.
— Não adianta ter lista — disse Willing no banco de trás, embora
Lowell tivesse feito a pergunta a Florence.
— Acho que a lista impede a pessoa de chegar em casa e
descobrir que esqueceu do queijo parmesão — comentou Lowell. —
E reduz as compras por impulso...
— Não vai ter queijo — previu o Oráculo, como se entoasse o
texto do Velho Testamento. — Ele se conserva bem demais. E não
haverá nada além de compras por impulso.
— Com tantas coisas em falta — explicou Florence —, a lista de
compras acaba sendo um lembrete torturante de tudo que a gente
queria e não conseguiu achar.
Lowell se intrigava com o fato de aquele ser, supostamente, um
bairro em ascensão, ou já desenvolvido. As ruas exibiam alguns dos
exemplos mais feios de arquitetura residencial em que ele já pusera
os olhos: unidades retangulares acanhadas, de uma estreiteza
improvável, umas de tijolos, outras com revestimento imitando
pedra, outras, ainda, revestidas de papel alcatroado ondulado, com
portas gradeadas de ferro pintado, toldos de alumínio e jardins
frontais do tamanho de tabuleiros de pachisi. Os revitalizadores do
bairro tinham feito ampliações na parte da frente das casas, com
varandas fechadas e claraboias no telhado, mas não havia reforma
residencial capaz de disfarçar a profunda mediocridade advinda da
própria alma do lugar. Os moradores antigos eram mais espertos em
matéria de decorações compatíveis com o espírito de East Flatbush:
flores de plástico, anões de gesso, flamingos e cataventos com um
galo no alto.
Na Green Acre Farm — impropriamente batizada, já que a
avenida Utica era um deserto desolado de borracharias e oficinas de
automóveis, sem um talo de grama à vista —, o estacionamento
estava lotado, e Lowell deu sorte ao encontrar uma vaga logo que
alguém ia saindo. Na parte interna, o supermercado tinha a
atmosfera de um acampamento militar em que forças hostis
houvessem acordado uma trégua temporária e arisca. Clientes
seguravam seus carrinhos tão forte que esbranquiçavam as juntas
dos dedos, e nunca os deixavam sozinhos, como transportadores de
soldados que, de outro modo, poderiam ser capturados pelo inimigo.
Lançavam olhares de soslaio, mas nunca se encaravam olho no
olho, preferindo dar espiadas bisbilhoteiras no conteúdo dos outros
carrinhos. Alguns eram cobertos por uma lona encerada, como se a
natureza da carga destinada à despensa fosse um segredo de
Estado. Os clientes falavam aos sussurros, em tons reservados.
Enviadas em excursões três corredores adiante, as crianças
cumpriam suas missões com a seriedade de quem levasse
mensagens em código à linha de frente.
— Meu Deus, Willing, eles têm ovos! — cochichou Florence. —
Rápido!
Willing foi serpenteando pelo tráfego engarrafado e voltou
triunfante, trazendo meia dúzia.
— Estamos fazendo compras para dez pessoas — objetou
Lowell. — Não podemos comprar mais de seis?
— O limite é meia embalagem por cliente — explicou Willing. — E
eles são vigiados.
— É, e por que tanta segurança?
Guardas uniformizados postavam-se em todos os corredores.
Para assombro de Lowell, os homens corpulentos estavam
armados.
— Muita gente furta, é inacreditável — respondeu Willing. — Lá
na escola, todo mundo se gaba de enfiar latas de feijão no forro do
casaco, mesmo com os guardas e as câmeras.
Intrigado, Lowell se afastou para explorar o ambiente. Estava
acostumado com vastos empórios americanos, abarrotados de
tentações do chão ao teto, nos quais o principal desafio era não
fazer compras em excesso, já que era comum esquecer que havia
seis latas de tomate em casa; evitar as batatas fritas e chocolates,
que aumentavam a circunferência da cintura; e resistir a cair em um
estupor paralítico ao escolher entre quarenta e cinco sabores de
sopa. Ali, porém, trechos inteiros das prateleiras estavam vazios,
sem mercadorias em exposição. Lembrando o comentário de Willing
de que o queijo “se conserva bem demais”, ele captou um padrão:
os legumes desidratados, cereais, alimentos congelados e produtos
em lata — particularmente os enlatados de carnes, como molho
chili, salsicha vienense etc. — eram os setores mais devastados.
Para os produtos disponíveis — a toranja em lata (19,99 dólares)
não parecia ser muito procurada —, reimprimir as etiquetas de preço
das prateleiras devia ter se tornado muito trabalhoso, e várias delas
tinham sido rabiscadas e corrigidas, com os preços novos escritos
com esferográfica uma meia dúzia de vezes.
— O que é essa corrida para os não perecíveis? — perguntou
Lowell, ao se reencontrar com os outros. — Entrou todo mundo na
do Jarred, preparando-se para o Fim dos Tempos?
— Começou a acumulação — entoou Willing, como um mau
presságio.
— Por que você fala isso desse jeito? — Lowell não escondeu a
irritação.
— Era inevitável. Tentei fazer minha mãe começar a estocar
meses atrás. Ela não quis me ouvir. Agora, é muito mais difícil
comprar vinte pacotes de farinha de trigo. Eles têm regras. Não que
não se possa contorná-las. Uns garotos lá da escola passam o fim
de semana indo a mercados diferentes em todo o Brooklyn,
comprando uma unidade disso, uma daquilo. É assim que a gente
dribla os limites máximos.
— Willing, estou cansada de você me chatear por causa disso —
declarou Florence. — O que é que nós íamos fazer com vinte
pacotes de farinha de trigo, afinal?
— Você poderia trocá-los. Teria uma moeda real. Melhor do que o
seu salário. Você teria poder.
— O poder das flores, ou da farinha — disse Lowell, mas nenhum
dos dois havia assistido a documentários suficientes sobre os anos
1960 para entender a piada. — O que você quer dizer é que essa
escassez de produtos é artificial? Haveria alimentos suficientes se
as pessoas voltassem a comprar um pote de maion...
Eles estavam de costas para o carrinho. Depois de dar meia-volta
para examiná-lo, Willing saiu correndo atrás de um sujeito
cinquentão, que andava a passos largos pelo corredor com uma lata
de Aveia Quaker. O garoto postou-se no caminho do homem e
exigiu:
— Devolva isso.
— Não sei do que você está falando, garoto — disse o sujeito.
— Você roubou isso do nosso carrinho. Era a última.
— Só é roubo se eu sair daqui sem pagar. Até lá, chama-se fazer
compras. Agora, cai fora.
Quando o homem passou roçando em seu filho, Florence
comentou:
— Atravessamos mais um Rubicão. Antes a vergonha
funcionava.
Lowell provavelmente deveria ter feito alguma coisa, mas não ia
se meter em uma troca de socos por causa de aveia.
Nas filas compridas dos caixas, os clientes viravam a cabeça
para espiar as compras uns dos outros, às vezes mandando as
crianças voltarem para procurar produtos que eles tinham deixado
escapar. Embora o carrinho de sua família contivesse poucas coisas
que Lowell achava apetitosas, os outros dois se parabenizaram por
seus achados. (Carneiro moído, eca! Moela de galinha? Ora, por
favor. E beterraba era muito ultrapassada.) Suportando o olhar
fulminante da cunhada, ele só se sentiu à vontade para enfiar no
carrinho duas garrafas de chardonnay Blossom Hill depois de se
oferecer para pagar a conta — o que foi precipitado, pois, para sua
consternação, os 1.100 dólares que levava se revelaram não ser
suficientes.
Enquanto punha as mercadorias na esteira, Florence pegou uma
lata de Aveia Quaker.
— Willing! Você acusou aquele homem, mas a lata está aqui,
afinal!
— Ele tinha levado, sim. Eu o achei com a mulher no corredor
dos cereais. Enquanto eles estavam na ponta dos pés, acabando
com o estoque de sucrilhos de chocolate, surrupiei a lata de volta.
Florence balançou a cabeça.
— Meu bem, você nem gosta de aveia. Precisa aprender a deixar
essas coisas para lá.
— A-hã — retrucou Willing. — Você precisa aprender a não
deixar essas coisas para lá.
— Eu me recuso a deixar que essa situação me transforme num
bicho mesquinho, ganancioso e irracional.
— Os bichos mesquinhos, gananciosos e irracionais tomam café
da manhã — disse Willing.
• CAPÍTULO 11 •

SARJETA VALETA AMARETA

Com frequência Florence e a tia compartilhavam uma repulsa: a


situação nos Estados Unidos não era nem de longe tão ruim quanto
sugeria a Schadenfreude do exterior. Matérias sensacionalistas em
sites europeus retratavam as cidades americanas como A noite dos
mortos-vivos, com saqueadores violentos e enlouquecidos correndo
pelas ruas com televisores debaixo do braço, mas sem fontes de
eletricidade nas quais ligá-los, enquanto os idosos assavam seus
gatos na fogueira de seus móveis em chamas. Tudo bem,
aconteceram alguns saques, especialmente em supermercados e
lojas de bebidas. Alguns produtos estavam em falta, mas não era
como se nove milhões de nova-iorquinos famintos estivessem
enfiando cadáveres esquartejados em congeladores verticais, para
depois servi-los com favas e um bom Chianti, como a mídia
internacional gostaria que acreditássemos.
Quanto à inflação, com a qual a cobertura jornalística alemã vivia
obcecada, Lowell insistia que a dos Estados Unidos não era em
nada semelhante à experiência teutônica pós-Primeira Guerra
Mundial — quando os fregueses dos restaurantes pagavam suas
refeições na entrada, porque a conta seria mais cara depois que
acabassem de comer. Ora, no fim, as cédulas de marco só eram
impressas de um lado, porque a casa da moeda estava ficando sem
tinta. E as verdinhas? Tinham sofrido alguma modificação? Os
dólares não exibiam presidentes americanos de um lado e IN GOD WE
TRUSTno outro?
Afora essas tranquilizações, todos enfrentavam um dilema. O
seguro-desemprego de Lowell logo acabaria. Como antes
trabalhava por contrato, Esteban nunca tivera direito a esse
benefício, para começo de conversa. Kurt deveria ter conseguido
amparo da assistência social, e todos os benefícios vinham
aumentando freneticamente, mês a mês; se de qualquer maneira o
Banco Central ia imprimir dinheiro a rodo, o que seria melhor do que
usá-lo para subornar os selvagens e fazer com que ficassem em
casa de pernas para o ar? No entanto, outros obstáculos haviam
surgido para os novos pleiteantes — cuja maioria era formada por
cidadãos obedientes e outrora solventes que provavelmente não
ateariam fogo na prefeitura. Candidatando-se apenas porque
Florence assim implorara, Kurt não se via como um reles tutelado do
Estado, e por isso meteu os pés pelas mãos na entrevista.
(Infelizmente, ele tinha onde morar. E alguém na casa estava
trabalhando.) Isso deixava o seguro da Previdência Social de Nollie
e o salário já apertado de Florence como única renda remanescente
da família.
Por outro lado, Lowell e Avery tinham o lucro da venda da casa,
cujo valor era desconhecido, e Nollie possuía seus “recursos”. Mas
com o correr do tempo essas somas comprariam cada vez menos.
Agora, mais do que nunca, eles precisariam conservar verbas para
as emergências, e Florence ressentia-se muito mais do que
conseguia expressar. Porém, nesse momento, a política mais
sensata seria gastar tudo o que tinham, o mais depressa possível.
Agarrando-se a ideia de Willing de que os bens palpáveis se
tornariam a nova moeda, Avery levou essa estratégia a cabo com
alguma precipitação. Para Florence, fazer compras era uma tarefa
obrigatória; para Avery, uma diversão. Por isso, Florence aprendeu
da maneira mais difícil que nunca deveria dar carta branca à irmã
para comprar tudo que havia nas lojas.
Voltando da Home Depot da 19th Street, Avery irrompeu pela
porta da entrada com os braços carregados, os olhos arregalados e
a pele salpicada de manchas rochas de hipertensão.
— O que é isso? — perguntou Florence, acenando com a cabeça
para as sacolas de compras estufadas.
— Eu me dei superbem! — Avery passou por ela com seus
pacotes e largou o espólio no piso da sala de estar. Vários frascos
de Cola Gorilla (“Nova tampa antiaderente! Seca 2X mais
depressa!”) caíram com estardalhaço de uma sacola. — E espere,
tem mais. Goog está vigiando o carro.
Quando Avery acabou de descarregar as compras, Florence
examinou com desconfiança aquela avalanche. Encontrou várias
embalagens de espuma para vedação de telas em janelas e portas,
embora fosse difícil imaginar por que a família deveria recolocar
várias vezes as telas das janelas e apesar de nenhuma tela
combinar com a espuma de vedação. Havia borracha selante para
portas e janelas, fita adesiva dupla face e umas vinte embalagens
de detergente Comet.
— Avery, o que nós vamos fazer com todas essas mãos-
francesas? E onde vamos guardar essa tralha?
— Tralha? — repetiu a irmã, encolerizada. — Isto são
mercadorias. Feitas de metal e outros materiais de valor duradouro.
Elas fazem coisas, consertam coisas e grudam coisas. Não são de
papel e não são abstrações, o que é mais do que se pode dizer dos
dólares. Tive uma sorte incrível, fui esperta e rápida e passei na
frente de centenas de outros clientes quando a Home Depot
descarregou um estoque antigo do depósito, anterior à Moratória,
porque a China não quer mais trocar mercadorias reais pela nossa
moeda. Foi um problema danado conseguir isso aqui e você deveria
me agradecer. Quando um bandido derrubar a porta da entrada dos
nossos vizinhos, eles vão oferecer uma caixa inteira de leite por
dobradiças, e nós seremos as únicas pessoas do quarteirão a ter
essas ferragens.
O discurso, Florence inferiu, fora ensaiado.
Obrigar a irmã a sacrificar o espaço restrito da família no porão
para acomodar aquela pilhagem absurda deveria ter desestimulado
outras aquisições nos mesmos moldes — porque as compras eram
guiadas pelo mesmo raciocínio (pelo sim, pelo não, nunca se sabe o
que pode vir a ser útil). Tal pensamento já havia enterrado alguns
birutas sob pilhas imensas de jornais e revistas velhos, antes que a
extinção da imprensa escrita privasse os acumuladores do seu
material tradicional para a construção de ninhos. Mas uma ida
posterior à Home Depot, unicamente para confirmar quanto mais
cara ficaria sua compra se feita duas semanas depois, inspirou
Avery a fazer outra extravagância. Uma ida ao Walgreens rendeu
vários kits de tratamento de fungos de unhas dos pés, múltiplas
caixas de tabletes para limpar dentaduras, mesmo que todas as
pessoas da casa tivessem dentes de verdade, e remédios
fitoterápicos para depressão — que teriam vindo a calhar, na
verdade, considerando-se o quanto essa inundação absurda de
bens de consumo vinha afetando Florence, se ao menos os
comprimidos funcionassem. Agora eles tinham removedor de
esmalte, mas nenhum esmalte, e uma pomada antibiótica vencida,
que não teria afetado a fúria das resistentes superbactérias nem
quando era nova. Graças a uma investida admiravelmente “fecunda”
na Staples, durante a qual, de acordo com Goog, sua mãe quase
saíra no tapa por causa da última caixa de elásticos de tamanhos
variados, agora eles tinham um suprimento de dezenas de milhares
de blocos Post-it, centenas de canetas hidrográficas, várias caixas
de envelopes pardos extralongos, e cartuchos de reposição para
uma impressora 3-D que eles não possuíam.
Justiça seja feita, Avery não estava sozinha. O país inteiro, diziam
os repórteres dos noticiários, andava em uma onda tão febril de
compras que, durante algumas semanas, a economia americana
registrou uma alta no PIB. No entanto, até os mais conscienciosos
em matéria de higiene bucal impuseram um limite à quantidade de
fio dental extrafino sabor hortelã que se dispunham a armazenar, e a
alta do PIB foi breve.

***

Morando com parentes em espaços tão exíguos, Florence tinha


prometido a Esteban não ficar parecida com a própria mãe, que
tendia a reprimir queixas e a remoê-las em silêncio, como uma lata
fervilhando de botulismo dentro da despensa e que começa a
estufar. Mas não foi nenhuma política abstrata de franca resolução
de conflitos que levou a questão dos gastos a atingir o auge, e sim
um caminhão de entregas da Astor Wines & Spirits. Ao voltar do
trabalho, Florence reconheceu a logomarca a dez passos de
distância, e alguma luz se acendeu dentro dela.
— O que é isso? — explodiu ela na calçada, o pobre entregador
ainda coletava uma assinatura na escada do porão.
— Estocando necessidades — disse Avery, tensa, enquanto o
homem corria para sua caminhonete.
— Pasta de dentes é uma necessidade — cuspiu Florence. —
Não um Cabernet-Shiraz ácido e surpreendentemente palatável!
— Nós bebemos mais o branco, na verdade — respondeu Avery
com frieza, empurrando a última caixa para dentro. — Mas, supondo
que você tenha alguma coisa a ver com isso, o que eu duvido, será
que poderíamos não discutir o assunto na rua?
— Você acha que eu não sei há meses o que está naquelas
caixas ao lado das latas de tinta? — gritou Florence para a base da
escada. — Você poderia escondê-las melhor; puxar aquela cortina
velha de chuveiro por cima delas é um insulto à minha inteligência.
Acha que eu não sei por que você e o Lowell desaparecem depois
do jantar, na única hora em que demonstram o menor interesse em
passar algum tempo aí embaixo? Vocês nem dividem! Saem
correndo e enchem a cara escondido!
— Obviamente, não é escondido. Se você quiser tanto uma taça,
sempre pode pedir.
— Não sou eu que quero tanto uma taça. Ao contrário, acho
importante, no momento atual, permanecer lúcida. Enquanto isso, a
prestação da hipoteca da casa deu um salto. As contas básicas
estão nos crucificando. E vocês ficam aí torrando nossas parcas
economias degustando vinhos nesse bar particular!
No Brooklyn, as famílias que gritavam sob o halo de um poste de
luz tinham uma longa tradição, e os vizinhos nem pestanejavam.
Mas ouviam. A diversão era escassa.
Fechando a porta do porão às suas costas, Avery emergiu da
escada.
— Lowell e eu contribuímos para as despesas da casa. Mas eu
não estava sabendo que o nosso dinheiro tinha passado a ser o
dinheiro de todo mundo...
— Avery... você é alcoólatra?
— Ah, faça-me o favor!
— Você é alcoólatra? Porque essa é a única explicação...
— O fato de o imbecil do nosso presidente hermano ter dado o
calote na dívida pública não significa que a gente precise consumir
ração de guerra. Para mim, uma taça de vinho no fim do dia...
— Avery, não vejo você tomar “uma” taça de vinho desde que
você tinha quatorze anos.
— Se tiramos todos os prazeres da vida, não vale a pena viver!
— Se tiramos a bebida, não vale a pena viver. É assim que
pensam os alcoólatras. Se eu estiver errada, prove, e devolva o
vinho.
— Isso não tem cabimento — disse Lowell, também saindo com
dificuldade da entrada do porão. — Sua irmã e eu temos mais de
vinte e um anos. Você pode não aprovar a maneira como gastamos
nossos recursos, mas o simples fato de sermos hóspedes na sua
casa...
— Eu reconheço que você investiu muito, profissionalmente, na
ideia de que esta é uma fase temporária de “declínio da atividade
econômica” — interrompeu Florence. — Mas não sabemos quanto
tempo essa espiral vai durar nem até onde ela vai descer, e
somamos entre nós quatro filhos para alimentar!
— É o seu filho — disse Avery — que vive repetindo que
devemos converter os dólares em ativos físicos que possam ser
usados no escambo...
— Ora, não seja hipócrita! — A voz de Florence atingira seu
registro mais elevado e menos atraente. — Sim, é claro que ouvi
dizer que, lá no parque, estão usando álcool e cigarros eletrônicos
e-nic em vez de dinheiro, mas você está bebendo a sua moeda.
— Olha só, todo este arranjo comunitário só funciona — interpôs
Lowell — se mantivermos alguns limites...
— Ah, é? E como é que eu vou manter algum “limite” se o bem
primário que estou dividindo com Nollie, Kurt e toda a sua família é a
minha casa?
— É disso realmente que se trata? — gritou Avery. — Você tem
que exercer o controle completo sobre tudo que fazemos na sua
casa? Agora você é a grande mamãe ursa, e nós temos que pedir
permissão para beber, para falar palavrão e para comer frango não
orgânico?
— Qualquer frango. É disso que se trata! QUALQUER FRANGO!
Atraído pela comoção, Esteban saiu pela porta principal da
entrada.
— Ei, até no meu antigo bairro, em North Bellport, esse tipo de
escândalo era considerado baixaria. Cual es el problema, amigos?
— Se a pitada de espanhol pretendia introduzir um toque de graça à
situação, não funcionou.
— Você e eu só nos permitimos transar uma vez a cada duas
semanas — disse Florence —, para fazer o tubo de espermicida do
meu diafragma durar meses. Você não quis nem tomar ibuprofeno
quando teve aquela distensão muscular semana passada porque o
frasco estava quase acabando. Enquanto isso, esses dois se
automedicam até cair! Embora o seu investimento na “necessidade”
de duas taças infinitas de chardonnay “não seja da minha conta”,
segundo fui informada.
Como Florence raramente perdia as estribeiras, Esteban pareceu
não saber como acalmá-la para fazê-la voltar ao normal.
— Humm — disse, abanando a mão. — Se é da nossa conta ou
não, é uma área duvidosa.
— Vai ser da nossa conta a partir do momento em que eles
acabarem com a poupança que têm — respondeu Florence. —
Quando isso acontecer, o modo como eles desperdiçaram esse
dinheiro, antes de se lançarem à nossa misericórdia, passará a ser
da nossa conta!
— Talvez todo mundo precise de uma válvula de escape —
propôs Esteban; ele mesmo andava sentindo falta de sua cerveja
Dos Equis. — De uma indulgenciazinha.
— Inha? Não estamos falando daquela garrafinha que servem no
avião, mas de caixas e mais caixas!
— Duas caixas — explicou Avery, com desdém.
— Indulgência? — fulminou Florence. — Você acha que eu não
gostaria de sair para jantar fora com o meu namorado de vez em
quando, ou de ir ao cinema, como uma pessoa normal? Será que eu
não gostaria de ter podido comprar um presente adequado de
quinze anos para o meu filho, em janeiro, em vez rabiscar uma
porcaria de um cartão? Vocês realmente acham que eu fico
perfeitamente bem sem chocolate, bacon e café de verdade? Por
que eu não sentiria falta de um vinho, de tempos em tempos? Eu
também já adorei puxar umas duas carreiras de pó, para o caso de
vocês acharem que sou uma puritana desmancha-prazeres, e
também não compro nada disso! Do mesmo jeito que não poupo o
meu salário para tirar férias na Itália. Eu tenho um nome de cidade
italiana e nunca irei lá, não é? Nunca! Porque cada centavo que eu
ganho serve para garantir que outras nove pessoas não morram de
fome! Vocês não acham que eu também gostaria de um pouquinho
de fantasia, um pouquinho de leveza, um pouquinho de
espontaneidade na minha vida? Porque eu estou cansada de todo
mundo agir como se eu fosse tensa e pão-dura e mesquinha e
econômica porque eu prefiro ser assim, porque sou uma
desmancha-prazeres, porque não tenho senso de diversão, e que
eu trabalho num abrigo para sem-tetos porque sou amarga por
natureza! Eu detesto o meu emprego, estão ouvindo? Adoraria pedir
demissão, mas não posso porque parece que sou algum tipo de...
mãezona idiota!
— É óbvio que deveríamos nos mudar daqui — disse Avery. —
Todo esse ressentimento acumulado. Eu sabia que você estava
guardando as coisas para si, mas...
— Não seja ridícula! — interrompeu Florence, batendo o pé. —
Para onde você planeja ir, com um marido que tem a cabeça nas
nuvens e três filhos?
— Vamos pensar em alguma coisa — resmungou Avery.
— Se você fosse capaz de pensar em alguma coisa, não estaria
aqui.
Florence estava de braços cruzados e fuzilava Avery com os
olhos. Avery, por sua vez, mantinha a cabeça baixa e começou a
chorar. Como os gritos escancarados tinham sido catárticos,
Florence não conseguiu sustentar a fúria; desde pequena, sempre
fora uma boba diante das lágrimas da irmã. Com um suspiro,
atravessou as três placas de calçada que as separavam, abriu os
braços e trouxe Avery junto ao peito. Por fim, no porão, os quatro
performaram uma reaproximação com uma garrafa de um chenin
blanc do norte do estado de Nova York, cuja primeira taça já deixou
Florence de pileque, depois de meses sem beber nada. Não foi a
primeira briga deles e não seria a última. Porém, todos eram
capazes de atingir píncaros estonteantes de raiva e vituperação,
depois dos quais os envolvidos ficavam simplesmente parados e, no
devido tempo, eram obrigados a ir arrastando os pés para seus
respectivos colchões. Este era mais um luxo que a família Mandible
já não podia bancar: um desentendimento permanente.

***

O que amargurava Florence de um modo especial era os sites


estrangeiros fazerem tanto alarde sobre as faltas d’água. Sendo
honestos, a cidade estava mandando mais caminhões-pipa do que
nunca, e as faltas d’água pós-Moratória não eram mais frequentes
do que antes.
Eram mais desagradáveis, no entanto. Com dez moradores e
dois banheiros, os tambores de gasolina não retinham água da
chuva em quantidade suficiente para limpar os vasos sanitários em
tempo hábil por mais de dois dias. A partir daí, visto que o recato
mostrava-se tão dispensável quanto salsinha fresca, todos
passavam a urinar no quintal, enquanto as providências mais
substanciais exigiam uma espátula de jardineiro. Mas era inverno, o
ar açoitava o bumbum exposto como uma bofetada e o chão ficava
congelado. Avery confidenciou que ela e Savannah tinham optado
por armazenar o material por tanto tempo quanto o controle da
mente sobre a matéria permanecesse viável.
Quando a água fluía nos canos — o que, desafiando a cobertura
debochada da imprensa estrangeira, ocorria na maior parte do
tempo —, Willing adotava o hábito provocador de ficar de sentinela
do lado de fora do banheiro dos Stackhouse, lá embaixo, enquanto
a garotada tomava banho. A família não estava acostumada a
racionar água e considerava que os banhos de chuveiro de duração
infindável eram um direito humano. Desde a chegada deles, a conta
de água havia triplicado. Assim, enquanto preparava o jantar, era
comum Florence ouvir uma variação do seguinte diálogo, vindo do
porão:
— Sai da porta, seu pervertido! — gritava Goog.
— São quatro minutos — anunciava Willing, em tom monocórdio.
— Você está com a orelha encostada na fresta torcendo para me
ouvir tocar punheta.
— Você pode se masturbar pelo tempo que quiser, desde que
feche a água. O sabonete é um lubrificante mais eficiente se a
espuma não escoa pelo ralo.
— Você deixou Savannah tomar um banho de dez minutos! Eu
marquei o tempo! Você só estava querendo espiar os peitinhos
dela...
— Cinco minutos — dizia Willing, estoico. — Eu avisei.
Nesse momento, o fluxo da torneira da cozinha que enchia uma
panela de água para cozinhar o macarrão foi diminuindo até virar
um respingo fraco.
— Wilbur, seu babaca! Estou com xampu no cabelo!
Willing aprendera a operar a válvula principal de interceptação
com enorme efeito punitivo. Seu objetivo era honrado, mas suas
intervenções como vigia da água não vinham melhorando suas
relações com os primos. Talvez ele gostasse um pouquinho demais
do seu ofício.
Além disso, havia a questão emocionalmente complicada do
papel higiênico. Na maioria das grandes cidades, acumular
embalagens de tamanho família era o padrão, o que levava a
períodos crônicos de escassez e custos astronômicos. No abrigo,
tornara-se impossível manter os banheiros abastecidos, porque os
moradores roubavam os rolos; o Departamento dos Sem-teto
expediu um memorando retirando a verba para artigos de papel, em
decidido prejuízo olfativo para a Adelphi. Instalações públicas em
locais como lojas de departamentos e museus também pararam de
fornecer esse meio de higienização pós-funções excrementícias,
supostamente por terem sofrido a mesma pilhagem por parte de
uma clientela de classe mais alta.
No começo, Florence colou um aviso de DOIS QUADRADOS POR

LIMPEZA acima dos dois porta-papéis — um pedido educado que,


dada a redução contínua desse precioso recurso no banheiro de
baixo, foi redondamente ignorado. Com discrição, tentou chamar a
irmã de lado e sugerir que talvez ela estivesse “fazendo xixi
demais”; se ela era capaz de disciplinar o trato digestivo nos
períodos de falta d’água, talvez pudesse impor um grau de controle
similar ao trato urinário. Avery se ofendeu, que grande surpresa.
Florence também teve de repreender Savannah por deixar
chumaços na lata de lixo com vestígios vermelhos e beges: papel
fora desperdiçado na remoção da maquiagem. Monitorar os
hóspedes em um nível tão chulo era embaraçoso, mas, quando a
despesa e a disponibilidade estavam em questão, não havia
escolha. Substitutos como bolas de algodão, toalhas de papel e
guardanapos prejudicavam o encanamento, e logo se tornariam tão
difíceis de achar quanto o papel higiênico propriamente dito.
O inevitável acabou acontecendo, aquilo que Florence temera:
idas reiteradas às compras não trouxeram a reposição, e eles
ficaram reduzidos aos dois últimos rolos. Postagens enfurecidas na
internet deixaram claro que Nova Jersey, Long Island e Connecticut
estavam passando pela mesma escassez. Ela soube de vizinhos
que andavam trocando discretamente suas reservas, um rolo de
cada vez, por carne vermelha e frango, o que não era nada menos
que uma extorsão. Por isso, incumbiu Willing de um projeto de
pesquisa e convocou uma reunião domiciliar.
— Reconheço que isto é embaraçoso para todos, mas, até que a
situação melhore, teremos de ficar sem papel no setor da limpeza
da bunda. Willing?
— Antes da existência de encanamento interno — disse Willing
—, os americanos usavam jornais ou folhas de um catálogo da
Sears. Mas agora já não existem revistas nem jornais.
— O papai ficaria muito orgulhoso — comentou Avery. —
Finalmente, uma boa razão para sofrer pelo colapso do New York
Times.
— Os romanos usavam uma esponja embebida em vinagre,
presa num pedaço de pau — informou Willing. — Além disso,
sabem da tradição de só comer com a mão direita na Índia? Não é
só um ritual, mas um imperativo biológico. Eu sabia que eles se
limpavam com a mão esquerda, mas não sabia que o faziam sem
papel.
— Ai, que noooojo! — lamuriou-se Bing.
— Pode parar! — disse Lowell. — Prefiro usar a colcha.
— É mais ou menos a isso que estamos chegando — respondeu
Florence. — Tenho um saco cheio de trapos limpos e toparia
examinar meus armários. Qualquer coisa que vocês também não
usem, nós poderíamos cortar em pedaços pequenos. Com vinagre
ao lado do vaso sanitário, além disso, vocês teriam uma melhora da
higiene.
— Mas não se pode jogar pano no vaso e dar descarga — disse
Willing.
— Em megacidades como o Rio de Janeiro e Pequim —
observou Nollie —, faz anos que as pessoas não jogam papel no
vaso. Os esgotos são frágeis demais. Eles o colocam num cesto de
lixo, ao lado do vaso.
— Podemos nos acostumar com isso — respondeu Willing. — A
gente se acostuma com qualquer coisa.
— Bem, com isso eu não posso — afirmou Avery, levantando-se.
— Vou optar pela solução americana: vou fazer compras.
— Estou com a mamãe — disse Savannah. — Vocês são uns
bárbaros.
Avery e a filha precipitaram-se para o Jaunt e sumiram durante
horas.
Voltaram humilhadas. Depois de percorrerem Long Island e Nova
Jersey, gastando quase toda a gasolina do carro — que também era
exorbitantemente cara e difícil de achar —, haviam conseguido um
pacote de toalhas de papel (reservado para absorventes internos
feitos em casa), junto com duas garrafas de vinagre branco, em uma
admissão da derrota. Enquanto isso, o resto do grupo passara uma
tarde barulhenta, recortando “guardanapos de bunda” feitos de
lençóis rasgados, toalhas velhas, meias surradas, sobras de tecido
da refeitura de bainhas de cortinas e algumas compras meio
duvidosas de Florence em brechós. Quadrados coloridos
empilharam-se em torres de tons vivos, como colchas de retalho
verticais. Se e quando Florence tornasse a poder tirar uma
embalagem fofinha de nove rolos de uma prateleira de
supermercado, estaria fadada a experimentar uma curiosa perda.

***

Willing poderia ter parado completamente de frequentar a escola,


porque lá ensinavam as coisas erradas: álgebra e capitais dos
estados. Se fosse ele no comando, os alunos aprenderiam a
purificar água e procurar plantas comestíveis. A fazer fogo quando
os fósforos estavam molhados. A armar uma barraca, ou a construir
uma barraca com um poncho de chuva. A dar nós e plantar batatas.
A capturar e despelar esquilos. A carregar uma arma.
Os alunos da escola Obama High estudavam biologia, mas os
professores não aplicavam as lições ao ambiente certo. O
ecossistema urbano era incomumente frágil. De uma
interdependência assustadora. Muitas coisas precisavam funcionar
para que uma cidade não parasse. Não dava para contar com
muitas coisas funcionando. Não se contava com coisa alguma
funcionando.
Quando os efeitos da Moratória tinham começado a apertar, as
pessoas compartilharam dicas nas redes sociais sobre os melhores
lixões para vasculhar e os supermercados que vendiam linguiça
fresca. Mas os habitantes dos grandes centros logo passaram a
guardar essas dicas para si. Se o Pathmark jogara um estoque de
queijo suíço pré-fatiado no lixo, só com um pouquinho de mofo, a
última coisa que se fazia era contar isso a alguém.
Assim, Willing continuou a ir à escola porque seus colegas de
turma eram excelentes fontes de informação. Os pais deles se
assustariam se soubessem disso, mas a garotada falava. Não
conseguiam deixar de se gabar do estoque de reserva da família.
Graças à fanfarrice dos estudantes, ele soube que os Rosangel, da
avenida Tilden, tinham arranjado duas caixas de fubá Goya do tipo
grosso. Tendo ficado sem espaço, por suas reiteradas descobertas
e sorte nas compras, eles haviam empilhado as caixas no quintal
dos fundos: uma moleza para se furtar. Os Brown, da casa em
frente, reurbanizadores que ainda não tinham aberto mão de
vaidades como serem “intolerantes à lactose”, guardavam em seu
porão um estoque infindável de leite de arroz Trador Joe, sabor
baunilha. A janelinha superior acima da máquina de lavar nunca
estava trancada. Os Garrison, que moravam na esquina, haviam
armazenado centenas de latas de grão de bico em um galpão de
ferramentas no quintal. O cadeado era decente, mas as dobradiças
da porta ficavam do lado de fora. Era moleza tirá-las. E o melhor de
tudo era que, repostas as dobradiças, não ficava nenhum sinal da
invasão. Quanto aos Doritos e outros petiscos salgados que
revestiam a média dos porões, Willing os deixava para lá. Os
pacotes faziam barulho e denunciariam sua presença.
Naturalmente, sua mãe lhe ensinara a não roubar. Se tivesse
tendência para tal, ele poderia conceber uma porção de
racionalizações acerca dessas pilhagens. No pânico, a maioria das
famílias fizera estoques exagerados. Os mantimentos mal
protegidos viravam comida de ratos e insetos. Depois de uma queda
de energia em março, as ruas de East Flatbush tinham ficado
cobertas de latas de lixo cheias de carne podre, saída de
congeladores sobrecarregados. Willing nunca roubava em
quantidade; os desaparecimentos criteriosos eram menos furtos do
que impostos.
Mas ele não sentia necessidade de racionalizações. Estava
aprimorando uma habilidade, como quem purifica água e constrói
uma fogueira — uma habilidade que mais tarde viria a calhar,
quando o “não roubarás” se juntasse a anacronismos como
“intolerância à lactose”.
Se o rebaixamento de Willing à prática de furtos assinalava uma
corrupção mais ampla da ordem moral americana, a ordem moral se
degradaria com ou sem ele. A corrupção de seus costumes foi uma
simples questão de se manter atualizado, como quem baixa o
sistema operacional mais recente no fleX.
Até o momento, sua mãe não questionara de onde vinham os
misteriosos acréscimos à sua despensa. Todos estavam
contribuindo, e ela não ia olhar os dentes do cavalo dado
representado por um pacote de arroz Carolina de grãos longos. Na
verdade, ela deveria saber. O nome disso era dissonância cognitiva.
Ninguém mais prestara atenção quando a Señora Perez expusera
esse conceito na aula de ciências sociais, mas Willing gostou do
fato de terem dado um nome sofisticado à prática de mentir para si
mesmo.
Outras pessoas se concentravam em suas desgraças. Mas
Willing sabia que esses eram os bons tempos, que estavam com
vergonha de alguma coisa. E gostava de ter muito que fazer. Era útil
que, aos quinze anos, ainda fosse esguio e naturalmente atento.
Nascido para a ação furtiva, ele sabia passar por cercas e cortar
telas de janelas em silêncio. (Era de uma facilidade assustadora
conseguir o acesso a praticamente qualquer casa, ainda mais tendo
em vista que o único utensílio que ele escolhera para si, quando
Avery fizera sua investida furiosa na Home Depot, tinha sido um
cortador de vidro.) Além disso, muito do que ele recolhia vinha de
lixões e latas de lixo. Willing mantinha a casa abastecida de pano
para os guardanapos de bunda. Esquadrinhava locais tão distantes
quanto o Prospect Park à procura de gravetos e pequenas toras de
lenha, para que pudessem fazer churrascos nos fundos e se manter
aquecidos enquanto comiam, economizando gás natural. Quando
sua mãe resolveu plantar legumes no quintal, nessa primavera —
nada irrelevante nem aguado como rabanete e alface, mas coisas
que sustentassem de verdade, como abóbora —, ele teve de
lembrá-la de que aquele pedacinho de terra já havia sido usado
como latrina. Assim, passou uma semana inteira enchendo a
bicicleta com cestos de terra recolhida do Cemitério da Santa Cruz e
despejando-a no quintal, para criar uma camada superior de quinze
centímetros de terra não contaminada por fezes humanas — e
depois implorou a todos que, nos períodos de falta d’água, usassem
sempre um balde. Ele plantou as sementes e regou as fileiras
semeadas. De acordo com o noticiário, por todo o país os quintais
das residências vinham se transformando em hortas. Antes da
Moratória, a grama dos jardins era a maior cultura dos Estados
Unidos — três vezes maior que o cultivo do milho, cobrindo uma
área do tamanho do estado de Nova York. Mas não se podia comê-
la. A moda da beterraba como substituta era de uma sensatez
eminente.
Eram tempos energizantes, tempos industriosos. Melhores do
que o futuro que viria.
Enquanto isso, o próprio noticiário respondeu por um estudo
fascinante. Durante meses, os âncoras referiram-se ao presente por
nomes como crise, catástrofe, cataclismo e calamidade, e estavam
ficando sem substantivos com a letra C. Já haviam usado todo o D,
como desastre, derrocada e devastação. Termos como agruras,
adversidade, tragédia, tribulação e sofrimento já não significavam
nada — não funcionavam, pareciam aludir a experiências que não
eram grande coisa. A própria língua inglesa estava sendo afetada
pela inflação, e, quando tudo ficasse dez vezes pior, os locutores
sofreriam um bloqueio criativo. Não restariam palavras para
denominar a fase seguinte. Talvez a CBS News se refugiasse nos
eufemismos: o que acontecera com os Estados Unidos fora uma
pena, um tantinho lamentável, realmente um desperdício, bastante
lamentável ou uma certa decepção.
Já havia dificuldades, é claro. Quando sua mãe conseguiu
comprar meio litro de leite fresco, insistiu em reservá-lo para clarear
o chá — era assim que gostava —, mas o guardou por tanto tempo
que a maior parte coalhou. Quando os coalhos flutuaram no topo da
xícara, ela chorou. Bing roubava comida em casa, o que era bem
diferente de buscar alimentos em outro lugar, e os furtos se
tornaram cada vez mais óbvios, porque o garoto de doze anos era o
único da família que estava engordando. Lowell não fazia nada o dia
inteiro, exceto martelar seu fleX no porão, escrevendo seu “tratado”,
e Willing começava a se perguntar se o tio era maluco. Esteban
ficara taciturno; oferecer-se para ser contratado para alguns bicos
aqui e ali era parecido demais com o que seu pai fizera. Ele já não
beijava a mãe de Willing com a mesma frequência nem a abraçava
na pia. Kurt tinha tanto pavor de criar problemas que se ausentava
durante quase o dia inteiro; voltava parecendo sentir frio e tenso.
Além de passar horas seguidas nas filas dos caminhões de comida,
não devia fazer nada além de andar para lá e para cá. Havia muito
disso. Batia-se muita perna.
Goog e Bing não se beneficiavam muito de aulas dadas em
espanhol, mas ir à escola proporcionava, sim, o teatro da
normalidade. Apesar de desdenhoso em casa, na escola Goog
contava com “Wilbur” para traduzir para ele, uma dependência que o
garoto detestava. Agora havia mais branquelos na escola Obama
High, pois muitas outras famílias já não podiam mandar seus
preciosos filhos brancos para escolas particulares, mas, se o sujeito
não falasse espanhol, apanhava. Willing procurou treinar Goog em
alguns verbos, mas o primo se agarrava ao alemão como sua
segunda língua, o que era uma tremenda burrice, porque, para se
comunicar, mesmo na Alemanha, era melhor aprender turco.
O pobre imbecil do Bing tornou-se um alvo ainda maior por ter
levado o violino para tocar na pequena e desafinada orquestra da
sua escola de segundo ciclo. Na tarde em que os admiradores de
praxe jogaram o instrumento por cima de uma cerca e lhe
quebraram o braço, Willing pressionou o primo caçula.
— Mas para que estudar violino, se os melhores violinistas já
foram gravados tocando tudo que existe?
— Bem — respondeu Bing, pensativo —, pode ser que alguém
escreva uma coisa nova, e aí vão precisar de alguém para tocar.
— Mas um computador pode fazer isso — disse Willing. — E
melhor do que você jamais vai tocar, se os seus exercícios servem
de base.
Bing começou a choramingar. Com um suspiro, Willing encontrou
uma utilidade para a Cola Gorilla de Avery e consertou o braço do
instrumento, embora não estivesse mesmo fazendo nenhum favor
ao primo.
Savannah sumia com frequência, o que deixava Willing com uma
sensação incômoda, tanto a respeito do que ela estaria aprontando
quanto por ela não estar presente. Tudo naquela garota era irritante.
Ela era afetada e despropositadamente ressentida. Agia como se
estivesse acima de tudo e flanava pela casa com ar apático quando
poderia ao menos estar roubando alguma coisa, como um membro
produtivo da sociedade. No entanto, tinha uma vida secreta, e isso
era irresistível. Era bonita, e ele se sentia fraco pelo fato de isto
fazer alguma diferença. Toda vez que Willing chegava em casa e a
prima não estava, o ar murchava. De um jeito irremediável, ele se
solidarizava com a perspectiva de Savannah. Era para ela estar na
faculdade. Deveria estar trocando os pais sufocantes e os irmãos
chatos por uma vida nova. Deveria estar aprendendo da maneira
mais difícil a não beber tequila demais, mudando de curso quando
descobrisse que, pensando bem, não estava interessada em design
de tecidos, e se apaixonando pelos caras errados. Em vez disso,
estava ali, presa com a família em uma casa cheia de parentes, uma
república estudantil sem bebida alcóolica. Não era de admirar que
quase não falasse com seu imprevisível primo de quinze anos.
Por isso ele ficou empolgado quando os dois se viram na sala,
em um raro momento em que não havia mais ninguém por perto.
Qualquer pequena intimidade em uma casa tão cheia tinha de ser
valorizada.
— Nós estamos ferrados, você sabe — disse Savannah,
refestelada no sofá. — Para toda a nossa geração, acabou. — Ela
acendeu um cigarro. Um cigarro de verdade.
— Por que você não usa um vape? — perguntou Willing,
hesitante.
— Porque vape não mata. — O cansaço da vida foi teatral.
— O cheiro desse vai entregar você.
— E o que eles vão fazer: me mandar para o meu quarto? Que
quarto? Vão se recusar a pagar minha faculdade? Me mandar para
a cama sem jantar? Com a lavagem de porco que temos comido,
seria uma bênção.
Ela era linda, mas um vazio em seus olhos minguava um pouco
essa beleza. Willing se perguntou onde ela teria arranjado dinheiro
para os cigarros. Também estava usando maquiagem — uma
extravagância da qual a maioria das mulheres prescindia. Willing
aceitava o fato de não despertar o interesse dela. Mas era
inquietante que uma garota promissora de dezenove anos não se
interessasse por nada nem por ninguém.
O mais difícil dos deveres de Willing competia a ele, porque
ninguém mais queria cumpri-lo. Os outros diziam que estavam muito
ocupados, ou que iriam na semana seguinte, ou que não gostariam
de se intrometer em horários inconvenientes. Mas a verdade era
que não iam lá porque não queriam: dissonância cognitiva. Nem
Nollie, que dizia não ser bem-vinda, nem seus primos, nem Avery e
nem mesmo a mãe, o que era especialmente estranho. A não ser
pelo fato de que a situação no abrigo andava sinistra: o trabalho na
Adelphi, disse Florence, tinha a ver sobretudo com proteger os
moradores das multidões que acampavam na calçada e queriam
entrar. Os sem-teto que possuíam quarto haviam se tornado os
eleitos; nos últimos tempos, ela comentou, “ninguém reclama da
vista”. Agravar ainda mais essa amargura devia estar fora de
cogitação. Em um momento de franqueza, Florence explicara: “Não
posso cuidar de todo mundo.”
Assim, a cada duas semanas, Willing subia na bicicleta carregada
com alguns alimentos seletos, uma contribuição dos vizinhos para
cuidar dos idosos, e pedalava até Carroll Gardens. Às vezes usava
o trajeto para se perguntar até que ponto o fato de ter sido
incentivado — ou melhor, imperativamente instruído — a chamar os
avós de “Jayne e Carter” teria afetado sua maneira de vê-los. Via-os
com mais nitidez, porém menos generosidade, como se os apelidos
genéricos, calorosos e vagos, oferecessem alguma proteção. Ele os
via mais clinicamente. Como pessoas reais, iguais a qualquer um, e
toda essa perspicácia não era sempre do interesse deles. Os outros
alunos da escola chamavam suas avós, por exemplo, de nan,
nanna, vó, vovó, abuela ou yaya. Quando Willing se referira à dele
como “Jayne”, em uma redação em que era preciso descrever a
árvore genealógica da família, os colegas haviam achado esse uso
bizarro e patético. De um modo irracional, talvez, ele sentisse uma
perda, como se, privado dos termos tradicionais, na verdade não
tivesse avó e avô, e sim dois conhecidos mais velhos com os quais
tinha poucas coisas em comum.
Como quer que fosse, eles não andavam bem. Após um número
suficiente de visitas, Willing já havia passado pela fase em que
todos fingiam estar ótimos, embora às vezes desejasse que eles
voltassem ao faz de conta. O maior problema eram as Depends.
Fazia muito tempo que as fraldas geriátricas haviam acabado.
Apesar de, muitas vezes, Willing levar lençóis velhos, colchas e
roupas usadas, retirados do lixo de pessoas cujas casas tinham sido
retomadas em execuções hipotecárias, o suprimento de tecido
afanado era limitado. Inevitavelmente, seus avós teriam de lavar e
reutilizar as fraldas de Luella: desagradável.
Jayne e Carter mantinham Luella presa — amarrada por uma
guia a sua cadeira, ou presa a uma guia mais curta, ancorada no pé
de uma mesa. Quando Willing mencionou o fato para sua mãe, ela
ficou horrorizada. Mas o garoto achou que era uma política sensata.
Em um acesso de raiva, Luella podia destruir o lugar. Não que agora
se soubesse dizer a diferença, isto é, se ele estava destruído ou
não.
Era como se a demência fosse contagiosa. Ninguém arrumava as
camas nem recolhia o lixo ou o levava para fora. Eles quase não
cozinhavam e não havia horário de refeições. Alguém abria uma
sopa, apaticamente, e comia direto da lata. É claro que Luella
perdera a capacidade de usar talheres, mas agora era comum que
os outros três também comessem com a mão. O pior era a perda do
conceito de conversa. Dialogar tornara-se uma série de iterações ao
acaso: “Tem um novo acampamento de refugiados saídos de asilos
na rua Smith”, dizia Carter. “Estamos no finzinho da pomada de
cortisona”, falava Jayne a seguir. Magno Grand Man declarava: “Se
Alvarado continuar a bater o pé na questão do bancor, vai perder a
eleição de 32.” Por isso, quando Luella entrava com “Meu marido
paga o que você pedir!”, a disjunção se encaixava perfeitamente.
Luella estava convencida de que tinha sido sequestrada — e isso
acontecera, de certo modo — e de que a Grande Mimi tramara tudo.
Os outros pareciam cansados de corrigi-la. “Não, meu bem, este é
Douglas, lembra? E este é o filho dele, Carter, que é meu marido, e
vocês estão hospedados na nossa casa...” Assim, em vez disso,
eles entravam no jogo. Beirava o sadismo. Jayne, por exemplo,
dizia: “Fizemos nossas exigências, mas seu marido não tem um
centavo. Você está por conta própria.” Magno Grand Man
acrescentava, em tom brincalhão: “Não, não, o dinheiro do resgate
está a caminho, minha querida. Quatro cheques gordos da
Previdência Social, de milhares de dólares cada um! Vai dar pra
comprar um sanduíche com cada um.”
Willing ainda gostava de conversar com Magno Grand Man (ou
“MGM”, abreviatura em que o pater familias se amarrara; não era
fácil ganhar um apelido estiloso aos noventa e nove anos). Mas o
garoto preferia o que ele dizia nos textos do fleX, nos quais as
afirmações, que pessoalmente soavam trêmulas, pareciam
robustas. Nessa primavera, o diálogo contínuo dos dois abordara a
difundida ideia de que o “experimento americano” havia fracassado.
Assim, em uma visita em junho — ninguém mais chamava esse mês
de “atipicamente frio para a estação”; uma das vantagens de se
fazer uma visita aos mais velhos era manter-se aquecido, porque
com aqueles “quatro cheques gordos da Previdência Social” eles
ligavam o aquecimento central —, Willing retomou a discussão.
Achava terapêutico forçar seus três parentes quase nada
atualizados a participar de conversas com foco, tal como um clínico
poderia pedir para contarem de trás para frente, de sete em sete,
partindo de cem.
— Mas não se pode fechar um país como se fosse uma empresa
— propôs Willing. Estavam todos sentados ao redor da mesa da
cozinha, repleta de manchas grudentas e louça suja. Peças
imponentes do aparelho de jantar dos Mandible estavam
manchadas e engorduradas de manteiga. A fatia de limão no copo
d’água de Willing significava que Jayne fizera o impossível para
mostrar hospitalidade. — Não dá para levantar as mãos e dizer “que
pena, acho que ‘o experimento’ não funcionou”. As pessoas da
minha idade ainda têm muito que viver.
— Cabe à sua geração renascer das cinzas — respondeu MGM,
com sua voz rouca.
— Eu tenho quinze anos. Não posso inventar do zero um novo
país.
— O país não vai sair daqui. É só a economia que vocês têm que
remendar de novo, à la Humpty-Dumpty.
— Ah, sendo assim tudo bem. — Carter tornara-se insolente.
— O problema de Alvarado é que ele ainda acha que é o
presidente dos Estados Unidos — disse MGM, pronunciando o título
com sonoridade. — Aquele sujeito que chega com passos largos,
acompanhado por um cortejo, e diante do qual todo mundo treme.
Os hispânicos investem muito na excepcionalidade da terra dos
homens livres, a pátria que agita bandeiras. Se não fosse isso,
teriam só emigrado de uma pocilga de língua espanhola no Terceiro
Mundo para outra pocilga de língua espanhola do Terceiro Mundo, e
que sentido teria isso?
Jayne interveio:
— Muitos lats estão voltando para sua terra natal. Escrevam o
que estou dizendo, vamos sentir falta deles.
— Todo mundo diz que estamos numa “depressão” — observou
Willing. — Mas é também uma depressão afetiva. Como a de vocês.
Por que será que acabou o “experimento americano”? Só porque
não somos mais o maior país do mundo? Talvez este nunca tenha
sido o maior país do mundo. Vários outros lugares já foram
impérios. Agora não mais. As pessoas que moram lá ficam relapsas
com isso. Aqui, todo mundo parece um bando de criancinhas.
— Eles vão me matar — disse Luella, em um cochicho teatral no
ouvido de Willing. — Diga a Mimi que Douglas era infeliz no
casamento antes de nos conhecermos! A culpa não é minha!
— Nunca é culpa de ninguém quando as pessoas se apaixonam
— respondeu Willing em tom solene.
Talvez ávida da conversa coerente que Willing impusera, Jayne
pareceu aborrecida por ele estar dando alguma atenção a Luella.
— Os americanos não estão deprimidos — disse ela. — Estão
em negação. Todos acham que a crise é temporária e que, a
qualquer momento, voltaremos a bebericar expressos com espuma
de leite nas cafeterias. Todas as outras crises econômicas
chegaram ao fim. Por isso, o pior que as pessoas temem é uma
“década perdida”. A ideia de tudo perdido, de um declínio
permanente e irreversível, isso escapa à psique deste país.
— Não sei por quê — disse Carter. — O lugar está caindo aos
pedaços desde que eu me entendo por gente. Rodovias aos cacos,
pontes que desabam, linhas de trem decrépitas. Aeroportos que
parecem rodoviárias. Que o diabo me carregue se eu sei por que os
estrangeiros se acumularam aqui, ou por que levaram tanto tempo
para pensar melhor e virar as costas.
— A postura de vocês é bem ruim — disse Willing, tristonho. —
Talvez mereçam isso.
— Há toda uma escola de pensamento que concorda com você
— interveio MGM. — Que diz que nós mesmos causamos isso. Que
tentamos jogar com um pau de dois bicos para levar vantagem. Que
criamos filhos frouxos. Que tomamos por certa a nossa supremacia,
sem que houvesse nada para respaldá-la. Os religiosos do centro-
oeste dizem que estamos no Juízo Final. Só que ninguém está
sendo separado para sentar à mão direita. Somos todos joio.
Pegando carona, Luella usou a melodia de “Bad”, de Michael
Jackson, para cantar que ela também era joio.
Willing examinou a mesa. Em uma camisola de listras encardida,
amarrada a uma cadeira de espaldar reto, com os pulsos presos
com fita adesiva, Luella parecia uma vítima das primeiras cadeiras
elétricas. Os olhos grandes exibiam um excesso de branco, como se
a corrente tivesse sido ligada. Seus dentes eram longos e amarelos,
com as gengivas retraídas por conta da periodontite. Quanto à avó
esquelética, envolta em uma camisola de bruxa de contos de fadas,
preta e longa, ela futucava as cutículas até sangrarem, depois
limpava as gotas vermelhas com um guardanapo. No passado, o
avô de Willing sempre lhe parecera razoavelmente atlético e de uma
normalidade entediante: atencioso, discreto — tudo que sua irmã
Nollie não era. Agora, porém, o que parecia servir de exercício para
Carter era a pura animosidade. Ali estava ele, sentado na cozinha,
braços cruzados, mãos cerradas em torno dos bíceps. Seus tendões
metacárpicos eram salientes como cordas de raquete de tênis.
Olhá-lo nos olhos era como encarar o cano duplo de uma
espingarda.
Ainda exsudando uma nobreza esfarrapada, MGM pelo menos
voltara para um de seus ternos creme, embora o traje estivesse
amarrotado. Seus cabelos brancos desalinhados, emaranhando-se
a esmo em direções arbitrárias, transpareciam um fatalismo que ia
além do penteado. Era desanimador ver como o patriarca se
reduzira ao ser despojado da gravata plastron, das unhas feitas, dos
acessórios — os decanters de cristal, as canetas Mont Blanc de
platina, elegantemente espetadas em um bolso externo. Até seu
cigarro eletrônico agora usava o tabaco mais barato, com cheiro de
desinfetante. No entanto, passados quase dois anos desde a
Grande Moratória, uma coisa não mudara: o Magno Grand Man
estava gostando daquilo — ainda que do jeito intrigante com que os
adultos gostam de café expresso. Willing bebera um gole de café
verdadeiro, uma vez. O troço era repulsivo. Mas, claramente, era
pelas qualidades mais horrorosas daquele líquido turvo que a
bebida era valorizada.
Naquela cozinha, ele percebeu, havia velhos em excesso. Todos
tinham uma postura negativa. Todos se deleitavam com a
calamidade vigente — a implosão, o remoinho que sugava, a
vertigem. Achavam que poderiam levar tudo consigo, como faraós
sepultados com seu tesouro. Willing se levantou.
— Eu não sou joio.
— Will, não entenda mal — disse Carter, embora Willing tivesse
certeza de estar entendendo bem, além de nunca ter gostado de ser
chamado de Will. — É só que não foi desta maneira que imaginei os
meus setenta anos.
— Benzinho, seja sincero — falou Jayne. — Você nunca
imaginou os seus setenta anos, ponto final.
— Poder comer é importante — continuou Willing. — E ter um
lugar para morar. Mas o que mais é tão importante que agora vocês
não possam comprar? Vocês parecem muito amargos...
— Amargo é melhor que aspargo — tagarelou Luella. — Amargo
camargo. Amargo aspargo camargo.
— Pelo menos vocês têm uns aos outros — concluiu Willing.
— Talvez o problema seja esse — brincou Jayne, arrancando
outro naco de cutícula.
— Ser roubado — disse MGM — é uma experiência emocional.
Muito mais intensa que a de não poder comprar um barco, de uma
hora para outra. E não fomos roubados por saqueadores forasteiros,
mas pelo nosso próprio governo. A Moratória cortou os laços entre
Washington e o povo americano, laços que eram incertos, para
começo de conversa.
Willing deu de ombros e disse:
— Todos os governos roubam o povo. É isso o que eles fazem.
Os reis e esse troço todo, eles também roubavam. Dessa vez, o
presidente fez tudo de uma vez só. Talvez seja melhor do que aos
pouquinhos. Pelo menos o sujeito sabe onde está.
— Na sarjeta — esbravejou MGM.
— Na sarjeta valeta amareta — disse Luella.
— Mas você me explicou uma vez — falou Willing ao MGM —
que há muito tempo a dívida pública tinha ficado grande demais
para ser paga. Você disse que, não fosse o fato de os credores
estrangeiros terem exigido o pagamento em bancores, o governo
teria tido que pagar a dívida emitindo moeda e aumentando a
inflação. O que dá na mesma, você mesmo disse. Continua a ser
dar calote na dívida. Continua a ser uma forma de Moratória.
Continua a ser uma tapeação. Torna o sujeito igualmente
“irresponsável” e desonesto. A Moratória ia acontecer de qualquer
jeito, ao longo de anos e anos, por baixo dos panos, só que a
falcatrua foi acelerada da noite para o dia. Grande coisa. Você
previu isso. Não entendo por que ficar bravo.
— O simples fato de você ver um trem se aproximando não
significa que ele não vai acertar a lateral do seu carro — respondeu
MGM.
Por travessura, Willing também falara para Lowell que o desgaste
convencional da dívida pública pela inflação era “desonesto”, e se
deleitara ao ver o tio ficar roxo. O dinheiro, Lowell explicara em tom
cáustico, não tem qualidades morais, é um simples “combustível”, e
tudo que importa em uma economia é que esse motor funcione. A
economia é um conjunto de “mecanismos” que funcionam bem ou
mal, e ficar preso a conceitos irrelevantes como “justiça”,
“honestidade” ou “lisura” é condenar esses mecanismos ao mau
funcionamento. O único “bem” pertinente, dissera Lowell, é o bem
maior de uma máquina eficiente, da qual todas as engrenagens se
beneficiam. Foi um dos melhores momentos de Lowell, e quando
Willing decodificou o discurso como significando que o governo e o
capitalismo eram fundamentalmente inescrupulosos, a colocação do
seu tio pareceu ser bem compreendida.
— Eu devia ter esclarecido — prosseguiu MGM. — Alvarado só
roubou dos americanos que tinham feito alguma reserva, e isso
exclui mais da metade do país. Sim, eu estou amargo. Estou sendo
castigado por não ter gastado toda a fortuna da família quando tive
a chance. Por não ter tomado um Lafite Rothschild de três mil
dólares em todas as refeições. Por ter tentado assegurar que
pessoas como você, meu menino, um dia se beneficiassem da
minha prudência.
— Pai, um imóvel na Oyster Bay está longe de qualificar você
como alguém que levou uma vida de incessante abnegação —
resmungou Carter.
— Um monte de dinheiro sem ter feito nada talvez não trouxesse
benefício algum — ponderou Willing.
— Poderia ter mandado você para a universidade — contrapôs
MGM.
— A universidade talvez não me fizesse nenhum bem. Estudar
engenharia. No momento, acho que é mais importante saber cuidar
de um jardim.
— Nesse caso, eu poderia ter mandado você para a faculdade de
paisagismo. — MGM parecia frustrado. — A melhor definição de
riqueza que já encontrei foi “dinheiro é energia armazenada”. Em
outras palavras, desde 1929, este país inteiro liga o ar-condicionado
com as janelas abertas.
— Mas a fortuna dos Mandible — argumentou Willing — só foi
acumulada porque um dos seus antepassados era bom projetando
motores diesel. Nenhum de vocês ganhou esse dinheiro. Vocês
tiveram sorte. Aí, em 2029, deram azar. Mas sorte e azar não têm
nada a ver com certo e errado. Além disso, vocês continuam tendo
sorte. Ainda contam com a aposentadoria da Previdência Social.
Atualizada pela inflação. E têm o Medicare. Os mais jovens não têm
isso. Qualquer pessoa acima de sessenta e oito anos está
protegida. Tirando Nollie, lá em casa ninguém está protegido.
— Nollie não está protegida de um murro no queixo —
resmungou Carter —, se algum dia eu puser as mãos nela. A filha
pródiga usava a França como desculpa. Agora ela não é capaz de
percorrer oito quilômetros para nos dar um descanso de uma ou
duas noites.
— Nollie realmente ajuda lá em casa — informou Willing. — Lá
também é uma espécie de zoológico.
— Enola é um espírito livre — afirmou MGM. — E talvez ela
achasse mais atraente passar por aqui, Carter, se você se
comportasse como alguém que quer ver a irmã, e não como quem
só está atrás de cuidados de enfermagem gratuitos. Tenho
esperança de que a volta para os Estados Unidos a inspire a voltar
a escrever. Esse tumulto todo daria um grande livro, ela seria a
cronista ideal dos nossos tempos. Sempre teve olho para isso. Para
a maioria das pessoas, o que está do lado de fora da porta de
entrada é uma tragédia. Para Enola, é material.
— Certo — respondeu Carter. — A autora perfeita do Grande
Romance Americano dos dias de hoje é uma Maria-Ninguém
improdutiva, famosa por uma lavação de roupa suja mal disfarçada
de romance, que passou décadas morando fora do país.
— Mas o que você estava dizendo, Willing — interrompeu Jayne,
repondo à força o rumo de sua primeira conversa propriamente dita
em semanas. — Eu acho, sim, que Douglas tem razão quanto ao
risco moral. Os americanos que sofreram as perdas mais profundas
foram os que tinham uma relação conscienciosa com o futuro. Que
economizaram para o futuro. Que acreditaram no futuro. Que
mantiveram reservas à mão na expectativa de que elas se
responsabilizassem por eles e por qualquer coisa que acontecesse.
O pessimismo que está incomodando você, Willing, é resultado
desse sentimento de ter sofrido uma traição. As pessoas que
confiaram no futuro agora se sentem otárias. Vítimas de um trote
enorme.
Seus avós vinham lutando para formular um modo de enxergar a
incineração da herança de Carter que não os fizesse parecer só
gananciosos, com raiva porque agora não iam receber seu dinheiro.
Afinal, para democratas liberais, entrar em posse de uma montanha
de dinheiro não conquistado por eles próprios seria uma injustiça,
nos termos de sua própria política. Agora, estavam magoados em
nome das “pessoas que acreditavam no futuro”. Era inteligente.
Willing admirou a ginástica intelectual. Feita por pessoas meramente
gananciosas, com raiva porque agora não iam receber seu dinheiro.
— Uma das responsabilidades primordiais do governo é fornecer
uma moeda funcional — declarou MGM. Os olhares de Jayne e
Carter indicaram que já tinham ouvido isso mais de uma vez. — A
funcionalidade implica satisfazer três critérios. Ela é uma unidade
contábil, para manter o controle de quem deve o que a quem. Pode
riscar esse critério, já que, com as taxas de inflação de hoje, quem
está encalacrado até o pescoço pode, efetivamente, quitar
empréstimos de mil dólares com dez centavos. Segundo, a moeda é
um meio de troca, o que o dólar continua a ser, mal e mal, mas só
se você ganhar o dinheiro de manhã e gastar à tarde. E a terceira
finalidade de uma moeda é funcionar como uma reserva de valor. O
dólar não tem sido uma reserva sólida de valor durante toda minha
vida.
À medida que fora envelhecendo, MGM tornara-se mais enfático,
e era quase impossível interrompê-lo. Willing levantou as palmas
das mãos, desolado. Não deveria ter de bancar o missionário, mas
era preciso que alguém dissesse:
— Não sei como, mas vocês precisam superar isso. Essa ideia
de terem sido “roubados” está corroendo vocês. É como se vocês
tivessem deixando o governo ganhar duas vezes.
MGM soltou um risinho e continuou:
— Dito dessa maneira, até que o garoto tem razão.
— Você é um rapaz muito inteligente, Willing — disse Jayne, de
um jeito que o deixou arrepiado.
— Não é inteligente dizer uma coisa óbvia — resmungou Willing.
Nesse exato momento, Luella cerrou os olhos e soltou um sorriso
beatífico antes de voltar a cantar que era o joio à la Michael
Jackson.
O cheiro que sempre impregnava a casa tornou-se mais intenso.
Os outros três se entreolharam e deram suspiros.
— É minha vez — disse Jayne, arriando os ombros. — Mas,
Carter, você tem que ficar por perto. Da última vez, ela entrou de
novo na história do sequestro e me deu um chute na canela.
— Antes de você ir, filho... — MGM havia puxado Willing de lado,
confidencialmente, e baixado a voz, como se fosse legar um último
e sábio conselho que teria ressonância para seu bisneto nos anos
futuros; visto que, na idade dele, qualquer despedida podia ser a
última. — Não temos conseguido encontrar nenhum laxante. Se
você achar uma ou duas caixas...
Era um mundo de merda, literalmente. Willing prometeu, abatido:
— Vou ficar de olho.
***

Ao voltar para casa, Willing encontrou um bate-boca na sala.


— Eu tenho dezenove anos e isso é problema meu — dizia
Savannah à sua mãe.
— É justamente o fato de ter se tornado problema seu que me
preocupa — retrucou Avery, acalorada.
Savannah deu uma olhadela no primo e pareceu tomar a decisão
de ser sem-vergonha.
— Você ficaria relapsa em relação a isso, mãe, se eu estivesse
dando de graça? Não seria muito esperto, nas atuais circunstâncias.
— Nas atuais circunstâncias, nós estamos dando um jeito, e você
não tem que se degradar!
— Nós não estamos dando um jeito — retrucou Savannah. —
Você já contou para eles?
A tia de Willing enrubesceu.
— Não sei do que você está falando.
— Ouvi você e o papai conversando. O seu boudoir no porão não
tem paredes. Acabou, não é?
A mãe olhou para o chão, de braços cruzados.
Virando-se para Willing, Savannah soltou o verbo.
— O dinheiro da venda da casa. Acabou. Já era. Es pasado.
Adeus, contribuições domésticas, alô, dependência abjeta. É claro,
temos um monte de dobradiças e cotonetes como fruto desse
dinheiro. Ah, e uma boa reservinha de vinho, se bem que é melhor
você fazê-lo durar, mamãe. Florence não vai bancar o seu Viognier
sendo que ela mal consegue pagar o vinagre para limpar nossas
bundas.
— O seu pai está procurando outro cargo universitário por toda
parte — disse Avery. — Enquanto isso, eu... eu pensei em fazer
alguma coisa aqui em casa. Se não forem sessões da MenteCorpo,
pode ser cozinhar ou até lavar roupa para fora!
— Mãe, por favor! Ninguém está oferecendo jantares, muito
menos com serviço de bufê, e a maioria das pessoas usa a mesma
roupa durante um mês!
— A única coisa que eu sou orgulhosa demais para fazer é o que
você está fazendo.
— Você está muito velha para a minha profissão. E alguém tem
que trazer alguma grana para esta casa além de Florence. Quer ver
a inflação funcionar a nosso favor, para quebrar a monotonia? Os
meus preços estão subindo.
Savannah pegou o casaco e marchou porta afora.
— Você sabia disso? — perguntou Avery a Willing.
— Pensei na possibilidade.
— Deixando a indignidade de lado... é perigoso, e existem
doenças. Que nem sempre podem ser tratadas com antibióticos —
ponderou Avery.
— Ela não tem um grande repertório de qualificações — arriscou
Willing. — E ela tem razão: minha mãe não pode sustentar dez
pessoas. Só que existe um grande problema na carreira escolhida
por Savannah. Pelo que tenho visto na rua.
— O que é?
— Excesso de concorrência.
• CAPÍTULO 12 •

AÇÃO, RECOMPENSA E SACRIFÍCIO

Deve ter sido mais ou menos em julho de 31 que Florence levantou


pela primeira vez uma nota de cem dólares contra a luz e chamou:
— Lowell? Pode vir aqui em cima, por favor?
Seu cunhado subiu do porão com um de seus ternos
molambentos, de um tipo comum no abrigo: uma peça amarrotada
de excelente corte e acabamento, que não via uma lavagem a seco
fazia meses. Lowell parara de se barbear e aparava com a tesoura
uma barba que já crescia em tufos. Os comprimentos irregulares de
barba haviam entrado na moda, assim como o corte de cabelo
caseiro, resultado da poda de mechas diante de um espelho de
banheiro. Essa barba e cabelo populares, do gênero faça você
mesmo, tinham levado a maioria dos salões à falência.
Ela lhe entregou a cédula.
— Está diferente.
Lowell alisou a nota de cem quase nova.
— Parece falsa. Acho que enganaram você.
— Também foi o que pensei, no começo. Mas essas notas vêm
de todos os cantos da cidade. Olhe. — Florence tirou o maço da
carteira e espalhou o dinheiro sobre a bancada da cozinha (não se
faziam mais carteiras grandes o bastante para levar todas as
cédulas exigidas para uma ida comum às compras, e essa carteira
já não dobrava ao meio). — O papel não é da mesma qualidade. A
tinta também não está certa. É mais brilhante. Mais verde. Berrante.
— Bem, é comum eles mudarem o desenho para impedir a
falsificação.
— Mas eles não estão acrescentando hologramas nem uma
estampa mais refinada, e a meu ver Ben Franklin parece borrado. A
nota é mais vagabunda.
— E exatamente por que você está me falando disso?
— Foi o que você disse. Que um dos sinais fora a degeneração
física do marco alemão...
— Eu não dirijo a casa da moeda. Se eles resolveram
economizar no custo da produção, parabéns para eles. Em época
de apertar o cinto, não faz sentido esbanjar recursos num simples
meio de troca, que não tem nenhum valor em si e por si, mas
apenas representa um valor.
Quando Lowell se afastou, com seu andar arrogante, Florence
gritou para o cunhado:
— Sabe como eu sei que esta nota não é falsa? Porque ninguém
se daria ao trabalho!
Não sabia o que tinha pensado que ele faria. Um pedido de
desculpas, sendo que ele não fizera nada errado? Ou mais do seu
otimismo improvável, uma garantia de que, logo, logo, eles teriam
de volta os seus dólares verde-abacate e penugentos? Florence
voltou às notas, pesarosa, separando as mais antigas da nova
emissão, dura e crassa. As novas cédulas também eram menores,
mas daquele jeito vigarista, ah-os-idiotinhas-nunca-vão-notar, o
mesmo que fazia a embalagem de dois quilos de sorvete evaporar
para seiscentos gramas. Considerando-se uma pessoa não
especialmente interessada em dinheiro, ela ficou surpresa com a
profundidade de sua tristeza.
Até então, durante toda a vida de Florence, a nota de um dólar
nunca mudara de desenho. Engraçado, era uma coisa que ela
manuseava todos os dias, mas nunca olhara com atenção para uma
única cédula. Com as córneas endurecendo, aos quarenta e seis
anos, catou uma lente de aumento para examinar um dólar antigo,
do tipo que ela conhecera a vida toda. A estampa era mesmo
absurda. As folhas de louro brotavam em torno dos quatro números
um e sob o camafeu de Washington. Havia o quadriculado radiante
e os arabescos minúsculos em todo o perímetro. As linhas finas e
paralelas que faziam a sombra de ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. A
afirmação agora duvidosa, em letras miúdas, de que ESTA NOTA É
MOEDA CORRENTE PARA TODAS AS DÍVIDAS, PÚBLICAS E PRIVADAS. Os
múltiplos números e letras e assinaturas de objetivo ambíguo. O
verso era ainda mais grandioso, com um quadriculado ainda mais
exuberante. A insistência em imprimir “um” sobre os números em
cada canto parecia um exagero. A pirâmide à esquerda, com seu
“olho da providência” triangular, que não piscava, pairando acima
como um truque de levitação, conferia à cédula um ar místico, como
se a moeda tivesse poderes mágicos (e talvez os tivesse; talvez o
fato de ser possível dar a um completo estranho alguns pedaços de
papel verde e receber dele uma rosquinha fosse nada menos do
que milagroso). A águia-americana do lado oposto, cheia de flechas
em uma das garras e com um ramo de oliveira na outra, só podia
lembrar, tanto aos cidadãos quanto aos estrangeiros, qual das
garras fora mais persuasiva, historicamente.
Uma enxurrada de latim sempre transmitia a ideia de pretensão,
quando não também um desejo de obscuridade. Pela primeira vez,
em décadas contando essas notas na palma da mão diante de
caixas registradoras, inserindo-as na boca voraz das máquinas do
metrô e catando as que viravam bolotas amassadas nos bolsos das
calças, Florence foi consultar as traduções na internet. Novus ordo
seclorum significava “nova ordem dos séculos”, o que implicava que
a criação do seu país marcara uma era transformadora não apenas
para os americanos, mas para o mundo inteiro. Para aumentar
ainda mais a jactância, annuit coeptis significava “ele aprova nossa
empreitada”, “Ele” sendo Deus, é claro. E pluribus unum ela já
compreendia — “dentre muitos, um” —, se bem que, nos Estados
Unidos rebeldes e faccionados que vira em sua vida, pluribus
pluribus pudesse ser um lema mais adequado. Os algarismos
romanos de menos de um milímetro de altura, na base da pirâmide,
decodificavam-se como 1776. Uma novidade para Florence, as
fileiras de bolhas condensadas no perímetro eram, supostamente,
treze pérolas. Só nos Estados Unidos o treze era um número de
sorte: a pirâmide tinha treze patamares, acima da águia reluziam
treze estrelas, o escudo heráldico no peito da ave exibia treze
riscas. O pobre pedaço de papel era tão pesado de simbolismos que
era incrível que se conseguisse erguê-lo do chão. No entanto, se
esse poderoso símbolo fosse levado a um minimercado, não
compraria uma bala.
Florence tirou da carteira o maço gordo de notas para comparar a
antiga cédula de um dólar com a nova versão. Vasculhou o maço
duas vezes. Não havia nenhuma nota de um. Claramente, como as
moedas de metal que estavam tecnicamente em circulação, mas
que no entanto eram cada vez mais uma forma de lixo, as notas de
um já não eram impressas pela casa da moeda.
Comparar a de um com as de cem teria de bastar. A cédula de
cem fora redesenhada quando Florence estava na casa dos vinte
anos, época em que uma nota de cem dólares raramente passava
pela mão dela; ela estava desempregada, morando com os pais.
Um dia, porém, seu pai levara uma para casa, a fim de que Jarred e
ela se deslumbrassem. A cédula reformulada só fizera tornar-se
mais presunçosa, com uma porção de recursos engenhosos para
impedir a falsificação. Era menos cédula que brinquedo, embrulhada
feito presente de Natal, com uma fita vermelha verticalmente
entremeada no próprio papel. Examinando de perto, a fita cintilava
com minúsculos sinos da liberdade, que se deslocavam para cima e
para baixo em trajetória diagonal quando ela era balançada para um
lado, e que passava para uma série de números cem ao ser
balançada para o outro. As notas de cem já usadas que restavam
na carteira de Florence não eram tão deslumbrantes quanto aquela
primeira nota nova, mas os hologramas ainda funcionavam. O Sino
da Liberdade no tinteiro passava de cor de cobre a verde. Erguendo
a nota contra a luz, uma reiteração espectral do retrato de Ben
Franklin assomava em um raro espaço vazio à direita. Números cem
apatetados e minúsculos salpicavam como sardas a face da
esquerda, dispostos no padrão irregular de rabiscos quaisquer.
A nota de cem mais recente não exibia fita alguma, apenas uma
tira roxa, como um risco feito com uma caneta hidrográfica. A
impressão de má qualidade borrava a expressão de Franklin,
transformando-a de careta gentil de determinação em risinho
sarcástico. Os complexos recursos antifalsificação tinham sido
abandonados. O papel era fino e escorregadio. A coisa era uma
mera tentativa de uma nota de cem dólares, um aceno, uma alusão
— um você-sabe-o-que-eu-queria-dizer de uma casa da moeda que
estava pouco se lixando para todo aquele simbolismo cansativo. A
nota parecia sem valor aos olhos e ao tato.
Florence nunca refletira sobre sua afeição atípica pela moeda de
seu país. Questionando a reputação de grosseria de seus
compatriotas, o desenho das cédulas americanas distinguia-se de
moedas mais vistosas de forma digna e austera. Embora o
encolhimento das novas notas resvalasse de um modo alarmante
para o tamanho das usadas em jogos de Banco Imobiliário, as
dimensões dos originais eram de uma modéstia atraente. Para uma
nação ainda nova, as cédulas tinham um ar pesado e antiquado.
Assim como as fontes tipográficas do New York Times, cujo
obstinado cabeçalho se mantivera arcaico até sua última edição, ou
como o formato reconfortantemente eterno de um vidro de molho
Tabasco, os dólares davam a impressão de ter história e solidez, de
serem atemporais. Em contraste, a tia dela afirmava que as notas
das diferentes nações europeias nunca haviam recuperado sua
grandeza e particularidade após a derrocada do euro. Florence vira
amostras deixadas das viagens de Nollie: as pesetas, dracmas e
liras ressuscitadas pareciam feias, simples e intercambiáveis.
Pareciam envergonhadas.
A relação de Florence com as cédulas mais antigas e felpudas de
sua carteira era surpreendentemente emocional. As notas tinham
uma relação primitiva com suas mais antigas experiências de ação,
recompensa e sacrifício. Na escola primária, trocar um dileto maço
das mesmas por um walkman fora uma afirmação seminal da força
de vontade. Quando Florence tinha dezesseis anos, esses
retângulos foram o prêmio após seis semanas repintando todo o
interior da casa da família em Carroll Gardens, todas as tardes
depois da escola, enquanto suas amigas iam saltitantes a lojas de
roupas. Deixar cair uma nota de vinte na calçada, na pressa,
explicitara com clareza o custo da desatenção; achar uma nota de
cinco enterrada em uma bolsa era o símbolo do acaso fortuito; abrir
mão de uma pilha mais alta desses símbolos do que ela planejara
para comprar o presente de aniversário da mãe, tinha lhe ensinado
o que era retribuir a generosidade. A cédula verde e macia estava
inextricavelmente ligada à sua experiência de perdas e ganhos, de
realização e insuficiência, de cautela e imprudência, de
premeditação e desamparo, de benevolência e maldade, e de tirar
proveito e ser explorada. Por isso, quando aqueles simulacros
baratos e grosseiros foram postos na palma da sua mão em sua
última ida à Green Acre Farm, fizeram-na se sentir roubada,
insultada e saudosa dos Estados Unidos, como se, ao comprometer
a integridade de seus meros emblemas de valor, a nação tivesse se
desvalorizado.

***

Profissionalmente, esse era o período mais instigante que Lowell já


vivera. No entanto, Avery olhava seu crescente tratado como uma
criança brincando na caixa de areia. Aliás, uma das regressões que
ele vinha documentando era o modo como todos os esforços
cerebrais tinham sido rebaixados à condição de irrelevância —
fazendo a civilização retroceder tão rapidamente quanto se saltasse
por uma dobra temporal. Teria Avery expressado tanto desdém
pelos artigos do marido na época da Georgetown? Não! Ela batia
com leveza à porta do seu estúdio, perguntava se ele queria sopa e
se desculpava, profusamente, por haver interrompido. Agora,
quando ele se debruçava sobre o seu fleX, em meio à inspiração,
ela vociferava que ao menos o marido podia sair com os filhos para
vasculhar as calçadas à procura de móveis descartados que
pudessem usar como lenha. Em vez de interromper o fluxo da sua
intelecção, e com isso pôr em risco o próprio futuro da erudição
americana, Avery preferiria deparar-se com ele de pau na mão.
Lowell tinha de admitir que sua mulher o impressionava. Antes
dessa reviravolta da sorte, ele a teria descrito como mimada. Mas,
ora, ser mimada não era uma coisa tão chocante, desde que se
dispusesse dos meios para bancar as amenidades da vida. Além
disso, era próprio das amenidades resvalar para a condição de
necessidades. Vista da perspectiva da abundância, a extravagância
dela parecia uma forma de refinamento. Lowell sempre levara para
casa a parcela maior da renda familiar e, no íntimo, considerava a
“clínica” de Avery algo que estava apenas um passo além do clube
do livro para mulheres: era fofinho.
Na fase inicial dessa provação de Jó em East Flatbush, Avery
assumira uma postura que ele se sentia tentado a chamar de
chorona. Mas acontecera alguma coisa logo que o casal entristecido
abateu sua última garrafa de chenin blanc. Em um tributo ao choro,
depois que suas noites deixaram de ser chorosas, não mais se pôde
caracterizar o estado de humor dela durante o dia com esse
adjetivo. Avery pareceu haver tomado uma decisão consciente: ser
estoica, abnegada e heroica. De forma incrível, depois de haver
estabelecido um limite em viver sem papel higiênico, o que era
bastante razoável, sua esposa fanática por limpeza não fizera a
menor crítica à irmã quando Florence anunciara que eles não
poderiam continuar cortando roupas e lençóis velhos para limpar
suas partes pudendas porque estavam ficando sem tecido. E
imagine: Avery se oferecera para recolher os sacos com quadrados
de tecido usados nos dois banheiros, todo fim de semana, lavar
esses insalubres “guardanapos de bunda”, e recolocar pilhas de
quadrados limpos e fofinhos junto aos vasos sanitários! A mesma
mulher que, na primeira vez que tivera de andar em público sem
delineador, irrompera em prantos!
A dificuldade de Lowell não vinha tanto de viver com uma mulher
que ele já não reconhecia, o que talvez pudesse apimentar as
coisas. O que tinham, na verdade, era um problema de yin e yang.
Era como se Avery tivesse se apossado de uma cátedra exclusiva, a
do “Bravo Tipo Sobrevivente que Fica à Altura do Desafio Diante da
Adversidade e Descobre em Si Mesmo Aspectos de Valentia Antes
Insuspeitados”, e a única outra cátedra restante a ser ocupada por
seu marido fosse brutalmente rotulada de “Bebezão”. Com Avery
marchando de um lado para outro, atendendo às necessidades de
todos, remendando, cortando, buscando e lavando; pedindo a Kurt,
de quem nem sequer gostava, que comesse um pouco mais de
polenta, porque o suposto inquilino tinha uma aparência macilenta,
enquanto ela mesma não repetia a comida; exortando Kurt e Bing a
fazerem shows noturnos na sala de estar, sendo que os duetos de
sax e violino eram ridículos, sem falar no fato de que o saxofone de
Kurt a enlouquecia — tudo isso sem nem um vislumbre de
impaciência ou admissão de cansaço, sem nenhum reconhecimento
de que ela abominava morar naquela casa feia e apertada, com
pessoas cuja companhia tornara-se mais do que desgastante...
Bem. Alguém precisava acrescentar um toque de irritação a essa
serenidade infernal do Keep Calm. Gerar um ressentimento
respeitável, dar voz à indignação sem foco que impregnava o
ambiente como a fumaça de um jantar queimado, tudo isso também
era um trabalho a ser feito, assim como a incansável boa vontade
de Avery era um trabalho. Com semelhante abnegação, Lowell
assumira a tarefa menos glamorosa de lembrar aos demais que
aquilo era um porre, que tudo era um porre, que não era justo!
Savannah deveria ser caloura na Faculdade de Desenho de Rhode
Island, Goog deveria estar se candidatando ao MIT e Lowell deveria
estar dando palestras em Genebra. Lowell era, oficialmente, o mal-
humorado, o lamuriento, o rabugento, o Grinch, o resmungão, e se
entregava de corpo e alma a esse papel, com isso concedendo aos
demais o espaço para a virtude, a magnanimidade, a postura de
isto-também-passará. A diligente dispepsia dele possibilitava a
infernal bondade dos outros.
Não que ele recebesse algum agradecimento. Pelo contrário,
seus companheiros de moradia pareciam culpá-lo por toda essa
confusão. Mas escrever sobre a inflação não significa controlá-la.
Na verdade, ninguém, nem o Banco Central, dava ouvidos aos
economistas sobre coisa alguma. Os governos faziam o que lhes
convinha, e, nos governos de alta rotatividade das democracias
eleitorais, isso significava o que lhes conviesse na miopia do curto
prazo. Embora aquele pirralho sentencioso do Willing Darkly vivesse
tentando colocar o tio no papel de ingênuo, Lowell entendia muito da
divisão artificial entre os bancos centrais e os tesouros nacionais.
Obviamente, portanto, ao imprimir dinheiro como se não houvesse
amanhã — o que estava acontecendo, de certa maneira —, o diretor
do Banco Central estava fazendo o que o presidente mandava. Em
todos os sentidos, Alvarado estava se aproveitando daquilo com o
que a maioria dos eleitorados tende a antipatizar: um Estado
soberano pode, sim, fazer qualquer coisa. O golpe da moeda de
reserva, a Moratória, a recusa de Alvarado a entrar no jogo com os
valentões do bancor — tudo era política, e tinha pouquíssimo a ver
com economia. A próxima anta bobajenta que viesse com aquela
conversinha popular de que os economistas eram “os xamãs da era
moderna” ia ter a cara quebrada por Lowell.
Além disso, ninguém podia postular teorias acadêmicas
convincentes sobre a chegada fortuita de qualquer deus ex machina
— também conhecido como gente de fora do sistema fazendo
merda. O disparate do bancor era como ser atingido por um cometa.
Que a excelsa eminência do campo não tivesse previsto a
aniquilação cósmica não invalidava Keynes. (O fato de o próprio
John Maynard Keynes, por uma extravagância, haver cunhado esse
termo idiota, bancor, era vivenciado por Lowell como um tapa na
cara.) Além disso, onde já se ouviu falar de conceder empréstimos
em uma moeda e exigir que eles sejam pagos em outra —
especialmente uma que acabou de ser inventada?
A verdade era que não haviam provado que Lowell Stackhouse
errara a respeito de coisa alguma. Ele permanecia confiante que,
em um universo alternativo, os Estados Unidos poderiam ter
continuado a acumular uma dívida pública serena, em crescimento
regular, e ter mantido o freio nas taxas de juros, que haviam sido tão
baixas durante tanto tempo que, séculos atrás, padronizara-se a
prática de os bancos cobrarem tarifas pesadas pelo incômodo de
guardar o dinheiro dos clientes. A dívida é um motor do crescimento
e aumenta o bolo que será repartido por todos depois. Ora, imagine
um mundo em que você precisasse ter dinheiro na mão para
comprar uma casa: a classe média compraria uma casa lá pelos
oitenta anos de idade. “Não emprestes nem peças emprestado”:
esse era o lema de um público que se balançava em árvores. O fato
de Lowell evitar dívidas em sua vida pessoal era um problema
psicológico; na infância, talvez ele tivesse sentido incômodo por
acumular com os pais avarentos uma dívida implícita, que um
garotinho nunca poderia pagar, pelo simples fato de cuidarem dele.
É que, em termos filosóficos, ele confiava na dívida — na
alavancagem, para os sofisticados —, que, ao longo das eras,
adquirira uma fama injustamente maculada. Lowell não gostava nem
mesmo da palavra perdão, quando referida a uma dívida que tivesse
sido cancelada, porque implicava que empréstimo era um pecado.
Qual era o problema dos Estados Unidos neste momento? Não o
endividamento, mas a impossibilidade de tomar empréstimos: em
outras palavras, a falta de endividamento. Por mais temporário que
fosse, o país não podia comprar uma casa.
As posições ponderadas e tarimbadas de Lowell eram ainda mais
corajosas por serem impopulares. No entanto, naquilo que
funcionava como sua própria família, ele não era respeitado.
Embora até um economista relutasse em reduzir a vida inteira a
dólares e centavos, as pessoas reverenciavam o trabalho
remunerado. Neste momento, o trabalho mental não era pago. Nos
Estados Unidos de 2031, cientistas, acadêmicos e engenheiros
suportavam um status inferior ao dos santificados lavradores.
Veja bem: em agosto, o cunhado irresponsável de Lowell, Jarred,
deu uma corrida à cidade, com sua picape carregada de frutas e
legumes do seu rancho excêntrico em Gloversville. Tendo
ridicularizado esse projeto agrário retrógrado desde o começo, até
Avery tratou a chegada do irmão caçula ao Brooklyn como se fosse
o Segundo Advento, enquanto as crianças deram pulos altíssimos e
dançaram em roda, em uma agitação para a qual todas já estavam
grandes demais. Seria de se supor que nunca tivessem visto um
tomate. Não que a viagem do tio, saído do norte do estado, tivesse
sido motivada por generosidade familiar. Jarred doou aos parentes
umas batatas, algumas maçãs verdes e uns maços de couve, mas a
maior parte da carga estava reservada para a feira da Grand Army
Plaza, onde a extorsão dos preços era criminosa. Desde que os
lavradores conseguissem transformar o dinheiro rapidamente em
ativos fixos, como sementes, equipamentos e imóveis de
endividados, todo o setor agrícola desfrutaria de lucros acelerados e
abundantes.
Depois de perder a casa e os cartões de crédito, Lowell teve de
admitir que era exasperante: a depreciação do dólar permitira que
seu cunhado irresponsável e fanfarrão quitasse completamente,
sem esforço, o financiamento hipotecário e com juros fixos da
chamada “Cidadela”, além de quitar uma dívida contraída por
extravagâncias anteriores. Havendo ensinado a seus alunos da
Georgetown que a evaporação da dívida era um dos poderes mais
maravilhosos da inflação, Lowell ficou à vontade com a “injustiça”
macroeconômica a serviço da correção sistêmica. Devia ser uma
falha intelectual que ele não conseguisse instalar seu próprio dogma
em um nível afetivo particular: a injustiça microeconômica, em
contato íntimo e pessoal, chateava-o tanto quanto a qualquer um.
Em contrapartida, ele sentia alívio por seus amigos Tom Fortnum
e Belle Duval irem bem, ainda que as mensagens de fleX de Tom
para ele e de Belle para Avery enfatizassem o negativo, por
constrangimento. Pouco antes da Moratória, os pais de Belle tinham
se aposentado precocemente, quando ainda estavam bem de
saúde. Investindo os lucros de uma empresa iniciante de aplicativos
na década de 2000, tinham comprado um e-RV top de linha e faziam
planos para uma viagem pelo mundo. Resumindo, tudo que restara
tinha sido o carro, permanentemente estacionado na entrada da
garagem do casal. Mas todo infortúnio é relativo: ao contrário dos
parentes de Lowell em Carroll Gardens, pelo menos a mãe de Belle
ainda sabia a diferença entre uma escova de cabelo e um porco-
formigueiro, e os pais não precisavam morar dentro da mesma casa.
Os filhos de Tom e Belle estavam frequentando faculdades menos
renomadas, mas não ficavam flanando pelo porão bolorento da tia,
nem tampouco, pior ainda, rodando bolsinha na cidade para arranjar
uns trocados, como Avery dizia que Savannah vinha fazendo.
(Lowell não tinha a ilusão de que sua filha fosse virgem, mas o fato
de Avery confundir a experimentação descompromissada da garota
com prostituição... Francamente. A mãe linda, mas envelhecida,
com inveja da filha atraente — será que sua família não conseguia
inventar algo novo?) Resumindo: Tom trabalhava no Judiciário, e
quase todos os pacientes de Belle eram do Medicare. Quando
financiados por uma política monetária frouxa, os gastos do governo
atingem seu valor máximo ao serem feitos pela primeira vez; a
inflação alta só corroeria a renda de Tom e Belle quando a infusão
de papel-moeda se espraiasse pela economia mais ampla. Os
salários do governo e os valores de reembolso do Medicare
estavam atrelados a um algoritmo da inflação que não exigia
nenhuma ação adicional do Congresso. Mesmo que uma barra de
Snickers viesse a custar cinco bilhões de dólares, eles estariam
seguros.
Odiosamente, Ryan Biersdorfer e sua parceira, Lin Yu
Houseman, estavam mais do que seguros. Embora As correções
não pudesse receber os royalties dos antigos livros de capa dura,
Biersdorfer fora astuto e estabelecera um preço tão baixo para o
download que, para os compradores estrangeiros mais abastados,
dava muito trabalho procurar um exemplar pirateado, e de grão em
grão ia se somando uma boa grana. Em termos mais substanciais,
ele era muito solicitado no lucrativo circuito internacional das
palestras. Isso significava ser pago em bancores (sem dúvida,
através de uma empresa de fachada no exterior), e, intrigantemente,
a tal moeda se valorizava cada vez mais.
Assim, em vez de converter sua renda no exterior em dólares,
como era exigido para a repatriação, constava que Biersdorfer vinha
comprando imóveis em Paris, na Toscana, em Hanói e em Jacarta.
Qualquer americano que defendesse o colapso do seu país como
uma vingança merecida e uma promessa de renascimento socialista
era, no exterior, visto como um urso amestrado apreciadíssimo, já
que, em seu próprio país, a maioria dos concorrentes acadêmicos
sérios desse economista presunçoso não tinha como bancar
passagens aéreas. Os europeus ficavam fascinados com esse raro
ianque que fora autorizado a sair do país e, com isso, fazendo uma
confusão estúpida entre controles sobre o capital e controles sobre
o direito de ir e vir. (Pensando bem, talvez ter liberdade para ir
aonde se quisesse, desde que não se gastasse nenhum dinheiro lá,
quase equivalesse à prisão domiciliar.) Como também seria de se
esperar, nos últimos tempos Biersdorfer e sua asiática sensual e
puxa-saco passavam pouco ou nenhum tempo nos Estados Unidos,
o que parecia fazer de ambos os interlocutores ideais para explicar
ao restante do mundo o que acontecia por aqui.

***

Lowell não era obcecado com a masculinidade, mas era difícil o


sujeito ter de recorrer à cunhada para poder comprar um novo
hidratante labial e ser solicitado por ela a, por favor, usar um pedaço
de gordura em vez do creme. Assim, em outubro de 31, quando a
Georgetown finalmente depositou os salários atrasados referentes
ao verão retrasado, ele se sentiu revigorado: os vasos sanguíneos
se dilataram, as bochechas enrubesceram, as pontas dos dedos
formigaram. Decidido a ser um recurso valioso ao menos uma vez,
Lowell, com toda sua generosidade, ofereceu-se para fazer as
compras da semana.
Sacudiu calças e uma camisa elegante, ambos usados por
apenas dez dias desde a última lavagem. (A concorrência pelas
lavagens era feroz, e ele tendia a ceder à pobre Savannah as duas
peças que eram permitidas a cada residente.) Em um gesto
magnânimo, encheu o tanque de gasolina do Jaunt até a borda. Em
frente à Green Acre Farm, deleitou-se com a facilidade de
estacionar, já que poucos moradores do Brooklyn podiam arcar com
o custo de dirigir automóveis. Cruzando a entrada com desenvoltura
e assobiando, constatou que sua postura melhorara, e essa foi a
primeira vez que ele se deu conta de que ela se deteriorara. Seus
mocassins de camurça cor-de-rosa podiam estar com umas
manchas aqui e ali, mas ainda atraíam olhares de longe. Lowell
sentiu-se homem, um homem de verdade, pela primeira vez em
meses — uma sensação espantosamente baseada nos bolsos da
calça estufados por maços de notas presos com fitas de papel.
Embora ainda não houvesse estoque de produtos importados, a
escassez de produtos americanos do ano anterior dera lugar à
escassez de renda. Agora era possível comprar ovos, brócolis e até
carne — desde que se pagasse por isso. Encorajado pelo depósito
liberado apenas naquela manhã, Lowell se recusou a consultar as
etiquetas de preço rabiscadas e comprou tudo que queria. Era
assim que os homens faziam compras. O carrinho onde os itens se
amontoavam atraiu ainda mais olhares invejosos do que os
mocassins cor-de-rosa.
Depois que o último item da montanha de compras passou pelo
caixa — de onde foram retiradas todas as confiantes máquinas de
serviço automáticas, já que o furto se tornara por demais aceitável
na sociedade —, Lowell petrificou-se. Com as mãos nos bolsos
recheados, teve de pedir que a moça repetisse o total da conta; a
segunda repetição dela foi debochada. Então, era por isso que Ellen
Packer cedera à pressão quando mais uma vez ele a ameaçara com
um processo: os salários atrasados de uma das universidades mais
importantes do país, que deveriam cobrir quatro meses desse
emprego prestigioso, já não bancavam mais um tanque de gasolina
e mantimentos para uma semana.
Lowell muniu-se de sua indignação mais teatral e marchou com
frieza para fora do mercado, deixando os funcionários subalternos
devolverem as mercadorias para seus lugares. Essa saída em
grande estilo significou sacrificar as sacolas de compras de lona,
onde já tinha sido colocado o filé de fraldinha, e ele com certeza
levaria uma bronca de Florence por isso. O mínimo que podia tirar
dessa humilhação era a vaga no estacionamento, e, assim, deixou o
Jaunt onde estava e se aventurou mais adiante pela avenida Utica.
Não seria aceitável voltar de mãos vazias. Ele poderia comprar
mantimentos suficientes para os dois dias seguintes no Quickee
Mart da rua Foster.
— Me arranja um trocado.
Uma olhada rápida e de esguelha para o rapaz de barba por
fazer e cabelo seboso revelou que ele usava o mesmo tipo de paletó
estilo túnica, sem gola, com que Lowell parecera tão atraente em
seu último ano na Georgetown. O sujeito tinha chegado tão perto
que sua manga roçou no braço de Lowell.
— Não, obrigado — disse ele, de maneira meio idiota, olhando
fixo para a frente e com o andar rígido.
— Bonito sapato, parceiro.
O elogio veio do lado oposto, quando um segundo cavalheiro mal
lavado roçou o outro braço. Lowell notara esses dois rapazes perto
dele no supermercado, onde haviam apanhado costeletas de
carneiro a esmo e tornado a colocá-las no lugar. Como não tinha
nascido ontem, inferiu algum tipo de trambique. No entanto,
demorou um pouquinho demais para registrar que os rapazes
brancos que o ladeavam não eram vigaristas, mas assaltantes.
Embora não houvesse mais ninguém assistindo a esse momento de
incorrigível burrice, a compreensão lenta fez com que Lowell se
sentisse envergonhado perante ele mesmo. Não deveria ter sido
preciso ver a faca para entender.
Uma simples faca de cozinha, mas de excelente qualidade, uma
daquelas de aço alemão de que sua mulher comprara um jogo
completo, tudo abandonado em sua ignominiosa e apressada saída
de Cleveland Park. Não era a faca do chef, mas a utilitária — era
assim chamada pela lista do conteúdo do conjunto — que estava
apontada para a barriga de Lowell. Puxa, parecia mesmo muito útil.
Talvez a rotina da dupla estivesse tão bem estabelecida que os
entediasse, já que, em vez de se concentrarem na tarefa que tinham
em mãos, os novos amigos de Lowell puseram-se a conversar sobre
um fundo de investimentos exclusivamente agrícola que vinha
obtendo improvável sucesso, além de lamentarem o fato de o sushi
bar favorito, na rua Liberty, Lower Manhattan, ter fechado. Se eles
tinham sido mesmo caras de Wall Street, a transição de uma forma
de roubo para outra só podia ter sido tranquila. Mantendo a vítima
bem espremida entre eles, enquanto o segundo sujeito lhe
encostava a ponta da faca logo abaixo das costelas, os homens o
conduziram para a avenida D e subiram a East 49th Street. Nem
precisavam ter se incomodado em sair da rua principal; os outros
pedestres prestaram tanta atenção ao luzir daquela lâmina ao sol
quanto atentariam para o brilho de um espelho retrovisor. Os
acompanhantes de Lowell o empurraram pelo portão de um jardim
com mato alto e chutaram-no para cima de um aglomerado de
urzes. Teriam um desempenho melhor que de praxe com esse
roubo, se bem que, ao esvaziar os bolsos, Lowell nunca tivesse se
sentido mais feliz por ver que a Reserva Federal dos Estados
Unidos degradara os maços de notas lacrados à condição de um
material isolante bonito e verde.
Piorou quando acharam o fleX dele, escondido no pé esquerdo
do mocassim. Pior ainda foi terem encontrado porque levaram os
sapatos. Secando as gotas de sangue das faces arranhadas pela
urze e capengando de volta para a Green Acre Farm, de meias, ele
ensaiou a gratidão que frisaria na volta à casa dos Darkly: graças a
Deus resolvera andar até o Quickee Mart, por isso os ladrões não
tinham levado o carro.

***

— São só objetos — disse Willing, paciente. — Você está


confundindo os objetos com o significado deles para você. Com os
objetos, a gente pode pegar o significado de volta. Eles voltam a ser
coisas vazias. Cuboides. Cuboides pesados que tomam muito
espaço.
Estavam no sótão, onde apenas Willing era admitido. Esse era o
cômodo mais quente da casa, o que não significava muita coisa.
Embora a altura fosse restrita, sua tia-avó controlava mais metros
quadrados para uso pessoal do que qualquer outra pessoa.
Ninguém reclamava, porque ela era também a única residente, além
da mãe dele, que contribuía para a modesta economia da família.
Ele não sabia direito como isso acontecia, afora os saques da
pensão previdenciária, um estipêndio modesto demais para explicar
a generosidade de Nollie. Willing não sabia quanto restava à tia-avó
nem de onde vinham os recursos. Mas é claro que ficava
interessado. Nollie era a única que não gastava seu dinheiro o mais
depressa possível antes que virasse cinza. No entanto, ele não
acabava. O que também era interessante. Mesmo assim, ela era
muito exigente a respeito daquilo pelo qual se dispunha a pagar.
Tinha de ser algo absolutamente necessário.
— Eles não são “cuboides” — objetou Nollie. — São o trabalho
da minha vida.
Ela estava enroscada em seu colchão como uma criança. Os
cadarços dos tênis tinham arrebentado e sido repetidamente
remendados com nós. O volumoso suéter vermelho era grande
demais. Ela estava de luvas, embora todos usassem luvas dentro de
casa. Luvas eram o que Avery deveria ter comprado na Walgreens.
Nas de Willing, os dedos estavam esburacados.
— Tem feito frio — comentou ele, falando devagar e com clareza.
Era preciso lábia para persuadi-la. — E ainda estamos em
dezembro. Vai esfriar mais. O gás é muito caro para ser usado
durante o inverno inteiro, então temos que economizar para as
emergências. Emergências médicas. Enquanto isso, precisamos
nos manter aquecidos e cozinhar com aquele tambor de óleo lá nos
fundos. A neve já cobriu o cemitério e o parque, mas, seja como for,
os dois já foram depenados de toda a lenha. Mesmo que
achássemos alguma, os gravetos estariam molhados. Você pode
ajudar.
Ela estava de mau humor.
— Queimar livros é o fim da civilização.
— Todos os seus livros estão disponíveis na internet.
— As versões pirateadas.
— A pirataria é um elogio.
— Desculpe se não fico embasbacada.
— Os seus exemplares. — Ele estava disposto a arriscar a sorte.
— Eles dizem a mesma coisa várias vezes. Você tem caixas e mais
caixas dos mesmos livros.
— Eu guardo para dar a amigos especiais. Eles nunca mais
serão impressos.
— Porque foram produzidos num formato obsoleto — disse
Willing. — A maioria dessas pessoas “especiais” veria um presente
desses como um fardo. Elas o levariam para casa e o queimariam
num tambor de óleo.
— Quer dizer que, se eu te desse um dos meus livros, você
marcharia lá para baixo e o queimaria.
— Sim — respondeu ele, firme.
— Você nunca manifestou o menor interesse pelo meu trabalho.
— Ela pareceu irritada.
— Não — confirmou Willing. — Depois, talvez, quando tivermos
deixado isto para trás.
— Haverá um “para trás” disto?
— Não se sabe, é discutível — admitiu ele. — Mas agora não é
hora para romances. Nada inventado é mais interessante do que o
que está de fato acontecendo. Estamos dentro de um livro.
Ela pareceu gostar disso.
— Você é meio velha — disse ele, e se emendou depressa —,
mas não um monstro de velha. Digo, você está super em forma.
Todos aqueles polichinelos. Ninguém diria que você tem setenta e
quatro anos.
Era um elogio puramente formal para os baby boomers. Devia
erguer a bandeira vermelha para todos dessa geração: era óbvio
que o puxa-saco que os paparicava com elogios convencionais
queria alguma coisa. Mas sempre funcionava.
— E você não vive no passado — continuou Willing. — É uma
das coisas das quais eu gosto a seu respeito. Você parece estar
acompanhando mais a trama do que os outros. Do que Lowell, que
não soube esconder o fleX num lugar mais inteligente do que o
sapato. Ou Avery, devaneando sobre como era relapso encomendar
mantimentos pela internet. Eles não entendem. Você parece que
sim. Talvez seja por causa de todos esses livros que escreveu.
Talvez você esteja acostumada a ficar um passo atrás, de olho no
quadro mais amplo, visando o capítulo final. Por isso, agarrar-se a
esses livros de capa dura, de formato antiquado, quando
precisamos deles para cozinhar o macarrão... não parece uma coisa
que você faria.
Willing sentiu que ela estava cedendo. Foi um alívio. Não queria
levar as caixas à força.
— Meu pai ficaria horrorizado com a sua proposta, sabe?
Queimar livros é a antítese de tudo que os Mandible representam.
— Mas tudo que existe de importante nesses livros está seguro
— respondeu ele. — As palavras não queimam. Elas vivem para
sempre na internet.
— Desde que haja internet.
Os dois pensavam da mesma maneira. Ambos estavam vivendo
em um mundo provisório. O solo era sempre instável. Para Willing, a
instabilidade mantinha a flexibilidade. Tonificava seus músculos em
busca de equilíbrio. Era como ter pernas de marinheiro em terra,
habituadas ao balanço.
— E além do mais, você vai morrer — disse ele. — Quando não
estiver mais aqui, você não vai se importar se alguém lê o seu
trabalho. Não vai se importar em saber se liam o seu trabalho nem
quando você estava viva. Isso é o que há de genial na inexistência.
Não é que a pessoa não se importa. Não é como se ainda sentisse
alguma coisa, mas ficasse apática. Ela simplesmente não tem como
se importar. Não há ninguém para dar importância a nada. Por isso,
você não vai se importar com “os Mandible” nem com o que eles
representavam. Os Mandible serão a mesma coisa que qualquer
outra família. O mesmo que pedras, ou partículas de poeira, ou o Taj
Mahal, ou a Declaração de Direitos de 1689, ou o Teorema de
Pitágoras. Porque você não será mais uma “Mandible”, e não vai
saber o que é um “Mandible”.
De algum modo, ele tinha girado a chave.
— Tem razão — disse Nollie, com ar insolente. — Quando eu
bater as botas, essas caixas serão mais lixo para descartar, oui?
— Oui. Mas agora podem servir a um objetivo.
— Só sob uma condição — retrucou Nollie, levantando uma caixa
com a etiqueta “O extasiado, MM CB, Húngaro”, em uma
demonstração de força. — Não toque no material descartado.
Quando ele informou ao resto da família, lá embaixo, que Nollie
estava disposta a sacrificar os livros para preparar a refeição
noturna, mas insistia em guardar os manuscritos, Avery e Florence
se escangalharam de rir. Piada era uma coisa difícil de achar.
— Dá para acreditar — disse Avery, baixando a voz o suficiente
para não ser ouvida no sótão — que ela ainda tem esperança de
que esses papéis sejam comprados por alguma biblioteca
universitária esnobe? Quer dizer, qual biblioteca universitária? Qual
universidade? Estão todas indo por água abaixo! Isso serve para
mostrar — acrescentou, com um olhar significativo para o marido —
que a última coisa a ir embora é o ego.
Embrulhado em um cobertor na cozinha, com ar carregado,
Lowell lançou um olhar furioso para sua mulher e disse:
— Ainda é vital manter instalações de alto nível para pesquisas
eruditas. Seria mais do que justificado proteger esses manuscritos
se essa mulher insuportável tivesse algum valor.
Embora produzissem muita cinza, os livros queimaram bem.
Nollie não tardou a descer, retirar com firmeza Esteban, que estava
manifestando um prazer pouco diplomático, dessa tarefa e insistir
em alimentar pessoalmente o tambor de óleo com as brochuras.
Quando pegou o jeito da coisa, pareceu se divertir. Devia haver algo
de emocionante em imolar os próprios objetos de apego. Prova de
fogo. Era a expressão. Ao se produzir vidro com muito calor, ele fica
mais forte. Willing avaliou sua tia-avó, com o rosto avermelhado
pelas chamas. Parecia empolgada. Estava tendo um acesso de
têmpera. Isso é que era exercício de verdade, melhor que os
polichinelos. Quando ela terminasse de jogar Cinza, O freelance,
Vantagem contra, Do berço ao túmulo, A santa de Glengormley e
Família virtual no tambor, estaria mais forte.
Uns torrões bruxulearam à luz do fogo, e Willing lançou um olhar
pesaroso para a terra estragada do seu acanhado quintal, tentando
aprender a mesma lição. Durante toda a primavera e o verão, ele
cuidara de suas pequenas culturas — batata, tomate, cebola,
vagem. Usara só o tantinho suficiente de água nas plantas, durante
os períodos de estiagem, para que cultivar os produtos não saísse
mais caro do que seu preço final. Tinha se permitido sentir afeição
pelos vegetais pequeninos, à medida que se desenvolviam — um
erro, de modo geral. Afora um único tomate e uma panela de
vagem, a colheita fora roubada. Uma quadrilha fizera uma investida
na horta tarde da noite e depois pisoteara as plantas. A destruição
tinha sido proposital. Ele desconfiou de alguém da escola. Ainda
frequentava a Obama High, para obter informações — típica
espionagem. Outros alunos também deviam estar bisbilhotando com
base nos boatos. Talvez ele tivesse mencionado a horta alguma vez,
e já devia saber que isso não era inteligente.

***

Ninguém deu a mínima para o Natal. No seu aniversário de


dezesseis anos, em janeiro de 32, a mãe de Willing fez um bolo de
papelão.
Foi pouco depois disso que ele deparou com a mãe debruçada
sobre sua cômoda no quarto, lá em cima. Já tinha feito uma busca
furiosa na cozinha.
Antes da Grande Moratória, eram muitas as noites em que sua
mãe ou Esteban se afligiam por não haver “nada para comer”.
Willing sempre soubera o que queriam dizer com isso: Esteban
esquecera de descongelar os hambúrgueres de frango. Ou, depois
de um dia exaustivo na Adelphi, a mãe estava ficando sem ideias
para preparar uma refeição que eles já não tivessem comido três
vezes naquela semana. Dessa vez, porém, não havia nenhuma lata
de abacaxi em calda espreitando no fundo da despensa, nem
tomates italianos sem pele, prontos para se fazer com eles um
molho à bolonhesa sem carne. Não havia um pacote de milho
semiusado e congelado em um canto escondido do freezer, nem um
pacote há muito rejeitado de linguiça de porco, ressequida porque a
embalagem se rasgara. As latas ao lado do fogão já não estavam
cheias até a borda de farinha de trigo, açúcar e fubá. Nos armários
faltava arroz, cuscuz e cereais para fazer kasha. Sua mãe havia
parado de descartar os alimentos que haviam passado do “prazo de
validade”, política que ela agora ridicularizava. Por isso, não se
tratava de relutar em abrir uma lata de ensopado que já vira dias
melhores. Não havia lata. Willing sentiu-se parcialmente
responsável — seus furtos discretos na vizinhança haviam colhido
pouca coisa nos últimos tempos; no clima vigente de desconfiança,
os donos das casas tinham aperfeiçoado suas medidas de
segurança — e não existia comida alguma na cozinha, nenhuma,
em lugar nenhum, de nenhum tipo.
Uma questão diferente, mas longe de não estar relacionada, era
que também não havia dinheiro. Era fim de mês; como de costume,
eles já tinham gastado o salário de Florence. Nollie saíra para
encontrar um antigo namorado no Queens, e a mãe de Willing se
recusava a vasculhar as coisas da tia à procura de dinheiro. Isso
seria roubo. Fazia semanas que Esteban não conseguia trabalho
como diarista. Até o momento, Avery não conseguira despertar o
interesse dos vizinhos na compra ou troca de seu estoque de kits
para tratamento de fungos nas unhas dos pés, dobradiças de porta,
ou espuma para vedação de telas em janelas e portas — em várias
larguras diferentes.
É claro que, para os corretores profissionais da bolsa de valores,
o dinheiro sempre fora imaginário — só uma noção, tão fácil de
aparecer e desaparecer quanto os pontos de um videogame.
Assalariados como a mãe de Willing achavam que o dinheiro era
uma coisa de verdade. Visto que o trabalho era real e o tempo era
real, parecia inconcebível que aquilo em que se convertiam o
trabalho e o tempo fosse fino como um véu. Haviam prometido que
eles poderiam armazenar o trabalho e o tempo para depois trocá-
los, nem que fosse pelo trabalho e o tempo de outras pessoas. Mas
o dinheiro era apenas um conceito, e a maioria das pessoas não
compreendia que as forças naturais também atuavam no campo do
abstrato: evaporação, inundação, fogo e erosão; infiltração,
vazamento e deterioração. A maioria das pessoas gostava da
perspectiva de justiça e confundia o que apelava a elas com o que
estava disponível.
Assim, a mãe de Willing derramara um pote cheio de moedas que
se haviam acumulado durante anos em sua cômoda. Estava
separando febrilmente as moedas de um, cinco, dez e vinte e cinco
centavos, depois montando-as no que pareciam ser pilhas de dez. A
cena entristeceu Willing. Não apenas o desespero de sua mãe, mas
as moedas em si. Quando ele era pequeno, uma torre de moedas
de vinte e cinco centavos parecia preciosa. Alguma coisa no caráter
do metal — duro, brilhante, pesado e imutável — sempre dera a
impressão de que as moedas eram mais valiosas, mais substanciais
do que as cédulas de papel. O pote na cômoda de sua mãe reluzira
como um tesouro que se pudesse desencavar em um baú
enterrado, ou içar para a superfície, usando polias e mergulhadores,
dos destroços de um naufrágio. Quando mais novo, ele tinha
andado pelas ruas com um dos bolsos da frente cheio de moedas, o
peso puxando a calça jeans para baixo desse lado, e batendo em
sua coxa. Já na escola primária ele sabia que a nota de cinco no
outro bolso valia mais que as moedas. Mas era o balanço, o peso
pendurado do cobre, do níquel, da prata e do estanho, que o fazia
sentir-se rico.
Agora, uma moeda era um mero disco, como uma ficha de
plástico de um jogo infantil — uma curiosidade histórica, já que não
mais se cunhava dinheiro de metal. Os trocados que sua mãe
estava separando feito uma louca eram uma porcaria, e o projeto
dela era burro. Depois de gastar uma hora nessa tarefa, ela teria
sorte se juntasse dinheiro suficiente para uma lata de Coca-Cola.
Willing correu a mão pelas pilhas da mãe e derrubou as torres. As
moedas se espalharam com estardalhaço pelo chão e se juntaram
embaixo da cama. Ele se surpreendeu. Seu gesto estava carregado
de raiva. Raras vezes ele se permitia sentir isso e ficou perguntando
a si mesmo de onde a raiva teria vindo.
— Que diabo foi isso? — gritou a mãe. Ele desejou que ela não
se ajoelhasse daquele jeito e não saísse catando moedas entre os
tufos de poeira. Não era digno. Ninguém se abaixava para pegar
uma moeda de vinte e cinco centavos na calçada. — Agora vou ter
que começar tudo de novo.
— Você está desperdiçando tempo.
Willing pegou uma meia da cômoda de Esteban e conferiu se não
tinha furos. Encheu-a com punhados de moedas, até a meia ficar
pendurada como ficava seu bolso na infância. Depois, deu-lhe um
nó acima das moedas.
— A Green Acre não vai aceitar isso — disse a mãe. — Só
aceitam moedas contadas e embaladas em tubos.
— Já ouvi falar em fazer um pé de meia — disse Willing,
balançando o pêndulo e batendo com as moedas na palma da outra
mão. — É disso que estavam falando?
Levou o braço atrás para dar impulso, lançou a meia e acertou a
bola de metal na moldura da porta do quarto. O som do estalo foi
alto. As moedas amassaram a madeira.
Sua mãe pareceu assustada.
— Dá uma boa arma — explicou Willing. — Uma arma vale mais
do que qualquer coisa que este lixo possa comprar.
— Você está mudando — disse ela.
— Estou me adaptando — retrucou ele.
— Pare de se adaptar.
— Os animais que não se adaptam morrem.

***

— Me dá a bolsa. — Ele falou em tom gentil, com um toque de


tristeza. O garoto não podia ter mais de dez ou onze anos. Pelo
menos era branco, o que tornaria a coisa mais fácil.
Estavam na East 52nd Street, uma rua de pouco movimento, a
dois quarteirões da Green Acre Farm. Como sempre, a calçada
estava empestada de fezes humanas. Era interessante a rapidez
com que se identificava o rastro da própria espécie.
— Não posso. — Intimidado contra uma cerca, o menino apertou
a sacola de lona contra o peito. Alguém devia tê-lo mandado fazer
compras para o jantar. Era franzino e ruivo, com um toque franzido
de desconfiança e medo no rosto que, em poucos anos, se tornaria
permanente. Seu casaco era fino demais para o clima que fazia. —
Vou me encrencar.
— Me dá a bolsa agora — retrucou Willing, batendo com a meia
na palma da outra mão, como fizera no quarto da mãe. Para ele, e
também para o menino, era um movimento hipnótico. — Senão você
vai se encrencar mais ainda.
O garoto deu uma olhada para um lado e outro da rua. Estava
longe de ser movimentada, mas também não estava deserta. Os
dois haviam parado em frente a uma casa, de onde alguém espiou,
depois fechou a cortina. Quando o olhar do menino se encontrou
com o de uma mulher mais velha, mais adiante no quarteirão, ela
deu meia-volta e foi andando depressa na direção oposta. Agora era
assim.
O garoto começou a correr, mas ele tinha quase dado a entender
que o faria — uma olhadinha súbita e febril em direção ao lado para
o qual ele planejava disparar. Isso deu a Willing tempo para agarrar
seu braço. O contato foi chocante para os dois.
— Está bem, está bem! — lamentou o menino.
Ele estendeu a bolsa com um gesto solene, como uma oferenda.
Willing o soltou. Com mais uma olhadela para a meia, aquele dedão
pendente em um balanço preguiçoso na mão direita de seu
torturador, a vítima correu.
Willing examinou os mantimentos. Um refresco com sabor
artificial de cereja, pão-de-ló do tipo que esfarelava, pão branco para
sanduíche, meio quilo de hambúrguer gorduroso. Gorduroso era
bom. Gorduroso tinha mais calorias. No conjunto, o produto do
assalto era precário e não era do gosto da sua mãe, mas eles não
passariam fome. Engraçado, Willing não achara que as moedas da
cômoda de sua mãe pudessem comprar nada que se aproximasse
de um jantar, mas haviam comprado.
No começo, torceu para que Savannah estivesse em casa nessa
noite, para que a intimidação banal que ele praticara fosse vista
como bravura. Esse era o tipo de aventura que impressionava as
garotas. Mas ele não poderia se gabar, porque depois isso soaria
idiota aos seus próprios ouvidos e chegaria aos de sua mãe. A
habilidade mais útil que ele dominara na infância era ficar de boca
fechada. Aos dezesseis anos, essa aptidão era mais difícil de
sustentar.
Enquanto voltava para casa com seu butim, a emoção do
sucesso foi silenciada por melancolia. Em suas façanhas anteriores,
ele evitara verbos ligados ao roubo; as reservas guardadas em
quintais tinham sido confiscadas, atacadas ou tributadas. Mas essa
forma de pedir aos vizinhos uma xícara de açúcar tinha um jeito
diferente, e Willing soube que havia ultrapassado um limite. Outras
pessoas também o cruzariam, mais adiante. Outras, ainda, o haviam
ultrapassado já fazia tanto tempo que o perderam de vista e já não
havia limite algum.
Assim, no jantar — um pingo de carne moída, duas fatias de pão
para cada um, empapadas de gordura —, Willing anunciou:
— Precisamos de uma arma.
— Você ficou louco? — exclamou sua mãe. Ele queria deixá-la
esbravejar, soltando sua previsível indignação, mas ficou entediado.
— Não teremos arma nenhuma nesta casa. Não confio em armas.
Quase sempre é o dono desse troço desgraçado que leva um tiro.
Para que diabos precisaríamos de uma arma?
— Para nos proteger — disse Willing — de gente como eu.
• CAPÍTULO 13 •

AGLOMERAÇÃO CÁRMICA II

Filosoficamente, Carter admitia que a vida humana era sagrada.


Também admitia que, neste país, todos os homens — e igualmente
as mulheres, em tempos mais esclarecidos — “nascem iguais”, se
bem que, como homem instruído e de temperamento mais
competitivo do que seu pai jamais reconhecera, sempre tinha
achado essa afirmação otimista. Tudo bem, ele sabia o que a
Declaração de Independência queria dizer de verdade — não que
todos eram bons em matemática, mas que todos tinham os mesmos
direitos. Logo, até Luella Watts Mandible gozava do direito à vida, à
liberdade e à busca da felicidade — sendo o primeiro item o mais
vital dos três, já que ele e Jayne lhe estavam negando a liberdade,
com toda certeza, e que, se algum dia ela saísse em busca da
felicidade, esqueceria em sessenta segundos o que estava
procurando e voltaria para casa segurando uma pastinaca. Carter
podia acreditar que, em algum lugar das profundezas daquele
emaranhado de paranoia rimada na cabeça da madrasta, restava
um pequeno vislumbre, um remanescente infinitesimal — menor do
que uma ervilha, menor até do que um milho de pipoca — da
graciosa, deslumbrante e sedutora, negra apenas no sentido de
exótica, mas confortavelmente branca em todo o resto, que falava
bem e roubara o coração de seu pai em 1992; se bem que ele
mesmo não conseguia localizar um pingo daquela femme fatale.
Teoricamente, o que estava em questão no cuidado diário
compassivo e respeitoso dedicado a uma mulher que, sem
nenhuma culpa, PERDERA COMPLETAMENTE A PORRA DO JUÍZO, e não
passava de UMA CONCHA QUE MIJAVA, CAGAVA E BERRAVA, não era apenas
o conforto físico, o sentimento de autoestima e de segurança
psíquica da enfermaria deles, mas talvez, o que era mais
importante, sua própria humanidade; era óbvio que a medida exata
de uma sociedade estava em sua maneira de tratar seus cidadãos
mais vulneráveis, de modo que, para Carter, salvar sua alma e
representar o que havia de melhor em um americano de verdade,
era claro que ele estava fadado a ter arruinados TODOS OS DIAS e
TODAS AS NOITES de TODA A FILHA DA PUTA DA VIDA QUE LHE RESTAVA.

Talvez a paciência dele, calma, atenciosa, racional e progressista,


tivesse limites. Pertencendo à primeira geração de homens
americanos que haviam contribuído com sua parte no trabalho
doméstico, Carter já trocara as n milhares de fraldas que planejara
trocar, e pelo menos suas filhas pequenas não o tinham mordido
durante esse processo. No entanto, Deus nos livre de seu pai se
dispor a dar uma mãozinha. Douglas abraçara uma passividade tão
perfeita que ninguém diria que ele tinha alguma ligação causal com
a presença daquela criatura na casa deles.
Usando aquela situação difícil para fortalecer o um-por-todos-
todos-por-um do casamento, Carter e Jayne se reuniam na cozinha,
somente os dois, antes de se deitar, no precioso intervalo que
antecedia o momento em que chegavam os “pavores noturnos” de
Luella, quando a madrasta começava a gemer alto. Juntos, cada um
tomava um pequeno cálice de vinho do porto. Símbolo de dias
melhores, essa extravagância comedida ajudava a preservar a
sanidade de ambos. (Alguns luxos tinham sido facilitados pela
venda do BeEtle — um mero estorvo, agora que eles nunca iam a
lugar nenhum, e um risco, dado que a polícia podia ter abandonado
a investigação de furtos em residências, assaltos e homicídios, mas
estava mais rigorosa que nunca na emissão de multas por violações
das regras de estacionamento em lados alternados da rua, porque
geravam renda.) O casal sempre acendia uma vela e apagava a luz
do teto, criando um simulacro de ambiente romântico. Como em um
ritual, esgotados, compartilhavam as indignidades do dia.
Mesmo assim, Jayne o culpava — as visitas vitalícias em sua
casa eram parentes dele —, e saber que não devia culpá-lo só fazia
enterrar o ressentimento em uma camada emocional instintiva mais
profunda, na qual atingia seu nível mais virulento. Da mesma forma,
Carter não conseguia impedir-se de ficar furioso quando Jayne
levantava as mãos, lembrava-lhe o empenho com que os médicos
haviam desaconselhado que ela fosse submetida ao “estresse”,
recolhia-se ao seu Quarto Silencioso e trancava a porta — surda
para as proclamações do marido de que agora haviam entrado em
uma era rigorosa da cultura americana em que todo aquele
palavrório sem propósito sobre transtorno do déficit de atenção com
hiperatividade, intolerância ao glúten e animais que dão apoio
afetivo voara pela janela.
Contudo, o alvo principal de sua animosidade não era sua
esposa, mas a própria Luella. Mesmo quando um dia ela estivera de
posse de todas as suas faculdades, Carter nunca sentira muita
afeição pela criatura. Aquele porte flutuante e esbelto que ela
cultivava, suas maneiras hipercivilizadas, sua dicção precisa
demais, ele nunca se deixara levar por nada daquilo. Todo o
estratagema de Luella tinha sido uma construção artificial, e agora,
Carter acreditava, despido esse refinamento superficial, revelava-se
a verdade. No fundo, ela sempre fora um animal traiçoeiro, astuto,
ganancioso, ferozmente decidido a conseguir o que queria;
desconfiados dos outros, por serem calculistas, os maquinadores
egocêntricos sempre presumem que todas as outras pessoas são
iguais a eles; sagazes, mas não muito inteligentes. Carter não se
surpreendia com o fato de que, uma vez liberada a mente de Luella,
ela produzisse essa baboseira rimada.
Ele também achava revelador que o único tipo de alimento que
Luella comia sem que lhe fosse enfiado goela abaixo era qualquer
coisa abarrotada de açúcar. Em seu apogeu, ela dizia não gostar de
doces, uma fachada que combinava com sua figura de modelo. Fora
só acrescentar umas placas de proteína e alguns micro AVCs
àquela montagem mesquinha de oportunismo predatório, e eis que
havia aparecido uma predileção por doces de proporção absurda.
Luella também nunca havia gostado de Carter. Não o achava
marcante. Um dia ele a entreouvira conversando com Douglas em
aflição pelo fato de o único filho dele não haver herdado mais do
esprit e da joie de vivre do seu marido. Mas a verdadeira razão de
ela não ficar à vontade com o enteado era que Carter sacava a sua
jogada. Luella era uma fraude, uma alpinista social que desde o
começo tramara para se casar com Douglas só para sobreviver a
ele e herdar sua fortuna; assim, quando enfim viera à tona que
Luella partira para a terra da fantasia aos cinquenta e tantos anos,
Carter achou que era a melhor notícia que tinha ouvido em todo
aquele dia. Mas agora a vingança revelava um efeito de
bumerangue. Luella parecia ter se depositado à porta dele de
propósito, como quem dissesse: Pronto. Você queria a Luella de
verdade? Bem, esta é ela. Está satisfeito?
Outro fato que também não ajudava era Luella ser agora uma
bonequinha babona que substituía a verdadeira mãe de Carter —
cujo desaparecimento, no charco anônimo de assassinatos e
pessoas desaparecidas que havia em Manhattan, já o privara de
qualquer luto formal pelo falecimento materno. Apenas três anos
antes, a morte daquela portentosa usina de angariação de fundos
para instituições de caridade teria ocasionado um dos funerais mais
badalados do ano. Embora enfim tivessem verdadeiramente se
tornado necessárias, quase todas as instituições beneficentes
haviam fechado nesse meio-tempo, e o tipo de evento de gala que
Carter imaginava, cheio de celebridades, era algo de que não se
tinha notícia. Nenhuma pessoa com um tostão deixaria de desprezá-
lo.
Carter não via sentido em disfarçar isso de si mesmo: queria que
Luella morresse. Embora não pudesse esganá-la com as próprias
mãos, no seu Além da imaginação pessoal ele cometeria o crime
pela força da mente e despacharia a diabinha para o milharal sem
causar escândalo. Isso porque, apesar de todo aquele papo de que
as pessoas que sofriam de demência “ainda eram capazes de sentir
alegria” e “ainda tinham valor como seres humanos”, ele não
detectava alegria alguma em sua tutelada, e a família estava longe
de patrocinar os corais animados e os imaginativos projetos de artes
manuais das clínicas de repouso apocrifamente estimulantes. E,
liberal ou não liberal durante a vida inteira, ele se aproximava cada
vez mais da visão de que, para ter “valor” como ser humano, a
pessoa precisava ser de alguma utilidade terrena para mais alguém.
Pelo menos Carter não desejava também a morte do pai. Uma
vez que a relação dos dois estava descontaminada de motivos
ocultos, Carter continuava a sentir uma sólida afeição por ele, na
qual nunca confiara quando ela prometia pagar bem demais. A
penúria no fim da vida também tinha confirmado que o caráter do
seu pai transcendia os drinques. Ah, Douglas esbravejava como os
melhores da sua classe, mas finalmente acolhera o rebaixamento do
estilo de vida com surpreendente compostura. Desde que o
mantivessem abastecido de nicotina líquida, ele raramente se
queixava. (Nesses tempos esfaimados, os sabores mais novos do
tabaco eletrônico eram muito nutritivos: peru recheado e com molho,
ou presunto caramelado com chutney de cebola roxa.) Só a
repetição é que se tornara insuportável: se Carter ouvisse mais uma
vez os três critérios de uma moeda funcional, seria capaz de gritar.
Afora isso, Douglas se adaptara com tranquilidade a ler livros
digitais e ver muita televisão.
E era justamente disso que ele se ocupava no seu quarto do
terceiro andar, na tarde de 7 de março de 2032. Douglas andava
obcecado com a aproximação da eleição presidencial e, nesse mês,
assistiria às primárias no Texas e na Flórida, entre outras — estados
de maioria lat, que poderiam ajudar o ocupante do cargo. Claro que
os republicanos eram um zero à esquerda; o principal candidato do
partido apelidara Dante Alvarado de “Herberto Hoovero”, um epíteto
largamente depreciado como racista. Mas o presidente vinha
batalhando com um sério desafio à sua indicação: o eminente
esquerdista Jon Stewart, que fazia campanha acenando bandeira
branca para o bancor. Como até a menor das criancinhas percebia
que boicotar uma moeda internacional cada vez mais consolidada
tinha se mostrado uma calamidade para os Estados Unidos, as
primárias — que, na falta de um partido de oposição viável, eram a
eleição — jogavam o “é a economia, idiota” contra a consolidação
da igualdade étnica. Nenhum dos lats e progressistas brancos que
haviam elegido Alvarado queria ver o primeiro presidente americano
nascido no México cumprir só um mandato. O próprio Carter estava
dividido, embora não fosse dizer isso a Jayne.
Não que Carter estivesse autorizado a canalizar suas energias
para a reles distração de quem seria o próximo presidente dos
Estados Unidos, uma vez que estava absorto na tarefa monumental
de dar almoço a Luella. A mulher ficara amarrada por dois dias
seguidos, e, como eles não estavam dirigindo Guantánamo, para
prevenir cãibras musculares e escaras, eles alternavam a
amarração dela na cadeira com o uso de uma guia de pouco mais
de um metro. O fato de este ser um dia de guia tornava mais difícil
enfiar-lhe as proteínas goela abaixo. Jayne implorara que Carter não
lhe desse queijo. Se a madrasta ficasse constipada, em vez da
aplicação do clister e do uso de comprimidos de laxante, que eram
difíceis de achar, algum deles teria de retirar o cocô do ânus dela
com os dedos. Mas era mais fácil forçá-la a mastigar queijo do que
frango. Com Jayne barricada no seu Quarto Silencioso, Carter, meio
que de pirraça, optou pelo cheddar.
Dessa vez, porém, Luella não parecia disposta a deglutir sua
sélection de fromage e, depois de mastigar o primeiro pedaço até
transformá-lo em uma pasta viscosa, cuspiu tudo por metade da
cozinha salpicando, nesse processo, o rosto de Carter. A partir daí,
passou a catar com agilidade os pedacinhos grudados na camisola,
com a afetação de quem atende a um jantar.
— Você não vale o dedo mindinho do seu pai — disse ela, com
clareza.
Esses momentos de lucidez sempre o deixavam perplexo e, se o
sentimento expressado por ela tivesse sido mais gentil, poderia tê-lo
instigado à delicadeza. Em vez disso, depois de oferecer o pedaço
seguinte, Carter lhe espalmou a mão sobre a boca, para manter o
queijo lá dentro. Luella estendeu a mão, agarrou um punhado das
preciosas madeixas que restavam na cabeça do enteado e puxou
com toda a força.
Tudo bem, já era suficiente. Limpando a palma da mão suja de
saliva em um pano de prato, Carter marchou para fora da cozinha.
Luella que morresse de fome, ele não estava nem aí.
— Jayne! — gritou para o alto da escada. — Você vai ter que
olhar Luella, porque andei arrancando os cabelos. Vou sair para
tomar um pouco de ar.
Parcialmente acalmado pela merecida caminhada, Carter voltou
cerca de uma hora depois, planejando tomar uns dois comprimidos
de Advil para a dor nos joelhos. Um cheiro de queimado atingiu suas
narinas no instante em que destrancou a porta. Jayne teria
queimado uma panela? A antiga colecionadora apaixonada de
receitas hoje quase nunca cozinhava um ovo sequer. Uma névoa
embaçava o corredor, e Luella, deixada presa pela guia a uma perna
da mesa, estava quieta demais.
Carter correu até a cozinha e encontrou a vela das conversas
conjugais ao sabor de goles de vinho do porto acesa. Com os olhos
brilhando, Luella jogava um guardanapo de papel em chamas na
lata de lixo. A embalagem de queijo que estava em cima pegou
fogo. Como a madrasta estivera passando tudo que estava ao seu
alcance no fogo e atirando projéteis incendiários para todo lado,
apagar a vela foi um começo bem modesto da parte de Carter. As
cortinas estavam em chamas. A lata de lixo estava em chamas. Um
pedaço do chão estava em chamas, bem em volta da perna da
mesa à qual Luella ainda estava amarrada. Enquanto a fumaça se
adensava rapidamente, a escolha ficou clara: tentar salvar a casa ou
as pessoas dentro dela. Bem. Toda aquela criação liberal revelou-se
útil para alguma coisa.

***

— Eu deixei do lado de fora? — perguntou Jayne, abatida. — Tenho


medo de ter deixado do lado de fora.
— Não importa quem deixou, eu deveria ter notado — disse
Carter. — Mas a nossa sorte é mesmo incrível. Ela segura o garfo
pelos dentes, em vez de pelo cabo, mas ainda se lembra de como
riscar um fósforo.
Estavam encolhidos do outro lado da rua, embrulhados nos
cobertores que Carter pegara para protegê-los de queimaduras. A
elite dos servidores de Nova York demorara bastante, se bem que,
àquela altura, Carter se admirava por existir um corpo de bombeiros.
O fogo não fora contido. À luz das chamas, Luella dançava com
uma alegria pagã.
— Você não precisava salvar essa aí, você sabe — disse
Douglas, em tom carregado.
— Eu, ah... tive um momento de hesitação — admitiu Carter. —
Senti calafrios.

***

Durante a maior parte do ano anterior, Avery se refugiara na labuta:


esfregar, lavar louça, remendar, picar alimentos e lavar roupa.
Organizou trocas de roupas infantis usadas na vizinhança. Para
combater o revelador aumento de peso de Bing, ela o guiou em
sessões de polichinelos (tirou a ideia de Nollie), porque furtar
alimentos na despensa era a fórmula perfeita para ele se tornar um
pária. Engolindo o ressentimento, ajudou Goog a aprender
espanhol. Só entrava em pânico quando ficava sem tarefas.
Trabalhar bastante era terapêutico. Se um dia voltasse a clinicar, ela
colocaria todos os pacientes para limpar o chão do consultório.
Além disso, por puro calculismo, tinha se comprometido com
essa nova persona. A alternativa era continuar cedendo a
superioridade moral à sua irmã, que continuaria a reivindicar a
competência, a garra, a eficiência, o estoicismo, a abnegação e seu
famoso pragmatismo, levando todos a se sentirem gratos a
Florence, e os filhos de Avery admirariam Florence, e procurariam
Florence quando tivessem problemas, e seu marido se perguntaria
por que escolhera uma chorona manhosa em vez de aquele pilar de
força. Além disso, a petulância não podia se traduzir em alimentos
nem em privacidade, se nem sequer conseguia se traduzir em papel
higiênico. Frustrada pela aguda consciência de como essa
propensão parecia pouco atraente aos demais, a própria experiência
da petulância era uma pequena tortura; era de um sentimento
pobre, mordaz, provocador e, em última instância, uma forma de
autoagressão. Em suma, Avery não podia controlar a história. Só
podia controlar o próprio humor enquanto a história fazia o que
sabia fazer de pior. Continuar a agir como se fosse uma princesa
era tomar prejuízo por todos os lados. Para seu deleite, às vezes
Florence parecia nitidamente aborrecida com o fato de sua irmã ter
se tornado uma santa — em alguns momentos, até uma santa mais
santa do que a padroeira-modelo da East 55th Street.
E foi assim, no meio da limpeza e arrumação solitárias, após
mais um grande jantar em grupo, que Avery enxugou as mãos às
pressas para atender a porta. No olho mágico, seus pais, Magno
Grand Man e Luella emolduraram-se em curva, com os rostos sujos
de fuligem, como se tivessem acabado de sair de uma mina de
carvão. Estavam embrulhados em cobertores como faziam as
índias.
— Puta que pariu! — Em seu choque ao abrir a porta, esquecera-
se de tomar cuidado com o que dizia perto de Magno Grand Man.
Seu pai anunciou, com curioso triunfo:
— Luella pôs fogo na casa.
Em pouco tempo a notícia se espalhou, e todos, menos
Savannah — que estava na rua, fazendo algo que sua mãe não se
atrevia a considerar —, reuniram-se na sala. Em meio a muitos “Ai,
meu Deus!” horrorizados, a indagações apressadas para saber se
as quatro vítimas do desastre estavam bem, e a homilias sobre
como o que realmente importava era eles terem escapado com vida,
Avery pôde identificar uma ansiedade coletiva murmurando abaixo
da superfície: a infausta reviravolta elevava a população da moradia
já abarrotada de gente para quatorze pessoas — ou, caso se desse
crédito às argumentações anteriores do pai, dizendo que Luella
sozinha era “equivalente a vinte residentes extras com perfeito
juízo”, para trinta e três.
Eles cederam assentos aos novos hóspedes. Abaixando-se para
sentar no distinto sofá cor de vinho que conhecera desde sempre,
Magno Grand Man lançou um olhar pesaroso para a fita adesiva.
— Nossos bravos soldados, minerando ouro no Brooklyn — disse
Florence, em um comentário enigmático. — Nollie? Eu ia fazer chá
para todos, mas, se você pudesse arranjar...
— Dane-se o chá — retrucou Nollie, indo com Florence para a
cozinha. — Estou com um estoque novo de uma birita maravilhosa,
vai virar sua cabeça.
— Vocês conseguiram salvar alguma coisa? — perguntou Avery,
lembrando-se de muitas lembranças infantis guardadas no sótão
dos pais.
— Ficaram faltando umas peças que estavam na pia, eu acho —
respondeu seu pai, abrindo o cobertor e revelando em seu colo uma
caixa de madeira arranhada, porém majestosa. — Mas salvei o
faqueiro de prata.
Magno Grand Man desatou a chorar.
— Você não me contou!
Avery nunca o vira chorar.
— Eu estava guardando a notícia — disse Carter. — Calculei
que, numa noite como esta, eu não teria muitas surpresas felizes
para exibir.
Pegou uma das facas de jantar, com um grande M desenhado na
base, e a lâmina captou a luz.
— É magnífica! — exclamou Kurt.
Ele era o tipo de sujeito que resistia às distinções de classe, por
motivos ideológicos, porém, como que por instinto, tinha uma
opinião mais elevada da família Mandible por ela possuir talismãs de
um nascimento nobre. Pessoalmente, Avery não engolia muito bem
toda essa ideia de uma aristocracia americana, ao passo que sua
irmã rejeitava o elitismo como ofensivo. Mas Esteban tivera razão,
na ocasião em que os Stackhouse tinham se mudado para lá: todos
os Mandible julgavam-se especiais, nem que fosse, no caso de
Florence, por se recusarem a se sentir especiais. Tal como a
discussão maior sobre a “excepcionalidade” americana, as tensões
da família a respeito do somos-ou-não-somos-especiais podiam
agora ser postas de lado. Toda a suntuosa e refinada qualidade
artesanal da Casa da Abundância, em Mount Vernon — os painéis
entalhados de carvalho, o corrimão em espiral, os históricos tapetes
orientais, o piano de cauda, o aparelho de jantar para cinquenta
pessoas feito de porcelana de ossos —, estava oficialmente
reduzida a um faqueiro de prata incompleto e a um sofá remendado
com fita adesiva. Algo que deixaria até Karl Marx meio triste.
— Se vocês quiserem voltar a Carroll Gardens amanhã de
manhã, para ver o que sobrou no rescaldo — ofereceu-se Kurt —,
eu dou uma mãozinha. A não ser que ainda esteja pegando fogo,
em menos de um dia haverá catadores revirando tudo. Eles
depenam o lugar.
— Vocês têm seguro, pelo menos? — perguntou Esteban.
Papai coçou o pescoço.
— Não sei.
— O que quer dizer com não sabe? — perguntou mamãe.
— Nossos pagamentos estão em dia — respondeu o pai. — Mas
vi no noticiário da semana passada que a Titan Corp. tinha falido.
Em um atoleiro judicial. Não sei em que pé isso nos deixa, mas acho
que vai ser complicado receber indenização.
— Vocês teriam bons argumentos, se não tiverem recebido um
aviso formal de cancelamento — disse Lowell. — Mas a Titan pediu
falência, liquidação completa, e a fila de credores vai dar a volta no
quarteirão. Mesmo que vocês consigam uma indenização, pode
levar anos para vocês verem o dinheiro.
— E ele não será corrigido pela inflação — completou Willing, da
escada. — O que quer dizer que o cheque pelo conteúdo dos três
andares dará para você comprar um terno barato.
— Você é mesmo um gênio de uma nota só, não é? — disse
Lowell ao sobrinho, em tom azedo.
— Por que você não me contou que nossa companhia de
seguros tinha falido? — exclamou mamãe.
— Eu ia averiguar isso. — Papai estava com aquela expressão
de quem tenta se controlar diante de outras pessoas, como se, caso
não houvesse mais ninguém por perto, pudesse estar aos berros. —
Depois que eu tentei dar banho em Luella sem que nós dois nos
afogássemos, depois que cortei as unhas dela, nem que fosse para
impedir que ela arrancasse meus olhos, e depois que recolhi os
cacos daquela bandeja da Toscana que achávamos que estava
numa prateleira que ela não podia alcançar. E, por falar no demônio,
é melhor alguém ir ver onde ela está.
Avery saiu de fininho, indo checar primeiro o porão, por não
querer que os poucos bens remanescentes de sua família fossem
destroçados por uma enfant terrible de 1,78m de altura. Em sua
clínica MenteCorpo, ela tratara pacientes com demência. Eram
universalmente meigos e submissos, ainda que talvez perdidos ou
confusos, e, vez por outra, muito insistentes, mas nunca, como
supostamente seria Luella, violentos ou destrutivos. Assim, Avery
tinha se mostrado cética diante dos relatos dos pais. Agora que
suas próprias roupas corriam o risco de ser retalhadas, pareceu-lhe
prudente aceitar ao pé da letra a versão que eles davam aos
acontecimentos.
Encontrou a avó torta no banheiro de cima, onde ela estava
esguichando xampu em grandes arabescos decorativos na
banheira, nas paredes e no piso. Tirar o vidro de Luella foi como
arrancar uma bola de tênis das mandíbulas de um Rottweiler. Avery
achara que a prática dos pais de manter a tutelada presa a uma
guia era uma violação monstruosa das liberdades civis de um
adulto. No entanto, a tira de nylon foi de valor inestimável para
arrastar a mulher para o andar inferior.
— Retorna a aventureira — anunciou Avery, tentando parecer
alegre, e então entregou ao filho caçula o vidro quase vazio. —
Bing, querido, tire a tampa e veja se você consegue recolher alguma
coisa do xampu que Luella derramou sem querer.
Resgatar o xampu era uma tarefa perfeita para seu filho de treze
anos. Ele não podia comê-lo.
— Nossa, que cheiro é esse? — perguntou Goog, amarrando a
cara ao olhar em volta. Sem ser gorducho, mas de contornos
arredondados (nariz arrebitado, ombros caídos), era um garoto
embotado em todos os sentidos.
— Acho que ela precisa ser trocada — cochichou Avery para a
mãe.
— Não tenho dúvida — retrucou Jayne. — Mas a minha casa
acabou de pegar fogo. Por que você está dizendo isso para mim?
— Talvez Nollie deva fazer as honras — disse papai, aceitando
da irmã um copo com uma imitação de screwdriver, sem agradecer.
— Luella também é madrasta dela.
— Não sei fazer isso — respondeu Nollie, em tom neutro.
— Há dois anos, eu também não sabia amarrar um quadrado de
colcha velha numa adulta se debatendo — respondeu papai. —
Você sempre foi de aprender rápido. É o que todos dizem.
— Ora, deixa que eu vou — disse Florence. — Vocês têm que
lembrar que a culpa não é dela. Daqui a uns anos, um de nós pode
estar precisando dos mesmos...
— Já fiz isso centenas de vezes! — interrompeu papai. — A sua
tia poderia fazê-lo, uma vez na vida!
Depois veio a conferência sobre onde todos iriam dormir. Kurt
abdicou do sofá em favor do patriarca da família e se ofereceu para
dormir na poltrona. Willing ofereceu seu quarto aos avós, sugerindo
que Goog pegasse o colchão de Savannah no porão. Quando a
mãe quis saber por que diabos a neta passaria a noite inteira fora,
Avery fingiu não ter ouvido a pergunta.
— E será que o lugar da nossa sra. Rochester não seria o sótão?
— sugeriu papai. Estava tão furioso com a irmã que era como se
Nollie tivesse incendiado sua casa.
— Eu fico com Nollie — interveio Willing.
Foi uma sugestão política — Nollie não permitiria a entrada de
ninguém além dele em seu santuário —, mas, ainda assim, deixou
no ar a pergunta sobre onde colocariam a “sra. Rochester” para
dormir, já que Luella era a carta com quem ninguém queria ficar
empacado nesse Jogo do Mico. Avery, por exemplo, rejeitou a
presença da tutelada incontinente no porão com uma paixão que
beirou a histeria. Depois de apenas umas duas horas da megera em
casa, ela apreciava melhor a covardia com que sempre optara por
lavar a roupa em East Flatbush — qualquer coisa, menos cuidar de
Luella para que seus pais pudessem ter uma noite de folga. Mesmo
nessa hora, a culpa por ter fugido do trabalho de babá geriátrica foi
superada pela determinação de continuar fugindo dele.
No entanto, do jeito que vieram a correr as coisas, toda a
barganha por causa de colchões e travesseiros revelou-se
desnecessária.
A campainha tocou. A casa estava abarrotada, mas, com gente
que se conhecia e, de certa maneira, se amava (embora isso
pudesse ser difícil de perceber), o térreo fervilhava com a energia de
uma grande festa. Por isso, quando foi atender à porta, Avery
proclamou, acima da barulheira:
— Será que há mais parentes no frio, lá fora, que possamos ter
esquecido?
Foi o que ela disse, alegremente. Exatamente assim:
alegremente.
Pelo olho mágico, Avery reconheceu a família como vizinhos de
umas duas ruas adiante — os Wellington, ou Warburton, alguma
coisa com W. A mulher (Tara? Tilly?) participara da última troca de
roupas usadas organizada por Avery, e parecera agradecida pelos
jeans de Bing (nos quais, infelizmente, o eixo lateral do menino já
não cabia).
— Olá! — gritou Tara/Tilly na escadinha da entrada, segurando a
filhinha de três anos junto ao peito. — Estamos precisando de ajuda!
É uma emergência, por favor!
Desgraça nunca vem sozinha. Depois de argumentar com um
fervor indecoroso para impedir que Luella fosse dormir no porão,
Avery acolheu de bom grado a oportunidade de se mostrar
generosa, e abriu a porta.
— A minha filhinha — prosseguiu a mãe, balançando a criança
no colo. — Ela está muito doente. Temos que levá-la ao hospital.
Não conseguimos arranjar um táxi, e o pronto-socorro do Kings
County não quer mandar ambulâncias até o nosso bairro porque
elas têm sido roubadas. Sentimos muito por interromper a sua noite,
mas sei que vocês têm um carro...
Avery franziu a testa.
— Vocês sabem mesmo escolher a noite para aparecer. A casa
dos meus pais acabou de pegar fogo. — Naturalmente competitiva,
ela suplantou a aflição dos outros com uma catástrofe de maior
valor.
— Percebe-se que as desgraças sempre acontecem todas ao
mesmo tempo — disse o pai, em tom resoluto.
— É — concordou Avery, com um rápido sorriso. — O meu
marido chama isso de aglomeração cármica.
— Nós podemos pegar o Jaunt emprestado, se vocês estiverem
ocupados — disse a mulher aflita.
Algum alerta se acendeu na cabeça de Avery quando a vizinha
citou logo a marca do seu veículo; o tipo de pequeno detalhe a que
os pais de crianças gravemente enfermas ficariam alheios. Mas o
carro estava parado bem em frente, de modo que notar isso não
devia significar nada.
— Não, eu poderia levá-los — disse Avery. — Esperem um
instante que eu vou buscar a chave.
— Por favor... — implorou a mãe. — Seria possível arranjar um
copo d’água para Ellie? Ela está ardendo em febre.
— É claro, não é problema algum. — Avery hesitou; não podia
fechar a porta na cara deles. — Entrem um instantinho. Está muito
frio, não quero deixar a porta aberta.
A família juntou-se no vestíbulo.
— É Tanya, está lembrada? — Segurando a criança em um dos
braços, a mulher apertou a mão de Avery. As sardas sempre faziam
as pessoas parecerem amistosas.
O marido manteve a mão direita no bolso do casaco e apenas
meneou a cabeça para dizer:
— Sam.
Era um sujeito quadrado, com uma beleza meio italiana, tinha
pernas e braços longos e finos. Com a postura deferente dos
encontros anteriores substituída por uma rigidez tensa, parecia
muito decidido a fazer com que a filha recebesse atendimento
médico, não importando quem viesse a incomodar.
— E este é Jake. — Com cerca de onze anos, o ruivo encolheu-
se junto à calça do pai. Avery reconheceu os jeans.
— É um grupo e tanto — observou Tanya, enquanto sua família
se encolhia na entrada da sala.
— Nada como perder a casa em que a gente cresceu para
improvisar uma reunião de família, não é? — respondeu Avery.
Tanya buscou a mão esquerda do marido e a apertou. Willing
acompanhava o desenrolar dos acontecimentos do seu posto
habitual na escada. Deparou com os olhos do menino, que se
encolheu ainda mais junto à perna do pai e lhe lançou um olhar
furioso. Não era uma expressão gentil para alguém cujos pais
estavam pedindo um favor.
Quando Avery voltou com a água, Tanya ficou olhando para o
copo como quem procura um lugar para deixá-lo. Ellie não estava
com sede? Avery balançou o chaveiro. Sam tirou a mão direita do
bolso do casaco e sacou uma pistola.
Ela se perguntou por que as pessoas gritavam “Parado!” quando
apontavam uma arma de fogo. A perfeita imobilidade era instintiva.
— Isso não é necessário — disse Avery, em voz baixa. — Eu falei
que vou levar vocês.
— Não vamos a lugar nenhum. — Sam apontou a pistola para o
peito dela. — Você vai.
— Não estou entendendo o que você quer — disse Avery. — E a
sua filha...?
— Ela vai ficar muito bem — respondeu Tanya.
Avery sentiu-se uma idiota. Orgulhava-se de ter se escolado na
manha das ruas diante da adversidade. Mas, por baixo das unhas
quebradas, resultado do trabalho de limpeza, esvoaçava uma
socialite de Washington. No que dizia respeito às suas expectativas
em relação aos outros, ela ainda vivia em um mundo de almoços,
cafezinhos para bater papo e corridas beneficentes na luta contra o
câncer de mama — um mundo em que o pior que podia acontecer à
porta de casa era a chegada de um convidado para o jantar com
uma garrafa ofensivamente barata de vinho tinto. O ponto decisivo:
até pouco tempo antes, esse fora o mesmo mundo em que
habitavam Sam e Tanya W-não-sei-de-quê. Havendo se mudado
para o bairro com a onda de proprietários endinheirados que fora
parar ali na década anterior, os facínoras no vestíbulo eram “gente
fina”.
— Eu fico com isso — disse Sam, estendendo a mão para o
chaveiro.
— Pensei que vocês não fossem a lugar nenhum — retrucou
Avery. Willing tinha se levantado. O murmúrio da conversa na sala
cessou.
— Nunca se sabe — respondeu Sam.
— Isso é um assalto? — Avery usou toda a sua voz. Os outros
precisavam saber o que estava acontecendo. — Porque, afora o
Jaunt, não há muito que levar daqui. Dobradiças? — perguntou,
desafiadora. — Temos muitas.
— Vocês têm uma coisa grande para levar — disse Sam. — Às
vezes, o elefante na sala é a própria sala.
— Não é uma boa hora para ser obscuro com você balançando
esse troço para lá e para cá — rebateu Avery.
— Vou dizer que sinto muito, uma vez. — Sam abarcou a sala
com um gesto, apontando a arma. — Em tempos mais felizes, nós
convidaríamos vocês para um drinque. Mas executaram a hipoteca
da nossa casa e fomos despejados. Trocaram as fechaduras,
ligaram o alarme e mudaram o código.
— E por que você não atirou na polícia quando foram lá colocar
vocês no olho da rua? — perguntou Avery, fuzilando a arma com os
olhos.
— Polícia! — exclamou Sam. — Que polícia? Agora todos os
bancos contratam empresas de segurança particular. Armados até
os dentes. Bandidos.
— E você é o quê?
— Não me importa como você me chame. Porque não há nada
que eu não faça para pôr um teto sobre a cabeça da minha família.
O seu teto. Receio que vocês todos tenham que ir embora.
A sala soltou um arquejo coletivo.
— No meu tempo — interpôs Magno Grand Man —, qualquer
americano honrado que enfrentasse a ruína mataria a própria
família. E depois se mataria. Era uma tradição eficiente. Como o
forno autolimpante.
— Nós temos pessoas idosas aqui — disse Avery. — Pessoas
doentes. Você não pode jogá-las na rua.
— Posso, e vou. — O cano da pistola deixou transparecer um
tremor, mas não foi pronunciado o bastante para garantir o sucesso
de alguma gracinha valente.
— Tenha santa paciência, nós acabamos de perder tudo! —
gritou a mãe de Avery. — Eu sofro de ansiedade clínica debilitante!
Níveis elevados de tensão podem me dar arritmia, fibrilação,
hiperventilação...
— Mamãe — disse Avery, baixinho.
— É, pois eu fui diagnosticado com transtorno obsessivo-
compulsivo, síndrome da perna agitada e alergia a sulfitos —
retrucou Sam. — Depois, tive problemas de verdade. Talvez você
deva fazer o mesmo tratamento.
— Esta casa é minha — disse Florence, soltando-se do abraço
protetor de Esteban. — Não é alugada, é minha. Por lei.
— E a posse representa só nove décimos desse direito de
propriedade — rebateu Sam.
— Como você sabe que nós não temos armas? — questionou
Florence, furiosa.
— Vocês não fazem o tipo — respondeu ele.
— Meu bem — disse Tanya —, você também não fazia.
— Agora eu faço, querida. — O jeito arrogante não convenceu.
— Vocês nunca vão se safar dessa! — disse Goog, acalorado. —
Meu pai vai denunciar tudo isso e vocês vão ficar na cadeia até
fazerem cento e dez anos!
— Você não tem acompanhado o noticiário, tem, filho? —
indagou Sam, com ar cansado. — A polícia desistiu. As invasões de
casas estão acontecendo na cidade inteira. De onde você acha que
tiramos a ideia?
— Persuasão de casas — disse Luella, presa pela guia ao
corrimão inferior. — Propensa ocasião. Peroração! Prestidigitação!
— Ela dominara um vocabulário impressionante, em tempos idos.
— Mas aqui só há pessoas de bem — comentou Kurt, acima do
coro grego. — Pessoas generosas. Tecnicamente, eu sou inquilino,
mas Florence e Esteban não me cobram nenhum aluguel há dezoito
meses. Acolheram uma outra família inteira, uma parenta idosa...
Florence trabalha num abrigo para pessoas sem teto, pelo amor de
Deus...
— Tudo bem, e eu era especialista em modelos de mudança
climática na Academia de Ciências de Nova York — retrucou Sam.
— Isto aqui não é um concurso de escola dominical.
— Nós estamos vendo quanto vocês precisam de abrigo. —
Aparentando exercer um tremendo autocontrole, Florence passou
para o estilo metódico e não reativo que devia ter aprimorado na
Adelphi. — É óbvio que isso é uma emergência. Logo, não há razão
por que não possamos abrir espaço também para a sua família.
Ainda temos água, água quente até, e aquecimento... Vocês
poderiam tomar banho de chuveiro. Um banho longo e relaxante. E
devem estar com fome. Não temos muita coisa, mas tenho certeza
de que poderíamos encontrar algo para vocês e seus filhos
comerem. Pode abaixar a arma, por favor. Podemos resolver este
problema juntos. Pensando bem, Esteban e eu poderíamos dar a
sua família todo o quarto principal de casal...
— Você conviveria pacificamente com um sujeito que acabou de
expulsar você da sua casa sob a mira de uma pistola? — perguntou
Sam. — Ora, faça-me um favor! Você vai esperar o momento
propício para me acertar uma martelada.
— Mesmo assim, meu bem — cochichou Tanya —, as crianças
não comeram nada o dia inteiro...
— Se ela pode preparar alguma coisa naquela cozinha, nós
também podemos. Entre uma casa inteira e um quarto? A proposta
não me apeteceu muito.
— Você já ouviu falar em ocupação pacífica? — rosnou papai,
enrolado em seu cobertor sujo de fuligem feito um extra de Os Dez
Mandamentos. — Quando eu era garoto, os universitários
descobriram como era difícil retirar um grande número de pessoas
pesadas, se debatendo, com razão para estarem fulas da vida, se
elas se recusavam a sair.
— É, e alguns dos boçais que fizeram esses protestos levaram
bala. — Sam estava ficando impaciente. — Agora, vou dar quinze
minutos para vocês pegarem algumas coisas. Não preciso fazer
isso, mas vou deixar que fiquem com seus casacos. Levem suas
escovas de dentes.
— Kurt tem razão sobre a generosidade da minha sobrinha, mas
a tia dela tem um lado perverso — rosnou Nollie, feito uma velha
maluca que seduzia garotinhos com pão de mel, e Jake se
encolheu, apavorado. — A primeira coisa que vou aconselhar
Florence a fazer é cortar o fornecimento de todos os serviços. Pode
esquecer os banhos de chuveiro.
— Vá em frente — rebateu Sam, embora parecesse
desconcertado. — Está todo mundo fazendo gambiarras para ligar
na rede e para puxar gás de graça.
— Vocês são só quatro, hombre — disse Esteban, carregando
em um sotaque de mexicano desclassificado, do tipo que daria
medo a branquelos como Sam. — Dois são niños. Como você
espera controlar treze reféns que não estão a fim de dar um passeio
à meia-noite?
— Bem pensado. Muito útil... muy útil, sí? — A pronúncia do
homem foi impecável. Chamado, o pobre Bing aproximou-se de
mansinho, olhos arregalados, e, para horror de Avery, Sam segurou
firme o braço de seu filho petrificado. — Se alguém tentar alguma
coisa, eu atiro no garoto. Acham que não? Não me tentem.
Sam estava tentando se convencer do papel que desempenhava,
mas Avery não pôde descartar a possibilidade de que ele o fazia
com certo sucesso. Liberados para “pegar algumas coisas”, ficaram
todos parados.
— Andem logo — ordenou Sam. — Senão eu retiro a oferta, e
vocês vão ter que andar de meias pelo Boulevard Linden.
— Por que vocês nos escolheram? — perguntou Avery a Tanya,
enquanto os outros se dispersavam lentamente, como que em
transe. — Esta casa é o lar de quatorze pessoas.
Tanya explicou:
— Porque vocês foram os únicos que nos deixaram entrar.
• CAPÍTULO 14 •

UM SISTEMA COMPLEXO ENTRA EM


DESEQUILÍBRIO

Willing não teve a arrogância de afirmar que adivinhara que isso ia


acontecer. Mas alguma coisa parecida, sim. Era por isso que já
deixara uma mochila preparada embaixo da sua cama. Com uma
relação de itens: identidade, garrafas de água, granola, kit de
primeiros socorros, cobertor de grafeno, canivete, fósforos e
isqueiro, luvas, cortador de vidro, uma grande lona
impermeabilizada reforçada, filmes de plástico mais baratos,
duplicatas das chaves de casa e artigos de toalete. Libertada a sua
mente desses artigos essenciais, ele pegou dois suéteres extras e
checou o bolso, para encontrar seu fleX enrolado feito uma bola; o
contrato de uso do satélite estava com o pagamento atrasado, mas
o aparelho funcionaria como lanterna. Ignorando o nojo incrédulo de
Goog — “O quê? Nosso vidente domiciliar já fez a mala?” —, Willing
voltou calmamente ao térreo para fazer um pedido formal.
De tanto apertar o braço de Bing, os músculos de Sam deviam ter
enrijecido. Encostado no batente da porta, com a postura arriada,
até Bing se cansara de parecer apavorado. A arma era pesada. Só
quando Sam avistou Willing se aproximando foi que o cano se
levantou.
Willing parou no meio da escada.
— Eu gostaria, se estiver tudo bem, de levar minha bicicleta.
— Velocípede, palmípede — resmungou Luella, ainda amarrada
ao corrimão pela guia. — Alípede, centípede. Típico, tópico. Trópico,
mítico, místico, dístico...
— Não dá para mandar ela calar a boca? — quis saber Sam.
— Homens melhores que eu já tentaram — respondeu Willing.
— Mestres tão fortes que só se esfolaram — ecoou Luella.
— E a bicicleta? — pressionou Willing, delicadamente. — Vocês
ficaram com o SUV.
Era importante não ser emotivo. O homem se sentiria mal e não
gostaria de se sentir mal, o que o deixaria com raiva. Por isso, todas
as negociações tinham de ser conduzidas com isenção de
julgamento. Como se fosse a coisa mais razoável do mundo
perguntar a um estranho, morador de algumas ruas adiante, se você
podia pegar sua própria bicicleta.
— Não — disse o ruivo, de braços cruzados ao lado da mãe. —
Eu quero a bicicleta dele.
Willing acalmou o menino com um olhar firme, que dizia
pacientemente: uma bicicleta inteira por um pouquinho de
hambúrguer e refresco de cereja não é uma troca justa.
— Mas você nunca anda de bicicleta — ponderou a mãe dele.
— O papai tem uma arma — disse Jake. — A gente pode pegar o
que quiser. Não importa se vamos usar. A gente pode quebrar a
bicicleta toda, se quiser. E pode ser que eu quebre. — E se dirigiu a
Willing: — Vou pegar a sua bicicleta e quebrar.
Willing viu a exigência do menino sair pela culatra: olhe só o que
já estamos fazendo com o nosso filho.
— Sim, é claro, leve a bicicleta — disse Sam.
— Fim, é faro, neve a papeleta — entoou Luella.
— Obrigado — disse Willing. — Permissão para ser dispensado,
senhor.
Quase bateu continência. No andar de cima, encontrou a mãe e
Esteban em seu quarto, cercados por uma bagunça de roupas.
— Ele não é tão grande assim — murmurou Esteban. — Eu
poderia enfrentá-lo, ningún problema.
— Sem dúvida, mas alguém poderia se machucar — disse
Florence, baixinho. — Posso perdoar você por não ser um herói.
Não o perdoaria se você fizesse uma das crianças levar um tiro.
— Aquele maricas não vai atirar em ninguém — afirmou Esteban.
Ela se virou para Willing.
— Devemos tramar alguma coisa? Bolar uma manobra
engenhosa para tirar essa gente da nossa casa? Isso é o que
faríamos num filme.
— Também poderíamos incendiar a casa — disse Willing, com
naturalidade. — Eles teriam de ir embora. Mas nós também. O fogo
poderia fugir do controle. Aí, nenhuma das duas famílias teria onde
morar. Seria mesquinho. Como o que aqueles intrusos fizeram com
a horta.
— E então... o quê?
— Se é sério mesmo que vamos deixar aquele cabrón nos
expulsar da nossa própria casa — disse Esteban —, não podemos
ficar na Adelphi? Tem que haver alguma vantagem nesse seu
trabalho deprimente.
— O abrigo já está com 200% da capacidade — respondeu
Florence. — Outros funcionários tentaram colocar os próprios
parentes lá dentro, às escondidas. Foram demitidos.
— A culpa disso é minha — disse Willing.
— Essa eu não consegui acompanhar, muchacho — retrucou
Esteban.
— Devíamos ter ido embora antes — explicou Willing. — Errei os
cálculos. Esta cidade... Ela é um sistema complexo que entrou em
desequilíbrio. É instável. É por isso que não temos motivo para
“tramar” nada. Temos que ir embora, isso sim. Esse pessoal lá
embaixo não vai acabar bem. Mesmo que você não cumpra a
ameaça de Nollie de cancelar os serviços, eles não vão conseguir
pagar as contas. A água, o gás e a energia serão cortados. E ele
trabalha com computadores. Não deve ter a mínima ideia de como
obter uma linha ilegal de fornecimento de gás sem explodir o
quarteirão inteiro. E pensem na facilidade com que eles
conseguiram tirar a nossa casa. Vai ser igualmente fácil outras
pessoas tirarem a casa deles.
— Você acha que devemos ir embora, mas para onde? —
perguntou a mãe. Estava eufórica. Ela precisava se acalmar. —
Magno Grand Man tem praticamente cem anos! Luella é um prato
cheio, nas melhores situações, e meus pais também não são
brotinhos!
— Por enquanto, para o acampamento — disse Willing. — No
Prospect Park. É perigoso, mas não tão perigoso quanto ficarmos
isolados. Lá nós podemos trocar coisas. Os acampamentos são
economias fechadas.
— Trocar o quê por quê? — perguntou Florence. — Willing,
francamente, às vezes você é muito metido a sabichão! Você só
está propondo que nós todos viremos moradores de rua! Já vi o
bastante dessa situação. Não tem nenhuma parte boa nisso.
Ele não devia se ofender com os insultos da mãe.
— Vamos ficar lá só o tempo necessário para nos prepararmos.
— Ah, tenha santa paciência! Nos prepararmos. Para quê: para o
arrebatamento bíblico? Para podermos abrir os braços num campo
e esperar pela redenção do Senhor, ou pelo pouso de uma nave
espacial alienígena?
Eles não tinham tempo para isso.
— Levem roupas quentes — instruiu Willing. — Vistam múltiplas
camadas, para não terem que carregar as peças extra. Lembrem-se
de levar alguma coisa impermeável. Encham as garrafas plásticas
daquele recipiente de reciclagem velho com água da bica. — (A
cidade não recolhia o material para reciclagem, uma prática
estranha, fazia um ano e meio.) — Levem guardanapos de bunda.
Muitos, porque não vamos poder lavá-los. Se você conseguir salvar
alguma comida da cozinha, seja discreta. Prefiram mochilas a
malas. As malas chamam atenção e são muito fáceis de roubar. Se
tiverem algum dinheiro em espécie, ponham um pouco, o suficiente
para ser crível, no bolso ou num compartimento externo da mochila.
Ponham o resto nos sapatos, na roupa de baixo ou dentro de pares
de meias enrolados. Assim, se eles pedirem o nosso dinheiro antes
de sairmos, vocês poderão dar o dinheiro óbvio. E, não importa o
que façam, não se irritem com Sam e Tanya. Quanto mais agirmos
com raiva, mais eles acharão que têm motivos para serem
estouradinhos. Não podemos parecer imprevisíveis. Lembrem-se de
que a gente teria que ir embora, de qualquer jeito. Eles só estão nos
fazendo um favor.

***
No depósito do porão, Willing recalibrou os pneus da bicicleta.
Pegou seu kit de ferramentas, as cestas laterais e umas cordas
elásticas, enquanto, ao fundo, Lowell esbravejava que “a proteção
da propriedade privada é responsabilidade primordial do Estado!”.
Willing não pôde deixar de sorrir. Certas pessoas simplesmente não
conseguiam mudar de paradigma.
Sentiu-se melhor depois de cuidar daquela tarefa. Fazia algum
tempo que não verificava as quinquilharias atrás da caldeira, mas
elas estavam seguras. Embora ele fosse suspeito para falar, era um
ótimo esconderijo. Curioso era que a mãe nunca havia perguntado
por essas coisas. Tinha medo de ser presa. Willing se perguntou se
alguém ainda fazia isso — prender pessoas.
Ao prender a bicicleta com um cadeado ao poste de uma placa
de estacionamento, do lado de fora, Willing viu seu avô curvar-se na
escada do porão. Carter pôs alguma coisa no degrau e se abaixou
sobre ela com seu cobertor. Ao levantar os olhos, pôs um dedo
sobre os lábios.
Não ficou claro o que Carter estava tramando, mas a expressão
desvairada que ele exibia desde o incêndio ficara ainda mais louca.
Willing não queria atrair a atenção de Sam, e aquele não era o
momento de fazer uma preleção para seu avô sobre sistemas
complexos que entram em desequilíbrio. Ele se contentou em
abanar a cabeça vigorosamente, a fim de desestimular qualquer
plano idiota que o velho tivesse concebido, enquanto movia os
lábios para dizer NÃO, NÃO FAÇA ISSO, e movia as mãos espalmadas
de um lado para outro — código universal para Esqueça!, mas
Willing era um mero neto subestimado de dezesseis anos, e fazia
dois anos inteiros que Carter E. Mandible estava prestes a matar
alguém.
Correndo de volta para a escada, Willing apontou para o interior:
Volte lá para baixo. Carter puxou o cobertor em volta do pescoço e
fechou a cara. Não ia entrar.
Inquieto, Willing juntou-se ao grupo reunido na sala. Sam parecia
esgotado. Queria que eles saíssem, daquele jeito exausto e comum
com que a gente quer ver pelas costas convidados que abusaram
da nossa hospitalidade — para poder começar a arrumar a cozinha,
tomar uma saideira em paz, assistir ao noticiário.
— Dinheiro — disse Sam.
Eles esvaziaram os bolsos usados como disfarce.
— Chaves da casa — anunciou Sam a seguir, estendendo um
cesto da mesinha de centro como se fosse uma travessa de coleta
na igreja. — Não quero visitas.
Enquanto os despejados se enfileiravam no vestíbulo, Sam fez
uma inspeção desanimada em suas bolsas e mochilas, enfiando o
cano da arma em compartimentos sem zíper, fazendo o exame
superficial de um velho guarda de museu. Infelizmente, confiscou o
pedaço de pão que a mãe de Willing escondera, mesmo com Tanya
de sentinela na cozinha. Mas deixou Kurt levar seu saxofone. Tendo
perdido tudo que possuía, Jayne não tinha pertences e se deixou
ficar junto à escada, embrulhada em seu cobertor, enquanto os
outros iam saindo, cabisbaixos, um a um. Devia estar tentando se
manter aquecida pelo maior tempo possível. Tivera um dia
cansativo.
— Que droga é aquilo? — perguntou Sam, quando Nollie chegou
à porta. A caixa parecia pesada demais para uma mulher de quase
setenta e cinco anos.
— Material descartado — respondeu Nollie.
— Arterial apalavrado — disse Luella, às suas costas. —
Conversa espreitada. Ajuste de miado, capuz rasgado, cadeira
inteirada. Pedro Piferaro pegou um pote de pasta cervejada…
— Alguém tire essa bruxa daqui — rosnou Sam. Soltando as
rédeas da mulher do balaústre a que estava amarrada, MGM foi
puxando Luella porta afora.
— Manuscritos dos meus livros — explicou Nollie. — Podem não
ter valor para qualquer outra pessoa, mas valem alguma coisa para
mim.
Sam abriu as abas da caixa e, dito e feito, ela transbordava de
folhas impressas amarradas com elásticos.
— Caramba, tem maluco para tudo, não é?
Agora Sam segurava Bing com a firmeza habitual do pai que
arrasta o filho enquanto cuida de seus afazeres, e Jake parecia
enciumado. Carregando o casaco e a mochila do segundo filho,
Avery não estava disposta a ir embora sem o caçula. Afora isso,
quando Sam inspecionou os retardatários com rigor, eles estavam
reduzidos a Willing e Jayne.
— Ei, cadê aquele velhote rabugento que me ameaçou com uma
ocupação pacífica? — perguntou Sam.
O olhar de Willing foi atraído por um movimento atrás de seu
captor. Para disfarçar o olhar capaz de traí-lo, sugeriu, às pressas:
— Carter... meu avô, ele deve estar no banheiro.
Assomando na escada junto à porta aberta, Carter levantou bem
alto as duas mãos atrás das costas de Sam. Enquanto seu cobertor
voava para trás, ele cravou um utensílio reluzente de uns trinta
centímetros no ombro do invasor. Sam deu um berro. Com um grito
de guerra simultâneo, Jayne jogou seu cobertor sobre as cabeças
de Tanya e Ellie, prendendo os braços da mulher, que envolviam a
menina. A pistola disparou. Bing soltou um uivo.
Arrancando do ombro direito o objeto estranho, Sam virou-se,
meio cambaleante, para apontar a pistola na direção do agressor.
Depois de se jogar no chão, Tanya chutou Jayne para longe e se
desvencilhou do cobertor. Então pegou Ellie e recuou para trás do
marido. Avery correu até o filho para examinar seu pé. A briga
acabou em segundos.
— Que porra é essa? — perguntou Sam, brandindo a arma de
prata de dois dentes, que terminavam em duas pontas delicadas,
agora molhadas e escuras. Era um utensílio elegante, cujo design
refinado ele não parecia disposto a admirar.
— Um pegador de aspargos — declarou Carter, impenitente, com
os olhos arregalados e sombrios. Acenou com a cabeça para a
arma: — Vá em frente. Alegre o meu dia.
— Querido, implorar por suicídio pelas mãos de um cafajeste não
é uma boa saída! — gritou Jayne, levantando-se. — Isso só tem
graça se você for o Dirty Harry empunhando uma Magnum, e não
um velho com um pegador de aspargos!
— Fora daqui, vocês todos, já! — disse Sam, sacudindo a pistola.
— Você acertou o dedão do sapato do meu filho — Avery o
repreendeu. — O pé dele vai congelar lá fora. Pelo menos, me deixe
buscar outro par lá embaixo.
— Acabou o tempo de ser bonzinho. Fora, agora.
O ombro de Sam sangrava e ele não parecia com um desses
durões tinhosos que são indiferentes à dor.
Jayne, Avery, Bing e Willing saíram em fila para se juntar aos
outros na calçada, onde puderam ouvir o clique da fechadura de sua
própria porta de entrada e o chacoalhar da corrente ao ser passada.
Os mesmos sons foram emitidos na entrada do porão.
— Pai, sei que sua intenção foi boa — disse Avery com um braço
em volta do caçula, que choramingava e cujo tênis esquerdo ficara
com um furo. — Mas sua ousadia foi perigosa. Foi um milagre o tiro
não ter acertado o pé do Bing. Os dedos deles parecem
chamuscados.
— Pegador de aspargos? — perguntou Nollie. — Carter, que tal
uma porra de uma faca?
— Todas as facas do faqueiro de prata estão cegas, e a mulher
do cara estava na cozinha. — Carter pegou seu cobertor do chão e
o sacudiu, fulo da vida. — Pelo menos eu tentei alguma coisa.
Jayne ajeitou a túnica de combate do marido ao redor do pescoço
dele. A façanha dos dois não dera em nada, mas talvez o risco
tivesse valido a pena: os dois avós estavam com a postura ereta,
orgulhosos, parecendo anos mais novos à luz do poste de
iluminação. Enquanto isso, Esteban murmurava para Florence:
— Eu podia ter acertado aquele tonto com uma pá, mas recebi
ordens de não fazer isso.
— Que faca, que nada, por que não usar um martelo? — Nollie
continuou a atormentar o irmão. — Tem uma caixa de ferramentas
no porão, e o nosso amigo Sam deu essa ideia de bandeja para
você!
(Era impossível imaginar Carter Mandible esmagando o crânio de
Sam com um martelo. Engraçado, Willing podia facilmente visualizar
Nollie fazendo isso.)
Carter rebateu:
— Pelo menos, aquele pegador de prata é muito mais mortífero
que uma caixa com esses malditos manuscritos.
— Como vamos carregar isso, Nollie? — disparou Lowell. — É
uma coisa desajeitada e incrivelmente pesada. Você não vai
conseguir carregar essa maldita caixa nem até o fim do quarteirão.
— Pois observe — respondeu Nollie, com ar sinistro. Nunca era
boa ideia questionar a mestria atlética de Enola Mandible.
— Passei a vida inteira suportando a sua egomania — disse
Carter à irmã. — Mas aqui é o limite. Neste momento, salvar os
originais da sua o-o-o-o-oeuvre já seria bem imbecil se você fosse o
Tolstói. Mas você é uma escrevinhadora. Li a crítica sobre O
freelance no Times: “uma prosa que é, milagrosamente, tanto
insípida quanto prolixa...”.
— Pelo menos, uma o-o-o-o-oeuvre inteira — retrucou Nollie — é
melhor que um punhado de artigos sobre carros com porta traseira e
sobre condomínios...
— Crianças! — gritou MGM. — Chega! Carter, sua irmã recebeu
muitas críticas positivas, e ninguém publica múltiplos romances sem
atrair um ou outro cafajeste. Enola, não há nada de desonroso em
artigos sobre condomínios, desde que seja escrito com verve.
Escutei essa porcaria durante a vida inteira, e não deveria ter que
aguentar briguinhas desse tipo na minha idade.
— Mesmo assim, Nollie, se o peso nos retardar — disse a mãe
de Willing —, vamos virar alvos. A esta hora da noite, as quadrilhas
andam soltas pelo bairro todo.
— Acho que, se alguém criar caso com a gente — disse Avery —,
sempre podemos ameaçá-lo com o material descartado.
Não era justo. Estavam implicando com Nollie por não poderem
descontar sua frustração em Sam e Tanya, ou no Banco Central, ou
no presidente.
— Eu carrego, por enquanto — ofereceu-se Esteban, com certa
má vontade, já sobrecarregado com a maior das mochilas. — Mas
fique de olho em alguma caçamba de lixo.
— Não — disse Willing.
Ele pegou a caixa de Nollie. Tinha um peso assombroso; talvez
sua tia-avó estivesse mesmo em ótima forma. Puxou da mochila
uma folha de plástico e embrulhou a caixa, para protegê-la da névoa
gelada. Apoiou-a na traseira da bicicleta e prendeu-a no suporte
com cordas elásticas.
— Willing — disse Carter, pegando a caixa que deixara na
escada do porão. — Você acha que também consegue cuidar disto?
Atado com outra corda elástica, o faqueiro de prata coube
certinho em uma das cestas laterais. Embora os metais preciosos
tivessem valor como objetos de escambo, Willing já desenvolvera
um apego sentimental a moedas funcionais. Por isso, jurou não
trocar aqueles utensílios gravados por comida e abrigo transitórios,
a não ser que a vida deles dependesse disso. Aquele faqueiro de
prata era a herança deles. Sam e Tanya tinham ficado com o sofá. O
patrimônio dos Mandible, os apetrechos fabulosos da Casa da
Abundância, tudo se resumia a essa caixa solitária.

***

A distância era de apenas uns cinco quilômetros até o Prospect


Park, mas a viagem levou horas. Kurt se responsabilizou por Luella
no começo, mas Florence teve de admitir que ele era gentil demais.
Quando Luella puxava na direção errada, ele não sacudia a guia
com brutalidade suficiente para retomar o caminho certo. Quando
ela se sentava na calçada e se recusava a se levantar, ele parava a
seu lado, ponderando e oferecendo incentivos, em um apelo
racional que também não funcionava com crianças pequenas.
Esteban assumiu o controle e jogou Luella por cima de um ombro,
mas ela se debateu, chutou e mordeu até que ele a deixou cair,
enojado. A mãe de Florence era melhor que os homens para
controlá-la. Empregava a determinação persistente, impassível e
implacável com que as mulheres perseguiam seus objetivos havia
séculos. Quanto ao pai de Florence, no início não externou sua
tristeza por ter perdido a própria casa ou a casa dela. Tudo que
declarou, mais de uma vez e com veemência, foi que “não cuidaria
de Luella nem por um minuto a mais”.
Magno Grand Man podia estar em ótima forma para um quase
centenário, mas sua energia desgastou-se depois do incêndio e de
uma torturante segunda expulsão do seu único porto seguro.
Precisou fazer pausas frequentes, encostando-se em um
parquímetro ou na borda de uma lata de lixo transbordando (a coleta
de lixo se tornara intermitente, se tanto). A bengala ajudava, mas ele
estava tão incapacitado pela perplexidade quanto pela velhice.
Devia ter sido um choque a sua transição: de mandachuva afável e
elegante dos altos desafios do mundo editorial de Manhattan para
uma combinação de eminência parda aposentada com especulador
financeiro; de instalado na mais luxuosa instituição residencial
assistida do país, para joão-ninguém exilado, arrastando os pés
pelas ruas escuras e cheias de lixo de East Flatbush. Mesmo assim,
por mais que Florence convocasse todos à solidariedade, era
exasperante andar tão devagar.
Goog ficou reclamando que a mochila estava muito pesada e
Bing não parava de chorar; a batida do pedaço solto de sua sola
esquerda no concreto devia estar dando nos nervos de todos. Avery
parava a todo momento para usar o único fleX do grupo que ainda
estava com a assinatura paga e tentar falar com Savannah, a única
de seus filhos que mantivera em dia o pagamento da conta do fleX.
Mas as ligações caíam na caixa postal. Por insistência do marido,
Avery ligou para a polícia para dar queixa da usurpação da casa,
mas uma gravação sobre o alto volume de telefonemas sugeria
repetidamente que ela tentasse de novo, mais tarde. Lowell foi
esbravejando com tradicional indignação, enquanto Kurt devia estar
se considerando sortudo por ter adiado por tanto tempo a mudança
para um dos acampamentos do Prospect Park. A garoa engrossou,
virando uma chuva fina, e o frio úmido era uma desgraça.
Pedalando sua bicicleta na retaguarda, Willing lançava olhadelas
frequentes para trás. Já não era hora de pessoas sensatas saírem
para uma caminhada. Enquanto o Boulevard Linden assobiava com
os carros ocasionais que chispavam pela região com a máxima
velocidade possível, a única companhia da família eram os
pequenos grupos de sem-teto solitários — sem-teto iguais a eles —
que fechavam a cara com ar protetor, já que seus carrinhos de
supermercado tinham se tornado mais atraentes do que carteiras de
dinheiro. Florence dava pulos com a passagem célere de cães de
rua sarnentos e mal-encarados. Era exasperante ter de dar razão ao
filho pela visão premonitória que demonstrara, quando ela própria
considerara maluquice dar Milo à família de Brendan. Mas, dito e
feito, poucas pessoas ainda podiam bancar o custo das rações para
animais de estimação. Gatos e cães tinham sido soltos aos
milhares, para se virarem sozinhos.
Florence devia estar fervilhando de raiva, mas não podia se dar
ao direito da fúria. Em vez disso, concentrou-se em conduzir seu
grupo pela noite. Willing tinha uma lona impermeável; ela havia
encontrado outra, largada pela empresa inútil que fizera a
impermeabilização do porão. Eles dispunham de alguns cobertores.
Se conseguissem se espremer todos feito sardinha em uma lona e
se enrolar embaixo da outra, poderiam se manter secos; o calor dos
corpos deveria mantê-los aquecidos. Ela resgatara uns sacos de
amendoim e passas na despensa e torceu para que a cidade tivesse
o bom senso de fornecer água no parque. Era assim que os pobres
pensavam. A visão de longo prazo era uma característica que
definia a prosperidade. Os miseráveis planejavam um passo de
cada vez.
Por fim, depois de subirem a longa ladeira da East Drive que
levava ao interior do parque, chegaram a um ponto de acesso. Ao
brilho tristonho da luz ambiente da cidade, a extensão do Long
Meadow abria-se como uma colcha de retalhos. Era uma versão
lamentável da terra prometida: de fora a fora, no que antes fora uma
área para piqueniques e jogos de frisbee, havia um quadriculado de
lonas, tábuas, papelão prensado, painéis de gesso acartonado e
chapas de ferro corrugado. Muitos materiais dessas moradias
improvisadas tinham sido resgatados dos canteiros de obras
abandonados que se espalhavam pelos cinco distritos municipais de
Nova York. O tamborilar da chuva nos painéis de metal chegava a
ser quase relaxante.
***

Era de se presumir que, para acordar de mau humor, primeiro


Lowell precisaria ter dormido. No catre improvisado para treze
pessoas, ele se posicionara ao lado de Avery, mas ela mantivera os
dois meninos do seu outro lado, o que o havia deixado encostadinho
em Nollie. A estreita proximidade de uma mulher idosa, que — ok,
ok, como o resto deles — não tomava banho fazia dias, era
perniciosa. E ela roncava. À luz do dia, também se evidenciou por
que essa área na beirada do acampamento estava disponível. Eles
estavam embaixo de uma árvore, o que era ao menos uma âncora
conveniente para amarrar Luella. O problema é que os galhos
gotejavam água na sua testa mesmo depois de a chuva parar. Seu
saco de dormir comunitário estava estendido sobre uma depressão
árida, sem um só talo de grama que servisse de almofada. A
depressão acumulara água, de modo que agora as lonas enceradas
estavam todas sujas de lama, que subira pela bainha dobrada do
único par de calças de Lowell. Ele não se dispusera a escovar os
dentes com água de garrafa às três horas da manhã, no meio de
uma favela, e seus dentes grudentos tinham um sabor ácido.
Lowell lutava para se pôr de pé e entrou em pânico quando, de
início, não conseguiu encontrar os sapatos. Santo Deus, naquele
lixo cheio de cacos de vidro, o simples furto dos sapatos podia
marcar o fim de um sujeito. Provavelmente, seria boa ideia passar a
noite com eles nos pés, mesmo que o depósito de sujeira entre os
dedos viesse a apodrecer. Sua roupa estava úmida e fedida, o
queixo por barbear coçava e o cabelo estava escorrido. A linha que
separava os proprietários de residências urbanas chiques em
Washington e os moradores do abrigo de sua cunhada em Fort
Greene talvez fosse mais tênue do que ele quisera reconhecer.
Para aborrecê-lo ainda mais, o sobrinho sabichão já havia
desaparecido, escafedendo-se com o único fleX do grupo que ainda
funcionava. Lowell estava decidido a buscar a devolução da
propriedade de Florence via autoridades competentes, e o acesso à
internet seria um começo. A posse da casa dela era uma questão de
registro público. Lowell estava furioso com a rapidez com que o
restante do grupo desistira do procedimento padrão. Era quando as
pessoas não confiavam e nem empregavam os instrumentos dos
sistemas que eles se desestruturavam de vez. Bastava olhar para o
que impulsionara a inflação, muito mais do que a política monetária:
a suposição social autorrealizadora de que o dólar não valia nada e
que no dia seguinte valeria ainda menos. O mundo tinha um jeito
intrigante de se estruturar de acordo com aquilo que as pessoas
imaginavam. Quando se age como se a cidade não tivesse leis, ela
passa a não ter.
Ele precisava escrever isso.
Pelo menos o garoto não devia ter ido longe, já que havia
deixado a bicicleta — presa por uma corrente com cadeado e
suportando a caixa ridícula de manuscritos e o incongruente
faqueiro de prata, escondido em uma espécie de alforje. Nollie fazia
a vigilância. Quanto você quer apostar que ela defenderia em
primeiro lugar a papelada, e a prata seria apenas uma consideração
secundária?
Antes de ir trabalhar, para espanto de Lowell, Florence distribuiria
uma porção miserável de amendoim para cada um como “café da
manhã”, pedindo desculpas por já não haver passas, uma vez que
tinha apanhado Bing detonando o pacote. Todo mundo implicava
com o garoto. Não era culpa dele ser jovem, estar em fase de
crescimento e sentir fome. Kurt disse que um segurança
autodesignado já ameaçava o grupo de expulsão — de uma favela!
—, porque os “pavores noturnos” de Luella tinham feito os
ocupantes das áreas mais próximas passarem a noite em claro.
Com a permissão de Douglas, Kurt ofereceu seu único par de meias
sobressalente para servir de mordaça. Generoso, sim. Não
obstante, Lowell ficava bestificado com a razão de o inquilino, com o
aluguel atrasado pelo segundo ano consecutivo, ainda ser problema
desta família. Aparentemente, era preciso continuar a cuidar das
pessoas pelo simples fato de se ter estado cuidando delas. Por
inferência, o sujeito não deveria jamais cuidar de ninguém, porque,
se o fizesse, jamais se livraria dessa pessoa.
Pegando uns guardanapos de bunda, Lowell saiu em busca de
informações locais.
— Muito prazer — disse, aproximando-se da vizinha mais
próxima, uma senhora grisalha e imunda.
Mas as panelas e utensílios pendurados em ganchos em uma
estrutura de madeira tosca, porém resistente, sugeriram uma
residência estabelecida. Pouco à vontade com a ideia de um aperto
de mão, ele se contentou com um aceno de cabeça.
— Lowell Stackhouse, professor de economia da Universidade
Georgetown.
Ela deu um sorriso irônico.
— Professor emérito, suponho? Deirdre Hesham, controladora de
trafego aéreo. Eu também me aposentei mais cedo.
Por ela conhecer a palavra emérito, Lowell a inspecionou mais de
perto; a “senhora idosa” não poderia ter chegado aos cinquenta.
— Pelo que soube, as viagens aéreas se reduziram à metade —
compadeceu-se.
— Pior, a menos da metade. Mas, agora que eles decidiram que
gente como eu é dispensável, eu não entraria num avião nem para
dar um pulinho a Hartford, se fosse você.
Lowell explicou que era novo no local e tentou descrever sua
missão de forma discreta.
— Não chegue nem perto dos banheiros químicos — avisou
Deirdre. — Faz um ano que eles não são trocados. Experimente o
bosque naquela direção, mas preste atenção onde pisa. Você não é
o primeiro, se entende o que eu quero dizer.
Ao regressar, enojado, de um mar da única coisa que era pior do
que lama, Lowell lamentou a perda do seu fleX: não tinha nada para
ler e não podia se enterrar em seu tratado (que deveria ter cópias de
segurança em diversos servidores — mas Lowell finalmente
começava a analisar a crucial distinção que os tempos atuais faziam
entre deveria ter e teria; só ficaria sossegado quando pusesse os
olhos no texto). Quando Florence voltou da Adelphi à tarde, muito
mais cedo que de costume, a agitação foi bem-vinda.
— O que aconteceu? — Esteban estendeu a mão, mas não tocou
no lanho vermelho que havia no queixo de Florence, cujo centro
estava empolado.
— Tive sorte de estar usando a bandana — respondeu ela,
trêmula, tocando no pedaço chamuscado em volta da orelha
esquerda —, senão ele teria colocado fogo no meu cabelo. Do jeito
que foi, só queimaram umas mechas que haviam escapado. O
cheiro foi terrível.
Ela fez a retrospectiva: sem se deixar dissuadir pela afirmação
padrão do pessoal da Adelphi de que não havia vagas, um branco
desordeiro resolvera que ia entrar e, para isso, mantivera Florence
como refém sob a mira de um maçarico de cozinha — “daquele tipo
luxuoso, de aço inoxidável, que se usa para caramelizar crème
brûleé”. Para demonstrar que tinha butano suficiente para se tornar
perigoso, ele acendera a arma.
— Você não vai voltar para lá — disse Esteban.
— Mas eu sou a nossa única fonte renda — argumentou
Florence, sem vigor.
— Nunca mais — insistiu Esteban.
— Ele tem razão. Você fez a sua parte, mãe. — Willing tinha
reaparecido. Com uma olhadela obscura para Nollie, anunciou: —
Chegamos ao Último Capítulo.
Que bestalhão insuportável. Reunindo os primos e os mais
velhos, o garoto convocou uma reunião do grupo em volta da
árvore. Por razões que escapavam ao seu tio, agora aquele traste
de dezesseis anos era o Querido Líder deles. Uma hora dessas, o
garoto ia começar a cortar o cabelo à escovinha, tomar uns tragos
de conhaque e executar os parentes.
— Arranjei proteção para nós — disse Willing, mantendo a voz
baixa. Escondido por seus apóstolos, o garoto sacou parte de um
objeto de sua jaqueta. O metal captou a luz do sol. Ah, pelo amor de
Deus!
— Como você arranjou isso? — indagou Florence, perplexa.
Ainda na véspera, ela teria perguntado por quê. — Roubou
também? Como todas as outras coisas?
Entre mãe e filho passou-se alguma coisa densa, que instigou a
curiosidade de Lowell.
— Ele se acha muito espontâneo — resmungou Goog, dirigindo-
se ao irmão.
— Eu comprei — disse Willing.
— Mas temos muito pouco dinheiro... — começou Florence.
— Com uma coisa de valor — interrompeu Willing. — O que
exclui os dólares, não é?
— Os cálices — murmurou Florence, o que quer que isso
significasse.
— Ainda sobrou um — comentou Willing. — Mas não fale essa
palavra nesse lugar. Nem em voz alta nem cochichando.
Como não conseguia imaginar por que dizer “cálices” seria
perigoso em um parque público, Lowell supôs que o garoto
estivesse se referindo a palavra “arma”. Era um acanhamento
absurdo. Todo mundo sabia que em acampamentos desse tipo as
pessoas estavam armadas até os dentes.
— Você sabe usar isso? — disparou.
— Andei lendo — respondeu Willing, com prazer. — Não é
complicado. É por isso que gente burra consegue o que bem
entende com esses troços há séculos.
— Eu não questionaria a sua pesquisa — disse Esteban. — Mas,
se alguém vai andar armado nesse grupo... não leve a mal, deveria
ser um homem adulto.
— Quem andar com ela vai ter que estar disposto a usá-la, e
essa pessoa sou eu. — O garoto tinha mesmo jeito para concluir
suas piadas de cara limpa.
— Você pode se machucar com isso — disse Carter.
— Essa conversa está tirando nosso foco da questão principal —
retomou Willing. — A internet está cheia de histórias como a nossa,
ou piores. Acho que escapamos quase ilesos. O termo usado pelo
governo, inquietação social, é de uma brandura enganosa. Não
estamos falando de uma insônia generalizada. E a “inquietação”
ocorre principalmente nas grandes cidades, como Nova York.
Precisamos ir embora.
— E onde seria melhor do que aqui, na sua opinião abalizada? —
zombou Lowell.
— Gloversville, é óbvio.
— Ah, é? — fez Goog. — Quem morreu e deixou você como
presidente do mundo?
Willing ignorou o primo, como de praxe, e continuou.
— Há comida, abrigo e um poço. Falei com Jarred. Ele está com
falta de trabalhadores em quem possa confiar. É fácil encontrar
pessoas desesperadas por um emprego. Mas a comida anda muito
valorizada. Os empregados se sentem tentados a roubar. O crime
organizado está trabalhando pesado no mercado agrícola ilegal. Ele
nos receberia de bom grado se estivermos dispostos a trabalhar.
Isso incluiria fazer a vigilância armada dos campos durante a noite.
Os ladrões andam colhendo safras inteiras enquanto os lavradores
dormem. Jarred também tem espaço para nós. Os migrantes
mexicanos que passaram os dois últimos anos lá como posseiros
foram embora.
— Se Gloversville é esse oásis todo — disse Esteban —, por que
eles iriam embora?
— Para voltar para o México, é claro — respondeu Willing. — O
México manifestou sua adesão oficial ao bancor. Captou grande
parte do comércio perdido pelos Estados Unidos. A economia está
em franca expansão.
— Ele está certo — disse Carter. — Se bem que, nos últimos
tempos, é difícil separar a realidade da ficção...
— Chega, pai! Dá um tempo! — disseram Avery e Florence ao
mesmo tempo.
— Foi só um modo de falar! — rebateu Carter. — Os noticiários
da TV, os jornais da internet, todos estão numa rara concordância: a
imigração se inverteu. O México estabeleceu uma enorme presença
militar na fronteira. Os mexicanos natos estão sendo autorizados a
voltar, mas os vistos têm sido universalmente negados aos
americanos brancos, inclusive os vistos temporários de turistas. Os
imigrantes ilegais de El Norte estão sendo deportados aos montes.
— Nossa! — exclamou Nollie. — Os hispânicos são pessoas sem
documentos. Os brancos são ilegais.
— Hipócritas — resmungou Avery.
— Eu não chamo de hipocrisia — interpôs Esteban. — Chamo de
vingança.
— Só que a polícia mexicana da fronteira também está criando
empecilhos para os lats de terceira e até de segunda geração —
alertou Carter.
— Você tem passaporte mexicano? — perguntou Willing.
— Por que teria? — retrucou Esteban. — Por que eu, mais do
que você?
— Uma pena — disse Willing. — Agora ele teria muito mais valor
que o americano.
— Essa é uma reviravolta a que eu levantaria um brinde —
declarou Esteban. — Já era hora de vocês, branquelos, descobrirem
qual é a sensação de quando gente que nasceu num lugar, por
mero acaso, mete a banca em cima de vocês, com esse precioso
passaporte, como se fossem ungidos por Deus. Cara, se eu
estivesse na fronteira nesse momento, ia me escangalhar de rir.
— Será que podemos voltar a falar do que vamos fazer, por
favor? — implorou Jayne.
Willing abarcou o acampamento com um gesto.
— Temos mais sorte que a maioria dessas pessoas. Temos um
lugar para ir. Só temos um problema: chegar lá.
— Acho que a gente deveria voltar na calada e roubar o Jaunt —
sugeriu Avery. — Eles só pegaram a minha chave.
— Não — confessou Lowell, com ar taciturno. — Eles foram mais
espertos do que você. Também pediram a minha, e a chave reserva.
— Contei o nosso dinheiro — informou Willing. — Não podemos
bancar uma única passagem de ônibus ou de trem para o norte do
estado. E, mesmo que tivéssemos dinheiro, de acordo com o
InnerTube, a estação ferroviária da Port Authority, a Grand Central e
a Penn Station estão abarrotadas de gente. Não fomos os únicos a
descobrir que está na hora de dar o fora.
— E o que é que você propõe? — perguntou Lowell. — Que nós
todos nos empilhemos na sua bicicleta, como num daqueles truques
que faziam na década de 1950 com as cabines telefônicas?
A provocação não rendeu: Willing não fazia ideia do que era
cabine telefônica.
— Vamos ter que ir andando — disse Willing.
— Até o norte do estado de Nova York? — exclamou Lowell.
— São trezentos e dez quilômetros, de carro. Um pouco mais que
isso, pelas estradas rurais. Esteban trabalhava como guia de
excursões pelos Palisades. Ele pode mostrar o caminho.
— Ora, ora. Nem acredito que Nosso Amo e Senhor entregaria o
cetro a outra pessoa — disse Lowell, e Avery deu-lhe um chute.
— A primeira parte é fácil — retomou Willing. — Descer a
Flatbush, cruzar a ponte do Brooklyn, subir a ciclovia Westside até a
George Washington. Todas essas saídas estão ficando
congestionadas, então pode ser mais rápido ir a pé do que de carro.
Mas não é nenhum filme de catástrofe. Não há zumbis galopando
furiosos pelas ruas. Não há lagartos gigantes na Quinta Avenida. O
Empire State continua de pé. O centro de Manhattan não está
pegando fogo.
— Filho — disse Douglas, sentado sobre a pilha de mochilas
postas sobre a lona impermeável —, nós levamos quatro horas para
andar cinco quilômetros, ontem à noite. Na minha idade, essa é
mais ou menos a distância que eu aguento percorrer num dia.
Assim, de cabeça, calculo que isso nos deixaria na estrada, e
perseguidos como presas pela bondade de estranhos, por mais de
dois meses. Vocês, mais moços, talvez tenham uma chance. Mas
jamais conseguirão chegar a Gloversville arrastando eu e Luella.
Vocês precisam deixar a gente aqui, está me ouvindo? Já tivemos a
nossa vida. E foi uma vida boa. Melhor do que tende a ser a de
vocês, até onde eu vejo.
— Não vamos deixar vocês para trás — respondeu Willing com
firmeza. — Se levar dois meses, que seja.
— Mas e os mantimentos? — perguntou Jayne. — Mal temos
comida suficiente para sobreviver hoje. Se o nosso dinheiro não dá
para comprar uma passagem de ônibus...
— Os acampamentos não usam dinheiro — explicou Willing. — É
tudo escambo e um pouco de crédito, mas as dívidas também são
pagas em mercadorias palpáveis. Não podemos carregar alimento
suficiente para a viagem inteira, mas podemos providenciar um
começo. Por que, sabe, Avery? As pessoas aqui andam
desesperadas para trancafiar o pouco que lhes restou. Elas
precisam poder fazer portas e janelas que fechem. — Ele tirou da
mochila um punhado de saquinhos plásticos com etiquetas da Home
Depot e acrescentou: — E adivinhe o que está em falta?
Avery sorriu.
— Dobradiças.
Era um plano absurdo. Mas Lowell recebeu bem o pretexto para
sair daquela pocilga e acompanhou Avery e os meninos até o
supermercado mais próximo, na Terceira Avenida, onde apostaram
uma parte do dinheiro vivo em alimentos não perecíveis de alto teor
calórico, como caramelo cremoso de chocolate, salame, halvah — a
antítese da mesa de microverduras e carpaccio de atum que
serviam na Georgetown. Quando voltaram, Willing trocara
dobradiças por carne seca de guaxinim — uma iguaria local.
Enquanto isso, Florence ajudou Lowell a convencer Avery a parar
de deixar recados para Savannah. Eles não deviam acabar com o
crédito restante no fleX. Dentre os três rebentos, sua filha
demonstrara a mais extrema aptidão para viver dos próprios
expedientes. A garota tinha amigos em Manhattan e estava naquela
idade em que não suportava a companhia dos pais. Eles
precisavam ter fé e torcer pelo melhor. Avery deixou o endereço de
Jarred, além de sua localização no Prospect Park — locais que
estavam fadados a fazer a filha desistir de qualquer reencontro com
a família.
E, dito e feito, Savannah mandou uma mensagem de fleX
naquela tarde: “Não vou morar em bosta de fazenda nenhuma.”
Se essa mixórdia de Povo Escolhido pretendia partir em seu
êxodo logo no dia seguinte, como ordenara seu Moisés menor de
idade, pensando com seus botões, Lowell achava que
sobrecarregá-los com Douglas e Luella era autodestrutivo. Aquele
velhote elegante e sua consorte maluca jamais conseguiriam fazer
uma caminhada de trezentos e vinte quilômetros — dormindo ao
relento, dependendo do acaso para obter o sustento, provavelmente
se arrastando por boa parte da viagem com o estômago vazio. Tudo
bem, eles eram avós da sua mulher, mas condenar a expedição ao
fracasso certo só para expressar lealdade a idosos que já estavam à
beira da morte parecia sentimentalismo. Eles se sairiam melhor
deixando os dois ali no acampamento, já que era comum a caridade
surgir com mais rapidez entre os desvalidos do que entre os
prósperos. Em pouco tempo, no entanto, Lowell ficou aliviado por ter
guardado essa opinião para si.
Como Willing contou, posteriormente, nos áureos tempos de
Oyster Bay, o patriarca dos Mandible pertencera ao círculo social
dos caçadores e praticantes de tiro ao prato e estava familiarizado
com armas de fogo. Assim, à luz bruxuleante de sua fogueira, à
noite, Douglas pediu para ver a proteção para a viagem que Willing
arranjara naquela manhã, a fim de garantir que o bisneto
compreendesse o funcionamento da trava de segurança e soubesse
carregar a arma. Aconteceu em um piscar de olhos. Douglas deu
um tiro no peito da mulher e outro na própria cabeça. Ao som dos
disparos, até Deirdre Hesham, acampada em frente, fechou bem
suas janelas.
2047
• CAPÍTULO 1 •

DANÇANDO CONFORME A MÚSICA

O retorno a East Flatbush, fechando o círculo, deveria ser


gratificante. Willing crescera ali. Sua mãe havia trabalhado muito
para comprar esta casa. Por ter ajudado a cultivar alimentos durante
o que os políticos ainda se recusavam a chamar de período de fome
de meados da década de 2030, ela conseguira recursos para quitar
a hipoteca. Em Nova York, os proprietários de direito que estavam
no exílio eram obrigados a registrar suas reivindicações até uma
data específica, ou abririam mão da posse em favor do Estado. O
Estado: um ciclone que ia tragando casas, trailers, animais de
estimação e crianças à medida que passava. Era melhor assim e
Willing ficaria mais calmo se pensasse nisso como um evento
climático.
Retomar a posse de sua casa da infância foi mais complicado do
que ele tinha previsto. Anos antes, Willing trocara seu sobrenome,
herança de sua avó Jayne, por Mandible. Esse rebatismo tinha sido
uma homenagem a Magno Grand Man — como tantas outras, tardia
demais para o homenageado receber o elogio —, que se sacrificara
para que o êxodo da família de um sumidouro urbano cada vez mais
fundo pudesse ter êxito. No que concernia às exigências
burocráticas formais, porém, apenas Willing Darkly poderia herdar a
propriedade de sua mãe, e sua carteira de identidade do estado de
Nova York carregava o sobrenome errado. Por isso, foi preciso ter
paciência para resolver a dor de cabeça. Mas Willing era paciente.
Afirmar seu direito ao número 335 da East 55th Street também
implicou despejar os moradores atuais. Agora muito bem
remunerada em dólares nuevos, ligados ao poderoso bancor, a
força policial de Nova York cumpria essas tarefas com um prazer
atemorizante. Ser o instigador dessa expulsão violenta inquietou
Willing. Sua mãe nunca despejara seu inquilino inadimplente — ao
contrário, acolhera-o na família. Ah, fazia muito tempo que Sam,
Tanya, Ellie e Jake tinham sido substituídos por outros usurpadores.
A julgar pelo estado da casa, os moradores recentes tinham sido
menos refinados (e Willing devia agradecer-lhes: os posseiros
destrutivos fizeram o valor do imóvel despencar a tal ponto que ele
ficara logo abaixo do limite mínimo retroativo dos impostos sobre a
herança). Talvez a benevolência de levar Nollie consigo para o
Brooklyn compensasse a expulsão impiedosa. Aos oitenta e quatro
anos quando eles se mudaram de volta para a cidade e agora com
noventa, Nollie tinha horror a asilos. Além disso, ele não era como a
mãe. Ele era um ladrão. Tinha assaltado um garoto na rua. Em
2032, atacara hortas, roubara pomares e assaltara lojas de
conveniência para alimentar seu grupo maltrapilho na longa
caminhada para o norte. Não tinha sido um bom menino. E
provavelmente não era um bom homem.
Willing lamentara sair de Gloversville, mas, no final, apenas até
certo ponto. Cultivar as terras na Cidadela nunca tinha sido o
mesmo depois que o governo federal estatizou as fazendas. Os
Mandible foram rebaixados a meeiros. Tinham permissão de
conservar uma pequena percentagem de sua produção para uso
próprio. O restante da carne, do leite e laticínios e dos produtos
agrícolas era confiscado pelo Ministério da Agricultura dos Estados
Unidos. Havia regras até mesmo sobre as partes dos suínos que os
criadores podiam conservar: paleta e bochechas. Os fazendeiros
eram vistos como aproveitadores. E muitos o tinham sido. Assim,
logo que introduzida, essa política teve enorme popularidade e
ajudou os democratas a obterem uma vitória esmagadora em 2036.
Uma vitória menos popular com os agricultores. Muitos queimaram
suas colheitas e massacraram seus rebanhos — tudo, menos
abdicar do fruto do seu trabalho em prol de um governo que tinha
destroçado a economia, para começo de conversa. Mas, em termos
de relações públicas, o ressentimento no campo repercutiu
negativamente entre os cidadãos urbanos que passavam fome.
Tinham esperado que a estatização significasse o Valhala:
supermercados bem abastecidos, com preços razoáveis. Em vez
disso, a maior parte da bolada agrícola federal era exportada.
Washington precisava diminuir o déficit da balança comercial e a
China queria carne de porco.
A intercessão ponderada de Willing conseguira ao menos
dissuadir seu volátil tio Jarred de arrasar as próprias terras. Apesar
disso, submeter-se aos acessos cotidianos de raiva do sujeito fora
desgastante. Cabelos cor de carvão, olhos encovados e
temperamento feroz, Jarred era a pessoa que levara Willing a
perceber a validade geométrica do conceito político de esquerda e
direita. Ou seja, se você virar à esquerda, à esquerda e novamente
à esquerda, vai acabar na direita. Jarred começara como
ambientalista radical, uma posição a apenas noventa graus dos
sobrevivencialistas. Com um pequeno ajuste final na mesma
direção, transformara-se em um fanático por armas. Willing não se
interessava em especial por essas categorias, mas elas pareciam
significar alguma coisa para outras pessoas. Para ele, o importante
era que a ira do tio era um desperdício de energia. A cada permuta
política, Jarred precisava ou julgava precisar de um inimigo. Essa
guerra o desgastava. Enquanto isso, o inimigo, se é que existia um,
permanecia impassível. O inimigo não sabia da existência de Jarred.
Willing era grato ao tio. Jarred salvara sua vida e a da família
inteira. Era uma pena que, para o dono da Cidadela, trabalhar na
fazenda como servo da nação tivesse passado a ser tão mesquinho,
opressivo e amargurante. Tal como Avery, quando algo nela se
acalmou, Willing pudera perder-se no trabalho árduo — arar, semear
e colher couve. Ele nunca quis “ser” coisa nenhuma, “se tornar
alguém”. Por que inventar um futuro fantasioso que não seria
possível alcançar? Talvez fosse desprovido de ambição por
natureza, e podia conviver com isso. Como faria uma pessoa não
ambiciosa.
Ele compreendia que este era um país em que se acreditava que
os indivíduos determinavam o próprio destino. Mas um incorrigível
pessimismo — que recaía justamente no ponto anterior, sobre haver
ou não alguma coisa que valesse a pena “se tornar”, alguma coisa
digna de ser almejada, algum lugar para ir — caracterizava toda a
sua geração. Com exceção de Goog, que era energizado pela
maldade e se tornara um TT, um completo Título do Tesouro, seus
primos pareciam prematuramente desgastados, quase idosos em
sua fadiga. O mesmo se dava com Fifa, a namorada de Willing, que
era lânguida, de fala arrastada, corpo estirado, lerda. Era o que lhe
agradava nela. Seu jeito de deitar o corpo nos tristes restos
esfarrapados do sofá clarete de Magno Grand Man podia parecer
preguiça, mas por trás da sua reserva e conservação de energia
havia algo bem diferente. Uma beligerância. Ela dizia que, no
trabalho, aperfeiçoara o que os antigos sindicatos chamavam de
operação tartaruga. Havia calculado o ritmo exato em que não podia
ser repreendida. Fazia o trabalho dela. Só a conta certa. Esse jeito
de fincar pé em uma posição tornava-se lugar-comum. Os inúmeros
mandachuvas da nossa vida nos tiravam muita coisa, mas retíamos
outro bocado, caso contrário, não seríamos donos nem de nós
mesmos. Fifa era dona de si. Quando Willing pensava com afinco
sobre isso, gostava de acreditar que também era dono de si. Mas
não confiava nesse pensamento. Era possível que não estivesse
presente. Que tivesse sido roubado.
E foi essa a razão de não ter sido tão gratificante assim voltar
para a casa de sua falecida mãe.
O retorno à cidade exigia um emprego adequado. Ao fazer as
malas na Cidadela, em 2041, ele já suspeitava que ter um emprego
significasse implantar um chip. Era rotina, todo mundo o dizia. Como
obter um número da seguridade social. Um assunto burocrático,
algo protocolar e relativamente indolor dos tempos modernos. Por
isso, Willing não considerara a inevitabilidade desse procedimento
com seriedade suficiente. Tinha se tranquilizado com o que era
regular, com o que era previsível e costumeiro. Sem dúvida, todas
as épocas têm suas coisas habituais, sobre as quais, na ocasião,
ninguém pensa duas vezes. Suas sanguessugas e sangrias, suas
“curas” para homossexuais, seus reformatórios e suas prisões por
dívida. Quando a pessoa está imersa no é-assim-mesmo do
difundido tempo presente, deve ser difícil saber a diferença entre
tradições como sepultar os mortos e jantar às oito da noite e outras
convenções. Todas têm o mesmo caráter fascinantemente
normativo, que depois salta aos olhos da posteridade como ofensas
contra toda a raça humana. Talvez ele estivesse tentando livrar sua
cara. Tivera seus receios, afinal. Mas é sempre um desafio fazer
uma escolha diferente quando se é informado em termos
inequívocos de que não há escolha a fazer.
Durante a infância de Willing, as pessoas faziam um grande
estardalhaço em torno da pedofilia e de qualquer tipo de abuso
sexual. Sua mãe o chamara até um canto, com uma formalidade
que não lhe era característica, quando ele tinha quatro ou cinco
anos. Ela se ajoelhara para fazer um apelo sentimentaloide que o
deixara com calafrios. A voz dela baixara para um timbre severo e
exageradamente terno: ele nunca deveria deixar nenhum adulto
tocá-lo em suas “partes íntimas”. Essa expressão também não era
dela. A mãe sempre fora correta e franca. Quando queria referir-se
ao pinto ou ao rabo dele, chamava-os exatamente por esses nomes.
Foi assim que Willing reconheceu que a mente dela havia sido
contaminada por um vírus transmissível. O sermão sobre as “partes
íntimas” tinha sido repulsivo. Fizera com que ele se sentisse sujo.
Fizera com que se distanciasse da mãe com uma antipatia instintiva
pouco comum.
Naquele tempo, brincar na rua era proibido. Os empregados das
creches tinham de ser submetidos a uma verificação criminal. Todos
os chefes de grupos de escoteiros eram suspeitos. Ninguém parecia
se importar em saber se o sujeito era um assassino. Os assassinos
eram soltos das prisões e se reintegravam prontamente nos bairros.
Podiam morar onde quisessem. Os criminosos sexuais ficavam
marcados pela vida toda — passados de albergues para o abrigo de
viadutos e obrigados a informar seu paradeiro, que era divulgado na
internet —, a fim de que os pais do lugar tivessem mais facilidade de
iniciar campanhas para expulsar essa escória. O raio da área de
circulação proibida em volta de escolas e parquinhos aumentava
ano a ano. Era pior ser estuprador do que assassino. Por inferência,
era melhor estar morto do que ser estuprado.
Willing não queria voltar à preocupação com as “partes íntimas”.
Não o incomodava que o sexo tivesse virado uma coisa acidental.
Ele e Fifa gostavam de praticá-lo, mas Willing não via a razão de
todo aquele alvoroço de antes, e, na maioria das vezes, os dois
estavam cansados demais. Cuidar do assunto sozinho, em
particular, era mais eficiente.
No entanto, muito depois de a norma social ter seguido em frente,
passando a pairar sobre novas fixações, como uma nuvem que
segue para escurecer outras partes da cidade, ele havia finalmente
entendido do que estavam falando durante sua infância. Não fora
tão ruim quanto ser assassinado, provavelmente — se bem que ele
nunca tinha sido assassinado, então não dava para saber. Mas fora
assustador, mesmo assim. Como ser assassinado e vivenciar tudo
até o fim. E dava para lembrar não apenas da violência, mas
também da agonia. A gente sobrevivia à própria morte, mas ainda
assim morria, ao passo que, em geral, a sobrevivência significava
efetivamente não morrer. Willing tinha certeza de que era isso que
havia ocasionado os sussurros, a posição ajoelhada, a profunda
estranheza do aviso materno em sua infância. A mãe o mantivera
em segurança por anos a fio, depois daquele dia, mas agora ela se
fora e não podia protegê-lo, e por isso, aos vinte e cinco anos,
acontecera, e ele constatara que todos aqueles professores,
orientadores e moderadores das assembleias escolares não tinham
exagerado afinal: Willing fora estuprado.
Era a única palavra de que dispunha para descrever o episódio,
uma palavra, portanto, que não usava com mais ninguém, nem com
Fifa. A própria palavra, aplicada à sua experiência, somada à
lembrança da experiência em si, estava guardada em uma “parte
íntima”. A inércia com que ele se afligia agora, passados seis anos,
o pessimismo sobre sequer haver algum lugar para ir caso
descobrisse de repente a ambição de chegar lá, a mesmice imóvel e
pesada — Willing não podia deixar de se perguntar se estaria tudo
relacionado ao fato de ter sido estuprado. Ele não sabia ao certo
como tinha sido antes. Em termos clínicos, como uma informação
biográfica fidedigna, lembrava-se de um sentimento profundo de
integração na Cidadela. Dos jantares à grande mesa redonda. Da
exaustão lodosa depois de ordenhar as vacas e dar lavagem aos
porcos. Da estima crescente por um grupo de pessoas dentre as
quais várias eram muito diferentes dele — o que fazia desse
sentimento uma conquista. Da afeição por cada indivíduo, mas
também por todas as combinações que formavam entre si e que
eram maiores do que a soma das partes. No entanto, desde que
essa apatia descera sobre ele, Willing só conseguia evocar a
realidade do calor humano, mas não conseguia habitar nesse calor.
Tentava não lembrar (embora a lembrança se intrometesse
quando ele estava desprevenido, tentando dormir ou logo que
despertava). Era ainda mais disciplinado a respeito de não discutir o
assunto. Praticamente todas as outras pessoas haviam passado
pela mesma coisa. Portanto — era esse o raciocínio —, não havia
nada a dizer. Essa pequeníssima indignidade médica era uma
provação menor do que fazer uma limpeza nos dentes. Qualquer
expressão de aflição de sua parte seria interpretada como indicativa
de que Willing Mandible era um bebê chorão. Agora, aliás, até os
recém-nascidos eram submetidos ao mesmo procedimento, na
primeira hora neste mundo. É fato que alguns pais haviam
manifestado a preocupação de que os bebês achassem a operação
dolorosa, traumatizante, uma rude introdução. Mas os médicos
haviam tranquilizado o público. O anestésico local era habilmente
aplicado. O objeto estranho era do tamanho de uma cabeça de
alfinete. Uma simples cutucada seria mais dolorosa, ou até um
apertão. Os pais fariam muito melhor em se angustiar com a
circuncisão masculina, agora redondamente desaconselhada.
Willing invejava os recém-nascidos. O verdadeiro trauma pouco
tinha a ver com o tormento físico. A borracha do esquecimento na
experiência do bebê impediria qualquer horror quanto à finalidade
daquele “objeto estranho”.
Desde seus oito anos de idade, Willing compreendera que a
maioria dos sistemas funcionava mal. Foi uma surpresa descobrir,
quando jovem adulto, que eles também podiam funcionar bem
demais.

***

Fazia pouco tempo que ele se mudara de volta para a East 55th
Street. De menor ordem, esse regresso também acarretara uma
violação. A casa fora ocupada por estranhos durante nove anos. O
resíduo alheio deixado por eles estava em toda parte — camisas
sujas, garrafas vazias de bebida, seringas. Mais perturbador era o
familiar — xícaras que sua mãe tinha lavado carinhosamente na
água cinzenta guardada na pia de plástico, ano após ano, agora
lascadas e sem as alças. Dos pratos ou tigelas com os quais ele
crescera, mal restava um que não estivesse quebrado ou rachado.
Comicamente, havia remanescentes das idas de Avery à
Walgreens, à Staples e à Home Depot. Willing continuou a topar
com uma ou outra embalagem de mãos-francesas, meio vidro de
cola Gorilla, muitos clipes coloridos espalhados no porão. Pelas
embalagens rasgadas, deduziu que alguém realmente se servira
dos kits de tratamento de fungos nas unhas dos pés. Os armários
tinham sido vasculhados. Os poucos frangalhos restantes do
guarda-roupa de sua mãe estavam manchados de mofo. Seu
querido cesto de vime para roupas, da Bed Bath & Beyond, símbolo
da dedicação de Esteban, fora deslocado para a cozinha, a fim de
ser usado como cesta de lixo, e cheirava mal. O simples trabalho de
limpeza foi árduo, e por baixo da imundície e da poeira espreitavam
problemas estruturais mais sérios. A umidade penetrante era
sinistra. Ah, Florence Darkly, você e a sua obsessão com
impermeabilização barata!
Desde o começo ele soube dos montes de empregos disponíveis:
vagas de auxiliar de saúde domiciliar, trabalho em venda e
faturamento de seguros de saúde, concepção e manutenção de
sites de assistência à saúde, atendimento em centrais telefônicas de
orientação e informações de saúde, fabricação de equipamentos
médicos, manutenção e assistência técnica de equipamentos
médicos, transporte médico, pesquisas médicas, fabricação de
produtos farmacêuticos, pesquisas farmacêuticas, propaganda
farmacêutica, serviços de lavanderia hospitalar, serviços de
alimentação hospitalar, administração hospitalar, construção de
hospitais e trabalho em instituições residenciais assistidas que
prestavam serviços a todos os níveis de decrepitude (desde os
portadores de deficiências leves até os moribundos). Como muitas
pessoas da sua idade, Willing abandonara os estudos no ensino
médio. Isso excluía um emprego em neurocirurgia.
Assim, ele achou pela internet uma vaga em uma clínica de
repouso chamada Campos Elísios, na Eastern Parkway, à distância
de uma pequena corrida de bicicleta. Para o trabalho sujo e pouco
requisitado — esvaziar comadres e limpar o chão —, tudo que eles
exigiam eram jovens saudáveis. (A juventude era o único recurso da
sua pequena tropa que estava em alta no mercado.) Assim, durante
a entrevista de emprego, sua contratação parecia líquida e certa, até
ele mencionar, como se só então a lembrança lhe viesse à cabeça
— se isso constituísse um problema, era melhor abordar de uma
vez o assunto —, que não havia implantado um chip.
A notícia levantou todas as sobrancelhas na sala.
— Isso é muito irregular — murmurou um membro da comissão.
— Será que isso é legal, hoje em dia? — cochichou outro.
Foi como se Willing tivesse revelado que era portador da gripe do
esquilo-cinzento. Eles se afastaram instintivamente do entrevistado,
dois ou três centímetros. Informaram-lhe que o chip era uma
condição não negociável do emprego, não apenas ali, mas em
qualquer lugar do estado de Nova York. Se ele resolvesse isso —
“coisa de cinco minutos”, garantiu-lhe um deles, “uma dorzinha
maior para um adulto que para um bebê, mas você estará novo em
folha no dia seguinte”, acrescentou outro burocrata, “pode ser feito
em qualquer clínica ou pronto-socorro, como paciente ambulatorial,
e de graça! Eu fui um dos primeiros a adotá-lo, e, para mim, custou
duzentos nuevos” —, o emprego estaria garantido.
Ao chegar em casa, Nollie se posicionou de forma ferrenha; uma
postura fácil para ela, já que os cidadãos acima de sessenta e oito
anos estavam isentos.
— É uma ideia monstruosa — disse. — Você vai ser um fantoche
deles.
Mas, afinal, os idosos sempre relutaram diante da inovação. Se a
velharia tivesse ficado no comando, todo mundo ainda estaria
andando de carroça puxada a burro.
Em vez disso, Willing poderia varrer a casa da melhor maneira
possível e vender o imóvel caquético de East Flatbush abaixo do
preço. Ele e Nollie poderiam voltar para a Cidadela. Mas Jarred
tinha se tornado irascível. Embora as fazendas aos poucos
estivessem voltando a ser privatizadas, agora que o pior da
escassez de víveres ficara para trás, ele se enfurecia com a ideia de
ter de recomprar sua propriedade. Da família extensa que dera
apoio e enchera de humor e solidariedade os dias da adolescência
de Willing, restara apenas Kurt. Nollie podia não acreditar, mas
precisava de acesso mais rápido a uma assistência médica de
qualidade do que a oferecida em Gloversville. A resistência a um
simples pré-requisito da vida no mundo moderno pareceu ser, ao
mesmo tempo, coisa de criança e birra de velho.
Assim, fechando os olhos para um peso no estômago, como se
tivesse comido dois pratos de bolinhos, Willing entrou com extrema
displicência no pronto-socorro do King’s e declarou a que vinha.
— Nossa! — exclamou a enfermeira. — Você é muito velho para
ser virgem! Como foi que conseguiu se arranjar? Não é um
daqueles grevistas, é? Dos que ficam refestelados no sofá dos pais?
— Não — respondeu ele. Não gostou da forma como o toque
dela no seu ombro o direcionava. Uma reivindicação, um
encurralamento, uma inclusão conspiratória, um bem-vindo-ao-
clube. Mas era tarde demais. A enfermeira já pusera as mãos nele,
literalmente.
Na sala branca simples, ele foi instruído a se deitar de bruços,
enquanto um rápido sequenciamento da amostra de sua saliva era
feito; o chip ficaria eternamente ligado ao seu DNA. Sua testa se
encaixou em um suporte acolchoado, enquanto a enfermeira
ajustava os parafusos de fixação até pôr cada ponta em contato
com a sua cabeça. O fixador craniano fez lembrar o abatedouro a
que Jarred levava as bezerras que não valia a pena criar até virarem
vacas adultas pois a recompensa seria muito escassa: um tubo
estreito firmou o crânio, para garantir que o pino na têmpora
entrasse no lugar certo. Willing não podia mexer a cabeça nem um
milímetro. A ideia era essa. Para proteção dele, explicou
meigamente a enfermeira. Caso contrário, o menor tremor “podia
deixá-lo paraplégico”. Ela riu.
Willing não gostou de ficar deitado de bruços. Era uma posição
sexual, uma postura de submissão. Combateu o pânico crescente
quando a mulher girou um mecanismo atrás dele e o nivelou com a
base do seu crânio — uma depressão macia, tenra, indefesa. Por
mais que fosse feito de vidro e cromo, o aparelho se assemelhava a
um revólver. Quando a enfermeira o disparou, uma dor aguda fez
surgir em um flash o rosto de Magno Grand Man, descarnado,
pálido e vermelho de um lado, antes de tombar ao lado da fogueira.

***

Desde aquela tarde no hospital, o senso de identidade de Willing


sofrera um baque e se tornara pequeno e inerte. Ele se sentia
frouxo, murcho, obtuso. Amedrontado. Piscavam em sua visão
periférica figuras que, quando ele se virava para olhar, não estavam
lá. Ele passou por um período em que esfregava a nuca com uma
esponja de banho várias vezes por dia. Sentia-se profanado e
contaminado e invadido — como se o que se infiltrara por
conivência no seu pescoço não fosse um chip, mas uma tênia.
Sentia-se vigiado. Envergonhado. Sentia necessidade de se cobrir,
mesmo sozinho em seu antigo quarto. Durante algum tempo, até
Nollie manteve a distância — resmungando, carrancuda, guardando
seus pensamentos para si. Desconfiada, perguntava:
— Esse troço consegue ouvir?
Willing nunca dissera isto a ninguém. Não se achava um vidente,
um sábio. Não tinha sido capaz de prever o futuro. Mas, desde os
quatorze anos, mais ou menos, as miudezas díspares que ele
andara recolhendo aos poucos, como conchas do mar, tinham
ganhado coerência. Fatos que outras pessoas não haviam
combinado formavam um padrão. Ele soubera coisas, e as coisas
que soubera tinham se mostrado verdadeiras, ou se tornado
realidade. Desde o implante do chip, a parte da sua cabeça que
percebia com tanta clareza havia morrido.
Ah, não era que ele acreditasse nas teorias mais obscuras da
internet. Não acreditava que o governo federal controlasse sua
mente. Admitia que o chip desempenhava as funções para as quais
se destinava. Ele registrava os depósitos diretos do seu salário.
Deduzia o preço de qualquer produto que resolvesse comprar.
Debitava suas contas. Embora Willing não tivesse experiência com
nenhum dos dois, o chip registrava investimentos e benefícios
recebidos do Estado. Subtraía impostos municipais, estaduais e
federais, os quais totalizavam 77% da sua remuneração.
Comunicava cada compra sua ao órgão conhecido até 2039 como
Receita Federal — o preço do produto, onde e quando fora
comprado e sua descrição exata, incluindo modelo, número de série
e data de validade. Informava às autoridades tributárias americanas
quando ele comprava um pacote de bolachas. Se o chip
acumulasse um excesso de reservas tributárias — um valor superior
ao que Willing demandava, em média, para cobrir suas despesas
mensais —, cobraria o excedente com juros de menos 6%. Se o
saldo ultrapassasse vários patamares, essa taxa de juros progrediria
até menos 21%. (Poupar era egoísmo. Poupar prejudicava a
economia. As taxas de juros negativas também ofereciam aos
americanos um curso rápido de matemática, do qual o público
pouco instruído certamente podia se beneficiar. A uma taxa de juros
composta anual de menos 21%, em cinco anos cem passavam a
valer 30,77.) Qualquer renda adicional — inclusive cupons de
presente de aniversário, renda de bens penhorados, receita de
feiras de alimentos para angariar fundos e ganhos no pôquer em
reuniões particulares — também era registrada no chip e taxada em
77%. O implante do chip resolveu o problema dos cartões de crédito
clonáveis, sujeitos a furtos e disfuncionais desde longa data. Com o
chip implantado, você era um cartão de crédito.
Os protestos parentais sobre o implante de chips em recém-
nascidos cessaram por completo quando os estados começaram a
depositar um generoso “título infantil” de dois mil dólares nuevos no
chip de cada recém-nascido. Para a população em geral, o implante
era promovido como o suprassumo da conveniência e da segurança
financeira. Nada de usar carteira ou algum dispositivo que os
ladrões pudessem furtar na rua. No autocaixa, o terminal
simplesmente escaneava a cabeça do sujeito. Nada de números
pessoais de identificação nem senhas de vinte e cinco dígitos, com
números, letras e sinais. Nada de verificação biométrica — os
hackers aprendiam a duplicar as impressões digitais, o
reconhecimento facial e o escaneamento da íris com a mesma
velocidade com que eram introduzidas as novas autenticações, visto
que qualquer coisa digitalizada podia ser copiada. Tornando
desnecessária a conta bancária, com suas tarifas corrosivas, cada
chip tinha seu próprio site, ou chipsite, para organizar as
transferências monetárias. Tendo um cálculo de coordenadas do
GPS de precisão milimétrica, seu chip comunicava-se intimamente
com seu próprio DNA, batia no ritmo do seu pulso. Se o seu chipsite
fosse acessado por alguém cujos batimentos cardíacos
característicos não entrassem em perfeita sincronia com os do seu
chip, seu dinheiro seria bloqueado. Então ninguém podia fingir que
era você, e uma conta que se movia junto com você ficava a salvo
de predadores. (Os agentes federais exageraram um pouco na
propaganda dessa característica nas primeiras versões do produto.
Em uma onda de “cochilos do chip”, alguns indivíduos foram
forçados a fazer transferências on-line sob a mira de uma arma. Os
aperfeiçoamentos posteriores garantiram que, quando o chip
detectava níveis elevados de hormônios do estresse, como cortisol
e epinefrina, ou mesmo doses altas de tranquilizantes capazes de
bloquear esses hormônios, as transferências eram bloqueadas.
Essa mesma biossensibilidade garantiu que jogadores não fizessem
apostas temerárias quando estavam bêbados, o que surtiu um efeito
nitidamente devastador na indústria dos cassinos.)
Você ficava a salvo de todos os predadores, é claro, menos um.
Todas as transações, nem é preciso dizer, eram comunicadas ao
Serviço de Assistência à Contribuição Social, novo nome da Receita
Federal. (Willing não sabia por que eles tinham se dado ao trabalho
de mudar de nome. Se houvessem rebatizado esse órgão de
Departamento dos Coelhinhos e Filhotinhos de Cachorro, em
questão de minutos o “DCFC” provocaria o mesmo pavor.) A
capacidade de armazenamento dos supercomputadores federais
tornara-se tão infinita que o antigo limiar de registro para depósitos
acima de dez mil dólares passara a parecer imprudentemente alto.
Agora, as autoridades tributárias eram informadas logo que uma
criança de seis anos recebia da mãe recursos para comprar jujuba.
Dois saquinhos.
Todos os portadores de chips pareciam encantados com o fim
das declarações de imposto de renda. Dar a César tornou-se um
processo isento de esforço. Se bem que isso também significou que
já não havia como trapacear nas declarações. Nada de
arredondamentos furtivos nem de disfarçar extravagâncias pessoais
como despesas de trabalho. Isso caiu igualmente bem em termos
políticos. Durante décadas, o público estivera convencido de que
uma elite remota, que levava uma vida nababesca, não pagava
imposto algum. Curiosamente, Willing nunca conhecera uma dessas
pessoas. Elas deviam morar em outro lugar.
Basicamente, o mesmo raciocínio levara à completa eliminação
do dólar nuevo em espécie em 2042. O dinheiro em papel era uma
reserva de valor antiquada. Criava dificuldades logísticas para as
pequenas empresas da classe média. Podia ser falsificado. Era a
forma de riqueza mais fácil de roubar. Durante muito tempo, os
criminosos haviam conduzido seus negócios com maços de notas
presos por lacres de papel, pastas estufadas, malas inteiras repletas
de verdinhas, e agora esses clichês cinematográficos tinham se
tornado obsoletos. É que o dinheiro vivo também era uma das
únicas formas de riqueza que escapava ao controle da lei. Willing se
lembrava do espírito furtivo com que sua mãe fornecera uma pilha
de notas de vinte ao bombeiro hidráulico, como se trocar dinheiro
físico por serviços fosse contra a lei. Dado que o dinheiro em
espécie é tão difícil de acompanhar, rastrear, tributar e controlar,
Willing ficava perplexo por ter levado tanto tempo para que o
governo se livrasse dele.
O idioma, em contrapartida, não obedecia a decretos. Os
americanos continuaram a se comunicar por expressões idiomáticas
que haviam se tornado absurdas. Quando seus chips estavam em
baixa, por assim dizer, as pessoas continuavam a se declarar com a
grana curta. Uma empresa lucrativa continuava a ser uma licença
para imprimir dinheiro, e seu proprietário poderia ter uma fábrica de
dinheiro, embora todas as casas da moeda houvessem fechado.
Fifa continuava a oferecer a seu namorado lacônico uma moedinha
pelo que ele estava pensando. Uma restituição do imposto seria um
dinheiro caído do céu, se um dia alguém a recebesse. Benfeitores
insultados deixavam seus herdeiros sem um tostão, embora os
ferozes impostos sobre a herança incidissem sobre valores tão
baixos que a pessoa teria sorte se conseguisse deixar para os filhos
sua coleção de botões. Jarred via as máquinas agrícolas totalmente
automatizadas como algo que não valia um tostão furado, embora
os dispositivos de segurança mais recentes permitissem que as
colheitadeiras elétricas totalmente automáticas, que nem
precisavam de pilotos, parassem com a rapidez de quem joga cara
ou coroa. Era comum os democratas descreverem a estabilidade
econômica e o desprestígio político dos anos 2040 como dois lados
da mesma moeda.
Alguns otimistas ainda apostavam seu último vintém dizendo que
os Estados Unidos voltariam a se alçar à supremacia mundial,
embora um constructo digital não pudesse ser enumerado do
princípio ao fim. A convenção retórica persistia, mas agora era
impossível ganhar uma bolada. Apreensivo com a solvência de um
comprador, um proprietário de imóvel ainda podia querer ver a cor
do dinheiro, mas, a partir de 2042, a moeda americana deixou de ter
cor. Uma unidade de cem nuevos era uma nota C, gíria que agora
seria facilmente confundida com a cifra de uma nota musical. Por
mais etéreo que se houvesse tornado o papel-moeda, os ludditas
linguísticos do país insistiam em ver o dinheiro como algo em que
era possível rolar, que podia ser jogado em alguma coisa, do qual se
podia possuir um excesso suficiente para queimar, ou — imagem
desconcertante, mesmo na época do dólar de papel — que se podia
jogar no lixo.
Para alegria de Avery, a segurança dos chips restabelecera o
mercado on-line. Radiante com a perspectiva de voltar a comprar
uma torradeira sem sair de casa, a tia de Willing fora uma das
primeiras a adotar o chip. (Tinha sido esperto fazer a primeira leva
de cobaias pagar pelo privilégio de receber o implante. Os preços
altíssimos faziam do chip um artigo que dava status.) Infelizmente,
para pessoas como Willing e seus primos, o empolgante retorno das
compras pela internet foi sobretudo teórico. Eles tinham
pouquíssima renda para comprar qualquer coisa. A economia era
maciçamente movida pelos caprichos dos aposentados.
No convívio social, Willing mantinha em sigilo quaisquer receios
que tivesse a respeito do implante do chip. Os detratores do
protocolo fiscal libertário eram crucificados como malucos. Embora o
acesso contínuo do governo à localização exata do sujeito pudesse
parecer uma violação das liberdades civis, fazia muito tempo que a
maioria dos americanos estava acostumada a ter seus movimentos
rastreados por entidades comerciais como o Google Maps. Fazia
décadas que se implantavam chips em bicicletas. Os animais de
estimação tinham recebido chips. Implantar chips em pessoas
parecia inevitável. Fazer compras com um mero toque em um
terminal remontava à época dos smartphones, de modo que o salto
tecnológico foi mínimo, ao passo que o salto na segurança foi
imenso. Agora, ninguém podia se apropriar de recursos para
compras fáceis sem decepar a cabeça de alguém, e nada destruía
mais instantaneamente a funcionalidade de um chip do que a morte
de seu portador. Ainda assim, Willing achava que não se dera
importância suficiente à localização do chip. Suas salvaguardas
biológicas funcionariam igualmente bem se ele fosse implantado no
braço. O objetivo de instalar a coisa bem encostada no alto da
coluna vertebral era impedir que a pessoa o arrancasse.
Empregando cirurgiões suspeitos, alguns críticos haviam tentado.
Eram reconhecíveis por serem paralíticos.
A decepção de Nollie por seu sobrinho-neto ter se tornado “um
fantoche deles”, por livre e espontânea vontade, deve ter sido
terrível. Pessoalmente, Nollie tinha uma conta bancária antiquada e
fazia compras com um fleX velhíssimo. (Como ele não transmitia
sozinho as comunicações sobre receitas e despesas, ela também
tinha de entregar antiquadas declarações de imposto de renda.
Esses documentos complicados e retrógrados eram
sistematicamente auditados com uma minúcia massacrante, que
levava a múltiplos suicídios de idosos.) Mas os sem-chip constituíam
uma minoria decrescente: idosos, moradores de locais remotos e da
zona rural, alguns expatriados no exterior. Esses indivíduos
anacrônicos despertavam suspeita e desprezo crescentes. Não
podiam comprar um litro de leite sem levar consigo algum
dispositivo. Willing notara que os clientes atrás de Nollie nas filas
dos supermercados se alvoroçavam. Os sem-chip inspiravam a
impaciência generalizada que um dia fora destinada aos retrógrados
que desprezavam os fleXes ou seus predecessores, os
smartphones. Em pouco tempo, toda a população usaria chips, e as
contas-correntes, de poupança e de investimentos seriam abolidas
por completo — e nesse ponto, seria impossível comprar, vender ou
possuir qualquer riqueza monetária na ausência de um espião do
tamanho de uma cabeça de alfinete enfiado na nuca. Com certeza,
era esse o plano, e o Congresso não pedia desculpas por isso —
uma benevolência retratada como semelhante às vacinas contra a
pólio na década de 1960, em âmbito nacional.
Naturalmente, a internet fervilhava com as fantasias febris dos
malucos paranoicos: os chips transformariam o povo americano em
um exército de robôs sem cérebro, que fariam tudo que fosse
ordenado por um ditador louco em Washington. Era fato que havia
pesquisas em andamento para expandir a capacidade dos
implantes, conectando o próprio cérebro à internet. Esse “acesso
cognitivo”, ansiosamente aguardado, tornaria desnecessário o
chipsite, permitindo que a pessoa verificasse seu saldo apenas
pensando em seu extrato, e que fizesse transferências monetárias
com um teclado numérico cerebral. Em um futuro próximo, portanto,
talvez você pudesse ler revistas, jogar joguinhos e ver vídeos de
gatos na sua própria cabeça.
Mas, no pé em que se achavam as coisas no momento, depois
de uma queda na década de 2030, a expectativa de vida fizera mais
do que se recuperar. Em média, os americanos estavam chegando
aos noventa e dois anos. Os Estados Unidos exibiam uma tropa de
cidadãos idosos em números sem precedentes. Em contraste com a
geração passiva de Willing, tipificada pelo baixo índice de
participação eleitoral, quase toda a velharia votava, o que tornara
um anátema político restringir os direitos adquiridos. Juntos, o
Medicare e a Previdência Social consumiam 80% do orçamento
federal. A força de trabalho encolhera. Os dependentes —
aposentados, inválidos, desempregados, menores de idade —
superavam o número de trabalhadores como Willing em uma
proporção de dois para um. Em consonância com a vinculação do
dólar nuevo ao bancor, o Congresso tinha por fim aprovado uma
emenda sobre o princípio do equilíbrio orçamentário. Controle da
mente? Ninguém na capital da república dava a mínima para o que
você pensava. Eles queriam o seu dinheiro.
Por isso, talvez a fuga de Willing, voltando para a Cidadela em
vez de fazer o que lhe ordenavam no Eastern Parkway, equivalesse
apenas a um breve adiamento. Em pouco tempo, era certo que não
ter um chip seria classificado como uma violação do código civil, se
não do código penal, e, a essa altura, até inconformistas armados
como Jarred seriam detidos e regularizados. A imagem era vívida: o
iconoclasta desengonçado, de olhos arregalados, derrubado no
chão, acorrentado e marcado pelo Estado como um novilho —
Willing chegava quase a escutar o mugido, o grito sem palavras do
desafio impotente. Seria capaz de apostar a fazenda nisso, como
diziam: Jarred preferiria morrer a ter um chip implantado.
Ainda assim, Willing nunca soubera ao certo se o seu próprio
inusitado nome, cujo significado literal é “estar disposto”, sugeria um
caráter anormalmente voluntarioso, ou anormalmente submisso.
Infelizmente, o fato de ele haver entrado por livre e espontânea
vontade no pronto-socorro do King’s apontava para a submissão.
• CAPÍTULO 2 •

HOJE FAREMOS UMA FESTA COMO SE


ESTIVÉSSEMOS EM 2047

— Sinto muito mesmo — desculpou-se Savannah no maXfleX. —


Estou me sentindo uma jumenta. Ele me perguntou o que tenho
feito, e deixei escapar. Agora que ele sabe que Bing e eu vamos à
sua casa, você tem que chamá-lo também, com certeza. Não vai
querer ficar mal com ele.
— Não — respondeu Willing, em tom grave. — Não quero ficar
mal com ele.
O telafleX original funcionara tão bem quanto qualquer aparelho
pessoal. Assim, para manter a clientela substituindo o produto por
modelos atualizados, os fabricantes tinham recorrido a uma solução
consagrada pelo tempo: pioraram o aparelho. O maXfleX era
tecnicamente capaz de se desdobrar em uma tela do tamanho da
tela de um cinema pequeno. Mas quase ninguém usava essa
função, que exigira um afinamento maior das moléculas. Agora, um
aparelho famoso por sua capacidade de se compactar e desdobrar
tendia a desenvolver dobras permanentes. Aos trinta e cinco anos,
Savannah não estava menos vaidosa. Não apreciaria a
desagradável linha escura que fazia sombra na lateral do seu nariz,
levando-a a parecer dez anos mais velha.
— Não é brincadeira — disse ela. — Ele poderia destruir a sua
vida. Então, o preço a pagar é pequeno. Você vai ter que convidá-lo
para jantar.
— Não podemos cancelar? — pleiteou Willing. — A noite toda vai
ser um engodo. Ele deixa todo mundo nervoso. Inclusive eu. Só
vamos falar tesourices.
— Não dá para correr o risco de ele perceber que você cancelou
o jantar só porque falei demais e você não suporta a ideia de ter que
convidá-lo. Não vai ser difícil deduzir isso. Nunca houve grandes
amores. Ele já está achando esquisito você ter chamado o Bing e eu
e ainda não tê-lo convidado.
— Tenho que convidar Goog para vir na sexta-feira — disse ele a
Nollie, ao desligar a conexão.
— Por que ele viria? — perguntou sua tia-avó. — Ele detesta
você.
— Ele gosta de me detestar. E gosta de ficar por dentro das
coisas. É um dos atrativos do trabalho dele: a informação
privilegiada.
— O atrativo do trabalho dele — repetiu Nollie — é botar banca
de autoridade e fazer todo mundo suar frio.
Por falar em suor, ela havia acabado de fazer seus polichinelos e
estava de roupa de ginástica. Mais cinco centímetros menor, já que,
depois de toda aquela pulação, estava usando seu terceiro par de
próteses nos joelhos. As cicatrizes nas articulações eram a única
parte de aspecto liso nos seus gambitos ossudos e murchos.
Pensando com seus botões, Willing não entendia o propósito dos
exercícios de sua tia-avó, pois eles costumavam ser praticados com
o intuito de deixar a pessoa mais atraente. E a probabilidade disso
acontecer era bem pequena.
— Ele era um tremendo baba-ovo quando garoto — comentou
Willing.
— Continua a ser baba-ovo. Tenho certeza de que leva para os
seus cães de guarda as carcaças dos cidadãos que destruiu, como
os gatos levam ratos para os donos. Na adolescência, ele sempre
seguiu a orientação política oficial. É um exemplo perfeito. Eles se
alinham com o poder e repetem feito papagaio as verdades aceitas.
— Bem, puxar o saco das autoridades funcionou para ele. Uma
porcaria de curso de formação. E ele ganha mais do que qualquer
um de nós, sem comparação.
— Isso tem importância?
— É digno de nota ser tão recompensador trabalhar no SACO —
respondeu Willing.
— É melhor você treinar essas letras por extenso e pôr o S no
final — recomendou Nollie. — Você sabe que Goog abomina essa
sigla.
Ninguém chamava o Serviço de Assistência à Contribuição Social
de outra coisa senão o SACO, e a troca do S final por O era tão
inevitável que os panacas de Washington deviam ter esperado por
isso.
— Não fui eu que rebatizei a Receita Federal inspirado no que é
uma aporrinhação — resmungou ele.
— Nem num pelego puxa-saco. Mas isso foi antes da sua época.
— Sabe, o que me deixa perplexo não é o fato de o SACS ser o
maior braço do governo federal. O que me deixa perplexo é ele não
ter sido sempre o maior braço do governo federal.
— É... — concordou Nollie, estreitando os olhos. — Entendo o
que você quer dizer.

***

— Eu nunca fui dada a cerimônias — disse Nollie na sexta-feira,


antes que os primos de Willing chegassem —, mas sentar com
tigelas comunitárias no chão... é assim que a gente alimenta
cachorros.
— Ninguém mais oferece “jantares” — disse Fifa, dobrando suas
longas pernas sobre o sofá. — Eles são superincruéis. Nossa, não
sei como minha mãe conseguia aguentar. Todos aqueles copos.
Todas aquelas colheres.
Willing despejou várias latas de rim com grão-de-bico em uma
tigela de aço inoxidável e fez uma concessão ao sal. Eles comeriam
aquela gororoba com tortilhas e beberiam vodca em copos de
plástico descartáveis. Gratos como crianças quando lhes dão
qualquer coisa para comer. A geração de Willing tinha se rebelado
contra a bizarra obsessão de seus pais com a comida. Ele se
certificou de borrar as bordas da tigela com o sumo do grão-de-bico.
O descaso com a apresentação tornara-se uma apresentação em si.
Foi baixar um retrotecno para criar um clima. Só com a ajuda de
Nollie ele conseguira identificar os compassos que constituíam a
música, todos extraídos dos sons de aparelhos de outrora: o schic-
brrrr de um telefone de disco; o PIII-krkrkr-PIII-krkrkr da conexão de
um fax; o puu-pi-prr-po-puu... BII-di-da-BII-di-da... ktchktchktchktch
de uma conexão discada de internet; o marulhar oceânico e o
zumbido de máquinas de lavar que usavam litros e mais litros de
água; a estática maluca de um televisor quadrado de raios catódicos
com a recepção ruim; a enlouquecedora gravação “Por favor,
desligue e tente novamente”, repetida vezes sem conta, de um
telefone fixo fora do gancho. O toc-toc-toc-PING! de uma máquina
de escrever fazia eco ao ting da abertura da gaveta de uma caixa
registradora, ao ping da chegada de uma mensagem de texto, ao
du-di-dring! da chegada de um e-mail, ao toque-padrão de marimba
de um iPhone quando não se tinha orgulho suficiente para comprar
um toque mais interessante. Bem misturados, os sons se fundiam
em uma avassaladora onda sinfônica, com uma batida surda em
staccato. Houvera época em que esses sons se integravam com
tanta descontração no áudio da vida cotidiana que poucos
conseguiam se lembrar deles ao serem extintos, e seu
entrelaçamento era, ao mesmo tempo, cativante e pesaroso.
Savannah foi a primeira a chegar. Willing não entendia como as
mulheres tinham paciência para se mumificar com as tiras estreitas
de tecido exigidas pela última moda das “ataduras”, mas foi forçado
a admitir que as lacunas em que a pele ficava à mostra eram
sedutoras. As tiras por cima dos seios produziam um efeito
impressionante no decote. Mas a escolha das faixas vermelhas,
brancas e azuis só podia ter sido irônica. Willing marcara a reunião
antes de se dar conta de que “sexta-feira que vem” seria o Quatro
de Julho. Algumas cidadezinhas no coração do país continuavam a
fazer shows com fogos de artifício em homenagem à sua antiga
“Gloriosa Bandeira” — rememorações que se derramavam em
discursos sobre a majestade das montanhas lilases, a primeira luz
do alvorecer, glória, glória, aleluia, liberdade e justiça para todos.
Nas cidades costeiras mais sofisticadas, como Nova York, o feriado
se tornara motivo de vergonha.
Na esteira de tantas mortes por bactérias resistentes aos
antibióticos — uma de cujas cepas matara a mãe de Willing —, os
protocolos sociais tinham se tornado menos íntimos. Estender a
mão para um cumprimento era um sinal revelador de que você era
um sem noção que vivia no passado. Os beijinhos no rosto eram
igualmente cruéis, e, se você tentasse dizer olá lascando um beijo
direto na boca de um conhecido, era provável que ele metesse a
mão na sua cara. Willing tocou de leve o ombro da prima, que
retribuiu o gesto.
— Você compra essas ataduras — perguntou ele —, ou passa
noites em claro rasgando lençóis?
— Eu ganho dinheiro demais nos lençóis para rasgá-los — disse
Savannah, gingando para a sala de estar com uma garrafa de Light
Whitening. A saudade da tosca cerveja caseira que alimentara os
acampamentos da década de 2030 tornava chique a bebida
comercial.
No sofá, Fifa acenou com a cabeça de forma sonolenta. Tinha
ciúme de Savannah, por quem Willing continuava a nutrir uma leve
paixonite. Mas Fifa estava segura. Ah, ele reconhecia que agora o
trabalho da prima como “consultora de estimulação” era uma
carreira legítima. Embora pudesse ter nutrido a expectativa de
discernir um certo embrutecimento tido como padrão nas feições
dela, em suas maneiras ou seu espírito, na verdade não detectava
nada disso. Credenciada, registrada, regulamentada e — o que era
mais crucial — tributada, Savannah explorava com sucesso uma
especialidade respeitável. Tinha cartões de visita. Não se escondia
atrás de nenhuma bobagem eufemística como “acompanhante”. Era
top de linha. Conquistara seu espaço na concorrência com os robôs
— cada vez mais inventivos, baratos e programados para topar
qualquer coisa, sem custo adicional. Logo, não havia dúvida de que
ela era muito boa no que fazia. Mesmo assim, Willing tinha um lado
conservador. A legislação não dava conta de eliminar aquele
pequeno calafrio.
— Acho que você devia voltar a se dedicar à arte — disse ele,
consciente de estar perdendo tempo. — Agora está mais tenso. O
troço que os artistas faziam antes da Moratória era tesourice. Vazio.
Uma fraude. Os troços novos... não vendem por muito dinheiro. Mas
você devia ver a exposição sobre o tráfico americano de escravos,
no SoHo. Maxibrutal. E não é sobre o século XIX.
— É — completou Fifa, desleixada, já tendo tomado uma ou duas
doses —, não tem ninguém falando que “os jovens de hoje” não têm
merda nenhuma para dizer.
— Isso não significa que alguém esteja ouvindo — disse Nollie,
entrando com o grão-de-bico.
Encarquilhada e sem chegar a um metro e meio de altura, Nollie
continuava a usar as camisetas, bermudas sem bainha e os tênis
que tinha vestido nos verões da vida inteira, e agora parecia um
extra de O Hobbit com jeito de gnomo. Willing ficou contente por vê-
la se juntar a eles, é claro. Gostava da tia-avó, e, por trás das rugas,
discernia a pessoa provocadora travessa e escandalizante de
cinquenta, sessenta anos antes. Nollie não tivera filhos, muito
menos fora posta no seu lugar generativo pelos filhos dos filhos de
seus filhos. Seu modo de ver a si mesma nunca havia mudado.
Assim, nunca lhe ocorreria deixar “os jovens” curtirem a noite
sozinhos.
— Poupe-nos da solidariedade barata, Noll — respondeu Fifa,
com mordacidade execrável. — Desde que a gente se abaixe, se
vire, levante um fardo de algodão, e vocês recebam sua
aposentadoria, e os remédios da químio criados especial e
individualmente para vocês, como cervejas artesanais
personalizadas; e recebam suas reposições faciais, suas reposições
cerebrais, suas reposições do desejo e do impulso e do amor e da
esperança... ora, vocês não se importam com o tipo de trabalho
artístico que nós fazemos em todas as nossas horas de folga. Juro
por Deus, dou muita risada quando me lembro de como meu pai
costumava chegar do trabalho e sair para dar uma corrida.
Fifa trabalhava em três empregos. Fazia o serviço doméstico e
preparava refeições indiferentes para um inválido rabugento em Bay
Ridge. Instalava corrimões e barras de apoio para boxes de
chuveiro em residências, a serviço de um próspero comerciante on-
line, o fiqueemcasa.com. Três noites por semana, ela distribuía
fatias crocantes de tomate em uma fábrica de sanduíches em
Williamsburg, cujo dono era um magnata de Myanmar. A mão de
obra não qualificada sempre tinha de cobrar menos que os robôs,
de modo que o salário era estarrecedor. Fifa fazia o trabalho que os
estrangeiros não queriam fazer.
Mas ainda era cedo para a acrimônia nesta noite. A batida
acanhada na porta de tela foi oportuna.
— Fé e crédito, cara — disse Bing, com um tapa de solidariedade
no ombro de Willing.
— Fé e crédito — retribuiu Willing, também com um leve tapinha.
A saudação ritualística ia além da compreensão dos mais velhos.
Toda vez que a turma idosa tentava se apropriar dessa troca para
parecer cruel, nunca acertava bem o tom; a cara séria impassível, a
refinada sutileza do azedume subjacente.
Aos vinte e oito anos, Bing era um cara grande, alto e largo. Os
períodos de escassez dos anos da puberdade tinham criado nele
um pavor crônico de perder uma refeição, e, se previa outro período
de fome, talvez exagerasse em sua preparação. Mas tinha se
dedicado ao trabalho agrícola na Cidadela, e seu corpo acumulara
muita força. Bem-humorado e generoso, ele nunca se desfizera de
sua qualidade estranhamente cativante de parecer meio perdido.
O recém-chegado sacudiu um pacotinho.
— Trouxe heroína para dar uma cheirada mais tarde, se vocês
estiverem interessados.
— Como é que você conseguiu isso? — perguntou Savannah.
— A Walgreens estava com uma liquidação de Quatro de Julho.
Eu ia trazer coca, mas estava em falta lá. Caraca, vocês já entraram
no link “Mais informações” no seu chipsite? A heroína em si é
superbarata! Não é o produto, são...
— Os impostos — recitaram os outros, em uníssono.
— Acho que você devia esperar Goog chegar e guardar tudo
para ele — sugeriu Savannah. — Mas só se tiver comprado o
suficiente para uma overdose.
Bing fez uma expressão decepcionada.
— Ninguém me disse que Goog vinha.
— Você inventaria uma desculpa para não vir — retrucou
Savannah. — E, com aquele bandido por perto, preciso do meu
protetor.
Acomodaram-se no chão, uma convenção da moda que
possivelmente vinha do fato de que tão poucos jovens conseguiam
comprar móveis. O costume era uma sorte. Desde garoto, o lugar
onde Willing se sentia mais feliz era o chão.
— Você já pensou em voltar a alugar o porão? — perguntou
Savannah.
— Sempre detestei saber que, quando andava pela sala, eu era
um elefante em cima da cabeça de Kurt — respondeu Willing. — E
se a gente não pode ficar com o aluguel, na verdade... De que
adianta?
— E que tal... por baixo dos panos? — Goog ainda não tinha
chegado, mas, mesmo assim, ela murmurou. — Alugue em bancor.
— Arriscado. Se me pegam... nem quero pensar. Além do mais,
quem moraria naquele espaço úmido e escuro se tivesse acesso à
moeda internacional? — O murmúrio de Willing foi instintivo. Por
mais absurda que parecesse, a pergunta feita por Nollie, seis anos
antes, voltou à lembrança: Esse troço é capaz de ouvir?
— Você ficaria surpreso — disse Savannah. — Há toda uma
economia por aí que você não conhece. De que outro jeito eu
conseguiria seguir essa moda sem rasgar meus lençóis? Enfim, é só
uma ideia. Talvez eu possa ajudar. Mas não toque no assunto pelo
maXfleX, óbvio.
A conversa deixou todo mundo ansioso. Willing mudou de
assunto.
— Nollie voltou a escrever. Eu a flagrei.
Nollie fuzilou-o com os olhos.
— Não é mais do meu famoso egoísmo. Não tenho mais nada
para fazer.
— Eu fiquei contente com isso — disse Willing. — Pode ser
grátis, mas agora a internet está cheia de textos brutais. Como em
qualquer arte. As pessoas têm histórias melhores. “Histórias de
verdade”. Do tipo que você disse que só gosta quando acontece
com os outros.
— Qualquer um que se lembre do que alguém disse, assim,
literalmente, é uma ameaça — observou Nollie.
— Eu li Antes tarde do que — rebateu Willing.
Sua tia-avó pareceu desconcertada e satisfeita.
— Um exemplar pirata.
— É claro. Queimamos os de capa dura. Uma parte dele era boa.
— Estou impressionada — disse Nollie.
Willing não se dera conta de que ela ficaria tão melindrada.
— A história não se passa há tanto tempo atrás, mas parecia
história da Antiguidade. Foi difícil me identificar com os
personagens. Eles vivem num vazio econômico.
— Você quer dizer que são ricos?
— A gente nem sabe se são ricos. Eles tomam decisões por
estarem apaixonados, ou com raiva, ou por quererem aventuras. A
gente nunca sabe como bancam suas casas. Eles nunca decidem
não fazer algo por ser caro demais. O livro inteiro... a gente nunca
descobre quanto esses personagens pagam de impostos.
— Ótimo — disse Nollie. — Meu próximo romance vai ser sobre
impostos.
— Legal — disse Willing, desconsiderando o sarcasmo da tia.
Naquela noite, ele conseguira realizar uma coisa. Depois ela
entenderia, quando parasse de se sentir ofendida.
— Ei, como vão as coisas na Campos Elísios? — perguntou Bing.
— Tudo bem. Afinal — Willing apontou para Nollie com a cabeça
—, passei a maior parte da vida fazendo atendimento geriátrico.
— Nenhum dos seus novos pupilos faz três mil polichinelos por
dia — rebateu Nollie. — E você está longe de ter limpado minha
bunda, guri.
Muito previsível. Ele adorava deixá-la irritada.
— É, Nollie é o que os auxiliares de enfermagem chamam de
caco andante. Consegue ir sozinha ao banheiro, o que é a única
coisa com que o pessoal da Elísios se importa. Há também os
desligados, que são dementes. E os morts: acamados, comatosos,
vegetativos.
— Não é um jargão que mostra muita compaixão — comentou
Savannah.
— Não — concordou Willing. — Não é.
— Quer dizer que o trabalho é principalmente de higiene, troca de
lençóis, essas coisas? — Savannah estava se esforçando. O
trabalho de todos eles era desanimador e repetitivo. Era um desafio
expressar interesse pelo trabalho dos outros, quando eles próprios
não estavam interessados.
— É. E limpar as frestas que os robôs deixam escapar. Mas a
coisa mais importante que eu faço é ouvir. Especialmente os cacos
andantes. Eles parecem ávidos por conversar com alguém que não
tenha cem anos. O simples fato de ser um ancião não significa que
a pessoa goste de conviver com um bando de relíquias, do mesmo
jeito que nós não gostamos.
— Nossa, sei o que você quer dizer — concordou Fifa. — Esta
semana, no ônibus, a velha do meu lado começou a tagarelar.
Agarrou o meu braço, cravou as garras nele, para valer. Parecia
ficção científica, como se ela estivesse sugando a minha força vital
pelas unhas. Quando saí do ônibus, eu estava fraca.
— E eles encaram a gente — lembrou Savannah.
— Porque vocês são lindos — disse Nollie, com raro ar de
melancolia. — Porque vocês são tão lindos quanto nós éramos, e
nós não sabíamos que éramos bonitos, na época.
— Eu não me acho bonito — discordou Willing.
— Você é um homem arrasadoramente bonito — declarou Nollie.
— Devia achar.
As bochechas de Willing arderam. Ela era sua tia-avó, tinha
noventa anos e estava flertando com ele.
— Antes deste emprego, eu não tinha ideia de quantos velhotes
chineses foram despachados para cá. Pelo menos um terço dos
residentes veio da Ásia. É mais barato pôr americanos para cuidar
deles do que pagar o custo mais alto da mão de obra por lá.
— Eles têm muita gente com mais de oitenta anos — disse Nollie.
— Resultado daquela política de um filho só. A pirâmide etária deles
parece um cogumelo.
— Eles não falam inglês — disse Willing. — Mas eu os escuto
assim mesmo. Os moradores americanos ficam mal-humorados,
são exigentes, vocês sabem, como são agora os asiáticos mais
moços. Mas os chineses da Elísios foram criados em outra época.
São calados. Ficam encolhidos. O problema é que não pedem nada.
Você tem que verificar, senão eles passam horas sentados nas
próprias fezes. Na semana passada, um deles morreu de
desidratação. Não conseguia levantar o copo sozinho, mas não
queria pedir que lhe dessem água.
— O trabalho nesses asilos não está ficando arriscado? —
perguntou Bing. — Com todos aqueles tiroteios...
— Na Elísios ainda não aconteceu nada — respondeu Willing. —
Por isso, a segurança deles é frouxa. Não tem raio X nem revistas
pessoais. Mas você tem razão. Virou moda. E está se espalhando.
Quantos aquele último lunático matou em Atlanta?
— Vinte e dois residentes — disse Bing.
— Vinte e quatro, na verdade — corrigiu Savannah. — Foi nesse
que um veterano de noventa e alguma coisa derrubou o assassino
na piscina de hidroterapia e os dois se afogaram.
— O atirador fez um favor àquela velharia inútil — disse Fifa —, e
a todas as outras pessoas.
— Sua namorada — afirmou Nollie — é gerontofóbica.
— Não se preocupem, eu tomo minhas precauções — disse
Willing. — Não faço alarde, mas levo o revólver do Prospect Park
para o trabalho.
Tecnicamente, sua proteção era um Smith & Wesson .44,
chamado X-K47 Black Shadow. Para Willing, era só a Sombra. Fiel
a seu apelido, a pistola clássica de cabo âmbar ia com ele a toda
parte. Sua mãe ficaria horrorizada. Fato de que ele gostava muito.
— Ainda não enferrujou? — perguntou Bing.
— Magno Grand Man me ensinou a fazer a manutenção... e
depois me mostrou como usá-lo.
Quanto a esse aspecto do passado comum, Willing preferia ser
pragmático. MGM deixara este mundo com um gesto altruísta, e não
ia querer que eles evitassem falar no avô.
— O verdadeiro problema — prosseguiu — é que eu posso
trabalhar na Elísios indefinidamente. Como vocês. Estamos todos
parados. Não há um plano de carreira. Nenhum de nós jamais terá
dinheiro suficiente para ter filhos. É como se estivéssemos
congelados no mesmo momento. Como se estivéssemos mortos.
— Chega dessa história de “mortos”! Os Estados Unidos da
América precisam que os seus habitantes fisicamente aptos
pareçam vivos! Você vai se apresentar no trabalho todas as
manhãs, nem que a gente tenha que escorar o seu cadáver com um
pedaço de pau!
Temeroso, Willing se levantou para destrancar a porta. A fala da
maioria dos contemporâneos deles era arrastada, frágil. A voz de
Goog era trovejante.
— Há quanto tempo você está bisbilhotando a conversa? —
perguntou Savannah.
— Há tempo suficiente para saber que esta festa está um lixo.
Vocês estão deixando esse catastrofista aí profetizar outro
Armagedom fiscal? Saibam que, para desolação do nosso xamã,
tudo está ficando uma belezura.
Goog desdenhou do chão e preferiu a poltrona reclinável
quebrada, para melhor presidir os trabalhos. Bateu com uma garrafa
de conhaque de verdade no chão. O bônus de luxo só compensaria
em parte a destruição da noite dos outros. Willing estava tentando
falar sobre a sensação de estar correndo sem sair do lugar. Gostaria
de investigar os primos, para saber se eles achavam possível que
lhes acontecesse alguma coisa que não fosse pavorosa. Agora não
adiantava mais. Todos ficariam receosos.
— Discordo, Wilbur, da sua afirmação de que “nenhum de nós”
terá filhos — disse Goog. — Pessoalmente, planejo plantar a
semente dos Stackhouse. Só não me decidi ainda entre uma
solução de laboratório, tipo olhos azuis e QI elevado, ou o caminho
antiquado. Não faltam candidatas nesse departamento!
Barbudo, de ombros largos e mais baixo do que parecia às
pessoas no primeiro encontro, Goog era quase bonito. Só
ultrapassava a barreira quando as mulheres tomavam conhecimento
do que ele fazia para ganhar a vida.
— Pobre bebê — cochichou Savannah no ouvido de Willing. —
Nunca senti tanta pena de alguém que ainda não existe.
— Essa é nova — disse Bing, em tom respeitoso. — E muito
animadora. Você planeja constituir família logo? — Ele parecia estar
falando com um professor, não com o próprio irmão.
— Quanto mais cedo, melhor — respondeu Goog. — Alguém tem
que fazer isso. Você está longe de estar em franca atividade com as
damas. E a nossa irmã é um buraco.
— Você sabe que eu não gosto dessa palavra — disse
Savannah.
— Também não gosto de ser chamado de sacal — retrucou Goog
—, mas engulo o sapo. Você não pode esperar, sinceramente, que
eu chame você de consultora de estimulação com a cara séria.
— Eu sou diplomada — insistiu ela em voz baixa.
— Um diploma de curso profissionalizante num assunto que vem
naturalmente para qualquer buceta que saiba deitar de costas.
Escutem, sei que é pedir muito, mas será que podem me dar um
copo de verdade?
Os outros estavam circulando a garrafa de conhaque. Bing correu
à cozinha.
— Como eu ia dizendo... — prosseguiu Goog. — Parece que
terei que assumir a responsabilidade pela procriação. E também vou
querer mais de um. Porque ter filhos é patriótico.
— Falando sério — comentou Nollie. — Você vai ter filhos para
melhorar a estrutura etária do país?
— O que há de tão absurdo nisso? — questionou Goog. —
Nossa geração tem sido maxipreguiçosa no setor da reprodução. A
taxa de natalidade despencou nos anos 30, tudo bem, mas já devia
ter se recuperado. Vai virar um problemão mais adiante.
— É, nós somos preguiçosos — disse Fifa. — Depois de quinze
horas no batente, em empregos bostas, ganhando só o valor da
passagem do ônibus com nosso esforço, a gente devia mesmo
passar a noite toda trepando só para produzir a próxima geração de
contribuintezinhos.
Ela estava de pileque. Mas, mesmo quando sóbria, a reação de
Fifa ao seu próprio medo era o desafio. Willing teria que vigiá-la.
— E então, como vão seus pais? — intercedeu Willing.
— Papai está a dois anos dos sessenta e oito — respondeu
Goog. — Aí vai ficar numa ótima.
Antes, as pessoas tinham pavor de ser jogadas para escanteio.
Hoje, aflitas para se habilitar aos benefícios da aposentadoria, todas
mal podiam esperar para envelhecer.
— Além disso — acrescentou Goog —, sabe alguns daqueles
investimentos que ele fez durante a Moratória? Ele se agarrou neles
como se não houvesse amanhã, lembra? Tiveram uma bruta
valorização.
— Isso é realmente ótimo para o país — comentou Willing.
— Por que não é ótimo para o meu pai? — perguntou Goog, em
tom ríspido.
— 85% sobre os ganhos de capital. — Willing deu um largo
sorriso.
— É, bem. Todo mundo tem que dar sua justa contribuição,
certo?
— Com certeza — concordou Willing. — Justa contribuição.
Goog vasculhou o primo em busca de sinais de ironia. A
expressão de Willing era impenetravelmente agradável.
Goog tornou a se recostar na poltrona reclinável.
— Acho que meu pai está gostando de voltar para o
departamento de Economia na Georgetown. Mesmo sendo um
cargo honorário, e apesar de ele só dar aula uma noite por semana.
O problema é que a área de especialização dele, essa coisa de
dívida, inflação e política monetária, foi meio que varrida do mapa.
Agora a porra do NFMI controla tudo isso, enterrou até o Banco
Central, ora. A porra do país não tem mais política monetária...
— Nem dívida — acrescentou Willing. — Nem inflação.
— A questão é que não foi culpa dele...
— Não foi culpa dele estar errado. — Willing devia mesmo ficar
de boca fechada.
— Não foi culpa dele ser surpreendido pelos acontecimentos —
disse Goog.
— Se os Estados Unidos tivessem participado do bancor desde o
começo, em vez de negociarem de uma posição de desespero em
34, poderíamos ter evitado a depressão.
— Depressão é só um jeito de falar.
— Aposto que para o pessoal que morreu de fome não pareceu
ser só um jeito de falar.
— Quer dizer que papai está gostando de ter voltado a lecionar?
— perguntou Savannah, pacificadora.
— É — respondeu Goog, acalmando-se. — Acho que seria
possível chamar essa nomeação de sinecura. Mesmo assim, ela
significa alguma coisa para o cara. Isto é extraoficial, mas gosto de
pensar que tive alguma coisa a ver com essa nomeação. Notifiquei
a universidade de que, em virtude de certas irregularidades em todo
aquele financiamento externo... o lugar é todo apoiado por Pequim,
ora essa, o corpo discente está um horror, com aqueles chinas de
cara chata..., a isenção fiscal deles corria perigo. A administração se
desmanchou em esforços para ser útil.
— Você nunca me contou isso — disse Savannah.
— Pois estou contando agora. Mas, se você repetir isso, vai ser
auditado até o olho do cu. — O tom de Goog foi jocoso. Ninguém
mais pareceu achar a advertência engraçada.
— E sua mãe? — Willing tinha falado com Avery pelo maXfleX na
semana anterior. Estava perfeitamente atualizado quanto à vida
dela. Savannah tinha razão: fique nos assuntos seguros.
Goog revirou os olhos.
— A verdade é que não conversamos muito.
— Ela não queria que você fosse para o SACO — disse Savannah.
— Não, ela não queria que eu fosse para o SACS. O que a torna
uma tremenda anta. Foi a melhor ideia que eu já tive. Foi-se a era
dos conselhos no colo da mamãe. Enfim, sabem que ela pegou
aquela febre da boa samaritana. Só fez piorar, depois que sua mãe
morreu, Wilbur. Como se ela tivesse que dar continuidade à mesma
bosta de tradição. Assim, ela criou um tal de “banco de alimentos da
juventude” em Washington. Maxiequivocada.
— Por quê? — perguntou Savannah.
— Desmotiva — respondeu Goog, com ar de importância. — Por
que ela acha que nós eliminamos a assistência social, exceto para
os inválidos? E metade deles é de malandros. Gente que torceu o
dedo mindinho.
— Os exames médicos para atestar a invalidez são bem
complexos — disse Nollie.
Goog a descartou com um aceno da mão e bebeu um gole do
seu copo.
— Não sei o que vamos fazer com os grevistas. Os números
aumentam a cada ano que passa. Nem com aqueles dorminhocos
imundos. Isso me deixa com o sangue fervendo. Não estou dizendo
que devia ser contra a lei...
— Você só está dizendo que devia ser contra a lei — interrompeu
Savannah.
— Talvez SACO devesse começar a importar negros da África em
grandes barcos — disse Fifa. — Há um número suficiente deles:
dois bilhões e meio! Em Lagos, ninguém sentiria sua falta.
— Você tem um sério problema de mau gênio, meu bem — disse
Goog.
— O mau gênio também deveria ser contra a lei, eu acho —
retrucou Fifa.
— Estou farto disso. — Goog debruçou-se na direção do rosto
dela. — Os Estados Unidos não são um estado policial. Isto aqui é
um país livre, e você pode dizer a porra que quiser. Estou de saco
cheio de gente como você, sempre soltando o verbo sobre a
“opressão” e a “subjugação” e a “tirania”. Quer dizer que esperam
que você faça a sua parte, que ajude a manter a economia no rumo,
e o que há de errado com isso? Também não há nada de errado no
fato de as pessoas com mais de sessenta e oito anos receberem
assistência médica, ou um estipêndio modesto de um sistema de
aposentaria pelo qual elas pagaram durante a vida inteira...
— Não pagaram o suficiente — rebateu Fifa — para cobrir os
custos de ficarem sentadas por aí, desmoronando, por muito mais
tempo do que trabalharam...
— Então, o simples fato de você ter que contribuir para o mesmo
sistema — continuou Goog — não significa que você esteja vivendo
sob as botas de nazistas marchando com passo de ganso, sacou?
— Pois quase conseguiu me enganar — disse Fifa, em tom
suave. — Você não ameaçou fazer a Savannah “ser auditada até o
olho do cu”? Pois então, vá em frente. Pode me auditar até rachar.
Não vai achar nada em volta do meu chip além de bolotas de poeira
digital.
— Eu poderia mandar trocar o seu chip. Partindo do princípio de
que ele foi comprometido...
— Pensei que fosse inquebrável.
— Pode ser danificado, tipo cortar em pedaços. Não é agradável.
— Ah, vá em frente — disse Fifa, oferecendo-lhe a faca
serrilhada com que eles estavam cortando o pão francês dormido.
— Você está de porre — retrucou Goog com desdém.
— Gloriosamente — concordou Fifa, bebendo outro gole do
conhaque dele, direto do gargalo, sem higiene alguma, de um modo
superincruel. — Quer ouvir uma verdadeira liberdade de expressão?
Eu acho que os grevistas são heróis. Se tivesse peito, eu pararia de
buscar a porcaria dos chinelos para uma vaca de Bay Ridge, de
preparar sanduíches miseráveis para outros caras, e de fixar barras
de proteção para os mortos-vivos. Também colocaria meus pés para
cima. Tudo, menos me lascar de trabalhar feito um burro de carga
para sacais como você.
— Os grevistas estão é rindo por último para cima de você,
querida — disse Goog. — Não estão se sacrificando por seus
princípios. Estão se refestelando na casa dos pais e mamando o
dinheiro da aposentadoria das avós. E, quanto mais grevistas e
mais dorminhocos houver, mais os seus impostos sobem, sabia?
Eles estão passando a perna em você.
— Quer dizer que você acha mesmo que uma pessoa se recusar
a trabalhar por apenas 23% do salário dela deveria ser contra a lei?
— questionou Savannah.
— É, pode ser — admitiu Goog, em tom rude. — Talvez eu ache.
— Não sei direito se os dorminhocos estão na mesma categoria
— disse Willing. — Eles economizaram, apesar de eu não saber
como. O pouco que eles custam, pagam adiantado.
Do mesmo modo, Willing não entendia por que o Banco Central
demorara tanto a deixar de ser um órgão perseguido, subfinanciado,
para se transformar no mastodonte rebatizado que era hoje.
Também ficava perplexo ao se perguntar por que dormir não havia
decolado décadas antes. Quando as drogas recreativas foram
legalizadas, regulamentadas e tributadas, perderam a graça, da
noite para o dia. Só então as pessoas sacaram que o suprassumo
do narcótico estivera eternamente à disposição de qualquer um, de
graça: o sono. Uma cutucada farmacológica para um coma
infindável era barata, e uma dose leve e contínua permitia ciclos
oníricos repetidos. Os corpos inertes gastavam uma energia
desprezível, de modo que os soros para nutrição e hidratação raras
vezes tinham que ser repostos (os dorminhocos ficavam ligados a
enormes barris desse troço). As viradas regulares do corpo, para
prevenir escaras, proporcionavam empregos muito bem-vindos aos
trabalhadores não qualificados. Os dorminhocos não precisavam de
apartamentos, muito menos de maXfleXes ou roupas novas.
Precisavam apenas de uma muda de pijamas e um colchão. Uma
denominação ultrapassada e revivida, “clínicas de repouso”, passou
a denotar os depósitos de sonâmbulos, que só eram acordados e
chutados de lá quando seus pagamentos prévios chegavam ao fim
do prazo. Gerações anteriores tinham afanado dinheiro para
comprar imóveis. Muitos da geração de Willing eram igualmente
obcecados com a acumulação de um pé de meia, mas de olho na
possibilidade de passar tantos anos de vida cochilando quanto suas
economias pudessem comprar.
— Os dorminhocos têm um custo para a produtividade —
declarou Goog.
— Já cogitei isso, se eu pudesse levantar o dinheiro — disse
Willing —, talvez fizesse isso por um ano... Toda vez que meu
despertador toca, às cinco e meia, a ideia de dormir me parece uma
bênção.
— Willing, você não faria isso! — exclamou Nollie, horrorizada.
— Eu preferiria assistir aos meus próprios sonhos — resmungou
Savannah para Fifa — a ver outra porra de seriado coreano.
Gêmeos separados passam a morar juntos depois de se
reencontrarem, e o gêmeo do Norte confunde um secador de cabelo
com uma bazuca... Mamãe e papai não faziam ideia da sorte que
tiveram por assistir a comédias ambientadas em Minneapolis.
— Mamãe diz que a fisio depois do período de sono é muito
braba — comentou Bing. — Se bem que aquele novo tratamento
secundário dela, o Recondicionamento Vertical, tem dado muito
certo. Os músculos deles parecem geleia. Eles saem das clínicas de
repouso de maca, do mesmo jeito que se retiram cadáveres de um
necrotério. Na verdade, ficar acordado também pode ser assustador.
Tem havido muitos suicídios. Eu preferiria emigrar.
— Mas para onde? — perguntou Savannah, alarmada.
— Os javaneses da gerência da IBM parecem civilizados — disse
Bing. — Eu poderia ir para lá.
A fábrica da Indonesian Business Machines, em Nova Jersey,
onde o caçula dos Stackhouse trabalhava como supervisor de
produção, fabricava robôs que podiam ser equipados para atuar
como supervisores de produção. Willing entendia por que Bing
estava fazendo outros planos.
— Como você chegaria a Java? — perguntou Savannah. — Eles
não concedem vistos a quase ninguém, e não dão vistos a
americanos de jeito nenhum.
— Existem meios... — Bing deu uma olhadela ansiosa para o
irmão.
— Entrar ilegalmente em qualquer lugar da Ásia é uma fria. —
Em sua determinação de dissuadir o querido irmão caçula de dar o
fora, Savannah não enxergou o nervosismo de Bing em relação a
Goog. — Não há nada desse blá-blá-blá de “direitos humanos”,
“devido processo legal” nem “pedido de asilo”. Eles não dão
estipêndios semanais nem colocam você numa unidade de
habitação social, com um avisinho frouxo de que você não deve
trabalhar. Não há julgamentos refinados, com advogados gratuitos e
a possibilidade, ao ser condenado, de recorrer, recorrer e recorrer.
Não há nada dessa história de esquecerem de você, embora você
não devesse estar lá, por serem muito desorganizados, além de
politicamente ambivalentes quanto ao direito que têm de expulsá-lo
do país, para começo de conversa, ou por estarem muito duros,
para ser honesta, para pagar a passagem aérea da sua deportação.
Não, não. Eles ficam de olho, sim, e nunca dão uma de
desentendidos e o libertam sob a sua própria responsabilidade, sem
pagamento de fiança, dizendo: ah, seria bom se você comparecesse
ao tribunal em tal data, daqui a um ano e meio. Jogam você direto
na cadeia, com ratos e comida estragada, e, quando juntam um
grupo grande o suficiente, nem sequer o mandam de volta para o
seu país. Largam você em qualquer lugar: Sibéria, França, Nigéria.
Onde for conveniente para eles. Especialmente na China, eles são
supertesoureiros. Pode ser que você nunca mais volte para casa.
— Ah, não pode ser tão ruim assim — disse Fifa. — A China e a
Índia estão inundadas de imigrantes ilegais. Uma porção deles da
África, também, e esses são meio que reconhecíveis.
— Mas eu tenho que fazer alguma coisa — constatou Bing,
pesaroso. — Mesmo que fiquem comigo na IBM, o que eu duvido, é
como disse Willing sobre a Elísios: nunca vou progredir. Todos os
cargos altos são ocupados por gente do Sudeste Asiático. E não é
que eu não queira dar a minha justa contribuição. — Quando ele
deu outra olhadela de relance para o irmão, ficou com a expressão
apavorada de filhotinho de cachorro que fez xixi no tapete. — Não é
que eu não me importe nem um pouco, vocês sabem, em manter a
economia funcionando... Fico contente por ajudar os cacos, digo,
desculpe, Nollie, os longevos. É uma assistência médica que eles
supermerecem, certo? Mesmo assim. Não me pagam muito, para
começar. Depois que o chip acaba de mastigar o salário, não sobra
nada. — Agora ele já nem queria olhar para Goog. — Se pelo
menos eu emigrasse...
— Detesto ter que estourar sua bolha, companheiro — disse
Goog —, mas há um aspecto do código tributário dos Estados
Unidos que não muda desde a Guerra de Secessão. Os americanos
têm sua renda tributada no mundo inteiro, o que inclui os
expatriados. Você recebe um crédito pelos impostos estrangeiros.
Mas, se Jacarta não enxugar seu chip, cuidaremos da sobra. Por
isso, é uma sorte você não se incomodar em pagar o que deve, meu
irmão. Os satélites do SACS estão aptos a extrair o que é devido,
mesmo que você esteja correndo pela tundra mongólica. Não que
algum dia lhe ocorresse tapear o seu próprio governo, mas, agora
que o uso do chip decolou internacionalmente, sabe? A sua
possibilidade de pôr as mãos em qualquer dinheirinho sem nós
sabermos o valor, até duas casas decimais, bem... Será mínima.
— Uau! — disse Fifa, deitada de costas. — Que festa incrível!
— E quanto ao México? — sugeriu Willing. — Lá você poderia
subir na escala social. O setor industrial é imenso. Eles têm um PIB
maior que o dos Estados Unidos...
— O que não quer dizer grande coisa — ironizou Nollie.
— Mas Esteban está indo muito bem — disse Willing. — Agora
ele dirige sua própria companhia de expedições a áreas naturais...
— Não sei como — interrompeu Nollie. — O México não tem
nenhuma área natural.
— Bem, nenhum lugar tem, Noll — retrucou Fifa, irritada, olhando
para o teto. — Vai ver que ele leva grupos a um estacionamento em
que ainda existem umas vagas desocupadas.
Quando seu tão saudoso pai de verdade partira para a fronteira
meridional, em 2039, Willing tinha se emocionado com a
profundidade da relutância do lat em deixar o que ele considerava o
seu país. Esteban era um autêntico patriota americano. Em
contraste, na tradição liberal do nordeste, os membros da família
Mandible diziam coisas desagradáveis sobre a nação, com
frequência, como se odiá-la os tornasse melhores. É verdade que
Esteban zombava dos velhos branquelos que se envaideciam da
própria “tolerância”, mas, na verdade, não o queriam por perto.
Sentiam saudade dos velhos tempos em que controlavam tudo. Mas
ele nunca insultou o país em si — a ideia do país e de como devia
funcionar, mesmo quando não estava funcionando dessa maneira
(mais ou menos sempre). Em alguns momentos, Jayne e Carter,
MGM, Nollie e a mãe de Willing tinham parecido extrair um prazer
selvagem da derrocada dos Estados Unidos. Para Esteban, o
declínio do que ele acreditava de coração ser a maior nação do
mundo era só uma tristeza.
Muitos lats como Esteban tinham voltado aos poucos para a terra
de seus antepassados. A perda foi mais do que numérica. Eles
tinham sido americanos com o fervor dos convertidos. Com a
emigração em uma alta sem precedentes, a população americana
estava se contraindo pela primeira vez na história. A população
remanescente sentiu-se presa em uma armadilha, ilhada, deixada
para trás. Muitas vezes, essas eram as mesmas pessoas que
tinham vituperado o acúmulo de estrangeiros que cruzavam suas
fronteiras. Agora que os forasteiros já não arriscavam a vida para
chegar aos Estados Unidos, os nativos se sentiam abandonados.
Sentiam saudade do seu próprio ressentimento. Sentiam-se pouco
amados. Não havia muita satisfação em se agarrar a alguma coisa,
apertá-la e defendê-la quando ninguém mais a queria. Talvez Willing
compreendesse por que americanos da idade da sua mãe, ou mais
velhos, às vezes se sentiam invadidos, alienados ou substituídos —
embora pudessem ter se sentido muito menos ameaçados se
simplesmente aprendessem espanhol. Mas é claro que havia uma
situação mais calamitosa do que viver em um país em que o resto
do mundo também queria morar: viver em um país do qual todos
queriam sair.
A lealdade de Esteban se dera também em um sentido pessoal.
Ele ficara ao lado da família na Cidadela — embora capinar a terra
em Gloversville reproduzisse o rude trabalho braçal que seu pai
fizera, assim como seu avô, e do qual ele pensava ter escapado. E
então, depois de tudo que haviam enfrentado juntos, ele perdera
Florence por causa de um corte no dedo. O filho que era seu em
tudo, menos no sobrenome, chegara à maioridade. Dificilmente se
poderia chamar sua partida de deserção.
Savannah despertou Willing do seu devaneio.
— Por que seria mais fácil entrar no México?
— Esteban atravessou a fronteira — respondeu Willing. — Teve
de contratar coiotes, mas isso foi bem simples. Os mesmos caras
que transportavam lats para El Norte começaram a fazer o mesmo
trabalho no sentido inverso.
— Esteban conseguiu atravessar antes que acabassem de
construir a cerca — disse Savannah. — Que é eletrificada e
computadorizada e 100% vigiada, desde o Pacífico até o Golfo. E
Esteban também tinha pedigree. Teria a possibilidade de se
naturalizar. Lá eles não naturalizam nenhum “branco não lat”.
Somos uma espécie pestilenta. Mesmo que Bing conseguisse
milagrosamente atravessar o Rio Grande, a discriminação é de
matar. Sei do que estou falando. Meus clientes são uma fonte de
informação melhor do que a internet. Na condição de amerilixo, Bing
seria tratado com maxidesprezo. Pior: lembram-se daquele antigo
xingamento, merdixicano? Experimentem merdianque. É assim que
eles nos chamam. Chega a ser cômico, se considerarmos que gente
como a nossa Fifa, aqui, trabalha em três empregos, mas eles
acham que somos preguiçosos. E, sem dúvida, acham que somos
burros.
— Ter todo aquele poder e deixar que se perdesse? — indagou
Nollie. — Isso é bem burro.
— Ele é sempre perdido — retrucou Willing. — Quer a gente
deixe, quer não.
— Então, ter todo aquele dinheiro e deixar que se perdesse —
corrigiu Nollie. — Ter todo aquele dinheiro e ainda gastar mais do
que se tinha. Eu chamo isso de burrice.
— Essa é a versão mais pretensiosa e vazia que já ouvi sobre os
últimos vinte anos — disse Goog.
— Podemos não falar disso? — protestou Savannah. Desvendar
o quê, por quê, com quem, e principalmente que significado tinha
tudo que acontecera era uma obsessão recorrente das conversas,
em todos os lugares. Willing entendia por que ela estava cansada.
— Ainda fico dilacerado por não termos feito nada quando a
China anexou o Japão — disse Bing, entristecido. — Sempre gostei
dos japoneses, por alguma razão. Com seu jeito especial de fazer
as coisas. Tudo muito certinho. Senti pena deles.
— Quando afundaram aquele destróier chinês, os japoneses
procuraram briga — comentou Goog, parafraseando o que o
presidente dissera ao povo americano na ocasião. — Acho que eles
queriam ser invadidos. Estavam se estrepando, de qualquer
maneira. Foi um grande haraquiri camicase, tipo vá-em-frente-e-
atire-logo-em-mim.
— É verdade, toda a raça japonesa praticamente evaporou —
concordou Savannah. — Por isso, achei bem convincente o
argumento da margem de manobra. Com aquela inundação vindo
da África e todos aqueles refugiados das Guerras da Água, a China
está estourando.
— Mesmo assim, não dá para deixar de imaginar como aquela
frota teria levado a pior, se os chineses tivessem atacado um aliado
americano na nossa infância — rememorou Goog, afetuosamente.
— Fico maxitriste por termos perdido aquela confusão. Teríamos
enterrado Pequim tão fundo que as torres de vigia da Cidade
Proibida iam sair do outro lado, em Omaha.
— Tesourice — divergiu Savannah. — Se tivéssemos intervindo,
teríamos bagunçado tudo, como sempre. O mesmo se aplica a
Taiwan. Foi bom para cacete a gente não ter conseguido bancar a
despesa.
— Depois de tantos fiascos... Vietnã, Iraque, Nova Zelândia... eu
esperaria concordar com você — disse Nollie. — Mas ficarmos
parados olhando, e dando desculpas por ficarmos parados... achei
aquilo vergonhoso.
O sentimento de vergonha de Nollie era amplamente
compartilhado por toda a sua geração e pela maioria da geração de
Florence. Mas Willing não tinha uma sólida opinião formada a esse
respeito. Na época em que o dinheiro americano no seu bolso se
desintegrara, virando lenço de papel, ele desconectara uma coisa
rapidamente. A abstração para a qual fora convocado, pelo fato
arbitrário de ter nascido no país, já não parecia ter nada a ver com
ele. Willing era americano como adjetivo. Já não era americano
como substantivo. Não via necessidade de tomar como uma coisa
pessoal a objeção dos Estados Unidos a declarar guerra à China.
Se isso significava ele mesmo não ter sido forçado a virar
paraquedista, inflando-se sobre os topos dos arranha-céus de
Chengdu, era ótimo. No mais, se ele tinha que se sentir impotente, a
fonte da sensação estava mais perto de casa: ele era obrigado a
convidar para jantar um primo de quem não gostava. Isso era
impotência. Mas Willing não sentia daquele jeito quando se tratava
de Taiwan ou do Japão. Seu país não havia ajudado porque não
pudera. Não tinha dinheiro. Isso era relaxante. Deveria ser a mesma
sensação que outros países tinham quando os Estados Unidos
despachavam bombardeiros, navios, soldados e aviões com tropas
e equipamentos toda vez que alguma coisa corria mal. Quando
havia genocídio em Madagascar, a Argentina não se censurava por
não fazer nada a respeito. Era uma vida melhor. Quando Willing era
pequeno, era comum afligir-se por uma pessoa “não ter limites”. Os
amigos que “não tinham limites” causavam vergonha. Não tinham
noção do que guardar para si. Logo, um dos méritos de estar em um
país qualquer eram suas fronteiras. Elas traçavam um limite em
volta daquilo que era assunto seu. Ajudavam a delimitar as coisas
consideradas da sua conta.
— Escutem, vocês viram aquela casa de vidro que construíram
no terreno da casa de Jayne e de Carter, em Carroll Gardens? —
perguntou Savannah, entrando noutro assunto. — É um palácio
vietnamita. Inacreditavelmente espalhafatoso.
— Bem, agora o Brooklyn está todo assim — disse Goog. —
Metade dos sobrados marrons foi derrubada. Os caras-de-prato não
têm o menor senso de preservação do patrimônio.
— Goog, esse seu pejorativo está fora de moda — censurou
Savannah. — Você sabia que há mulheres como eu entrando na
faca para ficar com os olhos mais repuxados e o nariz mais
achatado?
— Falei com Carter e Jayne na semana passada — interpôs
Nollie. — Jayne continua reclamando por não ter recebido a
indenização do seguro. Mas aquele casal de Hanói pagou uma
fortuna pelo terreno, mais do que o suficiente para compensar o fato
de que, entre impostos sobre a herança e taxas de manutenção
retroativas, não valeu a pena reclamar o apartamento da mamãe.
Eles continuaram podendo comprar o que quisessem... ou o que
achavam que queriam. Talvez o problema seja esse.
— Eles estão muito velhos para cuidar sozinhos de um rancho
em Montana — disse Bing. — Pelo menos, eu os ajudei a escolher
um robô cuidador. Só que, com o tipo top de linha que eles
compraram, a conversa é um entulho. Os mais baratos vivem
respondendo às palavras-chave erradas. São hilários, muito mais
divertidos.
— Problemas com robôs? — perguntou Fifa. — Jogue uma
frigideira num deles e você só vai estragar o seu utensílio caro. A
minha megera lá de Bay Ridge tem dinheiro suficiente para comprar
cinco robôs cuidadores de primeira. Mas aí não ia poder levá-lo à
loucura, nem estragar o dia dele.
— Acho que entendo por que eles anseiem por solidão depois de
terem morado na Cidadela com toda aquela proximidade com outras
pessoas — disse Nollie. — Mas Jayne estava quase normal quando
eles saíram da fazenda. Agora, todos aqueles acres deles são um
grande “Quarto Silencioso”. Ela voltou a ficar biruta. E Carter
também regrediu. Caramba, pensei que tivéssemos resolvido isso
na Cidadela. Mas agora ele deu para ficar de novo todo exaltado por
causa dos “anos perdidos” com Luella, e tem flashbacks daquela
época. Juro, casais confinados sozinhos são o fim. Não há assunto
suficiente para conversarem. Então eles voltam a meter o pau sem
parar nessa Enola horrenda, egoísta, nem que seja para não
atacarem um ao outro. Não dá para comer o dia inteiro, então eles
se banqueteiam de ressentimento entre as refeições. Para ser
franca, nossa conversa mal chegou a ser cordial. E isso depois de
eu não ter criado o menor caso por aqueles dois terem se servido de
todo o faqueiro de prata da Casa da Abundância. Não pedi nem
uma faca de manteiga.
— Se você tivesse ido com mais frequência a Carroll Gardens
naquela época — disse Willing —, entenderia por que umas
pecinhas de um faqueiro de prata não dão nem para começar a
compensar.
— Eu não aguentaria aquilo — admitiu Nollie.
— Ninguém aguentaria — retrucou Willing.
Se Jayne estava mesmo retrocedendo para a neurose e Carter
andava cultivando rancores, isso fazia deles duas belas exceções.
Em toda a nação, a saúde mental e física dos americanos tivera
uma gigantesca melhora. Quase ninguém era gordo. As alergias
eram raras, e, ultimamente, se alguém mencionasse que evitava o
glúten, era provável que um pedaço de pão o matasse. Distúrbios
da alimentação, como anorexia e bulimia, haviam desaparecido.
Quando um amigo dizia estar deprimido, era por ter acontecido algo
triste. Depois de uma cascata de horrores em uma escala de vida ou
morte, ninguém tinha energia para ter medo de aranhas, ou de
espaços confinados, ou de sair de casa. Nos anos 2030, a falência
generalizada das farmácias (sempre assaltadas), bem como a
impossibilidade geral de arrumar grana para comprar drogas na rua,
tinha posto os viciados em uma abstinência repentina em âmbito
nacional. As academias fecharam, e os preparadores físicos
particulares seguiram o rumo das lâmpadas incandescentes. Mas
fazer consertos em seus imóveis, cuidar de jardins, andar para
economizar combustível e rechaçar os intrusos com tacos de
beisebol deixaram os americanos com impressionante preparo
físico. Uma vez que as cirurgias de mudança de sexo eram
impossíveis de custear, os diagnósticos de disforia de gênero
tornaram-se inúteis. Se uma mulher pendia para o masculino, ela
adotava movimentos bruscos, angulosos, e cruzava as pernas
apoiando um tornozelo no outro joelho; todos entendiam a
mensagem e os gestos eram mais elegantes. Assim como os
sonhos suplantaram as drogas, a fantasia sexual sempre fora um
caminho mais limpo e mais gostoso, para não dizer mais barato, de
satisfazer inúmeras tendências rebeldes, em contraste com a
experiência crua e dolorosamente imperfeita de pôr as fantasias em
prática. Ninguém tinha dinheiro, tempo nem paciência para nenhum
tipo de patologia. Não era como se os americanos tivessem
controlado as esquisitices; simplesmente já não se sentiam
impelidos a consertá-las.
— Ei, Willing — disse Bing —, você vive se lembrando de como
era na Cidadela. Se a Elísios é uma bosta, por que você não volta
para lá? Você se apegou àquela tesourice de fazenda mais do que
todos nós.
— Eu pensaria nisso — respondeu Willing. — Mas faz meses que
não consigo entrar em contato com Jarred. Finalmente passei uma
mensagem de fleX para Don Hodgekiss, da fazenda vizinha. Ele me
disse que Jarred deu o fora. Deixou a Cidadela para os agentes
federais. Ele sumiu do mapa.
— Para onde você acha que ele foi? — perguntou Bing.
Nollie revirou os olhos. Savannah voltou toda sua atenção para
passar uma última tortilha na tigela de grão-de-bico.
— Como é que vou saber? — Willing não cruzou o olhar com o
de ninguém. Tomou o cuidado de não olhar para Goog e de não
parecer que não estava olhando para Goog.
— É óbvio, não? — disse Goog. — Vocês não têm que bancar os
inocentes. Quem é o verdadeiro maluco desta família? Quem é
naturalmente revoltoso? Quem é o traidor babaca, sem o menor
respeito pelas autoridades? Quem foi aumentando os preços, de
maneira oportunista, durante toda a década de 2030? Quem ignorou
completamente a anistia às armas em 38?
— Ele não ignorou por completo — discordou Bing. — Quando
anularam a Segunda Emenda...
— Ninguém anulou a Segunda Emenda, seu jumento — xingou
Goog. — Ela foi elucidada. Agora os estudiosos modernos da
Constituição acreditam que a emenda nunca teve a intenção de se
aplicar aos indivíduos, para começo de conversa. “Uma milícia bem
organizada” significa a polícia e as forças armadas. Não um lunático
com um AK num centro comercial.
— Jarred entregou uma ou duas pistolas, sim, para salvar as
aparências — disse Bing. — E todo mundo ignorou a anistia. Todos
aqueles impasses, tipo “só se você tirar a arma das minhas mãos
mortas e frias”...
— E quem foi, também, que encarou aquela fazenda idiota como
uma “cidadela”, uma fortaleza e um território separado? —
continuou Goog. — Quem é que não tem um sentimento de
lealdade em relação a seu país e, sem dúvida, sofreu as
consequências disso?
— Não temos como saber ao certo para onde ele foi —
resmungou Savannah. — E esse boato sobre a autodestruição do
chip, nunca tive certeza de que isso fosse verdade.
— Ah, é verdade — afirmou Goog, em tom sinistro. — Pode crer.
Willing quase deixou escapar que, até onde sabia, Jarred não
tinha um chip. O que impediria a explosão da parte posterior da sua
cabeça, feito uma abóbora atingida por uma espingarda, no
momento em que um satélite do SACO detectasse que ele pusera os
pés onde não devia. Willing conseguiu manter a boca fechada. Essa
informação poderia ter privado seu primo de uma satisfação
maléfica, e não era do interesse deles negar nenhum tipo de
satisfação a Goog Stackhouse.
— Ouvi dizer que lá eles vivem feito animais, sabia? — disse
Bing. — Não têm internet. Então, é como a Idapedra, eternamente.
As pessoas moram em choupanas de barro, ou tendas, ou coisa
assim. Não têm eletricidade nem televisão, nem mesmo rádio,
porque o país bloqueia. Há uma porção de webzines que dizem que
eles não têm nada para comer, e o lugar todo se entrega ao
canibalismo.
— Só pode ser uma pocilga de merda — continuou Goog. — Está
completamente isolada do comércio mundial. Violar as sanções
americanas bota o sujeito na prisão por tanto tempo que nem
mesmo esses sem-chip asquerosos se arriscam a fazer
contrabando. O único país que reconheceu os EUN foi a Eritreia.
Mesmo que você conseguisse passar pelos guardas e as minas na
fronteira, o que é impossível, desertar para a terra daqueles
malucos é classificado como traição. Que é o único crime
remanescente no Código Penal que ainda é punido com morte. Por
isso, espero que nenhum de vocês venha algum dia a ser tão
insubordinado quanto Jarred parece ser. Nomearam uma unidade
inteira do SACS, totalmente liberada pela segurança, com autoridade
para apertar o botão.
É óbvio que Willing queria fingir desinteresse perto de Goog.
Mas, como a maioria das pessoas, sentia-se intrigado com os
Estados Unidos de Nevada, que incorporavam diversas nações
indígenas, além da sociedade organizada original, e eram
coloquialmente conhecidos como Estado Livre (o que causava muito
ressentimento em Maryland, que reivindicava esse apelido desde
1864). Quem podia não sentir fascínio por essa caixa preta, um
trapézio do qual nada nem ninguém saía e no qual, pelo menos
oficialmente, nada nem ninguém entrava? Desde a secessão do
estado, em 2042, todas as informações sobre a república
separatista eram bloqueadas assim que surgiam. A Agência
Nacional de Segurança devia ter instalado filtros na internet, visto
que, para fazer uma busca sobre a inexperiente confederação, era
preciso usar eufemismos evasivos e sempre reconfigurados, como
“jogo de aposta alta”, que também paravam de funcionar em poucos
dias. Willing se alegrava por não ter havido uma segunda Guerra da
Secessão. Alegrava-se com o fato de a mesma criação de falsas
desculpas que impedira os Estados Unidos de socorrerem o Japão,
baseada no enfraquecimento do povo e na privação da soberania,
ter levado o Congresso a descartar aquele poço ocidental de aridez
e poeira com um desdenhoso “já vai tarde”. (Agora o país mantinha
um comércio mais animado com Cuba do que com um buraco de
acesso proibido no seu próprio interior. Nos mapas modernos dos
Estados Unidos, Nevada aparecia rancorosamente em branco.) É
verdade que, por sorte, as fronteiras nacionais podiam excluir tudo
que ficava fora delas, classificar como imaterial. Mesmo assim, os
Estados Unidos de Nevada ainda pareciam ter alguma coisa a ver
com Willing. Supondo que seu tio não houvesse levado um tiro do
lado americano ao tentar entrar naquele perímetro notoriamente
militarizado, ele não tinha dúvida de que era para lá que Jarred
fugira. Os momentos em que os EUN lhe passavam pela cabeça
eram os únicos instantes do dia em que Willing se sentia acordado.
Devia ser verdade que as fronteiras eram impossíveis de
atravessar. Devia ser verdade que o chip do sujeito era programado
para explodir sua cabeça na improvável eventualidade de que,
assim mesmo, ele conseguisse fazer a travessia. Não obstante,
Nevada era a única exceção à afirmação de Goog de que não havia
como fugir do SACO. Era o único lugar do mundo em que milhões de
americanos não estavam pagando impostos federais. Por
conseguinte, a simples menção daqueles rebeldes traiçoeiros levou
o convidado mais influente do jantar de Willing a se enfurecer. Seria
prudente mudar de assunto.
— E então, como vão as coisas no SACS? — perguntou Willing,
com animação, a Goog.
— O que é isso? — retrucou Goog, desconfiado. — Está
interessado no meu trabalho?
— Todo mundo nos Estados Unidos se interessa pelo seu
trabalho. — Willing aperfeiçoara a cara de jogador de pôquer na
adolescência. Sua ridicularização e sua estima sincera eram
indiscerníveis.
— Já que você perguntou — prosseguiu Goog —, estamos
introduzindo novas exigências de comunicação que estão fadadas a
afetar você, Nollie. Afinal, não parece justo que a maior parte do
país forneça tantos dados sobre a renda e os gastos, enquanto os
que ficam de fora podem funcionar sob uma capa de sigilo e
confusão, não é?
— É, o fato de eu guardar segredo da minha compra de fraldas
geriátricas parece uma flagrante injustiça — respondeu Nollie.
— A partir de janeiro do ano que vem — a voz de Goog ressoou
de prazer —, os sem-chip serão legalmente obrigados a apresentar
um relatório, no mesmo dia, sobre todas as suas compras e
depósitos. Já criamos os formulários on-line, que são bem extensos:
endereço do vendedor, número de identidade nos cadastros de
impostos federais, data e hora, número de série do produto, objetivo
da compra...
— Você quer dizer que o governo federal precisa saber para que
eu comprei fraldas geriátricas — disse Nollie.
— O melhor de tudo é que os formulários não aceitam recortar-e-
colar. — Goog simplesmente não conseguia parar de sorrir. —
Talvez você descubra que continuar fora do sistema vai ser bem
complicado e dará bastante trabalho.
— Isso é assédio — disse Nollie.
— Visto de certa maneira — retrucou Goog, descontraído —, todo
governo é uma forma de assédio. Mas você não gostaria de ver as
coisas dessa maneira, não é?
Savannah perguntou, intrigada:
— Por que não fazer os velhotes implantarem o chip de uma vez,
como todo mundo?
— Coação é uma coisa grosseira e provoca acessos de raiva —
declarou Goog. — Dessa maneira, os longevos são convencidos a
abraçar o implante do chip como uma bem-vinda salvação do
equivalente a Abu Ghraib sob a forma de papelada. Pense bem: se
eu a acertar com um porrete, você vai ficar com raiva e poderá até
revidar. Se eu a espetar repetidamente com um alfinete, você vai me
agradecer quando eu parar.
— Vocês são diabólicos — acusou Nollie.
Goog aceitou o elogio com um aceno gracioso da cabeça.
— Ah, e também começamos a examinar arquivos antigos, agora
que o Congresso rescindiu aquele limite aleatório de sete anos
sobre a nossa curiosidade. Muita irregularidade nos anos 2030.
Como aqueles bebês chorões do Boicote Fiscal, que se recusaram
a entregar a declaração de renda, num chororô em que alegavam
ter sido levados à falência por “seu próprio governo”. Com juros
compostos e taxas, aqueles aproveitadores vão perder tudo.
Converter dólares em nuevos é complicado, mas nós elaboramos
uma fórmula.
— No final, o valor do dólar estava mudando todos os dias —
disse Willing. — Até de hora em hora. Então sua fórmula deve ser
terrivelmente sofisticada.
— Ela funciona mais ou menos em nosso benefício, se é isso que
você quer dizer — admitiu Goog.
— Sim. É isso que quero dizer — confirmou Willing. E tomou o
cuidado de acrescentar: — Assim é mais patriótico. Melhor para
todos. Para o país em geral.
Goog tornou a estudar o primo, à procura da ironia. Mas devia
estar acostumado com as concessões dos cidadãos. A de Willing
era pro forma.
— Então, descobriu-se que outros caras tinham a impressão
idiota de que podiam deduzir as perdas por conta do cancelamento
dos títulos do Tesouro — continuou Goog —, ou tinham a
desfaçatez de subtrair a diferença entre a indenização que
receberam pelo ouro e a supervalorização grotesca do metal no
mercado. Como papai sempre disse, era um investimento imbecil,
por isso eles mereciam levar uma porrada, só por serem uns débeis
mentais, se você quer saber.
— Não sei se era mesmo um investimento idiota — disse Willing,
mantendo o tom afável. — Quem tivesse guardado tudo que
brilhava em 29 teria um belo lucro hoje, mesmo depois dos 85%
sobre os ganhos de capital.
— Não ganhariam nada senão uma sentença de prisão —
respondeu de forma ríspida Goog. — Qualquer ouro nesse país
continua a ser propriedade do governo americano. Você não
conhece, por acaso, alguém que ainda esteja entesourando ouro,
conhece?
Entesourar continuava a ser um sinônimo adorado pelos
burocratas para o ato de reter nossos próprios bens.
Willing aguentou firme, com um sorriso tímido.
— Eu estava falando em termos teóricos.
Diante do tipo de interrogatório desgastante, antes reservado
para os terroristas e agora praticado exclusivamente com supostos
fraudadores de impostos, o erro mais comum do suspeito era adotar
uma gama de emoções de alta intensidade: indignação, abatimento,
contrição chorosa, ira. Todavia, a defesa mais eficaz contra Goog
sempre fora a cordialidade branda. Um rosto feliz e sereno levava o
sacal à loucura, mas ele não tinha como protestar.
— Mas, se o ouro é um investimento tão imbecil — acrescentou
Willing, com educação —, por que o governo o quer?
— Os Estados Unidos não estabeleceram os termos do bancor —
disse Goog com desdém. — Por falar nisso, recebi uma dica
antecipada sobre uma revolução que está em andamento e vai
superfacilitar a nossa vida no SACS. O governo vem pressionando
por isso há anos, e a decisão foi finalmente tomada a nosso favor.
Portanto, vocês estão ouvindo aqui em primeira mão: o NFMI vai
eliminar o bancor em papel-moeda.
Nollie cruzou as pernas no sofá, com uma feminilidade coquete
que não lhe era característica. Savannah empalideceu, mal
conseguindo perguntar:
— Por quê?
— Use a cabeça — respondeu Goog. — Todo o mercado ilegal
funciona na base do bancor. Mas a economia sem papel-moeda
está pegando no mundo inteiro. Logo, logo, não vai ser possível
guardar dinheiro vivo numa caixa de sapatos em lugar nenhum. Ser
sem-chip será a mesma coisa que estar completamente duro. A
eliminação total do dinheiro vivo, no âmbito internacional, vai acabar
com a corrupção, com a sonegação, com o crime organizado e com
quase todo tipo de delito.
— Eu fico pensando... — ponderou Willing, como se houvesse
acabado de pensar nisso, embora ele e Jarred tivessem discutido o
assunto a fundo. — O que você entende da afirmação de que a
definição de uma sociedade realmente livre é a de um lugar em que
o indivíduo ainda pode se safar de alguma coisa?
— Eu diria que é uma definição traiçoeira de liberdade, Wilbur.
Lei é lei. Você obedece ao pé da letra. Liberdade é o que sobra. Se
a lei não diz que você não pode fazer uma coisa, você pode fazê-la.
Willing fez uma expressão confusa.
— Não tenho certeza de que a liberdade funcione como o que
sobra, para mim. Como os retalhos de tecido que sobravam quando
minha mãe fazia cortinas. Liberdade não é uma sensação? Afinal,
para ter liberdade, não é preciso exercê-la. Não tenho que me
levantar para beber água. Mas saber que poderia me levantar muda
o que eu sinto quando estou sentado, mesmo que eu permaneça
sentado.
— Você está falando tesourices, guri — disse Goog. — É óbvio
que você está alegando que numa sociedade livre todo mundo pode
desrespeitar a lei sem enfrentar as consequências. Ou seja, na sua
cabecinha desviante, liberdade é só outra palavra para descrever a
criminalidade desenfreada.
— Às vezes eu atravesso a rua contrariando o semáforo. —
Willing poderia ter deixado para lá, mas não sentiu vontade. Toda
aquela afabilidade tinha sido desgastante. — Se não tem trânsito.
Corrija-me se eu estiver errado, mas acho que isso é uma infração.
Não prejudiquei ninguém, nem violei a preferência de ninguém no
trânsito. Mas desrespeitei a lei. Poder atravessar a rua contrariando
o que diz o sinal é importante para mim.
— Caramba, Wilbur — disse Goog. — Isso é triste para cacete.
— Se você tirar isso de mim, e todas as outras oportunidades de
não andar propriamente na linha — continuou Willing —, então, por
mais que haja coisas divertidas que eu tenha a liberdade de fazer,
não me sentirei livre. Se eu não me sentir livre, não serei livre.
Não me sinto livre, Willing não acrescentou, e não tenho me
sentido livre desde que você e os seus colegas enfiaram essa lasca
de metal no meu pescoço.
— E por que o governo americano deveria se preocupar com os
seus sentimentos? — atacou Goog.
— Por que ele deveria se importar com qualquer outra coisa? —
rebateu Willing. — Se a sensação de viver aqui é uma bosta, o que
estamos preservando e protegendo? Para que serve o país?
— Essa é a pergunta mais burra que já ouvi — respondeu Goog.
— Essa festa sofreu uma séria deterioração. Vou cair fora.
— Mas e o bancor? — perguntou Savannah. — Quando é,
exatamente, que vai deixar de ter dinheiro vivo?
— O anúncio é na semana que vem. Vai ser um dia feliz no nosso
escritório. Champanhe e bolo.
— Quer dizer que o dinheiro em espécie vai perder o valor da
noite para o dia, por decreto? — indagou Savannah.
— Do mesmo jeito de quando o dólar nuevo foi introduzido. O
pessoal terá um mês para fazer a conversão. Depois disso, sim, o
bancor em espécie não será moeda corrente... em lugar nenhum.
Vai ser fascinante, com certeza. Todos aqueles recursos
aparecendo de repente nos chips de quem antes estava na pior.
Entre taxas, multas e impostos atrasados, vai ser uma sorte épica
para o SACS. Ou, como observou tão nobremente Wilbur, para todos.
Para o país.
— Mas por que alguém colocaria bancores ilegais nos chips, se
vocês vão tirar tudo? — perguntou Savannah.
— Porque talvez eles possam conservar um tiquinho de nada da
grana, em vez de perder a bolada toda, e, na minha experiência
profissional, vocês, contribuintes sacanas, são uns safados
gananciosos que metem a mão em tudo que podem pegar —
respondeu Goog. — Mas por que você está tão interessada?
— Não estou! — Savannah cruzou os braços com força sobre o
decote nos seios.
— Muitos estrangeiros gastadores vêm a esta cidade em busca
de entretenimento — disse Goog. — Você não estaria sendo paga
em moeda internacional de vez em quando, estaria?
— Bem, se algum dia eu fosse paga assim, é claro que colocaria
o dinheiro no chip, imediatamente! — Savannah dava a impressão
de mal conseguir respirar. Era uma péssima mentirosa.
— Aposto que sim — retrucou Goog. — Eu sou razoavelmente
bem pago, mas é tudo 100% oficial. No lugar onde eu trabalho, não
sou só eu que tenho de ser de uma lisura impecável, sabe? A minha
família inteira tem que ser de uma lisura impecável. Por isso, vou
pôr um alerta no seu chip. Se houver qualquer pico repentino na
renda, estaremos de olho.
Com essa nota encantadora, Goog se retirou da reunião. Levou a
última sobra do conhaque.
• CAPÍTULO 3 •

A VOLTA DA IDEIA DE QUALQUER COISA:


ATIRAR EM ALGUÉM, IR A OUTRO LUGAR,
OU AS DUAS OPÇÕES

Fazer a limpeza, depois de um jantar de tigelas no chão, levou cinco


minutos. Fifa estava apagada no tapete. Willing a cobriu com um
cobertor. Ela precisaria estar de pé dali a três horas, para instalar
barras de segurança em boxes de chuveiro em Windsor Terrace.
— Percebi que você ficou calada depois que Goog foi embora —
comentou Willing.
— Humm — grunhiu Nollie, enxugando a tigela de aço inoxidável.
— Desde que chegou a East Flatbush pela primeira vez, nunca vi
você ficar sem dinheiro.
— Humm — grunhiu ela mais uma vez.
— Fiz umas pesquisas. Os seus outros livros venderam mais ou
menos. Mas Antes tarde vendeu milhões.
Nem ao menos um grunhido. A tigela estava brilhando.
— Você trouxe bancores da França — prosseguiu ele. — Aquele
“antigo namorado” que você visita em Flushing. Seja quem for, ele
ou ela faz o câmbio para você no mercado ilegal.
Nollie parou de enxugar a vasilha e lhe lançou um olhar furioso,
com os olhos saltando.
— O chip não escuta! — exclamou Willing. — Já experimentei!
Disse em voz alta no meu quarto: “Eu tenho fontes secretas de
renda de que o SACO não tem conhecimento”, e não aconteceu
nada!
— Muito bem — respondeu ela, relutante. — Mas as minhas
finanças são particulares.
— Só estou tentando ajudar. O que quer que lhe tenha restado,
se você depositar, eles vão tributar tudo ao máximo, e vão fazer
perguntas. Você pode ser processada. Agora já é legal ter bancores,
mas, quando você trouxe essas notas e passou com elas pela
alfândega, a posse delas era crime. Poderiam usar esse pretexto
para confiscar o valor todo. Por outro lado, se não depositar, você
ouviu o que Goog disse. Vai chegar uma data em que o dinheiro vai
virar confete da noite para o dia.
— E daí? Aí vou usar as notas para forrar uma gaiola de
hamster? Para impermeabilizar o sótão?
— Sei que isso viola todos os seus instintos, mas as novas
exigências de comunicação dos gastos fora do chip só vão começar
em janeiro. Logo, antes que venha o anúncio público de que o
bancor vai deixar de circular em espécie, o que vai inundar a
economia de bancores e derrubar a taxa de câmbio nas transações
em dinheiro, você tem que gastar.
Nollie finalmente depôs a tigela.
— Eu me esquivei deles em todas as ocasiões. Agora, eu me
sinto colocada contra a parede. Você não é a única pessoa que
preza o ato de se safar de alguma coisa.
— Então, gaste o dinheiro para se safar de alguma coisa.
Nollie enxugou as mãos no pano de prato, torcendo-as com
ansiedade.
— Os jovens querem dinheiro para comprar coisas. Não só
roupas e joias, mas experiências, emoções. Os velhos querem
dinheiro por uma única razão: para se sentirem seguros.
— Nunca se pode ter dinheiro suficiente para estar seguro —
disse ele com delicadeza. — O dinheiro em si não é seguro. Você
devia saber.
— E como! Mas, afinal, a vida não é segura aos noventa anos.
— Exatamente. A ilusão da riqueza é que ela pode comprar o que
você quiser. E pode, mas só se você quiser, digamos, um vestido
bonito. Você não quer vestidos. Você quer não ser velha. Nunca
conversamos muito sobre isso, mas não gostaria que um daqueles
seus namorados impetuosos tivesse ficado por perto? Talvez você
queira continuar a ser uma escritora famosa, e também não pode
comprar isso: não existem escritores famosos. Ou quer escrever
com o mesmo fogo que a motivava quando começou a escrever
Antes tarde, aquele tipo de fogo que quase ninguém consegue
conservar. Você quer a cabeleira farta dos seus antigos
instantâneos. Finge que não, mas quer que as pessoas gostem de
você. Quer não ter câncer. O que ameaça tudo que existe de
importante para você não é o bancor sem papel-moeda, nem a
depressão monetária, a Moratória ou o colapso econômico, e sim o
seu próprio colapso. Afora poder escolher, sei lá, uma boa garrafa
de vinho, ou talvez comprar um frango, você não pode comprar
nada que queira.
— Vocês, jovens, acham que todos nós, baby boomers, vivemos
numa bolha delirante — retrucou Nollie. — Está pensando que foi
um choque eu envelhecer? Não sou idiota. Desde que tinha a sua
idade, leio sobre “mulheres idosas” que são estupradas e roubadas
em casa e, no fundo da minha cabeça, já ouvi um sussurro: “Logo,
logo, meu bem, essa vai ser você.” Sempre previ que me tornaria
um alvo; que ficaria indefesa, fraca e sozinha. Talvez meus pais
tenham tido essa premonição. Já parou para pensar nisso? Enola é
‘sozinha’ em inglês, alone, escrito de trás para a frente. Assim,
houve um período específico, na casa dos meus quarenta anos, em
que tive a oportunidade de guardar umas economias, me
preparando para um dia de tempestade que talvez durasse
décadas... uma monção, minha mudança climática pessoal. Na
minha cabeça, eu estava estocando uma verdadeira fortificação
física. Se erguesse alto o bastante os tijolos de notas, os bárbaros
não conseguiriam pular o muro. Em termos menos metafóricos?
Talvez eu pudesse pagar para que fossem embora.
— Mas isso é um delírio. Na sua idade, a principal ameaça não
são estupradores nem ladrões, nem ondas de saqueadores numa
segunda Idade Média, nem qualquer outra coisa vinda de fora. Você
enfrenta todo dia um inimigo interno. Então, o produto que você não
pode mesmo comprar, mais do que qualquer outro, é segurança.
Por que isso não liberta você de tentar proteger o que vai perder de
qualquer maneira? Isso devia fazer você se sentir corajosa.
— Olhe só quem fala em ser corajoso — retrucou Nollie, com
amargura, e a mudança no tom dela o magoou. Willing investira um
grande esforço nesse monólogo, e achava que tinha ido muito bem.
— Você estava falando besteira só para se divertir? Ou pensou
seriamente em ficar dormindo?
— Pensei, sim.
— Quer dizer que, se eu me oferecesse para gastar meus
bancores colocando você em coma autoinduzido por cinco anos,
você aceitaria minha oferta?
Na verdade, a proposta foi tentadora.
— Você diz isso com repulsa. Mas será que outros cinco anos
limpando bundas na Campos Elísios seriam melhores do que o
sono? Eu adoro dormir.
— Willing. — De braços cruzados, ela o confrontou diretamente,
de costas para a bancada, imprensando-o contra o fogão com
aquele olhar. Era tão mais baixa do que ele que Willing não entendia
como ela conseguia parecer intimidante. — Não costumo bancar a
mais velha e proferir julgamentos das alturas. Por isso, escute esta
única vez: durante todo o começo da década de 30, você foi
esperto. Engenhoso. Desobediente. Impossível de intimidar. Eu
adorava vê-lo sustentar suas convicções diante daquele cretino do
Lowell Stackhouse, embora ele tivesse três vezes a sua idade.
Havia algo diferente em você. Desculpe. Já não sou tão articulada
quanto antes. Neurônios demais desligados. Excesso de birita
caseira. Mas esse algo, é ele que os autores de ficção como eu, ou
ex-autores de ficção como eu, sempre tentamos colocar na página.
Nunca conseguimos. O que não significa que não exista, apenas
que é impossível de capturar, como aquelas mariposinhas
abominavelmente esquivas que a gente não consegue pegar no ar.
Até na Cidadela você trabalhou muito duro. Desfrutou o esforço.
Arou campos feito um boi, e aquele algo só fez vicejar. Mas, desde
que o chip foi implantado, você envelheceu. Parece igual a outras
pessoas. O menino que eu conheci em 2030 nunca desperdiçaria os
recursos da sua tia-avó no sono.
— Duvido que o chip tenha mexido com a minha cabeça do jeito
que você está insinuando. Eles não são tão inteligentes assim. Deve
ser um mero recurso contábil. Mas um recurso contábil que não me
permite atravessar a rua contrariando o sinal.
— Trapacear é restaurador — concordou Nollie —, preserva a
dignidade. Quebrar uma regra por dia é muito melhor, para ficar
saudável, do que uma porra de uma maçã.
— Lá na Cidadela, nos campos — continuou ele —, tínhamos
muito tempo para conversar. Avery me contou como era difícil para
os pacientes cancerosos quando eles melhoravam. Disse que,
quando se está ultradoente, chegar ao dia seguinte é uma vitória.
Ao ficar bom de novo, permanecer vivo deixa de ser um triunfo. Ela
disse que era comum os pacientes se deprimirem, não durante a
quimioterapia, mas depois que ela funcionava. Para mim, os anos
2030... Eles foram estimulantes. Toda a nossa família... diversas
vezes nós quase morremos. Quando o serviço do fleX caiu, naquela
caminhada para Gloversville, e tivemos de confiar em Esteban e no
mapa de papel que roubei de uma estação de recarga, não havia
garantia de que fôssemos conseguir. Foi um milagre até mesmo que
a estação de recarga tivesse um mapa para ser roubado. Carter mal
conseguia andar, por causa dos joelhos. Bing teve uma espécie de
frieira, por causa do tiro no sapato e das meias molhadas. E aí,
chegamos àquela estradinha estreita, sem asfalto, e achamos a
plaquinha na caixa de correio, CIDADELA, lembra? Nós choramos.
Mas agora. É este rame-rame paralisado. Não há horizonte, nem
direção, nem ameaça. Podemos não ficar com muito do meu salário,
mas é provável que fiquemos bem, mesmo sem os seus bancores.
Esse é parte do problema. O tudo bem. O nada além de tudo bem.
Então, com ou sem chip, não é empolgante.
— Bem, nesse caso — anunciou Nollie, em tom decidido —, não
vamos comprar segurança. Vamos comprar empolgação.

***

Logo na tarde seguinte, Willing descobriu, como fizera na infância,


que a agitação mais empolgante é grátis.
Nollie franziu o cenho.
— Você voltou cedo. Foi atirado na rua?
— Eu atirei — disse ele, com a respiração acelerada. — Não é
uma construção de voz passiva.
— O quê?
— Na verdade, nunca esperei que acontecesse na Elísios —
disse ele, andando de um lado para outro. Devia estar desgrenhado.
Com cara de quem se espremeu em um armário de roupa de cama.
— Lá não acontece nada. Mesmo quando morre gente, é outro não
acontecer nada. Está dentro do previsto. Ou quando não morre. Isso
também é esperado. Eu ando armado porque sempre andei, desde
os dezesseis anos. Chame de fetiche. De dependência. E não sou
só eu. Você precisa de dinheiro para se sentir segura, mas eu não
confio em dinheiro. Depois que a nossa família inteira foi obrigada a
sair dessa casa à meia-noite, na chuva, eu preciso de uma arma.
Gosto do fato, como você disse, de isso ser contra as normas. Para
a maioria das pessoas, andar armado é uma ultrapéssima ideia. A
Suprema Corte tinha razão. Mas não é má ideia para mim.
— Infelizmente, isso é o que todo mundo pensa — disse Nollie.
— Agora, pare. Organize-se.
— Não faço ideia se matei ele ou não.
— Uma excelente primeira linha para um conto. Mas até um
conto teria de retroceder.
— Não conheço bem o cara. — Willing desabou no sofá, para se
obrigar a ficar quieto. — Pouco mais velho que eu, talvez uns trinta
e cinco anos. É da equipe... era. Porque, mesmo que ele escape,
bem... agora a Elísios tem motivos para demissão, decididamente.
Parecia sempre com sono. Também deve ter um emprego noturno.
Conversei com ele na semana passada, no almoço. Ele sustenta a
irmã, que é grevista. Completa o valor da conta do sono do irmão
caçula, porque é mais barato manter o irmão armazenado do que
sustentá-lo, se ele não tiver emprego. Esse cara, Clayton. A mulher
dele engravidou. Os dois queriam o neném. Muito. Mas não havia
jeito de conseguirem bancar os custos. Ela acabou de fazer um
aborto. Ele parecia bem baqueado por isso. Pensando bem, acho
que estava agitado. Mas esses “sinais de alerta” que esperam que a
gente procure, eles só parecem óbvios em retrospecto. Hoje em dia,
estressado, raivoso, com problemas financeiros, manifestando
ressentimento dos velhotes, isso se aplica a todo mundo que eu
conheço.
— Seu amigo Clayton atacou o asilo a tiros.
Nollie estava longe de ser adivinha. Esse procedimento tinha se
tornado um tremendo clichê.
— Não sei onde ele arranjou a arma, mas aquela anistia dos
anos 30 foi uma farsa.
— Alguma ideia do número de mortos?
— Na verdade, não. Ele começou pelos morts, então isso deve
ter aumentado a contagem. Tenho certeza de que você pode entrar
na internet e encontrar informações sobre um número de mortos e
feridos entre dez a cento e quarenta. O de praxe.
— Você atirou nele.
— Isso impressiona você? — Na verdade, Willing estava em
choque. Durante quinze anos, a Sombra fora um simples mascote:
parte companheira, parte talismã, uma versão metálica de Milo. Ele
quase esquecera o motivo pelo qual a arma fora arquitetada; para
fazer algo um pouquinho mais drástico do que “dar a patinha”.
— Estou impressionada por você não ter deixado ele ir em frente.
Sua mãe me contou que você defendia a ideia de “fuzilar” Luella
bem antes de meu pai fazer as honras. Ela temia que isso fizesse
você se sentir mal mais tarde.
— Não fez.
— Fifa não vai aprovar. Vai achar que você deveria ter se juntado
ao tiroteio.
— Eu estava escondido no armário e tinha uma linha de visão
desimpedida pela porta entreaberta. Era uma chance que não ia
durar. Tive que tomar a decisão numa fração de segundo. Acho que
só acertei o ombro dele. Um auxiliar de enfermagem o agarrou
quando ele caiu. Eu saí de fininho durante o pandemônio. O
problema é...
— Faz anos que não vejo você com tanta energia.
— Então, a resposta é essa. Para o meu mal-estar. Atirar nas
pessoas.
— Parece um começo.
— Talvez alguém tenha me visto. Aquele auxiliar de enfermagem
pode ter notado que era eu.
— Mas você seria um herói.
— Não quero entregar a Sombra. Não devia ter mostrado que
tinha a arma.
Nollie espremeu os olhos.
— A gente podia esconder. Dizer que você jogou a arma no East
River, num momento de repugnância por causa do estresse pós-
traumático. Poderíamos inventar uma história sobre você ter
encontrado a arma em casa, onde ela teria sido deixada pelos
posseiros. E sobre ter sempre planejado entregá-la. Mas olhe só
para você. Agora mesmo, a sua expressão foi de desânimo. Você
não quer as minhas boas desculpas. Sente falta da urgência. Gosta
da ideia de ter que ir embora. De estar fugindo.
Ela o conhecia bem. E ele a conhecia. Assim, começaram a falar
do que tinham conversado na noite anterior, sem nunca usar termos
explícitos.
— Tenho bancores suficientes para comprar um carro muito bom
— disse Nollie. — Dessa vez, não teríamos que andar.
Praticamente ninguém mais comprava carros. As grandes
cidades americanas, como Nova York, eram mais parecidas com a
Xangai de meados do século XX do que com a sibilante cidade
futurista de Os Jetsons. Em um silêncio sobrenatural, multidões de
bicicletas elétricas formavam enxames em volta de um ônibus
público, como abelhas em torno da rainha.
— Eu uso um chip — relembrou Willing. — Eles podem me
rastrear onde eu estiver.
— Caso se importem. Quer dizer, se você fosse o assassino em
massa da Campos Elísios e tivesse fugido, isso seria um problema.
Mas você foi o mocinho. Além disso, a polícia tem que recorrer ao
SACO para usar os satélites deles, pelo que eu entendo, e os sacais
são possessivos.
Era fato que, apesar da convicção de Fifa de que eles viviam em
um Estado policialesco, os poderes da polícia em si eram
surpreendentemente restritos. O FBI era pouco mais que uma página
da internet. Os fãs de cinema que assistiam a suspenses clássicos,
como a trilogia Bourne, deviam ficar desconcertados com a
organização miticamente demoníaca chamada CIA, cujas
impressões digitais pegajosas já não manchavam assassinatos e
golpes no mundo inteiro, e cuja sede em Langley, segundo Avery,
tinha sido tomada por uma cadeia de supermercados baratos que
vinha do Punjab. (Em uma onda de filmes e seriados estrangeiros
da década de 2030, os americanos eram vilões populares:
conspiradores do Banco Central que enganavam investidores
inocentes com a venda de títulos que eles sabiam muito bem que
logo perderiam todo o valor, ou financistas perversos que
escapavam das depredações econômicas da época, evadindo-se
com lucros obtidos de maneira escusa. Mas, no entretenimento
coreano e vietnamita da década atual, os personagens americanos
eram sobretudo figurantes — bufões incompetentes ou azarados,
que apareciam para provocar risadas.) Os poderes do SACO, em
contraste, eram muito reais, e verdadeiramente ilimitados.
— Será que isso sequer é possível? — perguntou Willing. —
Simplesmente... não aparecer no trabalho... e ir embora? Para onde
eu quiser? Sem pedir, sem preencher formulários nem notificar
alguma autoridade?
O sorriso de Nollie foi sofrido.
— Antigamente, as pessoas pegavam o carro e saíam dirigindo
pelo país por semanas. Parando onde quisessem. Fazendo o que
quisessem. Em geral, isso era chamado de férias. Na época em que
os assalariados tinham férias. Mas o fato de jovens como você
acharem que precisam de permissão para dar uma guinada e ir em
direção ao horizonte, acharem que deve ser contra a lei largar um
emprego desprezível sem pedir licença, só isso já é razão para ir
embora.
— Mas, se for verdade... Sobre o chip. Talvez você consiga. Para
mim, seria suicídio.
— Então, você pode passar a vida inteira dormindo ou limpando
bundas, ou pode correr um risco. Que eu avalio nuns 50% de
chance. Ou sessenta a quarenta, talvez — disse Nollie,
reconsiderando.
— Em que direção?
— Faz diferença?
— Vou ter que chamar Fifa para ir também.
— É claro. Se bem que... bom, ela fala bastante.
— Eu sei — disse Willing, tristonho.
— Vamos sair daqui. Temos um carro para comprar. Enquanto
isso, se aparecer alguém bisbilhotando, à procura do salvador da
Campos Elísios, você terá saído.
Estatisticamente, a maioria das pessoas se aflige mais para
comprar um par de sapatos do que para decidir se compra ou não
uma casa. Do mesmo modo, duas das maiores decisões da vida de
Willing foram estonteantemente céleres. Ele levou um segundo para
determinar se impedia ou não um colega de equipe de acabar com a
miséria de um número maior de residentes e se, em vez disso,
acabava com a do próprio Clayton. E levou menos de cinco minutos
para resolver cometer traição.

***

Na volta da concessionária, eles passaram pela casa de Fifa. Como


era típico, ela morava com os pais. Willing havia combinado um
encontro entre as instalações de barras de segurança que ela fazia
e seu turno na fábrica de sanduíches naquela noite (já que o feriado
prolongado fora extinto). Ela ficou aliviada ao ter notícias dele. O
tiroteio na Elísios já estava no noticiário — embora a reportagem
fosse blasé, já que as confusões nos asilos de idosos tinham se
tornado muito corriqueiras. Para lhes dar privacidade na escadinha
da entrada de Fifa, em Brownsville, Nollie ficou no Myourea —
Pássaro do Trovão, em khmer, um importado cobiçadíssimo do
Camboja. Suas linhas suaves de hidrogênio, combinadas com a
dupla tonalidade azul-esverdeada e creme, própria da década de
1950, atraíam olhares admirados.
— Você quer dizer agora mesmo — comentou Fifa, incrédula,
depois de ouvi-lo. Tinha o rosto pálido e precisava de um banho.
Parecia estar de ressaca.
— Amanhã — respondeu Willing. — Temos de juntar umas
coisas. Duvido que a gente saia da cidade antes do meio-dia.
— Ah, bom, isso é diferente — disse Fifa, em tom cáustico.
— Isso não saiu do nada. Já conversamos antes sobre o assunto.
Você achava que seria supercruel. A última fronteira, dissemos.
Virar colonos modernos.
— Nós devaneamos sobre isso. Mas você não faz ideia de como
é por lá. Todas as descrições da internet se contradizem, e você
nunca teve notícias de pessoas que realmente vivem no Estado
Livre. Se é que alguém vive lá. A população inteira poderia afundar
no deserto, por causa de outra rodada de testes com a bomba
atômica na planície de Yucca, e ninguém daqui ficaria sabendo.
— Adoro não saber — confessou Willing. — Sei muito sobre
nosso futuro Estados Unidos de outrora. E não gosto de quase
nenhuma parte.
— Você não está sendo prático. Vi fotografias da fronteira. É pior
que a cerca do México ao longo do Rio Grande. Os muros são de
uma altura gigantesca e muito grossos, cheios de armas e soldados.
Como é que você cruzaria, mesmo que conseguisse passar na
ponta dos pés pelo campo minado que leva até lá?
— Vou descobrir quando chegar. Toda armadura tem uma
brecha. E parece que há uma ferrovia subterrânea.
— Willing, quase tudo na internet é fantasia! Você já conheceu
alguma pessoa real nessa “ferrovia subterrânea”?
— Está certo, não — admitiu ele, e acrescentou em tom firme: —
Mas outras pessoas conseguiram.
— Tudo de que pode ter certeza é que outras pessoas
desapareceram. É possível desaparecer sem aparecer noutro lugar.
Já teve alguma notícia de Jarred?
— Não, mas eles suspendem as comunicações a partir do
momento em que saem. Duvido que ele pudesse mandar um
aviãozinho de papel na minha direção, muito menos uma
mensagem de fleX.
— E você está supondo que a autodestruição do chip seja
tesourice. Por que seria? Você ouviu Goog. Uma unidade inteira do
SACO, ele disse. E será que isso não parece ser exatamente o que
eles programariam o seu chip para fazer, se você tivesse a
impertinência de largar a sua enxada e a ingratidão de se afastar da
maior nação do mundo? Esses caras são uns TT filhos da puta!
Para mim, parece megaprovável que, em vez de deixarem se livrar
dos seus grilhões, prefiram matar você.
— Eu preferiria morrer — disse Willing, surpreendendo a si
mesmo — a continuar aqui. Não são só os impostos. É o que eu
estava tentando explicar ontem à noite. Esse peso. Eu me sinto
vigiado. Eu pago... como se tivesse alguma alternativa. O pouco que
resta é uma bosta, mas não é isso que me abate. O tempo todo eu
me sinto um criminoso. Quando paro para pensar, vejo que estou
fazendo tudo que é para fazer. É como a minha mãe me dizia que
era passar pela segurança de um aeroporto, embora eu mesmo
nunca tenha entrado num avião. Ela dizia que você tinha sempre a
impressão de estar fazendo alguma coisa errada. Mesmo quando
tirava os sapatos e o “laptop” da bolsa, e levantava os braços num
escâner de corpo inteiro, como quem se rendesse ao ser preso. Mas
eu me sinto assim andando na rua.
— É claro que sim — disse Fifa, impaciente. — Chama-se
terrorismo. Que não é só uma manobra de lunáticos religiosos. É um
instrumento do Estado. Funciona transformando um punhado de
pessoas em exemplo, e depois há um efeito multiplicador de deixar
todas as outras pessoas se borrando de medo. O terrorismo poupa
dinheiro. O SACO é uma organização terrorista, mas a Receita
Federal também era; só que a antiga não tinha recursos para enfiar
um aguilhão emocional no seu rabo. Nada mudou.
Willing adotou uma tática diferente.
— Mas todas as companhias pertencem a estrangeiros. Até os
antigos parques nacionais. A Campos Elísios é de uma empresa do
Laos. A menos que você seja médico ou pesquisador farmacêutico,
os únicos empregos disponíveis são os horrorosos que você e eu
conhecemos. Quais podem ser as nossas expectativas? E aí, gente
como a minha tia Avery e o meu tio Lowell, você sabe, como os
seus pais, tudo que eles fazem é falar de como tudo era ótimo e da
bosta que é agora. Então, por que não ir comigo? Nem que seja por
uma aventura. O pior que pode acontecer é chegarmos lá, não
conseguirmos entrar e voltarmos para casa.
— Isso não é o pior que pode acontecer. Eles podem jogar você
na cadeia por tentar desertar. E, já que você falou em trabalhar para
estrangeiros, todas aquelas prisões comerciais também pertencem
a asiáticos, que fazem você trabalhar feito um desgraçado, não para
ganhar 23% do seu salário, mas para não ganhar porra nenhuma.
Você não faz ideia do risco que está correndo.
O inconformismo de Fifa sempre soara vazio. Mas fazia três anos
que eles estavam juntos. O apelo apaixonado de Willing era uma
obrigação, e o dela também.
— O tiroteio na Elísios — disse ela. — Aquilo deixou você
perturbado. Faz sentido. Escapar por um triz da... Bem. Faz a gente
avaliar as coisas. Fico feliz por você estar bem, mas Nollie tem
razão. Eu acho que você devia tê-lo deixado terminar o que
começou. Estava fazendo o trabalho de Deus. Mas o fato de aquela
cena ter ferrado com a sua cabeça não quer dizer que você deva
fazer nenhuma loucura...
— Ação — disse Willing. — Foi isso que descobri hoje à tarde.
Que eu podia fazer alguma coisa. Nos Estados Unidos, fazer
alguma coisa geralmente significa atirar em alguém ou ir para outro
lugar. Eu abandonei os estudos. Não sou grande conhecedor da
história americana. Apesar disso, pelo que entendo, ficamos sem
novas terras há muito tempo, e o programa espacial era caro
demais. Desde que não temos mais um lugar para ir, as coisas aqui
nunca mais foram as mesmas. Mas é possível chegar a algum outro
lugar, andando para trás.
— Brutal — concluiu Fifa. — Primeiro você planeja levar um tiro,
pulando o muro para os EUN. Agora é uma viagem no tempo.
— É. Não tenho certeza, mas acho que Nevada é uma viagem no
tempo.
Quando se despediram, ele pôs um jogo de chaves na palma da
mão dela.
— Fique com a casa.
— O que acontece se você criar juízo e der meia-volta, uns cento
e cinquenta quilômetros antes de Las Vegas?
— Aí, torno a me mudar para cá, você pode ficar e vamos
descobrir se a desgraça gosta mesmo de companhia. — Deu-lhe um
beijo. — Vou sentir saudade de você.
— Não tanto quanto você pensa — desdenhou Fifa, sem
pestanejar. — Sempre fiquei em segundo plano perto da sua
verdadeira namorada.
— Que namorada?
— Aquela velhota de óculos escuros lá no carrão.
***

— O que é que ele está fazendo aqui? — perguntou Nollie, irritada.


No raro calor do auge do verão, mais uma vez eles tinham
deixado aberta a porta da frente, apenas com a porta de tela
trancada. Após sucessivas declarações de lei marcial no fim da
década de 2030, as cidades americanas tinham restabelecido a
proteção do direito de propriedade e implantado a ordem pública. A
taxa de criminalidade de Nova York era surpreendentemente baixa.
Para a maior parte da população, os canalhas que representavam
algum perigo grave eram os mantenedores da ordem,
excessivamente zelosos — um dos quais se achava postado na
escada de entrada deles.
Goog podia vê-los através da tela, empilhando a bagagem na
sala. Eles não tinham como fingir que não estavam em casa. A
recusa a convidarem um parente próximo a entrar pareceria
esquisita.
— Vão a algum lugar? — perguntou o visitante, examinando as
malas.
— Vamos fazer uma excursão — foi a resposta brusca de Nollie.
— Ver os pontos turísticos da nossa nação. Inspirados pelo Quatro
de Julho.
— Que pontos turísticos? — questionou Goog, cético. — Os
caras-de-prato compraram a maioria.
— Não puseram chapéus vietnamitas no Monte Rushmore.
Ainda.
— E aí, quais são as novas? — perguntou Willing, tentando fazer
um ar displicente, o que nunca funcionava.
— Eu soube do rolo na Elísios — disse Goog. — Parece que um
funcionário valente e abnegado interveio, ou a carnificina teria sido
pior.
— Não tenho como saber — retrucou Willing. — Passei o tempo
todo agachado dentro de um armário. Dei o fora correndo assim que
o tiroteio parou. — Era chato dar asas à opinião desdenhosa que
Goog fazia dele, mas Willing não tinha razão alguma para se
importar com o que seu primo pensava.
— Engraçado — disse Goog. — Nesse caso, a administração do
asilo deve ter sido mal informada. Porque, por mais gratas que
possam ter ficado aquelas pobres almas da Elísios, encolhidas de
medo, parece que o nosso bom samaritano portava uma arma ilícita.
Por isso, a polícia de Nova York fez uma solicitação de rastreamento
ao SACS. Reconheci o seu nome.
— Está batendo na porta do covarde errado — disse Willing,
explorando um pouquinho a falsa humildade.
— Estou te fazendo um favor, meu chapa. Achei que poderíamos
manter isso tudo em família. Entregue a arma, e nós dois sabemos
que estamos falando daquele .44 que você vivia agitando na
Cidadela toda vez que algum andarilho magricela se aproximava
das suas preciosas batatas. Com a sua intercessão benevolente e
tudo mais, aposto que consigo fazer os policiais deixarem o assunto
para lá. Eles só querem o revólver.
A história de Nollie sobre a arma ter sido deixada pelos posseiros
jamais colaria com Goog, que estivera presente no Prospect Park
quando a Sombra fizera suas duas vítimas originais. Ele também
não acreditaria que o primo irritante houvesse atirado sua proteção
no East River. Willing estava deliberando sobre o melhor método
para embromar o outro quando o olhar de Goog foi atraído por uma
caixa surrada no chão.
— Material descartado — leu Goog na lateral da caixa, e alguma
coisa deu um estalo. — As únicas vezes em que a vi arrastar aquela
caixa encardida, titia, foi quando você estava planejando uma
viagem só de ida.
— Estou velha — disse Nollie. — Ficando lelé. E sentimental.
Alguns escritores viajam com suas canetas da sorte. Eu preciso dos
meus textos impressos.
— Isso é porcaria demais para o monte Rushmore — rebateu
Goog. — E aquele Myourea novo ali em frente. É seu?
— Também estou ficando imprudente — argumentou Nollie. —
Você sabe como são as pessoas que sofrem de demência.
Irracionais. Impulsivas. Não se pode confiar nelas em matéria de
dinheiro.
— Por falar em dinheiro: de onde ele veio? — Goog nunca
deixava o trabalho no escritório.
— Eu ganhei — contou Nollie com fervor. — Tive uma boa ideia.
Dei um duro enorme para transformá-la em realidade. Paguei
impostos sobre as recompensas do meu trabalho, impostos bem
altos, aliás, ou assim imaginei, na época, e, por mais improvável que
isso lhe pareça agora, depois fiquei com uns trocadinhos.
Era fatal que a cena toda parecesse altamente irregular a
qualquer sacal que se prezasse. Mas, quebrando a monotonia, a
imaginação de Goog Stackhouse inflamou-se com outra coisa que
não uma infração fiscal.
— Você podia ter arrumado um U-pod por menos da metade
desse preço. Senhoras idosas não saem comprando a última
palavra em sedãs movidos a hidrogênio para dar uma de turistas por
alguns dias.
— Da última vez que chequei, era legal dirigir pela terra dos
homens livres sem obter um cartão de autorização do próprio
sobrinho-neto.
— É legal, com uma exceção. Se eu tiver a menor suspeita de
uma intenção de desertar para os EUN, vocês não irão a lugar
nenhum.
Willing era mestre na cara impassível. Nollie era menos perita.
Também não ajudou que o fleX dela estivesse ampliado na mesinha
de centro, com o aplicativo aberto do GPS já programado com o
trajeto até Reno. Pena ela não fazer atualizações. Nas versões
atualizadas do Google Maps, a busca por “Nevada” levava a uma
rua em Greenwich, na Inglaterra. O estado em si havia
desaparecido.
— Ora, se você não é bem o tipo, Wilbur — disse Goog, depois
de uma olhadela vitoriosa para o fleX. — Inebriado com a ideia de si
mesmo como alguém que tem uma linha direta com Jesus, ou com
qualquer uma dessas vozes que você deve escutar desde que era
um garoto desajustado. É bem o tipo de zero à esquerda que antes
vendia a alma à Cientologia, já que o chamado Estado Livre é só
mais um culto marginal de imbecis. E sempre agarrado àquele
bichinha agitador das massas do Jarred. Faz todo sentido que você
fareje a trilha daquele maluco, em busca do pote de ouro no fim do
arco-íris. Lamento estragar o seu castelo de vento, mas vou dar o
alerta sobre o seu chip. Vai haver drones do SACS descendo do céu
no momento em que você deixar a área metropolitana de Nova
York. Quanto a você — acrescentou, dirigindo-se a Nollie —,
conspirar com a intenção de desertar para os Estados Unidos de
Nevada é uma das poucas justificativas jurídicas do implante
forçado do chip. Por isso, pode começar a raspar sua nuca.
— Que conveniente — respondeu ela. — Os pelos dela já estão
arrepiados.
— Depois, vocês dois vão me agradecer — disse Goog. —
Nenhuma nonagenária com bloqueio criativo escalaria aquele
aperfeiçoamento considerável do Muro de Berlim. E a sua cabeça,
Wilbur, ia se espatifar pela areia feito uma melancia esborrachada,
no instante em que atravessasse a fronteira.
— É mesmo? Acho que nós vamos descobrir. — Willing teve de
admitir que se sentiu um idiota ao apontar o Black Shadow X-K47
para o primo. Simplesmente não parecia sério. Mesmo assim, em
segundos ele tinha elevado a tensão desse encontro de um jeito que
era difícil desfazer. Depois que você aponta um revólver para
alguém, basicamente, é imperativo continuar a apontá-lo. Não dá
para recolocar no bolso e voltar a uma discussão calma e
interessada sobre os seus planos de viagem.
— Não seja ridículo — disse Goog, com um tremor na voz. —
Não apenas sou seu primo, o que, obviamente, não tem grande
significado para você...
— Nem para você — cortou Willing.
— Também sou agente do SACO. — Lapso de linguagem
interessante. — Tem alguma ideia do que acontece com quem atira
em um de nós?
— Nada pior — (o cálculo foi fácil para Willing) — do que se eu
não lhe der um tiro. A diferença entre me lascar de trabalhar na
Elísios, em troca de quase nada, e me lascar de trabalhar numa
prisão terceirizada, em troca de absolutamente nada, sabe? É
desprezível.
— Vim aqui para ser gentil — sibilou Goog.
— Você veio aqui para me desarmar — retrucou Willing. —
Sempre ficou puto com o fato de Jarred não confiar em você com as
armas.
— Mas o que vamos fazer com ele? — indagou Nollie.
— Poderíamos amarrá-lo — supôs Willing. — Mas é preciso
considerar a comida e a água. Não é provável, mas talvez ele
fizesse alguma coisa esperta. E não é bem o presente de casa nova
que quero deixar para Fifa.
— Que maluquice! — exclamou Nollie. — Quer dizer que temos
de levar o pentelho conosco. E eu que estava ansiando por esta
viagem.
• CAPÍTULO 4 •

“SINGIN’ ‘THIS’LL BE THE DAY THAT I DIE”

— Eles só incluem um ajuste manual para emergências — avisou


Willing.
— Lembra-se do que eu disse sobre preservar a dignidade
desrespeitando regras? — perguntou Nollie, fazendo força para se
acomodar no que já nem havia quem chamasse de assento do
motorista. — Isso vale em dobro quanto a dirigir o próprio carro,
porra.
— Pessoas da sua idade, insistindo em controlar os veículos, são
a única razão de ainda termos algum acidente. São quatro mil
quilômetros.
— Você quer dirigir?
— Não sei dirigir.
— Ninguém sabe. É patético.
Willing sempre havia gostado da tia por causa de sua obstinação.
Por isso, não pôde objetar quando ela se recusou a atender também
aos seus desejos. Reprimiu um tremor de apreensão no banco do
carona. Toda essa aventura era uma guinada suicida em direção a
um penhasco. Se eles batessem em uma rodovia interestadual a
meio caminho, a expedição truncada seria simplesmente mais
eficiente.
Partiram com seu passageiro relutante no banco de trás,
despojado do fleX e com os pulsos presos com fita, gentilmente
apoiados no colo, em vez de incomodamente amarrados para trás.
Deixaram Goog dar vazão a seu aborrecimento enumerando os
muitos crimes que os dois estavam cometendo: sequestro, cárcere
privado, obstrução dos deveres oficiais de um funcionário federal.
Contudo, ao refazerem o trajeto que sua família percorrera a pé na
primavera fria e úmida de 32 — à esquerda na avenida Atlantic,
cruzando a ponte do Brooklyn, subindo a West Street —, até o
prisioneiro foi capturado pelas reminiscências. Com a equipe muito
reduzida, essa segunda migração da família Mandible foi de uma
velocidade atordoante, comparada à que tinha sido feita a pé. Ah, é
claro que motoqueiros em formação de gangue entraram na pista
sem o menor aviso (fazia muito que uns fanfarrões malucos em
triciclos motorizados tinham substituído os ciclistas,
comparativamente anódinos, como o anátema de Nova York). Mas o
PIB encolhido e estagnado fizera um trabalho espetacular de
redução do tráfego de veículos. Depois de cinquenta e tantos anos
de arrogante dominação das estradas, só a pobreza esmagadora de
costa a costa havia acabado com os enormes veículos utilitários
esportivos, por volta de 2040. Quando Willing apontou para um
deles, mais adiante, foi uma rara visão.
— Ainda chacoalhando aos roncos por aí! — exclamou. — Não
consigo imaginar onde eles arranjam gasolina!
— Cara, o SUV foi uma das invenções americanas mais sinistras
de todos os tempos — disse Goog. — Pô, eu adorava o Jaunt da
mamãe. Quando ele saiu de linha eu estava pronto para pegar o
último modelo.
— Intimidante, abrutalhado e valentão — troçou Nollie. — Acho
que as pessoas se reconhecem nos carros do mesmo jeito que nos
cachorros.
Na George Washington, as grades metálicas da superfície
chacoalharam quando a própria ponte oscilou em um balanço sutil.
— Tenho calafrios quando atravesso essas coisas — disse Nollie.
— Não diga — zombou Goog. — Essa engenhoca enferrujada
não recebe qualquer manutenção séria desde a década de 1990.
— De acordo com Avery, os prédios federais da capital estão
igualmente dilapidados — observou Willing. — Ela disse que “Casa
Branca” é uma denominação incorreta. O Congresso, o Memorial de
Lincoln, estão todos num tom amarelo sujo, com riscas pretas de
sujeira. Ela disse que vivem caindo pedaços do Monumento a
Washington. Depois que uma menina foi morta por um deles, não se
pode chegar a menos de cem metros de distância.
— Mamãe é maxiexagerada — disse Goog com desdém. — Vi
fotos do National Mall na internet. Impecáveis.
— É que sai mais barato postar fotografias antigas do que pagar
pela limpeza a vapor — contrapôs Willing.
Fizeram uma curva para a I-95 e entraram na I-80 em Teaneck. O
humor de Willing começou a melhorar. Ele só estivera em Nova
Jersey meia dúzia de vezes, quase todas com Jarred, para investir
os lucros rapidamente inflacionados em ativos tangíveis, sob a
forma de equipamento agrícola. Além de Nova York, esse era o
único estado da União em que ele já pusera os pés. Assim que
entrassem na Pensilvânia, seria um mundo novo e inexplorado. Se
estes fossem mesmo seus últimos dias de vida, seriam dias
interessantes.
Nollie ligou seu fleX no sistema de som, aumentando o volume de
harmonias da sua juventude: “Hotel California”, “The Weight” e uma
das letras mais panacas que Willing já ouvira, em uma música
chamada “A Horse with No Name”. Ela tocou Don McLean, JJ Cale
e Fleetwood Mac, até Goog exclamar:
— Caraca, Nollie! Isso parece As canções do Homem de Cro-
Magnon. Depois vem o quê: Vivaldi?
— Estou bancando esta operação. O carro é meu e a viagem é
minha — declarou ela. — Portanto, a música é minha. Você é um
refém, está lembrado? Comporte-se como refém.
Na verdade, eles foram pegando gosto pela trilha sonora
embolorada. Ao chegarem a Stroudsburg, na fronteira estadual da
Pensilvânia, Willing e Goog já estavam a plenos pulmões.

***

Com o começo tardio, o primeiro dia foi curto. Nollie dirigiu


bravamente — e sem a menor necessidade, já que o Myourea
poderia ter cuidado disso sozinho — até as nove horas da noite,
quando os três pararam em um hotel decadente de beira de estrada
em Dubois. O proprietário não ficou nada satisfeito com o fato de
Nollie não ter chip, já que o chip cobriria automaticamente seus
prejuízos caso sua hóspede nonagenária enchesse a cara de Jack
Daniel’s, pirasse e quebrasse tudo no quarto. Mas aceitou o
pagamento pelo fleX, porque era óbvio que seu estabelecimento
estava mal das pernas.
Nollie mandou Willing buscar comida para viagem do outro lado
da estrada. Goog fez campanha por uma refeição adequada em um
restaurante, mas eles não queriam ter de explicar seu gosto pelo
masoquismo em uma banqueta de lanchonete. Ele insistiu bastante
para que cortassem a fita, por favor, para que pudesse comer sem
fazer sujeira, e foi preciso ter disciplina para resistir a suas
imprecações. Do mesmo modo, Willing não sentiu prazer algum em
amarrar os tornozelos do primo à armação da cama, no quarto
dividido pelos três.
É que Goog entrara tanto no espírito da aventura que era difícil
lembrar que estava sendo coagido. Ainda naquela tarde, ele havia
ameaçado restringir os movimentos de Willing à área metropolitana
de Nova York com drones militarizados do SACO, além de ameaçar
Nollie com uma cirurgia compulsória. É verdade que fazia alusões
constantes e animadas à desgraça que os esperava em seu destino.
Portanto, talvez houvesse decidido aproveitar o passeio, confiante
de que seria ele a rir por último: o cérebro de Willing fritaria, e Nollie
seria derrubada por um atirador de elite, trabalhando como guarda
da fronteira. No mínimo, a dupla seria monotonamente presa e
Goog descobriria um jeito de ficar com o mérito por isso.
Fosse como fosse, o histórico de viagens de Goog também era
provinciano. Ele dizia ter comparecido a uma conferência do SACS
em Cleveland, mas, tendo se desentendido com Avery, sequer
retornara a Washington desde que os pais se mudaram de volta
para lá, em 44. Era o único dos primos que poderia ter bancado a
exploração de lugares externos à sua pequena órbita nova-iorquina.
Mas a geração deles era cerceada, arisca, sovina, e viajar era um
gosto que se adquiria. Talvez nunca ocorra ao sujeito ir a um lugar
específico, em um dado fim de semana, quando ele nem sequer
acha que está indo a algum lugar em um sentido mais amplo.
Assim, com a promessa de horizontes alargados mais a oeste,
até Goog, o suprassumo dos TT, parecia energizado. Seu trabalho
devia ser maçante — totais, percentagens e desvios ocasionais da
norma. Ele era poderoso, mas brandia com a mão fechada somente
o poder mesquinho de destruir a vida das pessoas, em contraste
com o poder mais solto, com as mãos abertas, de melhorar a vida
delas. Todos aqueles com quem entrava em contato o detestavam e
tinham de fingir que não o odiavam. Alguns dias de férias não
oficiais da função de um completo sacana deviam ser bem-vindos.

***

Enquanto eles rodavam pelos Alleghenies e entravam em Ohio, no


dia seguinte, Willing continuou a se espantar com o fato de aquela
viagem ser possível. Nenhum drone desceu dos céus e se grudou
ao teto do carro, usando ventosas de sucção parecidas com lamelas
de lagartixa, por ele não ter comparecido ao trabalho na Elísios a fim
de dar a sua justa contribuição. O chip na base do seu pescoço não
brilhou nem se aqueceu, ao sentir aumentar a distância geográfica
dos seus meios de fazer uma contribuição social.
Enquanto as montanhas arborizadas passavam pelas janelas e
Nollie tocava o la-la-la-la alegre de “Our House”, Willing pensou em
todos aqueles dados entrando em profusão nos supercomputadores
federais. Até então, havia imaginado a rede central como um senhor
feudal onisciente e onividente, que separava e armazenava cada
detalhe diminuto a fim de reconstruir à perfeição as mais ínfimas
infrações de todos os cidadãos americanos. Talvez, porém, os
dados fossem introduzidos em um mastodonte inchado e
sobrecarregado, engasgado com seu próprio excesso de
informações e sofrendo de uma espécie de obesidade digital. Zonzo
de tanto se empanturrar em um smorgasbord de pedaços parecidos,
talvez o monstro ficasse incapaz de saber onde enfiar o fato de
Willing Mandible, nascido Darkly, morador de East Flatbush, em
Nova York, ter comprado um pacote de biscoitos saltines por 2,95
dólares nuevos.
Em todo caso, nada nem ninguém parecia se importar com o
sumiço de Willing, Enola Mandible e até Goog Stackhouse — que
talvez não fosse tão importante no SACS quanto dizia. Era
emocionante.
A rota programada por Nollie com o GPS do seu fleX veio a se
mostrar desnecessária. As instruções sobre todo o trajeto até a
fronteira do estado de Nevada, na cidade de Wendover, no Utah,
resumiam-se a “atravesse a ponte George Washington, depois vire à
direita”. Para assombro de Willing, a I-80 estendia-se praticamente
em linha reta pelo continente, de Teaneck até São Francisco. Tudo
bem, o asfalto estava deteriorado e Willing pensou com saudade
nos dias apócrifos em que se podia deslizar por aquela estrada a
135 quilômetros por hora, o que teria permitido que eles fizessem
toda a viagem em meros três dias, em vez de cinco. Willing era um
autodidata bem proficiente em economia, mas conhecia
pouquíssimas outras coisas sobre o país.
Como Nollie afirmava que “criança no banco de trás precisa de
brinquedos”, eles desabilitaram as comunicações pessoais no
maXfleX de Willing, protegeram a configuração com uma senha e
deixaram Goog brincar com o aparelho. Especialista em exibir seus
conhecimentos gerais quando garoto, ele gostava de destacar
factoides: “O sistema rodoviário interestadual foi iniciado em 1956. A
autoestrada I-80 levou trinta anos para ser concluída. Aproximou-se
muito da rota da rodovia Lincoln, a primeira estrada a atravessar os
Estados Unidos, e também reproduz muito da trilha do Oregon e da
ferrovia Transcontinental.” É claro que essa tira inflexível de estrada,
perfurando sem remorso blocos de rocha e cordilheiras, era uma
assombrosa proeza da engenharia. Willing abrigara uma variedade
de sentimentos em relação aos Estados Unidos durante sua curta
vida: decepção, angústia e até medo, incompreensão, um monte de
coisa nenhuma. Orgulho era novidade. Era agradável.
Para fazer o tempo passar, Nollie os regalou com notícias de
seus amigos na França, que diziam que a fama dos americanos no
exterior vinha melhorando. O estereótipo do indivíduo arrogante,
barulhento, deselegante e fanfarrão estava obsoleto. Os poucos
compatriotas seus que se aventuravam a ir à Europa eram vistos
como modestos, atenciosos e maleáveis. Eram cada vez mais
renomados pela acidez astuta, pela autodepreciação seca e pelo
humor sombrio. Ninguém desfiava chavões sobre os americanos
“não terem senso de ironia”, quando seu país inteiro se tornara uma
ironia tamanho extragrande. E os ianques contavam histórias
ótimas. Em Paris, tinha se tornado moda convidar animados
raconteurs americanos para jantares, tal como antes se convidariam
irlandeses.
Todavia, quando o Myourea passou pelos estados de Indiana e
Illinois, a paisagem foi maculada de ambos os lados por imensas
fábricas, parecendo enormes armazéns. Deviam ser
abundantemente automatizadas e de propriedade 100% estrangeira.
Os moradores locais se contentavam com as poucas tarefas de
nível baixo que gente de carne e osso se dispunha a executar por
trocados, e cujo custo era tão baixo que não valia a pena arcar com
a despesa de comprar e instrumentar robôs. Os Estados Unidos
tinham se tornado um local popular para os investimentos
estrangeiros: a terra era abundante e econômica. Se os impostos
sobre a renda eram diabólicos, Washington vivia aflita para
aumentar a taxa de emprego, e os impostos cobrados das empresas
eram insignificantes. De baixo grau de instrução, é verdade, a força
de trabalho também era submissa, obediente e agradecida. Era
lamentável a incidência de tiroteios em locais de trabalho, um nível
acima da média, mas, em sua maioria, os americanos matavam uns
aos outros e as baixas eram fáceis de substituir. Willing tivera
notícias recentes de seu antigo inquilino, Kurt, que, depois do
sumiço de Jarred, acabara trabalhando em uma dessas enormes
fábricas de um andar no centro-oeste. Kurt contou que os
empregados pernoitavam em dormitórios — mais parecidos com
mausoléus do que com o tipo que abrigava estudantes
universitários. De dia, era possível andar quase um quilômetro pela
linha de produção sem deparar com outro ser humano. Era um
trabalho solitário, que Kurt disse ser pior do que o tédio.
Com o progresso um pouco prejudicado pela insistência de Nollie
em fazer seus polichinelos pela manhã, eles chegaram em Iowa no
terceiro dia. Os milharais se estendiam até a linha do horizonte,
raras vezes interrompidos por uma casa de fazenda. Essa região
sempre fora o celeiro do país. Agora, era o do resto do mundo. Com
a lavoura também mecanizada, quase toda a produção de cereais
se destinava à exportação. Dois anos antes, antecipando-se às
previsões, a população global ultrapassara a marca de dez bilhões.
Desaparecendo ao longo de décadas, agora as fazendas familiares,
como a Cidadela, tinham sido totalmente engolidas por empresas
isoladas, com posses tão vastas que poderiam se tornar países
independentes. Empresas da China e da Índia haviam colonizado a
agricultura americana como quem se achasse com direito a um
tratamento especial, e com um toque nada insignificante de falso
moralismo. Supostamente, alimentar dez bilhões de pessoas era
uma grande realização. Presumia-se que alimentar dez bilhões e
meio, dentro de três ou quatro anos, fosse uma proeza ainda maior.
Willing não entendia essa satisfação. Talvez eles conseguissem
alimentar até doze bilhões, mas qual seria a realização? No que ela
seria diferente? Ele preferiria construir uma rodovia interestadual.
Em todo esse trajeto, as habitações eram uma desconcertante
colcha de retalhos. Tábuas decrépitas, com a tinta cheia de bolhas,
e grades quebradas nas varandas erguiam-se ao lado de
comunidades de aposentados, envidraçadas e impecavelmente
mantidas, com quadras de tênis e piscinas. Mas inúmeras
cidadezinhas menores ao longo dessa rota eram povoados-
fantasma. Willing se perguntou para onde teriam ido todos.
Foi no quarto dia, no Nebraska, no hotelzinho nos arredores de
Omaha. Naquela manhã, eles tinham esquecido de encher as
garrafas de água. Nollie declarou que estava seca de sede. (Podia
ser que estivesse mais perto de enlouquecida, ou hipnotizada, pelo
menos. Entre Lincoln e Grand Island, a I-80 era tão reta que se
poderia usar a estrada como régua, e a terra era tão plana que a
pradaria poderia servir de tábua de passar. No banco de trás, o sr.
Especialista confirmou que, em sua implacável e perfeita direção
oeste, a estrada não se desviava mais do que algumas jardas em
uma extensão de 115 quilômetros. Ao menos dessa vez, Willing e
Goog concordaram em alguma coisa: a recusa de Nollie a pôr o
Myourea no piloto automático, nesse trecho de entediante
monotonia, fora burrice.) Ela entrou em uma estrada vicinal sem
placa, que logo se transformou em estrada de terra.
— Você não vai encontrar um minimercado aqui de jeito nenhum
— disse Goog. — Dê meia-volta.
Era o que ela teria feito, se Goog não tivesse aberto a boca.
Nollie nunca aceitava orientações do seu refém.
— Talvez não, mas nem mesmo o Nebraska está despovoado.
Os americanos não podem estar tão doentes que se recusem a dar
um copo d’água a um estranho.
A estradinha terminava em uma construção baixa, que por pouco
não passou despercebida, já que era camuflada pela poeira e
estava coberta de areia trazida pelo vento. Algumas faixas visíveis
revelavam uma superfície cor parda da paisagem, como se a
construção tivesse sido feita para não ser vista. Semelhante a um
disco de hóquei, a estrutura era redonda, com telhado plano e sem
janelas. Essa moradia sem atrativos tinha apenas uma porta, que
estava escancarada.
— Parece deserta — disse Goog. — Vamos voltar. Esse lugar é
estranho.
Em Willing, o mal-estar brigou com a curiosidade, e a curiosidade
levou a melhor. Com cuidado, ele cruzou a soleira coberta de areia.
— Olá! — gritou, e não houve nem ao menos um eco. — Me dê o
meu maXfleX — pediu ao Goog. — Está escuro.
Willing batalhou com a tela por um momento. O fleX antigo se
enrolava certinho em uma lanterna, em um piscar de olhos, mas a
conversão do novo e aprimorado era canhestra. Mesmo quando ele
enrolou o tubo, o facho de luz se espalhou assimetricamente para a
esquerda.
O chão perto da porta também estava cheio de terra, com uma ou
outra garrafa vazia de vodca por cima: eles não tinham sido os
primeiros a descobrir o local. Willing girou o facho de luz. Achou
mais terra, uma parede interna preta e lisa e um buraco no meio:
uma escada em espiral, sem outra direção senão a descida. Sua
entrada já fora protegida por uma tampa de alçapão, que pendia de
lado em uma inclinação disfuncional. Alguém a forçara com um pé
de cabra. Da abertura vinha um cheiro rançoso e seco, com um
toque de podridão. A impressão de desolação era absoluta. Não
havia ninguém ali.
— O que é isso: Indiana Jones? — resmungou Goog. — A gente
devia sair daqui.
— Estou surpreso com você — comentou Willing. — Talvez haja
alguma coisa lá embaixo que você possa tributar.
— Ha-ha-ha. Mas não vou pôr os pés nesse buraco de mãos
atadas.
Na verdade, eles tinham ficado bem displicentes com a fita, que
não era substituída desde a véspera. Provavelmente, Goog poderia
torcê-la e se soltar, se tentasse.
— Então, ele pode ficar aqui em cima. Tranquei o carro — Nollie
tranquilizou Willing. — Ele não vai a lugar nenhum. Quero dar uma
olhada nisso.
Enquanto ele e Nollie desciam com cuidado os degraus pretos e
ásperos, Willing olhou com inveja para o fleX mais antigo da tia-avó.
O cilindro era perfeito, o facho de luz era nítido. Embora o sol
vespertino das planícies do Nebraska ardesse lá fora, a escada
estava fresca. O cheiro fétido no ar se intensificou.
Um lance de escada abaixo, Willing girou para o lado a lanterna
do fleX, que iluminou, com surpresa, uma esteira mecânica
empoeirada. Atrás dela, a parede tinha fileiras de halteres de metal
de tamanho crescente. Alguns passos à direita ficava um aparelho
elíptico e, ao lado dele, um aparelho de remo seco. Willing não
entendeu por que alguém se daria o trabalho de montar uma
academia de ginástica subterrânea.
— Pare! — gritou com rispidez para Nollie, às suas costas,
envergonhado com as batidas fortes no peito e a bile que lhe subiu
à garganta. — Se você tem algum melindre, ou é de se assustar
com facilidade, é melhor voltar lá para cima.
— Você não pode imaginar que eu seja dada a melindres, muito
menos... — Ela estancou a queixa no mesmo instante.
A lanterna de Willing estava focada na bicicleta ergométrica.
Melhor dizendo, no seu ocupante. Desabada sobre o mostrador
digital, como se houvesse regulado o aparelho para uma subida de
ladeira ambiciosa demais, a figura vestia um moletom empoeirado.
As caveiras sempre parecem estar rindo, mas esta tinha em volta da
boca uma quantidade de pele curtida que mais transmitia uma
careta de esforço. Um dos braços havia caído.
— Esse cara está morto há muito tempo — disse Willing. É
provável que isso seja bom para nós.
Se pressionado a teorizar, ele diria que o que tornava os
cadáveres horripilantes era a umidade. Nos completamente vivos e
nos completamente mortos, tudo bem. O problema era a umidade
intermediária.
— Disposto a descer mais um lance? — Nollie apontou para a
escada, que ia espiralando mais para baixo. — Estou intrigada.
— Segure minha mão — disse ele. Nollie a pegou. Willing não
soube ao certo quem estava tranquilizando quem.
O andar de baixo continha uma cozinha sofisticada: fogão de
convecção, forno de micro-ondas, panela de cozimento lento, uma
batedeira KitchenAid com uma profusão de acessórios. Em freixo
finamente trabalhado, com elegantes puxadores de latão, as portas
do armário estavam escancaradas. Quem quer que fossem os
bandidos que haviam saqueado a despensa, não tinham tendências
culinárias. Deixaram a panificadora, a máquina de fazer massas e o
processador de alimentos, enquanto cortadores de legumes e
descaroçadores de azeitonas se espalhavam pelo linóleo. Embora o
piso estivesse pegajoso, por causa das garrafas quebradas de
substâncias viscosas já evaporadas, várias prateleiras estavam
repletas de cebolinhas para coquetéis, caviar, corações de
alcachofra, anchovas, óleo de avelã e limões em conserva. O que
impressionou Willing nessa suntuosa cesta de Natal enterrada da
Dean & Deluca foi que não havia meramente um pote de geleia
Seville com uma garrafa de Glenlivet. Como todos os outros
comestíveis refinados, havia dúzias de potes de geleia — em
resumo, uma pilha deles, com meio metro de altura.
Willing pegou um pote de laranjinhas kinkan cristalizadas e
sacudiu a poeira que o cobria. Resmungando “minha mãe não
ligava para prazos de validade”, guardou-o em sua pochete.
Nollie estava correndo a lanterna do fleX pelo conteúdo de um
congelador horizontal aberto, dentre os seis que ocupavam todo um
quadrante desse andar. Cutucando o conteúdo com uma espátula
para churrasco de cabo comprido, foi lendo as etiquetas: robalo, filé
mignon, peito de pato, codorna, foie gras, salmão defumado...
— Não deixe de comer salmão! — recordou-se Willing.
— Acho que não.
Todos os alimentos embalados a vácuo em sacos plásticos
tinham uma coloração negra uniformemente nociva.
Do outro lado da cozinha, uma mesa de jantar curva, feita de
madeira exótica, acompanhava a parede circular do silo. Três dos
moradores estavam empertigados em cadeiras. Pareciam famintos.
— O sistema de circulação deve ter continuado a funcionar por
um bom tempo — supôs Willing. — Caso contrário, o cheiro aqui
seria insuportável. O que acha: mais um?
Desceram em caracol para um terceiro andar inferior, o que
implicou tirar do caminho um de seus anfitriões abatidos, em relação
ao qual os dois se tornaram indiferentes com inquietante rapidez.
Willing devia ter previsto isto: uma adega do piso ao teto na parede
circular. Ou foi o que inferiu, apesar de ter sido ali que os turistas
anteriores haviam concentrado sua pilhagem. Quase todas as
garrafas tinham desaparecido e as restantes estavam vazias:
garrafas secas de Bordeaux de cinquenta anos jaziam em meio a
caixas de papelão descartadas de uísque Talisker e a requintadas
rolhas de madeira de conhaques finíssimos.
— Entendo um pouco de vinhos franceses — comentou Nollie,
levantando uma garrafa quebrada de Châteauneuf-du-Pape. —
Essa foi uma boa safra.
— Se excluirmos um vírus, eu diria que o erro deles foi esse. —
Willing apontou para um espaço na grade de encaixes das garrafas:
um armário alto e vazio, cuja porta aberta de vidro exibia, ainda
assim, uma tranca sofisticada. Dentro dele, as divisões eram
compridas e verticais, para acomodar armas.
Continuando a descida, o andar seguinte era um centro de
entretenimento, no qual três cadáveres cravavam a atenção em uma
tela de cinema de um tamanho que agora podia ser duplicado por
um maXfleX em qualquer quarto de adolescente. Abaixo desse piso
havia uma área de repouso em que diversos participantes daquele
convívio pareciam um tanto relaxados demais. Os dois andares
inferiores eram todos de unidades residenciais, cada uma com sala
e banheiro privativos. Também elas tinham sido saqueadas, com
gavetas arrancadas e colchões atirados longe. Se os abutres
invasores haviam entrado ali em busca de objetos de valor — joias,
ouro —, Willing podia apostar que tinham saído com uma bela
soma. Mas não se deram o trabalho de levar o dinheiro, espalhado
de qualquer jeito pelos quartos, como papel de balas descartado.
Ele pegou uma nota de cem dólares, uma cédula original com o
verso verde — pequena demais para se assoar o nariz, não
absorvente o bastante para limpar os óculos. Quando o dólar fora
substituído pelo dólar nuevo, Willing ficara contente, como a maioria
da população, por ver a antiga moeda pelas costas, e não tinha
pensado em guardar de lembrança uma amostra. A textura
flanelada característica e a gravação trabalhosamente pomposa
desencadearam uma nostalgia inesperada. Ele embolsou a nota.
Incluindo uma enorme cisterna de reserva, o andar mais baixo
era o depósito. Os saqueadores haviam desconsiderado a maior
parte do conteúdo: massa sem glúten, tênis de corrida, suplementos
para as articulações e trufas de chocolate com sal marinho, uma de
cujas embalagens Willing abriu; os chocolates verde-azulados
estavam quebradiços e incrustados feito cracas. Ali ficava também o
compactador de lixo. Os cubos densos e variados empilhados junto
dele somavam menos de uma dúzia. Esse acampamento
subterrâneo de verão não durara muito.
Na subida de volta, Nollie avistou um brilho em meio às garrafas
descartadas na adega e resgatou um champanhe magnum com o
rótulo intacto.
— Foi a única razão de virmos aqui — disse. — Estou com sede.
Quando os dois emergiram, Goog estava de mau humor e,
depois do resumo detalhado que eles fizeram dos fatos, ficou com
inveja. Antes de se acomodar no banco do motorista, Nollie
estourou a rolha do champanhe.
— Não consigo me lembrar da última vez em que precisei tanto
de uma bebida — disse, e bebeu uma golada.
— Se você vai encher a cara, tem que pôr o Myourea no
automático.
— Willing, você é um empata chatérrimo — disse ela. Mas fez
uma concessão e, ao tornar a chacoalhar pela reta hipnotizante da I-
80, pôs os pés para cima. Nebraska, de Bruce Springsteen, era o
fundo musical, para dar o clima certo enquanto eles circulavam o
champanhe quente.
— Quer dizer que aquilo era um bunker nuclear? — perguntou
Goog.
— Chequei as datas dos alimentos — respondeu Willing. —
Foram todos comprados em 33. Logo, essa turma estava se
escondendo de uma coisa pior do que o holocausto nuclear: outras
pessoas. Para sua infelicidade, eles deixaram algumas dessas
outras pessoas do lado de dentro.
— Então, eles foram atacados? — quis saber Goog. —
Roubados?
— Nããão — fez Willing. — Estamos nos Estados Unidos. Havia
um armário de armas. A probabilidade de eles terem matado uns
aos outros passa de 50%.
— Mas, antes, tiveram um alto padrão de vida — comentou
Nollie.
— Eram ricos — concordou Willing. — E velhos.
— Ricos, é óbvio — disse Nollie. — Mas como você pode saber
se um cadáver é velho?
— Por seus produtos haverás de conhecê-los — entoou Willing.
— Os aparelhos de ginástica são um sinal revelador da geração. Os
banheiros estavam abarrotados até o teto de cremes
antienvelhecimento, gel branqueador dentário e shampoo de
cafeína. Havia remédios para hipertensão, colesterol alto e
disfunção erétil. E não eram apenas um ou dois vidros. Centenas.
Eu gostaria de poder dizer a Magno Grand Man que finalmente
descobrimos quem monopolizou o mercado nacional de laxativos.
— E a pobre da sua mãe — disse Nollie a Goog — acumulava
bloquinhos Post-it.
Durante muito tempo, tinham circulado rumores sobre os
“ultrarricos”. No folclore, esses vampiros fiscais mimados haviam se
recolhido a ilhas fortificadas de suntuosa desinibição, patinhando em
piscinas e equilibrando copos de piña colada, enquanto seus
conterrâneos morriam de fome. Descobrir que nem todos
escaparam ilesos — ainda que no fim das contas não tivessem
escapado uns dos outros — trazia satisfação.
***

Tentar fazer a travessia para o Estado Livre pela I-80 parecia meio
óbvio. A opção pela estrada menos movimentada fora toda a razão
de eles escolherem um ponto setentrional de entrada em Nevada,
para começo de conversa: quase todos os emigrantes subversivos
pegavam a I-70 para Las Vegas. Se o grau de fortificação na
fronteira variasse, o Serviço de Imigração e Fiscalização Aduaneira
certamente concentraria suas ações dissuasivas perto da maior e
mais famosa cidade do estado renegado, no seu extremo sul.
Por isso, Nollie saiu da autoestrada interestadual para a rodovia
secundária paralela, a Rota 58, que levava à cidade de Wendover,
cujos limites municipais originais abarcavam os dois lados da
fronteira entre Utah e Nevada. À primeira vista, Wendover pareceu
mais agitada do que outras comunidades similares no caminho. Até
ali, os motéis de beira de estrada tinham sido decrépitos, com
colchas esfarrapadas e copos recicláveis de plástico já rachados.
Em Wendover, as pousadas mais sofisticadas pareciam novas, com
nomes como Repouso do Peregrino, Ponto Final do Peregrino e
Travesseiro do Peregrino. Não pareciam se referir a refugiados
religiosos com chapéus de aba larga. Quando o trio enveredou mais
para dentro da cidade, proliferaram restaurantes, cassinos e lojas
vistosos: Pousada Vira-Casaca, Areias do Desertor e Restaurante
João Traição. Múltiplos estabelecimentos faziam alusões divertidas
àquilo que os visitantes como Willing mais temiam: Peixe Te Fritas,
ou Quem Sai do Chip Não Degenera. O Bar Última Chance
anunciava drinques batizados de Congelamento Cerebral e Derrame
em Copo.
Goog gemeu que estava faminto. Todos estavam.
— E quanto às mãos dele? — perguntou Willing à tia-avó.
— Esta cidade é tão maluca que ninguém vai olhar duas vezes
para uma fita — disse ela. A imobilização nominal de Goog já estava
frouxa a ponto de se qualificar como uma pulseira, e mais de uma
vez Willing o vira recolocar o bracelete esticado.
Assim, pararam em um restaurante familiar chamado Banquete
Final. Na recepção, um garoto de cinco anos fazia algazarra em
uma réplica de cadeira elétrica que girava, vibrava e soltava
fagulhas de verdade. O cardápio fora criado em torno da última
refeição pedida por condenados no corredor da morte. O prato à
John Allen Muhammad era composto de frango com molho de
tomate, acompanhado por bolo de morango. O John Wayne Gacy
vinha com KFC (Korean Fried Chicken, ou Frango Frito Coreano) e
camarão. Ou então, era possível escolher uma refeição mais leve: a
John William Elliot era uma xícara de chá quente com seis biscoitos
de chocolate; a James Rexford Powell, um bule de café.
— Isso não tem gosto de nada — comentou Nollie, examinando
as entradas.
— Como você pode saber sem pedir alguma coisa? —
questionou Goog. Ela revirou os olhos.
— Vou pedir o Ron Scott Shamburger — decidiu Willing: nachos
com molho chili, jalapeños, molho picante, cebola grelhada e tacos.
— Esse cara bateu as botas com estilo.
— Olá! — Como seus colegas, a garçonete do restaurante estava
vestida de guarda presidiária, trazendo no peito um distintivo
reluzente que dizia “Betsy”. — O que posso trazer para vocês?
— Vou começar por uma Injeção Letal — disse Goog.
— Ótima escolha! — exclamou Betsy, embora o coquetel de
conhaque, birita de fabricação caseira e xarope de romã parecesse
um horror. Depois de anotar os demais pedidos do trio, ela
perguntou, em tom simpático: — Vocês são desertores?
— Se fôssemos — respondeu Nollie, com um olhar desconfiado
para a moça —, por que lhe diríamos?
— Só estou puxando conversa, meu bem. Já repararam — Betsy
se dirigiu aos homens — como essas queridas senhorinhas tendem
a ficar paranoicas?
— Há alguma boa razão para se ficar paranoico? — indagou
Willing.
— Sei o que você está perguntando, benzinho — disse Betsy. —
É o que vocês todos querem saber. Mas os que cruzam a fronteira
nunca voltam. Entenda como quiser. Temos fregueses que se
repetem, sim, mas a maioria é gente que ficou com medo na última
hora. Às vezes, isso os deixa numa fria danada, porque todos usam
as reservas que tinham no chip em grandes farras nos cassinos. A
gente vê essas pessoas na rua, pedindo transferências para seus
chips, com intenção de voltar para casa.
— Vocês recebem muitos desses desertores? — perguntou
Goog, desconfiado, como o sacal que os outros às vezes esqueciam
que ele ainda era.
— Ah, os peregrinos deram uma boa levantada na economia
daqui! Volto já com o seu rango.

***
Após o almoço tardio, eles voltaram à estrada, e em seguida
estacionaram. A cerca de um quilômetro e meio, descendo a 58 —
tão reta quanto a interestadual de que era paralela —, o fleX de
Nollie indicou a fronteira de Nevada. E, de fato, uma espécie de
edifício se erguia no fim da estrada. Difícil dizer de que altura,
àquela distância, ou discernir se havia guardas atiradores de elite
com rifles agachados em seu terraço. Willing e Nollie concordaram
que chegar mais perto, em uma área populosa, seria um erro.
Melhor seguir mais para o sul, por estradas locais pequenas, e
explorar a natureza das defesas federais no meio de lugar nenhum.
— Olha, eu sei que nem sempre nos demos bem — disse Goog a
Willing, do banco de trás, enquanto a poeira levantava ao redor do
carro. — Isso não quer dizer que eu queira que o seu cérebro
queime feito uma lâmpada. Podemos fazer uma trégua? Esta
viagem foi um barato. Faça a volta, e talvez possamos passar pelo
Colorado no caminho de casa. Até me proponho pagar o preço
absurdo que os caras-de-prato cobram para a gente ver o Grand
Canyon. Sério, é por minha conta, para nós três. Juro que não vou
entregar vocês. Não vou denunciar o sequestro. Deixo até você ficar
com a porcaria da sua pistola.
— Isso é de uma generosidade incrível — disse Willing.
— Nunca sei quando você está sendo sarcástico — rosnou Goog.
— Escute, por que se arriscar a derreter a cabeça? O país... não é
tão ruim assim!
— Não era bem isso que os pais fundadores tinham em mente?
— perguntou Willing. — Um país que não é tão ruim.
— Nem tão ruim é melhor do que um entulho! — implorou Goog.
— Sei que vai ser duro por uns tempos, mas, chegando aos
sessenta e oito anos, é moleza! É só você contribuir com o seu
tempo!
— Por que você não vem conosco? — indagou Willing.
— De jeito nenhum — respondeu Goog. — Você não conhece o
SACS como eu conheço. Esses caras não são brincadeira. Você acha
que eles não atacariam os contribuintes insubordinados? Num
piscar de olhos. Pô, é incrível que ainda não tenham feito execuções
públicas. E não é por serem bandidos. O público em geral não faz
ideia de como as coisas estão aflitivas. O orçamento... Ele é uma
megacatástrofe. É um milagre conseguirmos bancar os sanduíches
da Suprema Corte.
Depois de se afastarem bastante da cidade, Nollie tornou a virar
à esquerda. A estrada de terra esburacada parecia a que os tinha
levado ao silo subterrâneo. Associações: nada bom. Goog fez
piadas sem graça sobre os instintos de Nollie que causavam sua
atração por cadáveres.
No entanto, ao se aproximarem do que o GPS identificava como o
fim do mundo, tal como eles o conheciam, nenhuma Grande
Muralha se ergueu para recebê-los. Seu veículo não explodiu ao
passar por cima de uma mina terrestre. No lugar em que Nollie
parou o Myourea e todos desceram, dois fios de arame farpado
enferrujado estendiam-se frouxamente de um lado a outro da
estrada, entre postes meio inclinados e mal ancorados. A cerca
prosseguia no eixo norte-sul nas duas direções. Do outro lado, uma
placa escrita à mão dizia: BEM-VINDOS AOS ESTADOS UNIDOS DE NEVADA.
Com as mãos nas cadeiras, Goog inspecionou a notória fronteira,
enojado.
— Não consigo acreditar nisso.
— Essa cerca — disse Nollie — não impediria nem a entrada de
galinhas.
Uns dez metros além do arame farpado ficava uma casinha
vermelha de tábuas de madeira. Na varanda, um velho reclinava-se
em uma cadeira de balanço, fumando. Mais raro nessa época do
que um SUV, seu cigarro de palha parecia um cigarro de verdade.
Willing acenou. O velho retribuiu o aceno.
Willing se aproximou do poste da direita. As pontas do arame
farpado eram fechadas em alças e penduradas em pregos vergados
para cima.
— PARE! — gritou Goog, quando o primo levou a mão a uma das
alças. — Agora faz todo sentido para mim! Eles ficam felizes por
deixar velhotes sem chip como Nollie cambalearem para fora do
país. Até agradecem. Essa gente custa uma fortuna, porra! Mas,
para contribuintes como você, Wilbur, do tipo que só dá e não
recebe nada, só existe uma razão possível para não haver muro
nem guardas nem minas: os caras não precisam disso. Se você
quer uma prova sólida de que estou certo sobre a autodestruição, é
essa cerquinha de merda.
Willing soltou os dois arames dos ganchos e os afastou do
caminho do carro, permanecendo nos EUA. Nollie tornou a ocupar o
que insistia em chamar de assento do motorista, deslizou para a
terra da traição e da secessão e estacionou o carro.
Agora a linha estava literalmente traçada na areia. Um desafio.
Por Deus do céu, foi comovente. Goog cobriu o rosto com as
mãos e declarou:
— Não posso ver isso.
Sem mais cerimônias, Willing entrou no Estado Livre.
• CAPÍTULO 5 •

QUEM QUER VIVER EM UMA UTOPIA,


AFINAL?

A risada alta que veio da varanda de tábuas vermelhas foi uma


surpresa. Willing estivera razoavelmente seguro, mas isso não era o
mesmo que ter certeza. Assim, parara por um momento, avaliando a
situação, sem dúvida com a expressão de quem tateia o corpo todo
depois de um acidente: estar ali e continuar ali, com a intensa
consciência, que raras vezes se aprecia, de um ponto no tempo
ligado ao ponto seguinte. Visto de fora, talvez parecesse engraçado.
O velho deu um tapa na coxa.
— Eu juro — gritou —, não importa quantas vezes eu veja, ainda
me arrebento de rir.
Apesar dos protestos de que não queria ver a cabeça do primo
detonar, Goog pareceu consternado por ela não ter explodido.
— Então, está legal — disse, a apenas meio metro de distância,
mas ainda nos EUA —, mas, e o canibalismo?
Willing apontou o velho com um aceno da cabeça.
— Aquele cara não parece estar prestes a me comer. E então,
você vem?
— Não posso. — Goog parecia despedaçado. — Esse lugar em
que você acabou de pôr os pés... ele é o novo Velho Oeste. Como
quer que seja, só pode ser primitivo. E eu tenho um bom emprego...
— Eu não chamaria de bom emprego.
— Emprego lucrativo, então. Privilégios. Nada de que reclamar. E
aqui... eles devem linchar gente como eu.
— O que o rapaz faz? — gritou o velho. Estava bisbilhotando a
conversa.
— Sacal! — Willing gritou de volta.
— Diga que ele tem razão! — retrucou o velho.
Com cerimônia, Willing tirou o canivete do bolso e cortou a fita
frouxa, enroscada nos pulsos do primo. Procurou em um dos bolsos
o maXfleX confiscado de Goog e pegou no carro uma garrafa de
água.
— Se você tem mesmo que voltar — disse, entregando a Goog
seu kit de sobrevivência —, há um aeroporto a alguns quilômetros
daqui. Deve ser possível ir até lá a pé.
— Está calor — resmungou Goog. Buscar uma segunda garrafa
não tinha importância. Ele quisera dizer “É solitário”.
— Diga a Savannah, Bing, seus pais, Jayne e Carter que mandei
lembranças. E espalhe a notícia de que essa ameaça da fronteira é
tesourice.
— Ninguém acreditaria em mim — disse Goog, tristonho. Devia
ter razão.
Os dois bateram no ombro um do outro com rara afeição. Willing
repôs os dois arames farpados em seus pregos. Com um aceno
desanimado para Nollie, Goog partiu cabisbaixo na direção de
Wendover, onde talvez outra Injeção Letal pudesse embotar sua
decepção. Com seu país. Consigo mesmo.
Enquanto isso, Nollie conversava com o homem da varanda. Sua
rusticidade de veterano parecia exagerada para impressionar. Ele
apanhara muito sol, mas, visto de perto, só parecia poucos anos
mais velho que Lowell, o que não era nada nesses tempos. O
macacão de brim estava bem passado demais para ser outra coisa
senão fachada, e o chapéu de aba caída parecia propositalmente
amassado. Considerando-se os campos plantados atrás da casa e o
gado mais adiante, ele não passava o dia inteiro batendo papo com
os novos imigrantes. Sentar-se naquele ponto de entrada, como
sentinela, devia ser o que ele fazia para se divertir.
— De acordo com o nosso amigo aqui — disse Nollie a Willing —,
aquela grande barricada na rota 58 é feita de madeira.
— A cidade não pode ter turistas dançando para lá e para cá pela
fronteira, à vista de todo mundo, sem que as cabeças explodam —
explicou o velhote. — Estraga a mitologia. Que é uma mina de ouro.
Ninguém vai pedir um gigantesco banquete final no almoço, se
estiver planejando jantar.
— Se eu quisesse achar alguém por aqui — perguntou Willing —,
qual seria minha melhor aposta? Vegas?
— É para onde vai a maioria. Economize trabalho, tente usar a
internet.
— Pensei que vocês não tivessem internet.
Ele deu um risinho.
— Temos nosso próprio servidor. Ah, os Quarenta e Nove
Externos bloqueiam nosso acesso ao sei-lá-o-quê mundial. Não
pense que vai conseguir todos os livros do Google. Mas há muita
orientação local sobre o plantio de alfafa. E páginas para encontrar
pessoas queridas. Se elas quiserem ser encontradas.
Como Goog avisara, a tecnologia era primitiva. A pátria adotiva
não oferecia ligação por satélite com o http://eun nem acesso
público às ondas de rádio que cobriam grande parte dos Estados
Unidos — país cujo território começava a poucos metros dali, mas
no qual Willing já começava a pensar como muito distante. Seu guia
velhote de confiança teve a gentileza de fornecer a senha do seu wi-
fi particular. Era de uma lentidão insuportável.
— Achei! — anunciou Willing, depois de cinco minutos
excruciantes. — Jarred Mandible, Buena Vista Drive, número 2827,
Las Vegas. Foi mais fácil do que eu esperava. Se bem que não
entendo o site em que o encontrei. Tem alguma coisa a ver com
queijo.
— Já passa das quatro horas — observou Nollie, inquieta —, e
Las Vegas fica a 480 quilômetros daqui.
— Antes de pegarem a estrada — disse o velhote, com um brilho
malicioso no olhar —, talvez vocês queiram experimentar um
joguinho de salão local, enquanto ainda estão na fronteira.
Curioso, Willing seguiu as instruções do vigia do portão e
estendeu seu maXfleX sobre a terra de sua antiga vida, por cima do
arame farpado. O aparelho pôde entrar de novo em contato com
http://www.meuchip.com imediatamente. Mais uma vez, o veterano
gritou:
— O que diz aí?
— Zero ponto zero nuevos — Willing leu — e zero ponto zero
centavos.
Isso produziu um segundo tapa na coxa.
— Mais um drama de que nunca me canso! É a única parte
desse conto da carochinha sobre o chip que acerta na mosca. Mas
eles não sugam a vida da sua cabeça. Basta pôr um pé no Estado
Livre que, em vez disso, eles sugam o dinheiro.
— O que mostra certa coerência sombria — observou Nollie.
— Não tem importância — disse o homem. — Aqui ninguém usa
chip, de qualquer maneira. Pense nisso como um estilhaço das
Guerras do Imposto de Renda. Mas é melhor ir se acostumando,
garoto: você está duro.
— E os bancores? — indagou Nollie, ressabiada.
— Os Estados Unidos de Nevada não fazem comércio com
ninguém — disse o homem, divertindo-se. Tinha uma veia sádica. —
Parte filosofia, parte pragmatismo... porque ninguém quer manter
relação econômica com a gente. Portanto, o que vocês não
puderem fabricar, minerar, consertar, plantar ou inventar em
Nevada, não vão obter. O que significa, minha senhora, que um
bancor é mais ou menos tão útil para comprar mantimentos quanto
um rato afogado.
— Os nevadenses usam algum dinheiro? — perguntou Willing.
— O que você acha: que usamos contas? Não somos selvagens.
Carson City emite o continental. Primeira moeda usada nas treze
colônias originais. Só que foi rapidamente para o espaço no fim dos
anos 1770, porque não se respaldava em nada. Nós corrigimos isso.
— Não me diga — retrucou Willing. — Vocês usam o padrão-
ouro.
— Ora, se você é rápido! Antes de nos separarmos, o Estado
Livre produzia a maior parte do ouro americano. Mas a oferta de
continentais é muito restrita. Aprendemos a lição nos anos 30. Aqui
todos concordam que, à primeira vista, o padrão-ouro é burro. É
arbitrário, como diz o governador. Não se pode fazer muita coisa
com ele, além de usá-lo no pescoço. Não dá para comer ouro. Mas,
como moeda, funciona. Mesmo que não saibamos muito bem por
quê. Um continental dá para você comprar um espanador hoje? Pois
dará para comprar um espanador amanhã. Logo, não é tão burro
assim.
— Bem, obrigada pela orientação — disse Willing, à guisa de
despedida.
— Não me lembro de ter dado orientação nenhuma — objetou o
homem. — Mas temo que vocês não estejam focados na sua
situação. Vocês não têm dinheiro. Mesmo que achem postos de
gasolina para abastecer esse seu calhambeque chique, como vão
pagar? Minha orientação é a seguinte, que eu dou de graça a todos
os recém-chegados ingênuos que passam por aquela cerca:
Nevada não é nenhuma utopia.
— Eu disse alguma coisa implicando que eu achava que era? —
perguntou Willing.
— Vocês todos acham — descartou o homem. — Mas a sua
amiga aí. Uma senhora encantadora, com certeza...
— Cuidado com quem chama de encantadora — espinhou-se
Nollie.
— Mas que não acabou exatamente de sair da esteira, na linha
de produção — continuou ele. — Se você traz gente idosa, paga por
gente idosa. Aqui não existe Medicare. Nem Previdência Social.
Nem plano especial de cobertura de medicamentos. Nem asilos
subsidiados pelo Medicaid. Não existe a chamada rede de
segurança. Todo cidadão dessa república anárquica tem que andar
na corda bamba sem nada embaixo, exceto o chão duro e frio. Se
tropeçar, alguém que se importa com você que trate de segurá-lo,
ou você cai de bunda.
***

Partiram por uma estrada de mão dupla, a US 93. A terra era plana
e seca, com uma ondulação de montanhas baixas no horizonte.
Tufos de arbustos empelotavam a planície como os flocos de
cúmulos no alto, fazendo do terreno um reflexo perfeito do céu.
— Você pareceu muito confiante ao cruzar a fronteira —
comentou Nollie.
— Tinha mais que os seus 60% de confiança, pelo menos —
disse Willing. — Quando Goog falou das condições do Monumento
a Washington, alguma coisa se encaixou na minha cabeça. É mais
econômico monitorar fotografias na internet do que limpar os
monumentos na vida real. Por isso, quando vi a cerca, entendi. Eles
não têm cães, atiradores de elite, nem uma enorme barreira de
concreto ao redor de todo o perímetro de Nevada. Mas não porque
o chip esteja programado para se autodestruir. É que eles são
avarentos demais.
Nollie deu uma risadinha.
— Mesma razão pela qual não se interessaram por travar outra
guerra civil, para começo de conversa.
— Os boatos são grátis, se espalham sozinhos. Contratar gente
para postar uma porção de disparates sobre os Estados Unidos de
Nevada não custa quase nada. Foi o que Fifa disse sobre o
terrorismo de Estado. Policiar por meio da propaganda economiza
dinheiro. E, sinceramente, Noll —, acrescentou Willing,
reconsiderando —, estamos falando dos Estados Unidos. Não se
trata do país que já foi, mas eles ainda não assassinam as pessoas
por evasão fiscal.
Tiveram sua primeira lição prática com os nevadenses naquela
mesma noite. Estavam rodando com o finzinho do combustível e
não chegariam a Las Vegas sem reabastecer. Embora a
cidadezinha de Ely tivesse uma hospedaria e um restaurante, Nollie
e Willing não tinham dinheiro para nenhum dos dois. Assim,
pararam no acostamento da estrada, trancaram as portas e se
embrulharam nos suéteres que só Nollie tinha pensado em pôr na
mala em julho. Ficava frio no deserto depois do pôr do sol.
Willing não se incomodou. Já sentira mais frio: durante o inverno
de 2031 e 32, quando sua mãe se recusava a regular o termostato
acima de 6ºC — só o suficiente para impedir que os canos
congelassem. Encolhido em uma tubulação que gotejava, a caminho
de Gloversville, impossibilitado de dormir, esperando o sol nascer.
Congelando os dedos no guidom, ao empurrar a bicicleta por
margens de rio cobertas de mato, lutando para mantê-la em pé,
porque as caixas de Nollie e Carter tornavam a carga superpesada.
Podia fazer muito tempo que a energia dos tacos do Banquete Final
acabara, mas estava longe de ser a primeira refeição que ele perdia.
Avery levara um ou dois anos para distinguir luxos de necessidades.
Willing sabia a diferença desde pequeno.
Pegou a estrada cedo e se ofereceu para ajudar no restaurante,
ele podia fritar algumas coisas. De má vontade, o proprietário
concordou, mas só durante a correria do café da manhã. Ouviu
resmungos sobre “imigrantes ilegais” — um uso ligeiramente
distorcido, uma vez que o que tornava Willing e Nollie ilegais não
era ter a permissão para entrar nesse novo país negada, mas ser
proibido que deixassem o deles. Depois de também limpar os
banheiros, ele ganhou seus primeiros continentais, cujo enigmático
desenho colonial, em tom sépia, era ainda mais fora de moda e retrô
do que as antigas cédulas verdes.
Se os preços do cardápio podiam servir de guia, sua
remuneração foi um lixo — mais baixa que o pagamento da Elísios
depois da dedução dos impostos. Mas a sensação de ganhar menos
dinheiro e conservar todo ele foi melhor que a de ter um valor líquido
maior depois de a renda ser saqueada. O fato de o dono do
restaurante não pedir o endereço eletrônico do metal do seu
pescoço foi empolgante. Era sua primeira renda, em seis anos, não
automaticamente informada ao governo federal nem quase toda
transformada em vapor por ele. Meu caro Goog, gostaria que você
estivesse aqui.
Em seguida, ele recolheu montes de esterco seco de vaca, para
vender como adubo a um rancho próximo da rodovia. Passou a
tarde consertando as cercas do rancheiro — justamente a tarefa
cotidiana que havia matado sua mãe. Tomou o cuidado de usar
luvas, mesmo no calor. O trabalho lhe trouxe recordações. O dedo
indicador de Florence, a princípio apenas gordinho como uma
salsicha, com um halo vermelho em volta do corte. Ela procurou ser
cuidadosa, mergulhando a laceração em água morna com sal, o que
depois o médico disse ter sido inútil. Em dois dias, a mão inchou até
virar uma teta não ordenhada, e listras vermelhas riscaram o braço
musculoso. Supostamente, o resultado teria sido o mesmo se eles a
tivessem levado correndo para o hospital, no instante em que o
dedo começou a inchar. “Os remédios que não funcionam”,
anunciou com ar desolado o clínico geral, entregando a bandana
respeitosamente dobrada, como se fosse uma bandeira americana
em miniatura em um funeral militar, “não funcionam melhor quando
ministrados mais cedo”.
Enquanto isso, Nollie fez polichinelos ao lado do carro, o que
proporcionou aos locais uma infindável hilaridade bisbilhoteira.
Willing nunca chamaria a atenção dela para isso, mas sua forma
havia se deteriorado. Suas mãos já não se juntavam acima da
cabeça, subindo apenas até a altura das orelhas, e depois desciam
até o nível da cintura. O resultado era um movimento fraco de
borboleta agonizante. Os saltos também eram pouco eficazes.
Antigamente, ela juntava os calcanhares com uma batida. Agora,
seus pés subiam e desciam no mesmo lugar, aproximadamente na
largura dos ombros. No breve instante em que ficava no ar, ela
pairava a apenas dois centímetros do chão — mal se poderia
chamar aquilo de salto. A deterioração doía em Willing. Aquele
regime lunático sempre tivera um lado cômico, porém essa versão
mais debilitada só poderia divertir os estranhos.
Nem mesmo Enola Mandible seria capaz de fazer ginástica o dia
inteiro, por mais imperfeita que fosse a articulação dos gestos. No
segundo dia, ela mesma saiu à procura de biscates: arrumar
mercadorias enlatadas nas prateleiras do minimercado, passar pano
de chão. Depois disso, com dor nas costas, não precisava dos
polichinelos.
Era uma região pobre, ainda mais empobrecida porque os
turistas de cidades como Boise e Portland já não passavam por ali a
caminho de Las Vegas. Pior que isso, tal como Willing, logo depois
da secessão, toda a população do estado — sem contar o setor sem
chip vastamente maior do que a média nacional — tivera suas
contas zeradas pelos satélites do SACO. Os nevadenses chamavam
essa depenada punitiva de despedida de “o Pequeno Furto”. A
espoliação acumulada não tinha sido insignificante. O nome aludia
menos a um pequeno fruto de roubo do que à mesquinharia.
À medida que os trocados que os moradores locais podiam pagar
a seus visitantes migrantes foram se transformando em um bom
montante, a hostilidade da população diminuiu. Willing trabalhava
bem e com afinco. Mantinha a boca fechada. No final, mais de um
nativo de Ely os tinha convidado para uma refeição. Após cinco dias
vivendo no Myourea, eles juntaram uma quantia suficiente de
continentais para reabastecer o carro.

***

Nevada sempre fora um ímã para desequilibrados. Desajustados,


párias, meliantes, rebeldes — os insatisfeitos, os utopistas, os que
buscavam atalhos. Nascida da ascensão e queda da mineração, a
economia se alicerçava no vício: boxe profissional, mulheres
dissolutas, alcoolismo, jogo e fragilidade conjugal. Antes mesmo de
se virar sozinho, o estado era fora de série, tornando facílimo a
pessoa se casar e mais fácil ainda se divorciar. O álcool era
fornecido vinte e quatro horas por dia. A relação tolerante com a
prostituição precedia em muito a era em que Savannah tinha podido
obter um diploma credenciado de uma escola profissionalizante em
terapia da estimulação. Cigarros de verdade — ou charutos
enormes e fedorentos, aliás — eram legais nos cassinos. Uma
proibição de imposto de renda estadual fora consagrada em sua
constituição. Em 2042, os nevadenses tinham só formalizado o fato
de serem uma população à parte. Portanto, essa amotinada nova
nação dentro de outra fora feita sob medida para o tio excêntrico e
ininterruptamente indignado de Willing. Mas com o quê ou quem um
iconoclasta haveria de lutar ali? Essa visão — a de Jarred Mandible
perfeitamente feliz — era discordante.
Willing conhecera seu mentor como um visionário proprietário de
terras que havia reconhecido antes do resto da família a primazia da
necessidade de comer. Ele sempre imaginara Jarred de botas de
borracha enlameadas e segurando uma pá. Nos EUN, com certeza
Jarred já teria arranjado uma fazenda — a ressurreição da Cidadela,
livre da exigência humilhante de vender quase toda a sua carne e
produtos agrícolas ao Ministério da Agricultura dos Estados Unidos,
por preços fixos escandalosamente baixos. Mas o endereço urbano
encontrado no http://eun deveria ter colocado em dúvida essa rósea
visão pastoril da situação do tio.
Willing não pôde reprimir a onda de empolgação quando Nollie
cruzou os limites da cidade de Las Vegas. Nunca se interessara por
apostas — por dinheiro, bem entendido. Em termos mais gerais,
interessava-se muito por apostar. Estava fazendo uma aposta
naquele momento.
Além disso, reagiu instintivamente à reputação da cidade. A
rebeldia, a impulsividade e a falta de cautela do lugar atraíram muito
um jovem cuja infância fora cerceada pela circunspecção e pela
vigilância. A imprudência institucionalizada de uma cidade em que
muitos indivíduos jogavam a totalidade dos seus bens em um único
giro da roleta só podia atrair um brooklyniano cronicamente
parcimonioso, que media exatos três quartos de xícara de arroz
para sua mãe, a fim de que o pacote durasse a semana inteira.
Saboreou a indiferença da cidade aos muxoxos de opróbrio que ela
sempre despertara nos tensos, nos pudicos, nos moralistas. Ela não
dava a mínima para a virtude. Era crassa, era espalhafatosa, era
pagã. Era tola e artificial — sincera e reconhecidamente artificial, o
que lhe dava uma espécie de autenticidade. Não se desculpava por
ser como era. Com o tempo, a cidade trouxera rios de dinheiro para
seus residentes, justamente em consequência do que nela havia de
errado.
Las Vegas era a Anti-Willing. Todos se sentem atraídos por aquilo
que não são.
No entanto, quando o sol começou a se pôr e Nollie passou pela
conhecida Strip, a Las Vegas Boulevard, ele ficou desolado.
Cassinos como o Wynn, o Venetian, o Bellagio e o Singapore tinham
uma aparência pesada e escura. A lendária avenida principal
tornara-se fúnebre. Alguns salpicos de neon reluziam apenas em
pontos mais distantes. Havia mais tráfego nessa via expressa do
que em Manhattan, mas o que preponderava entre os veículos eram
os caminhões de carga; carros extravagantes como o deles eram
raros. A impressão imediata causada pelo centro da cidade era
decepcionantemente séria.
O endereço de Jarred ficava bem nos arredores do extremo
sudeste. Conforme eles se afastaram do centro da cidade, as
amplas residências de estuque branco, no estilo das sedes de
ranchos, com seus jardins de cactos cuidadosamente tratados,
foram dando lugar a moradias menores e de aparência mais barata,
sem nenhum trabalho paisagístico — fileiras de casas idênticas,
plantadas no barro vermelho. A construção de Jarred, a Acres Aloé,
estava semiacabada. Tendo na cobertura de telhas de terracota sua
única relação passageira com o estilo espanhol moderno, a casa
branca e fria de número 2827 era cercada por muros retangulares
parcialmente construídos e abandonados, que batiam na cintura. Ou
o dinheiro acabara, ou os construtores tinham caído fora quando
esse estado, famoso por sua rebeldia, tornara-se mais
insubordinado do que os investidores se dispunham a aceitar.
Jarred não os esperava. Atendeu a porta de cuecas e segurando
uma espingarda.
— Deus Todo-Poderoso, é o meu braço direito! E uma das únicas
senhoras idosas que consigo suportar! — Rejeitando o protocolo
social, Jarred mandou a cautela médica para o espaço e deu um
abraço apertado nos dois, com a espingarda pressionando
incomodamente o peito de Willing. — Fé e crédito, mi hermano y mi
tía! Eu estava torcendo para vocês conseguirem! E o que acharam
daquela tesourice na fronteira, hein? Cheguei a me dar o trabalho
de atravessar o Colorado de caiaque, quando podia ter dirigido a
porra da picape na I-70 sem nem ao menos um aceno de adeus. Eu
me senti um tremendo pateta! Entrem, entrem!
O interior era totalmente despojado: uma pequena mesa
laminada, duas cadeiras de espaldar vertical. Tudo era branco,
exceto o piso de concreto, e nada pendia das paredes. Quando o
restinho de pôr do sol carmesim piscou por uma janela estreita,
Jarred acendeu uma lâmpada nua, pendurada no teto. Seus cachos
pretos e rebeldes estavam mais compridos, para dizer o mínimo, e
escapavam de um rabo de cavalo descuidado. Antes que o tio se
retirasse para enfiar um roupão, Willing notou que, aos cinquenta e
três anos, Jarred tinha finalmente desenvolvido uma barriga
volumosa. O que quer que andasse fazendo, não era lavrar, plantar
nem dar lavagem a porcos.
Como se adivinhasse o que o sobrinho estava pensando, Jarred
disse:
— Rapaz, você ficou mais magro ainda.
— A escravidão emagrece — retrucou Willing.
Jarred pegou um banquinho de plástico, uma garrafa de tequila e
três copos descasados.
— O empreendedor mais esperto daqui foi o cara que resolveu
plantar agave-azul depois da secessão — disse ele, servindo a
bebida. — Não adianta ter o Patrón sediado na cidade, se o pessoal
fica isolado de seus fornecedores mexicanos. Agora, esse troço da
lavoura local está espalhado por todo o Estado Livre, e o cara que o
produz está podre de rico. Saúde! Aos indomáveis Mandible, que
floresçamos para sempre!
— Quer dizer que há gente rica por aqui? — perguntou Nollie.
— Pode acreditar — respondeu Jarred. — Esse estado precisa
de praticamente tudo. Descobrindo o buraco para preencher, você
pode faturar uma grana alta. E mais, ficar com ela. Taxa tributária
fixa de 10%. E não são 10% mais imposto sobre circulação de
mercadorias, imposto predial e territorial, impostos estaduais e
municipais, imposto para Medicare e Seguridade Social. 10%,
ponto. Porra, ninguém chega nem a se ressentir disso.
— Não consigo imaginar você, meu menino — disse Nollie —,
não se ressentindo de nada. Deve estar desolado.
— Eu sempre poderia me ressentir de não me ressentir de nada
— postulou Jarred.
— Tem gente que não paga os 10%? — perguntou Willing.
— Ah, deve ter. Mas a força policial é superpequena, muito
sobrecarregada, e se aborrece com facilidade. Eu não os irritaria. A
justiça é bem severa. Provavelmente, eles apareceriam à sua porta,
pegariam todos os continentais que conseguissem achar e lhe
dariam uma surra. Nem que fosse por você ser uma chateação.
Sem nenhum, digo, nenhum benefício social. Nem cheques de
seguro-desemprego, nem pensões por invalidez, nem ajuda aos
filhos dependentes, nada. Tem uns marginais numa pior danada
nessa cidade, e a taxa de criminalidade é monumental. Daí a
espingarda na porta, desculpem. Você ainda tem aquela pistolinha
sensual Black Shadow?
— Claro — respondeu Willing, com um tapinha na arma em seu
quadril.
Nollie se mostrou tensa.
— Parece que não devíamos ter deixado nossas coisas no carro.
Willing franziu o cenho.
— Não há muita coisa lá que tenha algum valor — disse. Não
queria empilhar a bagagem imediatamente na casa de Jarred, como
se os dois estivessem de mudança para lá, ainda mais se fosse isso
que estavam fazendo.
— Talvez não para você.
Nollie saiu correndo porta afora. Voltou batalhando com uma
caixa, e Willing se levantou de um salto para tirá-la de suas mãos.
Jarred deu uma gargalhada.
— Não me diga que é o material descartado!
Willing não queria que fosse verdade, mas temia que sua tia-avó
estivesse começando a pirar. Sim, os idosos tinham lá seus apegos,
mas ela havia arrastado aqueles velhos manuscritos por todos os
quartos de hotel na viagem até ali. Tinha plantado a caixa a seu lado
na mesa do restaurante, quando eles comeram seu Banquete Final.
Até a mantivera a seu lado enquanto fazia seus biscates em Ely,
onde também chegara para jantar na casa de moradores locais com
os braços em volta da caixa de papelão meio destruída, como uma
criança pequena agarrada a um coelhinho de pelúcia. Tudo bem,
aqueles documentos eram um símbolo da sua vida perdida de
escritora profissional. Mas a ferocidade do apego era estranha.
Willing e Jarred se entreolharam com um embaraço em comum.
Depois de servir salgadinhos de milho com molho picante
mexicano, Jarred estendeu a garrafa para encher de novo os copos,
mas Willing cobriu o dele com a mão.
— Desde quando você virou abstêmio? — perguntou Jarred.
— Não virei. Sou sentimental. — Willing abriu o zíper de um bolso
externo da capanga. Delicadamente, retirou uma trouxa de tecido.
Desdobrou a meia. Era a mesma meia soquete que um dia ele havia
enchido de moedas e usado para ameaçar o garoto ruivo,
obrigando-o a abdicar da sua carne moída gordurosa. Com um
gesto afetado, pôs sobre a mesa o objeto guardado na meia e disse:
— Sirva aqui a próxima dose.
— Ei, eu conheço isso! — exclamou Jarred. — Era da minha
irmã, que Deus a tenha. Florence tinha um fetiche do cacete com
essas coisas. Maxiatípico nela, aliás. Um encanto, na verdade. Não
me leve a mal, mas sua mãe sabia ser chata. O fato de ela se
apaixonar por um par de trecos frívolos, todos cheios de frescuras
requintadas, e ridículos, bem, foi um grande alívio.
Mesmo à luz crua da lâmpada solitária, a base e a haste azul-
cobalto reluziam como os vitrais de uma catedral. O bojo pequenino
tinha uma cor quente, encantadora.
— Sempre tive a intenção de devolver isso à mamãe — disse
Willing. — Eu estava só guardando em segurança. Foi tudo que nos
restou da Casa da Abundância. É nossa herança.
Jarred serviu a bebida e os três brindaram.
— À nossa herança!
Mandando a higiene às favas, Willing insistiu em que todos
bebessem um gole do cálice, que circulou entre eles como uma taça
da Comunhão. O ritual santificou a noite. Pareceu uni-los em uma
espécie de pacto. Para fazer o quê, não ficou claro.
Para coroar os festejos, Willing pegou as ridículas laranjinhas
kinkan cristalizadas. Quando a pessoa guarda gestos simbólicos por
muito tempo, pode perder a oportunidade. Se eles não comessem
logo aquelas frutas bobas, talvez Willing se tornasse o dono
perpétuo de um pote inútil. Ele explicou sua origem.
— Agora eu acredito em fadas. Vocês acharam uma colônia dos
ultrarricos! — exclamou Jarred. — Sempre achei que os agentes
federais promoviam o mito dessa elite endinheirada para justificar os
impostos draconianos. Os presidentes sempre esbravejaram contra
os “bilionários e trilionários”, mas a faixa superior do imposto de
renda ficava sempre convenientemente situada, não em um bilhão,
mas em duzentos e cinquenta mil.
— Eles não são fadas — disse Willing. — Estão mais para uma
espécie em extinção.
— Sabe, sua mãe tinha razão sobre os tais prazos de validade —
disse Nollie, lambendo os dedos. — Meio doce para o meu gosto.
Mas não é ruim.
— E você sabe como era isto aqui — perguntou Willing ao tio —
quando os Estados Unidos de Nevada declararam independência?
Depois da fronteira, na semana passada, não confio em mais nada
do que foi notícia em 42. Os massacres, a anarquia. Os confrontos
paramilitares entre patriotas e separatistas. Alguma parte disso foi
real?
Jarred adorava lecionar. Tinha sumido da Cidadela apenas seis
meses antes, mas isso era amplo tempo para Jarred Mandible se
tornar especialista em um novo país; ainda que seu ar abalizado
ficasse meio prejudicado pelo roupão e pelo banquinho de plástico.
— Aquilo foi tudo efeito especial de computação gráfica —
declarou. — Não houve batalhas paramilitares, porque não havia
nenhum “patriota”. Todo mundo estava de saco cheio de
Washington, e qualquer um que se extasiasse com o hino nacional
era convidado a se retirar. Pelo que eu soube, a revolução de 42 foi
a mais bem-educada da história. Os governos municipais já
estavam instalados e continuaram instalados. O mesmo com o
governo estadual, que apenas se transformou em governo nacional,
pimba, da noite para o dia. E assim, as pessoas acordaram. O sol
nasceu. Elas foram trabalhar. Nada mudou. Afinal, você já parou
para pensar no que faz o governo federal? Tira seu dinheiro e o dá
para algum idoso. É quase só isso. Ah, e aí os agentes federais
gastam um horror de energia para interferir em qualquer coisa que
você queira fazer. Eu realmente sinto falta disso.
— Existe o Serviço de Recenseamento — disse Willing. — Não
sei quanto bem ele faz, mas é bastante benigno.
— A Comissão Americana de Monumentos de Batalha! —
postulou Nollie. — Inofensiva.
— A Guarda Costeira! — recordou Willing, vitorioso. —
Ativamente boa.
Jarred deu uma risada.
— Está certo, a Guarda Costeira eu reconheço.
— Vocês lembram quando os republicanos tiveram maioria para
deixar Washington sem orçamento? — perguntou Nollie. — O
governo federal se fechou atrás das cortinas e ninguém reparou.
— Só havia uma coisa que deixava o povo irritado — recordou
Jarred. — O fechamento dos parques nacionais. E agora o governo
federal vendeu o Yellowstone. Lá se foram todos.
— Ei, o que aconteceu com a Strip de Las Vegas? — perguntou
Willing, na esperança de tirar o tio de uma amargura para lá de
conhecida. — Vi fotografias daquela avenida de neon a vida inteira.
Agora, ela está escura.
— Bem, logo depois da Moratória, Vegas encheu a burra de
dinheiro. Os turistas estrangeiros inundaram os cassinos. Com o
câmbio favorável a eles, as bebidas, os quartos de hotel, os grandes
espetáculos e os bufês saíam praticamente de graça. O problema
era que, nas mesas, tudo que se podia ganhar eram dólares.
Alvarado não deixava saírem mais de cem dólares do país, portanto,
não se podia levar a grana para casa. E, mesmo que o sujeito
gastasse in situ, sabe? Quando começou a inflação para valer, em
um piscar de olhos uma bolada ganha não valia mais, em termos
reais, do que a aposta com que se havia começado. Não era uma
experiência satisfatória. Ironicamente, apesar de todas as suas
associações iniciais com a Máfia, Las Vegas continuou mais segura
do que quase todas as cidades americanas na década de 30. A
inundação de moeda estrangeira se infiltrou aqui e ali e abrandou o
desespero. Então, o que realmente destruiu a Strip não foi o caos.
Foi a ordem. O tipo de ordem que cravou esse pedaço de lata no
seu pescoço, coitado de você.
— O imposto da sorte grande de 37 — recordou Nollie. — Ele
incidiu não apenas sobre as vendas de imóveis, mas também sobre
os ganhos no jogo.
— 90% — disse Jarred. — Quer dizer, um ganho de dois para um
dava um líquido de um décimo da aposta. A relação risco-benefício
foi para o diabo. Mas estava tudo muito bem, enquanto o Tio Sam
confiava no caráter incorruptível da turma para informar sobre
aquele balde de nuevos tirado dos caça-níqueis. Só que aí eles
introduziram os implantes de chips e a tributação na fonte nos
cassinos, inclusive para os estrangeiros. Para os profissionais, foi
morte certa. Ninguém conseguia ganhar a vida, nem mesmo sendo
ultrabrilhante. E aí veio o golpe final: eliminaram o nuevo em
espécie. Aquela sensação do dinheiro físico, de poder folhear
maços de notas de cem, ou segurar mais de dois quilos de moedas
de vinte e cinco centavos de um caça-níqueis antigo, isso sempre foi
crucial para toda a Gestalt do jogo. Se o sujeito só recebia um
crédito abstrato, a maior parte do qual era imediatamente retirada...
Bem. Acabou-se a diversão. Se você quiser uma explicação isolada
para a secessão, foi essa. A turma daqui diz que a indignação
popular era tão palpável que o ar ficou vermelho. — Jarred soava
melancólico. Tinha perdido a festa.
— O lema deles, ao que eu me lembre, era Nada de Impostos —
mencionou Nollie. — Só isso. Eles pouco se lixavam para a
representação. Que cambada. Fiquei impressionada na época.
Como a revolta da Hungria contra os soviéticos. E não é uma
analogia auspiciosa.
— De modo geral, acho que os nevadenses ficaram aliviados por
não travarem uma guerra civil — comentou Jarred. — Mas estavam
dispostos a encarar a luta. Ninguém, mas ninguém mesmo, nesse
estado, entregou suas armas por conta da reinterpretação da
Segunda Emenda.
— A Strip poderia ter voltado à vida depois da independência —
observou Willing.
— Não com o embargo — discordou Jarred. — Os grandes
cassinos nunca poderiam sobreviver dos habitantes locais, quase
todos jogadores de cacife baixo. Eles precisam de turistas. Esse foi
o pior golpe nessa economia: acabaram-se os turistas. Ficou só um
fluxo contínuo de imigrantes clandestinos falidos, como nós.
Washington não dá aos aviões com destino a Nevada o direito de
entrarem no espaço aéreo americano. Espero que vocês se deem
conta do que fizeram. Não há viagens aéreas domésticas nem
internacionais. E, embora possa ser muito fácil entrar no Estado
Livre, tenho certeza de que vocês serão presos, se voltarem. No
mínimo, pegam vocês pelos impostos atrasados, com juros e multas
somados; portanto, seja na prisão de verdade, seja na prisão dos
devedores, é uma sentença de prisão perpétua. Especialmente se
você tiver o chip, Willing; esta Brigadoon aqui é para sempre.
— E sobrou algum cassino? — Para Willing, era uma questão de
atmosfera. Ele não estava ansioso por jogar dados. Mas não queria
que a cidade pela qual havia sacrificado permanentemente sua
casa, quase toda a sua família e uma namorada muito mais que
sofrível fosse apenas como qualquer outro lugar.
— As velhas espeluncas do centro da cidade, como o El Cortez,
ainda estão se aguentando. Detesto admitir, mas eu mesmo andei
frequentando as mesas deles. Não sei de que outra maneira vou
acumular algum capital. Você se lembra daquelas longas noites frias
na Cidadela: sou um ás no vinte e um.
— Então, tem ganhado muita grana? — perguntou Willing.
— Não perdi muito — resmungou Jarred. — O que é um feito.
Nollie cruzou as pernas e apoiou os pés na caixa do material
descartado.
— É claro que, ao sufocar o comércio, fazer o turismo despencar,
bloquear as redes de comunicação e transportes, e deixar um
estado com notória escassez de água inteiramente por sua própria
conta — retomou Jarred —, Washington esperava pôr os Estados
Unidos de Nevada de joelhos. Por isso, o paralelo é menos com a
Hungria do que com o Cerco de Leningrado. Sedentos, pobres,
isolados e desesperados por pêssegos frescos, os nevadenses
haveriam de implorar para serem aceitos de volta na União, pelo
menos na teoria. Enquanto isso, o exército não teria que disparar
um tiro. Ninguém em Washington tinha apetite de ver pelo maXfleX
soldados americanos massacrando outros americanos. Como
estratégia, era bem bolada, frugal e politicamente astuta. O governo
Chelsea Clinton presumiu na surdina que os Estados Unidos de
Nevada iam desmoronar num monte choroso e arrependido em
questão de meses, se não de semanas. Só que faz cinco anos. E
não tem ninguém chorando.
Jarred transpirava um orgulho local contagiante, que talvez
houvesse contraído de seus vizinhos. Mas havia uma evidente
desconexão entre seu entusiasmo eufórico e sua toca lúgubre e
espartana. Willing não notara nenhum veículo estacionado na
entrada da garagem. A lâmpada nua brilhava e ele foi se
preparando para outra noite no Myourea. Os salgadinhos de milho e
as laranjas kinkan tinham acabado e ele não tinha mais nada para
comer.
— Este chamado país está funcionando? — indagou, hesitante,
procurando valer-se do tato. — Ou será que o povo daqui é só
ultrateimoso?
— Este Estado é um experimento social instigante, e talvez essa
decisão ainda não tenha sido tomada — respondeu Jarred, cheio de
brio. — Todas as social-democracias do Ocidente seguiram a
mesma trajetória. Começam dignas, calmas e meio relapsas, mas
acabam inchadas com sua própria virtude. Apaixonadas pela justiça.
É claro que, num mundo perfeitamente justo, todos teríamos uma
casa grande, maldosa, e montanhas de comida. Acesso ilimitado à
medicina de ponta, creches gratuitas, educação maxibrutal e
travesseiros fofinhos para os longevos...
— Flores frescas toda manhã — acrescentou Nollie. — Uma taça
infinitamente transbordante de tequila. — Ergueu o copo para pedir
outra dose.
— Isso mesmo — disse Jarred, atendendo-a com mais um gole.
— E tudo, nem é preciso dizer, em troca de ninguém fazer porra
nenhuma. Socialmente? Ideia fácil de vender. Economicamente?
Meio complicada. E, assim, o Estado vai começando a circular o
dinheiro. Um pouquinho de justiça aqui, um pouquinho mais ali. Mas
é como mudar a carga de lugar num navio, e é preciso ficar
empurrando os baús para a esquerda e a direta, com a embarcação
sempre adernando para um lado ou para outro. Todas as social-
democracias acabam chegando ao mesmo ponto de desequilíbrio,
no qual uma metade do país depende da outra metade. Viram um
sistema de financiamento essencialmente aristocrático. Deixam de
ser contributa... — Jarred havia exagerado um pouco na tequila e
tropeçou. — Contributivas. O que traz divisões. Ficam todos
insatisfeitos. A metade de baixo não recebe flores. Os aristocratas
se sentem roubados. E toda aquela justiça, todo aquele
remanejamento da carga, aquele tirar de uns para dar a outros...
— Custos de transação elevados — ofereceu Willing.
— Certo. Então, o que começou como um arranjo direto e
razoável, cada um entrando com uma coisinha para cobrir as
modestas necessidades comuns, como estradas e um policial na
esquina, vira um desses sistemas complexos de que você vive
falando feito uma ladainha, Noll, o tal tipo que é um convite a um
“colapso catastrófico”. O governo se torna um mecanismo caro,
desajeitado e ineficiente, para transferir riqueza de quem faz alguma
coisa para quem não faz nada, e dos jovens para os velhos, o que
vai no sentido errado. Todo esse esforço, e só se conseguiu uma
nova injustiça.
— Não vejo por que vocês não teriam o mesmo problema aqui —
disse Willing.
— Uma porção de velhotes... desculpe, longevos, foi embora
quando houve a separação. Eles não podiam enfrentar a vida sem o
Medicare. E vou ser franco com você, Noll. Os idosos que
aguentaram firme, em geral nascidos em Nevada, porque os
aposentados que tinham vindo parar aqui fugiram às carradas, bem,
eles estão adoecendo. Nevada não tem empresas farmacêuticas, e
os remédios acabaram há anos: para hipertensão, colesterol alto,
angina. Por isso, eles estão morrendo mais cedo. Tenho visto muito
disso no nível de casos isolados, mas, se alguém se desse ao
trabalho de fazer um levantamento estatístico, aposto que se
constataria uma queda acentuada na expectativa de vida. Não sei
ao certo se isso é tão ruim. É uma opinião muito compartilhada
nessa parte do mundo, embora escandalosa nos Quarenta e Nove
Externos. Se você ficar fraca ou doente em Nevada, terá que
depender de outra pessoa, e não me refiro a uma coisa coletiva, a
uma instituição. Falo de um parente, ou um vizinho.
— Não é interessante que isso pareça tão estranho? —
comentou Nollie.
— O Estado Livre é uma experiência de retrocesso — disse
Jarred. — Até no plano tecnológico... ainda não há nenhuma fábrica
de robôs dentro de suas fronteiras. Assim, conforme os robôs
existentes vão quebrando, são substituídos por empregados
humanos. Não é uma resposta a longo prazo, porque não dá para
evitar que alguém fabrique os sacanas, no devido tempo, mas, a
curto prazo, a perda da automação tem realmente ajudado o
mercado de trabalho. Vocês vão ver, há muito trabalho por aqui. Só
que é máxi não qualificado, e muitas vezes braçal, ou exige um nível
de instrução de que você e eu, Willing, não chegamos nem perto.
— Tivemos certa dificuldade para chegar aqui — disse Nollie,
com uma olhadela para um cômodo muito mais deprimente do que a
casa aconchegante de East Flatbush que eles haviam deixado para
trás. — Quero ser otimista. Mas o que torna os Estados Unidos de
Nevada um aperfeiçoamento tão grande?
— É o que eu disse ao Goog no Quatro de Julho — relembrou
Willing. — A liberdade é uma sensação. Não é só uma lista de
coisas que a gente tem permissão de fazer. Eu me sinto melhor. —
Era como se houvesse acabado de medir sua própria temperatura.
— Eu já me sinto melhor.
— Os formulários de impostos nesse estado, acreditem ou não,
têm uma página — disse Jarred. — É basicamente assim com tudo.
Você não tira uma licença para abrir um negócio, nem uma licença
para se casar, uma licença para ter uma casa de shows ou uma
licença para abrir uma loja de bebidas. Você faz negócios, se casa,
se diverte e bebe.
— No entanto — ponderou Willing —, Nevada não é uma utopia.
— Não, não, não! — concordou Jarred, com veemência. — Com
certeza, não é. Esta cidade está emporcalhada com fracassados e
TTs, trambiqueiros e vigaristas. E as pessoas passam fome mesmo.
Ninguém ajuda ninguém, a não ser que queira, e o pior é que eles
têm que gostar de você. O simples fato de estar necessitado não
resolve. Os naturais de Nevada tendem a dar uma ajuda uns aos
outros, mas nós, os intrusos chegados dos Quarenta e Nove
Externos, ficamos por nossa conta. Ninguém pediu que viéssemos
para cá, de modo que se espera que nos tornemos úteis ou caiamos
fora. Logo depois da secessão, a turma tinha medo de que só os
mais resistentes aguentassem até o fim, e de que o Estado se
despovoasse logo, até deixar de ser viável. Agora, o medo que
prepondera é justamente o oposto: que os refugiados da
perseguição do SACO entrem no Estado Livre numa quantidade que
Nevada não tem como absorver. É a grande razão pela qual as
pessoas não se esforçam mais para espalhar a notícia de que aqui
não é tão ruim.
— Então, alguns dos boatos mais extravagantes que correm nos
Estados Unidos — disse Nollie —, sobre canibalismo e genocídio,
na verdade, talvez sejam propagados pelos Estados Unidos de
Nevada.
— Eu não me surpreenderia — respondeu Jarred. — Eu mesmo
ando ficando relutante em espalhar a boa nova.
— Mas, se todos aqui são rebeldes independentes — disse
Willing —, isso não faz de você um conformista?
— Muito engraçado — retrucou Jarred. — O problema é que os
rebeldes quase nunca se dão bem com outros rebeldes. E você logo
vai descobrir quantas coisas são impossíveis de se obter: peças de
reposição para o seu maXfleX. Limões. Já percebeu como são
poucos os pratos que você pode fazer sem limão? A comida chinesa
para viagem é uma bosta, porque já não há castanhas-d’água,
brotos de bambu nem cogumelos shiitake, nem mesmo em lata. A
gente fica inteiramente dependente de algum empresário que tenha
a brilhante ideia de fabricar tigelas de salada feitas de madeira,
porque sem isso não teremos tigelas de salada de madeira, a
menos que você mesmo as faça. Nevada começou a gerar seus
próprios recursos de mídia, como programas de televisão e filmes, o
que parece legal, mas são todos uma droga. As pessoas escrevem
seus próprios livros, mas eles são um horror.
— Que bom saber disso — comentou Nollie. — Sem
concorrência.
— Mas não tenho como enfatizar demais a desconfiança que os
locais sentem dos recém-chegados — disse Jarred. — Eles não se
comovem com a sua ânsia de conversão. Não se impressionam
com a sua coragem de vir para cá. É óbvio que uma porção de lats
correu para o sul da fronteira quando a economia mexicana virou
uma loucura. Depois da secessão, Nevada perdeu mais um bom
número deles. Com todos os republicanos ferrenhos nos arredores
de Reno e Carson City, os lats ficaram nervosos, com medo de que
um estado independente virasse uma repetição racista dos
Confederados. Bem, todo mundo precisa de um bode expiatório, e
esse aí somos nós. Somos os novos trabalhadores sem
documentos. Os que vêm dos Quarenta e Nove aparecem aqui com
expectativas irreais, sem instrução e, pior do que tudo, sem
recursos. Perdem o dinheiro dos chips na fronteira. Vocês são
incomuns; a maioria de nós não se dá conta de que poderia ter
trazido um carro.
— A maioria de nós não teria carro — lembrou-lhe Willing.
— Fico fulo comigo mesmo por não ter cruzado a fronteira na
picape. Tenho circulado numa bicicleta toda bamba, que nem
elétrica é. No calor do verão, é insuportável. Quanto a esta casa, sei
que não é grande coisa de se ver. Mas é um milagre eu ter um lugar
para morar. Muitos imigrantes vindos dos Quarenta e Nove são
sem-teto. Só parei de dormir em vãos de porta no começo de maio.
— Que tipo de trabalho você faz aqui? — perguntou Nollie.
— Trabalho numa fábrica de queijos — anunciou Jarred, sem a
menor vergonha. — Separando o coalho do soro: o pacote completo
da “Little Miss Muffet”. Fazia séculos que Nevada tinha uma
indústria leiteira, mas não produzia muitos queijos. Não se podia
mais rechear uma tortilha, e todo mundo pirou. O mercado do
Monterey Jack é ultragrande. A Casa de Queso está pensando em
expandir, para fazer uma imitação de parmesão. Conheço uns caras
que quase se suicidam por não conseguirem comprar queijo
parmesão.
— É maluquice — disse Willing —, mas eu imaginava você como
dono de outra fazenda.
— E como eu faria isso? Não há capital, mi amigo. Você vai ver.
Digo, você e Nollie são bem-vindos para se ajeitar por aqui. Mas,
mesmo na terra da autonomia, com um imposto fixo único
desprezível, talvez demore um pouco para arranjarem sua própria
casa.
— Eu detestaria me separar dele — disse Willing —, mas vender
este cálice poderia levantar o suficiente para o depósito de garantia
de um apartamento pequeno. A parte de cima é de ouro maciço.
— Mas sabe aquilo de que você se queixou comigo quando se
mudou de volta para o Brooklyn, o problema da falta de trajetória?
— disse Jarred. — Nesse aspecto, nada mudou por aqui. Cara,
essa é a primeira vez na minha vida em que eu gostaria de ter feito
um curso superior. Os nevadenses não precisam de outro jumento
cinquentão para espremer, cortar e carregar queijo. Precisam é de
químicos e engenheiros.
— O que você faria — perguntou Nollie —, se tivesse o capital?
— Fantasiar é perda de tempo.
— Resposta errada — disse ela.
Jarred resolveu atendê-la.
— Eu construiria uma estufa gigantesca. Plantaria limões.
— Assim é melhor — respondeu ela, e se virou para Willing. — O
que você faria com o capital?
Aquela era uma casa feia. Com seus cômodos parcialmente
construídos de muros até a metade, a construção inteira era feia.
Mas o pôr do sol tinha sido deslumbrante. No trajeto para Las
Vegas, as montanhas vermelhas que avultavam no oeste eram
indiferentes a qualquer governo que entrasse ou saísse. A paisagem
urbana era boba e a terra em que ela se assentava era austera. O
saldo final era bom. O corpo de Willing ia se impregnando de uma
leveza que não percorria seus membros desde antes da Idapedra.
Ele era a personificação de seu chocolate favorito de quando era
pequeno, cujos pedaços sólidos de cacau eram pontilhados por
centenas de bolhas de ar, de modo que o que tinha sido pesado e
indigesto tornava-se fofo e quase sem peso. Ele não sabia o que ia
fazer no dia seguinte, e gostava disso.
— Eu me formaria em hidrologia na Universidade de Nevada, em
Las Vegas — disse Willing. — Pesquisaria como gente igual a
Jarred pode cultivar limões sem os Estados Unidos de Nevada
tirarem tanta água do rio Colorado a ponto de o Arizona chamar a
Guarda Nacional, e sem que as objeções do México à redução do
fluxo do outro lado da fronteira criem uma crise diplomática. Apenas
cinco milhões de pessoas viviam em Nevada antes da separação.
Washington pode viver sem essa coleta de impostos. O que vai pôr
em risco a independência dos Estados Unidos de Nevada é a água.
As tensões com os estados vizinhos por causa da drenagem do lago
Tahoe, do rio Humbolt e do lago Mead.
— Nossa — comentou Nollie —, você já andou pensando nisso.
— Sim, já pensei — confirmou ele. — Eu daria um jeito de entrar
em contato com Fifa, porque não pode ser tão difícil assim.
Conseguiria que ela, Savannah e Bing também emigrassem para
cá. Talvez até Goog, que não seria tamanho TT se não trabalhasse
no SACO. Moraríamos juntos, nós e Jarred, como nos velhos tempos
da Cidadela. Mas seria um lugar grande e arejado, não espremido e
amedrontado como era na década de 2030. Savannah voltaria a ser
artista e deixaria de ser prostituta. Acharia um homem mais atraente
do que eu, o que me deixaria com ciúme. Bing descobriria outra
vocação, além de ser um bom sujeito. Avery e Lowell poderiam sair
de Washington e vir para um chalé separado no mesmo terreno.
Economistas como Lowell não acreditam que os Estados Unidos de
Nevada possam funcionar. Seria muito prazeroso vê-lo morar num
lugar que é impossível. Jayne e Carter viriam de Montana. Jayne
deixaria de ser maluca, porque ela acha que deseja a solidão, mas,
na realidade, deseja companheirismo. Você teria o seu escritório
particular, onde poderia escrever novos livros para outras pessoas
lerem, porque, de outro modo, talvez começasse a ficar chato aqui.
Depois, você morreria. Eu ficaria triste. Seria uma tristeza boa,
porque não ficar triste quando alguém morre é que é triste. Eu me
casaria com Fifa. Planejaríamos ter três filhos, mas não seríamos
muito cuidadosos e acabaríamos com cinco.
— Resposta certa — disse Nollie, levantando os pés da caixa.
Tirou a fita envelhecida da embalagem, dobrou as abas para baixo e
passou para o chão as pilhas superiores de impressos presos com
tiras. Retirou com o dedo uma poça de calda das laranjinhas
cristalizadas do tampo laminado da mesa, depois afastou o cálice da
Casa da Abundância. Fazendo um esforço, mesmo com o uso das
duas mãos, tirou do meio da caixa um manuscrito empacotado, com
o título Antes tarde do que. Quando o colocou na mesa, os copos de
tequila chacoalharam. Ela destampou a caixa de papel
mimeografado e retirou umas cinquenta páginas.
— Pronto — disse. — Capital.
A caixa estava cheia de barras de ouro.
— Pensei que você só tivesse trazido bancores — comentou
Willing.
— Eu não tinha essa confiança irrestrita numa nova moeda —
retrucou Nollie. — Em nenhuma moeda. Aprendi com meu pai a
diversificar. Fiz uma reserva do metal precioso em 1999. Esse troço
amarelo tinha caído para duzentos e trinta dólares por onça. Você
deve fazer uma ideia do que aconteceu com o preço desde então.
— Isso parece grande o bastante para interessar à casa da
moeda dos Estados Unidos de Nevada — disse Willing. — A
população tem crescido por causa dos refugiados dos Quarenta e
Nove. Reservas maiores de ouro permitirão que Nevada amplie aos
poucos sua base monetária, sem inflação. Mas não entendo como
você conseguiu passar com isso pelo JFK, antes de mais nada.
— O governo federal tinha acabado de nacionalizar o ouro —
lembrou-lhe Nollie. — Ninguém em seu juízo perfeito iria trazê-lo
para os Estados Unidos. Por isso, os agentes da alfândega não
estavam à procura dele.
— A invasão da casa — recordou Willing. — Agora faz sentido.
Você disse uns desaforos a Sam, mas, afora isso, ficou intimidada.
Nem parecia você.
— Foi preciso um tremendo autocontrole — disse Nollie. — Mas
eu tinha que tirar a caixa de lá; ela valia muito mais que a casa de
Florence. Mesmo assim, a música “Maxwell’s Silver Hammer” tocou
na minha cabeça em toda a caminhada até o Prospect Park.
“Agora, só imponho uma condição: que você se lembre de que
isso não é um maná caído do céu. Eu o ganhei. Ficando acordada
até altas horas num teclado, enquanto meus amigos se esbaldavam
nos bares. Lendo tantas vezes o mesmo manuscrito, em múltiplas
edições, revisões, primeira, segunda e terceira provas, e provas de
imprensa, que passei a detestar a visão das minhas próprias frases.
Eu o ganhei aparecendo em eventos públicos e dizendo a mesma
coisa, uma vez atrás da outra, até ficar abestalhada de tanto me
detestar. Embarcando às sete da manhã em voos para festivais
literários, quando preferiria ficar em casa dormindo. E lembre-se
também de que, se eu já não tivesse pago impostos sobre este
metal, haveria o dobro dessa quantidade. Mas o que restou, eu
gostaria que você o recebesse. Isso deve lhe dar recursos para
bancar seus estudos, uma casa e um casamento, com uma sobra
grande o bastante para bancar os limoeiros.”

***

Desde garoto, Willing tinha se interessado por economia, e não


muito por dinheiro. Quando soube o valor daquele presente em
continentais, ficou envergonhado.
Considerou o que Jarred dissera sobre justiça. Seu tio havia
parecido implicar que ela não existia. Existiam apenas formas
concorrentes de injustiça. Como Nollie o encarregou de lembrar, ela
trabalhara muito — mais do que algumas pessoas. Por isso, nem
mesmo uma justiça do tipo um para você e um para mim era
exatamente justa. A fortuna dos Mandible, um dia destinada ao seu
avô Carter e, como era de se presumir, também a Nollie, embora ela
não necessitasse disso, também não era justa. O que significava
que a evaporação da fortuna em 2029 não fora injusta. Se bem que
não injusto não era o mesmo que justo. Por isso, talvez a herança
que ele havia recebido da tia-avó fosse não injusta.
Em seu constrangimento, tudo que ele veio a compreender foi a
única coisa sensata a se fazer com dinheiro: gastá-lo com outra
pessoa. Nollie tinha gostado de legar seus bens aos sobrinhos. No
fim da vida, Elliot, o tetravô de Willing, também devia ter
administrado seus recursos para passá-los adiante.
Willing resgatara o clã dos Mandible uma vez. Isso poderia se
tornar um hábito.
Havia mesmo uma ferrovia subterrânea — que nem era ferrovia,
naturalmente, nem uma sequência de esconderijos. Era uma
miscelânea de freelancers não associados: velhotes nevadenses
sem chip que sabiam dirigir — já que os moradores locais
acreditavam, não sem razão, que os sistemas de orientação de
veículos regulados no automático, sem motorista, podiam ser
controlados pelos satélites. Carregando combustível e mantimentos
para a viagem, os velhotes faziam corridas pelo continente,
cobrando por elas.
Willing contratou uma caminhonete para uma viagem de ida e
volta com três paradas. Sua primeira escala foi Nova York. Ele
buscou Fifa — que depois disse ter se sentido sequestrada. Willing
preferia o termo arrebatada. Essa história viria a se afigurar
romântica. O motorista da van buscou Savannah e Bing e, depois de
muita discussão, o irmão mais velho dos dois. Em Washington,
Lowell se opôs ferrenhamente a ir a qualquer lugar até receber a
notícia de que, depois que o filho pediu demissão do SACO, seu
contrato de preletor na Georgetown havia sido rescindido. Avery
ficou triste por sua terapia do Recondicionamento Vertical ser
supérflua em Nevada, mas contente com a razão disso. A
caminhonete retornou para Las Vegas via Montana. Jayne ficou
apavorada, mas ela estava sempre apavorada. Não querendo
repetir o erro cometido por Nollie com a mãe dos dois, Carter queria
se reconciliar com a irmã antes de morrer. Houve espaço suficiente
na van para o robô que cuidava deles e para o faqueiro de prata dos
Mandible, cuja devolução à família mais ampla tornaria muito mais
sensata a posse de dezesseis colheres para chá gelado. Tudo
funcionou muito bem.
O único luxo pessoal que Willing comprou com a herança de
Nollie foi mandar fritar seu chip. Era um procedimento comum no
Estado Livre, além de mais seguro que a extração cirúrgica: uma
descarga de ondas de rádio de alta frequência esfrangalhava as
comunicações do implante por satélite. Embora o inventor dessa
tecnologia houvesse enriquecido, Willing não conhecia nenhum
nevadense com o chip neutralizado que confiasse o bastante no
procedimento para tentar a travessia para os Estados Unidos. Por
isso, talvez o processo fosse uma tremenda encenação. Mas Willing
se sentiu mais limpo depois disso, como uma vítima de agressão
sexual que se submeteu, atordoada, a coletas de amostras, exames
médicos e fotografias, e a quem finalmente deixam tomar banho.
Depois de concluir o supletivo do ensino médio e de se formar na
faculdade, Willing confirmou a sensatez de concentrar seus estudos
na água: nunca mais lhe faltaria trabalho. Mas, para não se tornar
um desmancha-prazeres da hidrologia, uma vez por ano, no dia do
aniversário de sua mãe, ele e Fifa tomavam um banho de chuveiro
gloriosamente esbanjador, durante quinze minutos, com a
regulagem ecológica desligada. Esse ritual anual custava cem
continentais e valia a pena. Simbolicamente, ele tinha emoldurado a
antiga nota de cem do silo subterrâneo do Nebraska e a pendurara
acima do vaso sanitário do banheiro, onde, uma vez por ano, a
condensação do banho pecaminoso embaçava o vidro da cédula
verde.
À medida que foi ficando mais velha, Fifa abrandou-se com os
idosos, e sua firma de instalação de corrimões em corredores e de
elevadores elétricos em escadas ganhou fama de compassiva. O
maior favor que ela fazia aos idosos, durante suas instalações, era
levar em sua companhia uma seleção de crianças bagunceiras da
família Mandible — filhos de Bing, Savannah, Goog, ou dela e de
Willing.
Infelizmente, o excesso de água necessário tornou
economicamente inviável a operação do plantio de limões e,
pesarosos, Jarred e Bing os deixaram murchar. Jarred adotou uma
postura filosófica, lembrando aos lavradores frustrados de sua
fazenda que todos os homens eram dotados pelo Criador apenas do
direito inalienável de buscar a felicidade. Ao menos eles
conservaram alguns limoeiros plantados em vasos na Cidadela
Redux, onde sempre havia fatias para as doses de tequila.
Reunindo-se para o ritual dos coquetéis na varanda, ao pôr do sol,
os adultos brigavam, bem-humorados, para saber quem beberia no
cálice remanescente da Casa da Abundância, até o diabrete caçula
de Goog espatifar o lendário suvenir. Para aplacar sua raiva, Willing
recordou o que tinha dito a Nollie sobre os livros queimados por eles
no tambor de petróleo: quando se trata de objetos, a gente pode
pegar o significado de volta. Em dois tempos, o famoso cálice se
tornou um copo velho e ordinário. Willing ficou pensando se deveria
aprender a seguir seu próprio conselho com mais frequência.
As estampas dos tecidos de Savannah tornaram-se tão famosas
quanto seria possível para tecidos em um estado sujeito a um
embargo e quase todo deserto — o que, admitamos, não era grande
coisa. Avery bolou mais uma terapia marginal, que atraiu muitos
clientes birutas para sua clínica na Cidadela, dos quais todas as
outras pessoas riam quando voltavam para casa. Lowell passou sua
aposentadoria debruçado sobre mais um tratado para explicar por
que, com uma política monetária “medieval”, os Estados Unidos de
Nevada entrariam em colapso a qualquer momento. Fazendo
preleções para plateias lotadas, tornou-se o mais famoso
iconoclasta de Nevada, enquanto Jarred abraçou a corrente
dominante como um sólido cidadão patriótico. Pela simples
variedade, no começo, os dois pareceram se comprazer com a troca
de papéis, embora, com o tempo, Jarred tenha achado meio
deprimente agitar pompons como uma líder de torcida do Sistema
que promovia o status quo. Jayne não foi autorizada a ter um Quarto
Silencioso, embora o vasto complexo de estilo espanhol moderno
tivesse espaço para isso. Apesar de mais bem ajustada, ela nunca
deixou de chorar a perda do pegador de aspargos de Magno Grand
Man, feito de prata e contundentemente presenteado, digamos, a
um ingrato invasor de residências. Fazendo questão de se manter
em um trabalho remunerado na casa dos noventa anos, Carter criou
um jornal. Ele dava prejuízo, mas os nevadenses pareciam ter
sentido falta do Las Vegas Sun. Nem tudo no jornal de Carter era
acurado, mas a probabilidade de um dado factoide ser ao menos
meio verdadeiro superava os 50%, o que ganhava de longe da
internet.
No devido tempo, Kurt entrou capengando pelo portão da
Cidadela por esforço próprio. Tinha sofrido um acidente industrial
em Indiana e não era um acréscimo apreciável à força de trabalho
dos Estados Unidos de Nevada. Os Mandible não só o acolheram,
como se cotizaram para substituir seus dentes por implantes. Talvez
os caprichos da bondade não fossem um substituto fidedigno para
um sistema de bem-estar social, mas o encontro cara a cara da
necessidade franca com a capacidade ociosa produzia uma
sensação melhor. Kurt ficou com uma calorosa dívida de gratidão, e
a benevolência oferecida gratuitamente não gerava ressentimentos.
A princípio, Goog se candidatou com sucesso a ser o único
funcionário do Serviço da Receita dos Estados Unidos de Nevada.
Sua principal responsabilidade era enviar efusivos bilhetes anuais
de agradecimento aos contribuintes suficientemente atenciosos para
entregar uma declaração de renda e suficientemente generosos
para compartilhar com os semelhantes o produto do seu trabalho.
Também tinha a incumbência de apresentar profusos e humildes
pedidos de desculpas — de preferência, em pessoa, se o tempo e a
distância o permitissem — pelos casos nada infrequentes em que o
SREUN calculava mal uma cobrança de imposto ou perdia a
declaração de um cidadão. Mas, pobre Goog, rastejar e arrepender-
se não eram seus pontos fortes. Pior ainda, o legislativo de Carson
City expedira normas rigorosas sobre o departamento dele,
advertindo que esse órgão não deveria procurar promover “um clima
social de medo, intimidação e predação”, e o entusiasmo de Goog
por seus deveres mais punitivos logo o fez perder o emprego. Ele
passou a treinar a equipe de debate da escola local de ensino
médio, ensinando adolescentes precoces a serem sabichões
exibidos que faziam os adultos perderem a paciência. Era muito
popular com a garotada.
Em 2057, chegou um imigrante dos Quarenta e Nove com a
notícia de que a Austrália fora invadida pela Indonésia. O presidente
dos Estados Unidos enviou a Camberra um comunicado especial
para dizer que lamentava muito.
Outras notícias: criou-se finalmente um Estado Palestino, e
ninguém se importou. A Rússia anexou o Alasca, por causa de seus
recursos de gás natural. O presidente da Câmara dos Deputados
assinalou que “o Alasca sempre ficou muito longe mesmo”.
Nollie viveu até os cento e três anos, sofrendo um colapso fatal
pouco antes de terminar sua série diária de três mil polichinelos, a
qual, a essa altura, ela executava praticamente de quatro. Antes
disso, havia escrito vários romances e tinha um público cativo.
Mesmo na http://eun, como era inevitável, a pirataria se disseminou,
e quase todos os seus leitores tinham acesso gratuito aos livros.
Depois da morte de Nollie, a biblioteca da Universidade de Nevada
comprou o material descartado.
Em 2064, o imposto único de Nevada subiu para 11%.
É claro.
SOBRE A AUTORA

© Sarah Lee

LIONEL SHRIVER nasceu em 1957 na Carolina do Norte, Estados


Unidos. Formada e pós-graduada pela Universidade de Columbia, é
autora dos best-sellers Precisamos falar sobre o Kevin – vencedor
do Prêmio Orange – e O mundo pós-aniversário, além de outros
livros como Dupla falta, Tempo é dinheiro, Grande irmão e A nova
república, todos publicados pela Intrínseca. Como jornalista, já
colaborou para veículos de destaque como The Guardian, The Wall
Street Journal, The Independent e a revista The Economist.
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