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A Família Mandible - 2029 - 2047 - Lionel Shriver
A Família Mandible - 2029 - 2047 - Lionel Shriver
TÍTULO ORIGINAL
The Mandibles: A Family, 2029-2047
PREPARAÇÃO
Luara França
Milena Vargas
REVISÃO
Anna Beatriz Seilhe
Fernanda Machtyngier
REVISÃO DE E-BOOK
Thais Entriel
GERAÇÃO DE E-BOOK
Joana De Conti
E-ISBN
978-65-5560-130-5
1a edição
@intrinseca
editoraintrinseca
@intrinseca
intrinsecaeditora
SUMÁRIO
Folha de rosto
Créditos
Mídias sociais
Sumário
Dedicatória
Epígrafe
2029
Capítulo 1: Água cinza
Capítulo 2: Aglomeração cármica
Capítulo 3: Esperando a grana
Capítulo 4: Boa noite, compatriotas americanos
Capítulo 5: Os intelectualoides
Capítulo 6: Busca e apreensão
Capítulo 7: A Rainha Guerreira chega a Carroll Gardens
Capítulo 8: As alegrias de ser indispensável
Capítulo 9: Material descartado
Capítulo 10: Reveses nunca trazem à tona o que as
pessoas têm de melhor
Capítulo 11: Sarjeta valeta amareta
Capítulo 12: Ação, recompensa e sacrifício
Capítulo 13: Aglomeração cármica II
Capítulo 14: Um sistema complexo entra em
desequilíbrio
2047
Capítulo 1: Dançando conforme a música
Capítulo 2: Hoje faremos uma festa como se
estivéssemos em 2047
Capítulo 3: A volta da ideia de qualquer coisa: atirar em
alguém, ir a outro lugar, ou as duas opções
Capítulo 4: “Singin’ ‘this’ll be the day that i die”
Capítulo 5: Quem quer viver em uma utopia, afinal?
Sobre a autora
Leia também
PARA BRADFORD HALL WILLIAMS
Embora você tivesse pouco tempo para a ficção, teria gostado
deste livro.
Quem imaginaria que um misantropo rabugento faria tanta
falta?
O colapso é uma forma de simplificação súbita, involuntária e
caótica.
— JAMES RICKARDS, CURRENCY WARS
2029
• CAPÍTULO 1 •
ÁGUA CINZA
***
***
Era fácil demais inventar recordações para aquelas perguntas do
tipo onde-você-estava-quando-determinada-coisa-aconteceu, olhar
para trás e impor a um passado trêmulo e aguado os fatos
concretos do que se soube depois. Para gente como a tia-avó de
Florence, Nollie, a pergunta seria sobre o assassinato de Kennedy;
para a geração da mãe de Florence, o 11 de setembro. Por isso,
Willing resolveu que, quando se lembrasse daquela noite, se
lembraria de verdade — inclusive dos detalhes dos hambúrgueres
de carne de porco com textura arenosa, da longa videoconferência
entre a mãe dele e a irmã depois do jantar e da falta d’água (já
então, protocolo rotineiro). Ele guardaria humildemente na memória
o fato de que, na ocasião, não compreendia a ideia de “moeda de
reserva”. Também não compreendia o que era “leilão de títulos”,
embora sem dúvida tivesse havido décadas inteiras, se não séculos,
em que os dois conceitos eram considerados maçantes e
irrelevantes por quase todo mundo. Mesmo assim, no futuro ele se
certificaria de se atribuir pelo menos este mérito: durante o noticiário
das sete da noite, apesar de não entender o tal “leilão de títulos do
Tesouro dos Estados Unidos”, com sua “alta da taxa de juros”, ele
havia captado, sim, o tom.
Tinha o ouvido afinado para isso desde a Idade da Pedra. Todas
as outras pessoas acharam que o pior já havia passado; a ordem
fora restabelecida, gloriosa e permanentemente. Para Willing, no
entanto, durante seu próprio momento de onde-você-estava-
quando, na grandiosa idade de oito anos, o Dia em Que Nada
Funcionou tinha sido uma revelação, e as revelações não se
desrevelavam, não voltando a se encaixar no armário. Em
consequência dessa epifania irreversível, ele aprendera a virar as
expectativas de cabeça para baixo. Não havia nada de
impressionante no fato de as coisas não funcionarem,
desmoronarem. A falha e a decadência eram o estado natural do
mundo. O impressionante era que alguma coisa funcionasse como
se pretendia, fosse pelo período que fosse. Assim, ele passara a
parte final da infância em um estado de admiração agradecida —
pela televisão brilhando com cores supersaturadas (ela ligou! de
novo!), por sua mãe voltar para casa em um ônibus que andava na
hora certa, ou apenas andava, e pela água limpa correndo da
torneira, ainda que ele raras vezes tivesse permissão para tocá-la.
Quanto ao tom, ele o identificou enquanto sua mãe ainda estava
de papo junto ao repolho, na cozinha. Nem sua mãe nem Esteban
detectaram o timbre. Só Willing prestou atenção. Willing e Milo,
melhor dizendo: olhos atentos, postura desconfiada, orelhas em pé,
o cachorro também discerniu uma entonação curiosa. É que os
âncoras dos noticiários falavam com um tipo de excitação nervosa
que era peculiar. As pessoas que apresentavam as notícias
adoravam quando acontecia alguma coisa. Ninguém poderia
censurá-las, uma vez que era seu trabalho dizer o que havia
acontecido, e elas gostavam de ter algo para fazer. Se os
acontecimentos eram ruins, o que quase sempre acontecia, já que
as boas notícias eram basicamente sobre a mesmice, elas ficavam
envergonhadas por se mostrarem tão contentes. Os piores âncoras
encobriam essa felicidade com uma grande e exagerada tristeza
falsa, que não enganava ninguém e que Willing gostaria que fosse
deixada de lado.
Pelo menos ninguém tinha morrido naquela noite, e as
ocorrências imperscrutáveis relatadas estavam relacionadas a
números e expressões atrapalhadas que ele podia apostar que
quase todo o resto dos telespectadores também não entendia. Por
isso, os apresentadores e seus convidados não tinham feito aquela
cara comprida nem baixado o tom de voz para um pesar artificial. Ao
contrário, todos no jornal pareciam satisfeitos, até empolgados. Mas
essa alegria tensa era marcada pela aguda consciência de que,
tanto quanto sua capacidade permitisse, eles deviam mascarar uma
exultação da qual viriam a se arrepender. O tom se resumia a: isto é
divertido agora, mas não será depois.
• CAPÍTULO 2 •
AGLOMERAÇÃO CÁRMICA
***
Recriminando-se por aquela terceira taça de vinho com Avery,
Lowell acordou cedo na manhã seguinte com a cabeça pesada. Ao
deixar de lado sua olhadela compulsiva e costumeira no único site
de notícias no qual depositava uma pequena confiança, ele resolveu
tomar café na faculdade, ainda que no departamento a bebida fosse
sobretudo um substituto à base de sassafrás; para Lowell, a maior
catástrofe agrícola dos últimos anos não era a alta absurda do preço
de commodities como o milho e a soja, mas a praga disseminada
que causara a morte das lavouras de Coffea arabica, fazendo um
verdadeiro café com leite custar o mesmo que um conhaque Remy
caríssimo. Mais motivado do que nunca a defender uma economia
moderna, educada e criativa, agora que gente como Vandermire
gostaria de pôr todo mundo para negociar dinheiro feito de conchas
com um ábaco, Lowell queria seguir adiante em seu ensaio sobre
política monetária antes da aula das dez, História da inflação e da
deflação. A turma tinha chegado à Grã-Bretanha da Revolução
Industrial, quase um século de deflação persistente, durante a qual
o maldito país não fizera senão prosperar, o que sempre deixava
Lowell de mau humor.
Na caminhada até o metrô, as calçadas do Cleveland Park
estavam mais movimentadas do que o normal para o horário.
Embora o céu do alvorecer estivesse límpido, os pedestres tinham
aquele ar encolhido e apressado que as multidões adquirem
embaixo de chuva. Uma mulher que chorava baixinho não o
surpreendeu, mas duas, sim, e a pessoa seguinte a chorar foi um
homem. Embora Lowell tivesse por norma não usar seu fleX ao
caminhar pela bela cidade, cujos panoramas preferia absorver, era
comum os seus conterrâneos washingtonianos enrolarem os deles
em um dos pulsos ou os prenderem na aba do chapéu. Mas era
muito estranho ver tantos pedestres telefonando por áudio. Era
verdade que, desde a Idapedra, um punhado de malucos puristas
havia boicotado completamente a internet, esse bando retrógrado
tagarelava sem parar, porque falar era o único modo como os
amantes do retrocesso se comunicavam. Para todas as outras
pessoas com vida normal, o telefonema era, por consenso, tão
proibitivamente invasivo que o som da campainha era assustador —
era óbvio que alguém tinha morrido.
Quando Lowell desceu a longa escada cinzenta da estação perto
da sua casa, os rostos dos passageiros apressados exibiam uma
expressão incomodamente uniforme: contraída, concentrada,
abalada. Lowell se espremeu no trem quando as portas estavam
quase se fechando, mal se encaixando em meio à multidão. Pelo
amor de Deus, eram só seis e meia da manhã!
Também ali estavam todos falando. Não uns com os outros, é
claro. Com fleXes. Agora baixou para quanto? ... Bom, em Londres
está só ... Está chegando a pedidos de margem de manutenção...
Compre moeda australiana, francos suíços, não me interessa! Não,
canadense não, ela vai ser arrasada ... Aposto que já acordaram o
presidente ... Ordem de limite de perdas... Passamos da ordem de
limitar as perdas há duas horas ... Limitar as perdas...
Até para os padrões de Washington, Lowell Stackhouse era
excepcionalmente avesso a receber notícias de que todas as outras
pessoas já tinham conhecimento e, após trinta segundos dessa
mistura de murmúrios, já tinha ouvido o bastante. Tirou o fleX do
bolso, esticou-o até cobrir a palma da mão e entrou diretamente no
Bloomberg.com, mais ou menos confiável: DÓLAR EM QUEDA
VERTIGINOSA NA EUROPA.
• CAPÍTULO 3 •
ESPERANDO A GRANA
***
***
***
***
OS INTELECTUALOIDES
***
Lowell foi dar uma olhada nos filhos, no andar de cima. Esperava
que, com aquela brincadeira de tapinhas no bumbum e os
resmungos sobre a lista de convidados, tivesse conseguido uma
imitação razoável do marido ranzinza, mas afetuoso, em uma noite
de sábado comum em que não estava com disposição para receber
ninguém. Nos últimos tempos, tudo que dizia e fazia parecia falso —
como um disfarce ou uma distração. No entanto, ele tinha mesmo
uma convicção feroz: isso também vai passar, e mais depressa do
que qualquer um esperava. Era só ver a Idapedra: o país tinha se
recuperado de repente. O PIB levara uma porrada em 2024, mas o
mercado se recuperara a mil por hora. Logo, todo esse arrancar de
cabelos era basicamente por nada. Mesmo ciclo, tudo de novo.
Deu uma batida leve na porta de Savannah, depois abriu um
pouco e enfiou a cabeça.
— Você pretende se juntar aos adultos, logo mais?
— Nhã... — A filha de dezessete anos estava esparramada na
cama, catando milho no fleX. Savannah era uma dessas garotas
que conseguiam fazer o cabelo castanho parecer exótico. Lowell
desviou o olhar para longe das pernas longas e à mostra; ela era um
arraso, poderosa, mas ele era pai dela. O que o tornava um cara de
sorte. Detestaria ser um dos adolescentes que ela transformava em
gelatina. — Quero terminar este formulário de admissão. Posso
pedir um omelete à Feiticeira.
— É melhor você mesma fazer. A mamãe desligou a Feiticeira
por hoje. Não queria que ela enterrasse os convidados no quintal,
ou algo assim.
— Tem um seriado novo na Netflix sobre isso, sabia? Sobre uma
Feiticeira assassina que fica pirada.
— É a trama de ficção científica mais antiga que existe. Bebe na
fonte de 2001: Uma odisseia no espaço.
Savannah franziu o cenho.
— Por que alguém faria um filme de ficção científica que se
passa no passado?
— É que quando o romance foi escrito, 2001 estava no futuro. Do
mesmo jeito que 1984. Quando Orwell escreveu o livro, o ano
parecia muito distante, mas aí, o 1984 real veio e passou, e não foi
nem de longe tão terrível, estranho ou triste quanto ele previra. As
tramas que se passam no futuro são sobre os medos das pessoas
no presente. Não são sobre o futuro, de jeito nenhum. O futuro é só
o maior monstro no armário, o grande desconhecido. A verdade é
que, ao longo da história, as coisas estão sempre melhorando. Em
média, a população mundial tem um padrão de vida cada vez mais
alto. Nossa espécie vai se tornando sistematicamente menos
violenta. Mas os escritores e os cineastas continuam a prever que
tudo vai desmoronar. Chega a ser quase engraçado. Então não se
preocupe. O seu futuro vai ser ensolarado, e só vai melhorar.
Savannah o fitou com curiosidade.
— Eu não estava preocupada.
Bem, isso faz de você uma idiota colossal: foi a frase que lhe veio
à cabeça, antes que ele conseguisse barrar o pensamento.
— O formulário é para qual faculdade? — perguntou ele.
— Risdee. Eu sei desenhar. Mas o que eles querem, acima de
qualquer outra coisa, é que a pessoa seja capaz de falar sobre
desenhar. Não sei se sou muito boa nisso.
— Já faz algum tempo que as artes visuais deixaram de ter a ver
com a criação de alguma coisa. Agora é tudo uma questão de falar.
O discurso é o que você cria.
— Arte “visual” não tem que ser alguma coisa que a gente veja?
— Acho que o texto é uma coisa que se vê.
— Não é mais. Na minha escola, ninguém lê nada. Eles colocam
os fones e os outros leem para eles.
— Parece maçante — disse Lowell, com desânimo.
— É fácil. É relaxante.
— Mas eles sabem ler.
Savannah deu de ombros, com um sorriso.
— Nem todos.
— Você precisa saber ler até para trabalhar numa agência do
correio.
— Na verdade, não precisa — retrucou ela, com ar sonhador e
matreiro. — Os escâneres manuais também sabem ler endereços
em voz alta. Relapso, não é?
Lowell revirou os olhos.
— Boa sorte com o pedido de admissão.
Fechou a porta. Não fazia muito tempo, ele ficara satisfeito por
Savannah ter fomentado a ambição marginalmente prática de ser
designer de estampas, e, é claro, ela era bonita o bastante —
embora se esperasse que nenhum pai continuasse tendo esse tipo
de pensamento — para que algum cara fatalmente a arrebatasse e
cuidasse dela, houvesse o que houvesse. Contudo, neste exato
momento, Lowell desconfiava de uma profissão tão desprovida de
senso prático quanto a de desenhar novas estampas — o mundo já
estava abarrotado de tecidos estilo caxemira. E, o que era ainda
mais premente, da última vez que ele verificara, um diploma de
lugares como a Faculdade de Desenho de Rhode Island custava
cerca de quatrocentos mil dólares — sem contar moradia e
alimentação. O Plano 529 que o avô de Avery criara quando
Savannah nasceu, destinado a cobrir também os estudos
universitários de Goog e Bing, valia agora uns dez centavos.
Quando Lowell parou no quarto de Goog, Bing também estava na
cama. Pálido e adepto de ambientes fechados, Goog conseguia
estufar o peito quando se sentava na cama apoiado na cabeceira
com um travesseiro. Os garotos normais de quinze anos não tinham
a postura péssima? Como sempre, seu cabelo castanho estava
penteado, e a roupa, bem-arrumada. O garoto parecia viver se
oferecendo para uma inspeção, e Lowell temia que ele pensasse
que era melhor que os adultos.
Os dois se calaram quando o pai apareceu. Mas, se estivessem
armando alguma coisa, Lowell ficaria sabendo. Goog ainda tinha o
mesmo jeito tagarela, ansioso por agradar e aflito para causar boa
impressão que Lowell identificara desde o momento em que o filho
aprendera a falar. Ele não era capaz de guardar um segredo nem
por cinco minutos. Bing conseguia fazer isso — mas por todas as
razões erradas. Flácido e um pouco acima do peso, o garoto de dez
anos vivia cronicamente amedrontado. Seria uma presa ideal para
pedófilos: caso lhe dissessem que se meteria em uma enrascada
terrível se desse com a língua nos dentes, Bing não contaria nada a
ninguém, nunca.
— Vocês estão planejando ficar aqui em cima hoje? Podem
descer e jantar conosco, se quiserem. Se bem que eu não sei se a
mamãe comprou peixe suficiente.
— Eca! — exclamaram os dois, em uníssono. Eles não
percebiam, mas, devido aos preços estratosféricos e à baixa
disponibilidade de qualquer coisa que não fosse proveniente de
criadouros, que tinham gosto de algas de reservatório, os meninos
tinham sido treinados para detestar peixe.
— A mamãe falou que a gente podia comer queijo grelhado —
disse Bing.
— Quem vem jantar? — perguntou Goog.
— A amiga da mamãe, Belle Duval... vocês se lembram, a
médica de câncer...
— Oncologista — corrigiu Goog, com ar de desdém.
— A oncologista. — Deus nos livre de insultar o vocabulário de
Goog. — O marido dela, Tom Fortnum, é advogado do Ministério da
Justiça. Também chamamos o meu colega Ryan Biersdorfer e a
mulher com quem ele vive, Lin Yu.
Goog estreitou os olhos.
— O cara que fez aquele documentário em dez capítulos sobre a
desigualdade.
O filho do meio de Lowell estava sempre alerta à proximidade da
fama e da influência. Era preciso ter uma maturidade extraterrena
para não ficar irritado com o fato de que o radar de fama do garoto
não registrava a presença do próprio pai. O papai também não
aparecera na televisão?
— O que fez o nome de Ryan foi um livro, acredite ou não. Um
dos últimos grandes best-sellers. Ele previu que os salários da mão
de obra americana não qualificada logo se tornariam tão
insignificantes que os chineses terceirizariam seus empregos para
nossos trabalhadores. — Com disciplina, Lowell tentou retirar o
escárnio da voz. — Uma das coisas que tornam um economista
popular em gente comum é a tendência para a hipérbole. O que
significa...?
— Tendência a exagerar — respondeu Goog, de pronto. — Mas
como uma coisa poderia ser mais hiperbólica do que o que de fato
aconteceu? A Olivia Andrews não está indo na escola porque o pai
dela se matou na cozinha de casa. Acho que vocês não exageraram
o bastante.
— Nesse caso, acho que vocês dois deviam descer. Participar da
conversa.
— Não quero escutar um monte de troços de economia — disse
Bing.
— Então, talvez você tenha nascido na família errada.
— É. Deve ser.
— Sabe de uma coisa, Bing? Hoje eu estou com você —
comentou Lowell. — Fiquem aqui em cima, e talvez eu dê uma
fugida para ficar com vocês. Ryan é um falastrão exibido. Aposto
que vocês conhecem esse tipo na escola. Quando crescerem, não
vai mudar nada.
Lowell se virou para a porta, mas Goog falou:
— Pai, posso fazer uma pergunta?
A atenção nunca era suficiente para esse garoto. Infelizmente,
falastrão exibido era um rótulo que poderia ser aplicado a seu filho
mais velho, pensou Lowell.
— É claro — respondeu ele com frieza.
— Um amigo meu da escola. Ele disse que a mãe tinha uma
barra de ouro que comprou há algum tempo em Dubai. Acho que lá
isso pode ser comprado, sei lá, como xampu, sem deixar nenhum
rastro. A mãe teve que explicar essas coisas, porque ele saiu para o
quintal bem quando ela estava cavando um buraco para esconder a
barra. Isso não é contra a lei?
— Neste momento, sim. Mas o seu amigo é burro, não devia ter
contado isso para você. Ele precisa fechar a matraca.
— Bem, ele me fez jurar que não contaria a ninguém.
— Então, por que está me contando?
Goog fez um ar sentido. Devia ser o único adolescente em
Washington que levava bronca por compartilhar segredos com um
dos pais.
— Porque fico sem saber o que fazer. Sem saber se devo
denunciar isso a alguém.
— Tipo a polícia?
— É, foi o que nos disseram para fazer na reunião.
— Isso é sinistro — disse Lowell. — E a resposta é não, você não
deve denunciar esse ouro à polícia, nem mesmo a um professor.
Fique de bico calado. A mãe do seu amigo poderia ser multada e
até jogada na cadeia.
— Mas e a lei?
— Não me interessa. Já houve lugares e épocas em que todo
mundo delatava todo mundo e ninguém confiava em ninguém.
Foram lugares e épocas ruins. Isto aqui são os Estados Unidos, e
não é assim que nós funcionamos, entendeu? Se eu tivesse algum
ouro que não estivesse entregando às autoridades federais, você
me denunciaria?
— Você está escondendo alguma coisa?
— Considerando esta discussão, eu não contaria a você, se
estivesse. — A frivolidade disso foi um baque.
— Mas, se as pessoas que entregam seu ouro recebem do
Tesouro um valor que é uma barra de barata, como você disse... E
se aí, os recalcitrantes — Goog fez um floreio enfático ao pronunciar
o recente acréscimo ao seu vocabulário — não apenas se safam,
escondendo seu ouro, como conseguem um preço melhor por ele
no mercado ilegal, ou no exterior... — Lowell estava inchado de
orgulho por seu filho ter dominado os pontos fundamentais sem
nenhuma ajuda —, isso não significa que as pessoas que obedecem
às regras são castigadas?
— Como seu pai, eu não deveria contar esta realidade bem feia
da vida para você, mas as pessoas que obedecem às regras quase
sempre são castigadas.
Com essa observação pesarosa, Lowell desceu para o térreo. Os
convidados tinham chegado.
***
***
BUSCA E APREENSÃO
***
***
— Sua mãe e seu pai deviam ter fechado a conta e saído às onze
horas da manhã, comprende? — disse a recepcionista da Braços
Acolhedores, que já não usava crachá. As mangas estavam
arregaçadas acima dos cotovelos. Ela mascava chiclete. E era rude.
Carter detectara o mesmo esgarçamento do decoro em Nova
York. Os policiais se arrastavam em suas rondas, com o colarinho
aberto e os sapatos sujos. Os porteiros não abriam portas para
moradores mais vulneráveis nem se ofereciam para carregar
sacolas de compras, e pareciam ter dormido com seu uniforme. Às
vezes, as mudanças eram sutis — um maître que não acompanhava
os clientes até a mesa, apenas sacudia a cabeça, irritado, para
indicar que eles podiam sentar onde bem quisessem —, mas a
transformação sensível da vida cotidiana era substancial. A
anulação de algumas regras parecia haver aberto as comportas
para a anulação de todas.
— Fechado a conta e saído? — repetiu Carter. — Isto aqui não é
hotel.
— É uma empresa, chico — disse ela, estalando os lábios. —
Uma empresa com fins lucrativos, não uma obra de caridade, como
estou um monstro de cansada de explicar a vocês, se quer saber a
verdade.
— Imagino que não exista uma longa fila de candidatos
pleiteando as acomodações do meu pai, não é? — Carter deixou
cair a caneta do alto. Agora, a formalidade de assinar o registro na
entrada parecia uma asneira. — Você devia agradecer pelos
residentes que ficaram tanto tempo aqui quanto meu pai, porque é
graças a eles que ainda tem seu emprego.
As superfícies revelavam que já estavam cortando pessoal. Uma
linha de poeira preta marcava os rodapés. Os sapatos de Carter não
rangeram quando ele caminhou pelo corredor de mármore, onde o
fedor de urina era pungente — embora metade das portas ao longo
dele permanecesse aberta, com as unidades desocupadas. Do lado
de fora da porta dos fundos, que dava para os complexos
residenciais de primeira classe, a grama estava com quinze
centímetros de altura. Um tumulto de amores-perfeitos e
crisântemos em junho do ano anterior, agora os canteiros eram só
terra. Carter não ouviu nenhum cavalo. Não se surpreenderia se
tivessem sido sacrificados.
A porta de entrada do complexo de Douglas e Luella também
estava escancarada. De um modo assustador, capas de livro
emolduradas, embrulhadas em papel-bolha, estavam encostadas
nas paredes do corredor; nenhum desses objetos decorativos
caberia no carro. O tapete carmesim estava achatado por pisadas e
salpicado de barro.
Carter encontrou o pai na biblioteca, como sempre. As prateleiras
estavam vazias. Douglas mantinha-se imóvel, olhando para lugar
nenhum, cercado por torres de caixas de papelão. O terno creme
estava amarrotado, e ele não usava gravata plastron — um toque de
afetação que podia ter sido irritante um dia, mas cuja ausência era
pior. Ele não tinha uma aparência elegante e em forma, parecia
frágil e abaixo do peso. Sua postura desabara. Douglas Elliot
Mandible finalmente parecia ter cada dia dos seus noventa e oito
anos.
Carter perguntou, com um gesto amplo:
— Pai, o que é isso tudo?
— A biblioteca, é claro.
— Bem, é claro que estamos na biblioteca — disse Carter,
pacientemente.
— Não me transformei na Luella, filho. Refiro-me aos livros, não
ao cômodo.
— Se você tem o juízo tão perfeito, também deve estar lembrado
do que eu disse antes. Algumas roupas, seus remédios e artigos de
higiene pessoal, e talvez um punhado de recordações. Recordações
pequenas, não do tipo que enche um caminhão de mudança.
— Supus que você alugaria um veículo apropriado para a tarefa.
— Eu vim no BeEtle, no qual mal caberão você, Luella e pouca
bagagem. Não precisamos incorrer nessa despesa desnecessária
neste momento, e nossa casa já está abarrotada de porcarias. Você
pode baixar pela internet, num chip do tamanho de uma joaninha,
tudo que há dentro dessas caixas de papelão. Este é o momento
ideal para você ingressar no mundo moderno.
— Mas são primeiras edições autografadas! Se é de dinheiro que
necessitamos, esta biblioteca vale uns números grandes, na casa
dos seis dígitos!
— Nova York está inundada de velhos livros impressos, pai. —
Carter tentou dizer isso com gentileza, mas a exasperação levou a
melhor. — A sua geração deixou milhares de livros impressos, e as
pessoas mais jovens não querem isso. Então os colecionadores
escolhem. E mais, quais colecionadores? Você conhece alguma
pessoa de carne e osso que se separe do seu dinheiro, neste
momento, para comprar celulose suja de tinta? Se não conhece,
todas essas caixas vão ficar aqui.
A severidade de Carter foi descaradamente paternal. Mas ter
enfim recebido o status pleno de adulto não foi tão gratificante
quanto um dia ele havia esperado.
Retrocedendo para sua poltrona junto à janela, Douglas mais caiu
do que se sentou, e disse:
— Descartar uma coleção desta qualidade numa lixeira é um ato
de barbárie.
Carter ajoelhou-se junto à poltrona.
— O que existe de importante nesses objetos você pode levar
consigo. Você leu, certo? Eles estão na sua cabeça.
— Tudo que resta na minha cabeça é tristeza e confusão.
Ao ver o pai ficar choroso, Carter pôs a mão no seu ombro, que
lhe pareceu muito estreito e ossudo.
— Caramba, eles têm dado comida a você?
— Não muita. Não depois da ordem de despejo. Esqueça os
aspargos com molho béarnaise. São uns pãezinhos duros que eles
quase atiram na gente e uma espécie de presunto com jeito de
comida de cachorro. Que eu poderia ter tolerado, se o pessoal não
tivesse assaltado o meu bar. Tudo que eles deixaram foi um licor,
um donativo horroroso, casca de laranja macerada em gasolina.
— Desde quando os atendentes se servem do que é seu?
— Ouvi reclamações dizendo que os salários deles não cobrem
as despesas, por isso eles começaram a roubar. Por falar nisso, a
única coisa para a qual você precisa encontrar espaço nessa sua
miniatura de carro é o faqueiro de prata dos Mandible. — Douglas
deu um tapinha em uma caixa retangular de mogno sobre a longa
mesa central. Carter estava familiarizado com seu conteúdo; o M
floreado em cada talher pesado era inconfundível. — Ele poderia ser
útil pelo simples metal, a não ser que agora o governo federal passe
a confiscar prata. Faz semanas que não o perco de vista. Durmo
com essa caixa embaixo do travesseiro, e nem sei dizer como tem
sido desconfortável.
— Se você tivesse me dito que isto aqui estava indo para o
espaço, eu o teria resgatado mais cedo.
— É melhor adiar isso o máximo possível, pelo seu bem, filho.
Receio que a novidade de cuidar de Luella tenda a se esgotar
depressa.
— Você está se encontrando com Mimi de novo! Mimi, olhe para
mim. Não pense que eu não sei!
Por falar no diabo, Luella tinha vagado a esmo para dentro da
sala, usando o que um dia teria sido um vestido elegante, mas cuja
bainha estava em frangalhos, toda rasgada por ela, e cujo tecido
azul-celeste estava cheio de restos de comida grudados. A
protuberância da sua barriga fazia eco ao volume da fralda geriátrica
no traseiro. Carter se acostumara com essa encarnação decadente
da segunda mulher de seu pai, mas, quinze anos antes, o choque
havia sido profundo. Claro, ele se ressentira do modo como a
mulher mais jovem tinha se insinuado para seu patrão em 1992,
tornando-se, oh, totalmente indispensável em todos os
departamentos. Na época, ele também havia suspeitado que a
situação financeira do pai tornara a diferença de vinte e dois anos
mais palatável para Luella. Mas, logo que Douglas contraíra
segundas núpcias, Carter admitira que a mulher era um avião:
gloriosos 1,78 metro de altura, esguia e majestosa, postura
impecável, unhas primorosas e olho aguçado para o vestuário. Era
difícil culpar seu pai (embora ele o tivesse culpado, é claro). Mesmo
aos setenta e alguma coisa, ela não havia perdido de todo o corpão
— mas todo o resto se fora.
— Aquela mulher se dá ares de importância — acrescentou
Luella, com a irrefutabilidade ocasional que se tornara mais
desconcertante que seus disparates. — Mas eu sou descendente da
Rainha Guerreira da Costa do Marfim, Nana Abena Pokuaa! Que
governou o reino baúle dos Akans durante trinta anos! Tinta ramos!
Eu sou da realeza, e Mimi é plebeia. Princesa e teteia! De
comerciantes e lojistas. Assaltantes e oculistas! — Inclinou-se com
ar acusador sobre o rosto de Douglas: — Não pense que eu não sei.
— De vez em quando, ela se convence de que estou saindo de
novo com a sua mãe — explicou Douglas. — O que é emocionante,
porque, nesse caso, ela parece saber quem eu sou. Afora isso, a
parte do cérebro que inventa rimas para cartões de cumprimentos
continua intacta.
— Oi, Luella — disse Carter, inutilmente. — Hoje nós vamos
viajar.
— Viajar, virar, faniquitar. Agora! É hora!
Deu um risinho de menina, com uma tímida mão no rosto, depois
passou a língua no ar, como se tentasse pegar uma mosca. Esse
movimento rápido de espichar e lamber era um dos tiques de Luella
que ele menos gostava.
— Vai ser difícil fazer Luella entrar no carro?
— Ela pode ter acessos de pirraça sem aviso prévio —
respondeu Douglas. — Mas talvez tenhamos sorte. Lamento pelo
estado dela, mas, depois de atrasarmos o primeiro pagamento, os
auxiliares de enfermagem entraram em greve. Não tenho força para
trocar o vestido dela mais de uma vez por dia. Tem certeza de que
Jayne está disposta a fazer isso?
— Ah, Jayne é uma batalhadora — disse Carter, pensativo. Mas
o que teve vontade de dizer foi: “Faz diferença se Jayne está
‘disposta a fazer isso’? Qual é a alternativa: largar sua mulher em
uma cesta na porta de alguém?”
Porque, na verdade, Jayne estava fora de si. Para acabar com o
assunto logo de uma vez, Carter aplicara uma combinação de
golpes: sabe aquela herança com que eles estavam contando para
a aposentadoria? Não existia mais. O pai dele não fugira do
mercado rápido o suficiente para salvar a pele. Os títulos eram
reivindicações sobre a ponte do Brooklyn. O ouro e os investimentos
em ouro tinham sido confiscados. Quase todo o dinheiro vivo fora
absorvido pela dívida, já que, anos antes, algum idiota tinha
convencido Douglas a investir contando com a margem de seu
corretor. A Braços Acolhedores tinha sugado o pouquinho de
liquidez que restara, à razão de 27.500 dólares por mês. Surpresa
número dois: adivinhe quem vem jantar?
Jayne não era uma pessoa desprovida de generosidade, mas era
reservada e, desde o seu colapso nervoso, achava a companhia de
outras pessoas incomensuravelmente estressante. Parecia ter
perdido a facilidade elementar de bolar, com espontaneidade, temas
para conversa, ao mesmo tempo que sofria de um tremendo pavor
do silêncio social. Antes da chegada de amigos para um drinque, ela
passava uma hora espremendo Carter para saber sobre o que iam
falar — um desperdício, já que o convívio social não funcionava
assim e nenhum desses assuntos premeditados surgia com
naturalidade. Em pânico, ela introduzia os assuntos pré-fabricados
de forma arbitrária e acabava com qualquer incipiente pequena
interação que fosse bem-sucedida. Para Jayne, era medonha a
perspectiva de ter que interagir com hóspedes residentes, em
caráter permanente.
Além disso, para qualquer mulher de sessenta e nove anos,
adotar Luella, que era pouco mais velha que ela própria, significava
confrontar todos os dias seus maiores temores a respeito do futuro.
Quanto a Douglas, ele nunca havia realmente notado Jayne, que
era uma pessoa sensível, inteligente e intuitiva, mas que, mesmo
em seus tempos menos fóbicos, nunca se destacara especialmente.
Seu caráter se estruturava em uma escala pequena demais para
Douglas, que, justamente por isso, passara décadas aceitando com
descontração a hospitalidade dela, além de sempre retribuir
despachando-a com igual descontração, sem prestar a menor
atenção a quem estava enchendo seu copo, ou ao copo de quem
ele enchia. Sem um tostão, aos noventa e oito anos, talvez o sogro
nunca tivesse parecido menos intimidante, contudo, nenhum dos
dois podia recorrer a uma longa história compartilhada de
receptividade mútua.
Em suma, eles estavam diante de um desastre da pior espécie:
não um cataclismo único, como 2024, do qual as diversas partes
poderiam recuperar-se, mas um pesadelo ininterrupto e sem limites,
que só terminaria com a morte. Em menos de uma semana, Carter
talvez pedisse para morrer primeiro.
***
***
Recapitulando: ele não conseguira deixar a irmã tentada a dar
algum apoio ao pai e à mulher/bicho de estimação dele, fosse
financeiro ou logístico. Típico. Nollie tinha passado a vida inteira
fazendo o que queria. A ideia de “obrigação” era estranha a ela, e só
as pessoas que reconheciam e respeitavam o dever é que ficavam
sobrecarregadas por ele.
Carter se permitiu um último passeio pelas acomodações do pai,
para se despedir de uma porção de objetos que haviam mobiliado
sua infância, usando o fleX para tirar com discrição algumas fotos
de recordação. Escurecidos por horas de absorção em todo aquele
futuro aterro da biblioteca, o sofá de couro acolchoado com quatro
lugares e as poltronas que o acompanhavam exibiam uma
habilidade artesanal que o mundo nunca mais veria. O mesmo se
aplicava à mesa de jantar, de madeira de bordo, com nós
desenhando ondas e pés em forma de patas, da qual ele e Nollie
tinham sido exilados em ruidosos jantares só para adultos, com as
sumidades e os eruditos da época; era provável que também já não
se fizessem sumidades e eruditos daquela qualidade. As superfícies
estavam salpicadas de tesouros, os detritos francamente inúteis,
mas caríssimos, que eram dados aos ricos, como o requintado
relógio em formato de livro aberto, cujos números pequeninos eram
muito mal posicionados para dizer a hora certa e cuja bateria havia
acabado na década de 1980. Era presumível que os funcionários da
clínica de repouso fizessem um grande bazar de objetos usados
depois que os residentes da estirpe de seu pai tivessem ido embora,
mas não levantariam muito dinheiro. Carter havia entrado em
contato com alguns corretores patrimoniais sobre a liquidação dos
bens de seu pai, mas eles deviam estar inundados de pedidos
semelhantes, pois não houve retorno de nenhum de seus
telefonemas.
Na época em que imaginar o empobrecimento repentino de
Douglas, da noite para o dia, teria sido um simples jogo de sudoku
emocional, Carter teria acreditado que o efeito da retirada completa
do dinheiro da equação do relacionamento deles seria, digamos,
“considerável”. Não teria previsto que seria mais como um “abalo
sísmico”. Constatou-se que a fortuna perdida por Douglas não tinha
sido apenas um elemento preponderante no trato entre eles; para
todos os fins e efeitos, tinha sido o único elemento. De forma
aterradora, aquela grana que espreitava nos cantos controlara tudo
que Carter fazia na presença do pai, assim como tudo que dizia.
A surpresa da súbita penúria não estava apenas na escala da
mudança, mas na do seu caráter. Em retrospectiva, a fortuna
distorcera a própria natureza de Douglas Mandible. Tornara-o
desconfiado, cético e distante, sigiloso, manipulador e superior.
Havia exagerado uma hierarquia pai-filho que, na idade avançada
do pai, deveria estar se desarticulando. Nesses últimos dias,
Douglas se mostrava espantosamente aberto, carente e direto.
Quanto a Carter, antes que o elefante saísse da sala, ele não
fazia ideia do quanto se ressentia dele. Passar décadas girando em
volta do dinheiro, ser de uma deferência exagerada, agitar-se ao
pensar em quando aludir a ele ou evitar criteriosamente a sua
menção. Questionar-se sobre por que, na verdade, fazia aquelas
peregrinações obedientes a New Milford, e, ainda que pelos mais
fugazes momentos, ansiar pela morte do pai. Tudo isso o fizera
sentir-se venal. Vulgar. Indigno, escabroso e moralmente falido. E
ele se ressentira do pai — da cumplicidade do homem em fazer com
que ele se sentisse um verme fraco e dissimulado, e do seu franco
abuso de poder (a exemplo daquela demora sádica, antes do
Discurso da Moratória, em que Douglas havia brincado com ele,
arrastando o veredito sobre o que restara dos investimentos, e se
divertindo com isso; a cena voltou à lembrança de Carter em uma
onda de repugnância). Por isso, embora esperasse sentir-se
consumido pela fúria, já que Douglas não protegera bem o cofrinho
da família, a sensação dominante foi de alívio.
É que era impossível ficar zangado com o pobre sujeito.
Despojado do seu poderoso porrete financeiro, Douglas Mandible
era apenas um homem muito idoso com uma porção de vaidades
comoventes, nenhuma influência e montes de amigos mortos.
Carter teve a sensação de ver seu pai com clareza pela primeira
vez. Não havia nenhum edifício colossal contra o qual enfurecer-se
— apenas um homem meio acabado, que precisava da sua ajuda. É
óbvio que Douglas ainda sabia ser exasperante, e as consequências
práticas de sua insolvência foram cataclísmicas. Mas, de modo
geral, para assombro do filho, em todas as visitas feitas à clínica
naquele ano, Carter fora inundado de ternura, às vezes a ponto de
chegar às lágrimas. (Purgado das intenções ocultas, ele havia
continuado a fazer as visitas, não é? De uma forma perversa, o
despojamento dos bens trouxera uma dádiva: certa manhã, Carter
acordou e descobriu que não era um monstro. Até então, nem se
dera conta de que se sentia um monstro. Era o mais monstruoso de
tudo.) Diante dos choramingantes pedidos paternos de desculpas
por haver administrado mal o patrimônio, Carter havia afirmado
repetidas vezes que os acontecimentos do outono anterior eram
imprevisíveis, que quase todos os outros americanos ricos tinham
sofrido o mesmo destino e que a aniquilação da fortuna não era
culpa do seu pai. Não importava se Carter acreditava mesmo na
letra dessa canção de ninar, ele pôde enfim gostar do pai e gostar
de si mesmo. Livre para ser genuinamente bom — a bondade
praticada por um objetivo oculto não se chamava bondade —, ele
também ganhou uma nova liberdade para ter um comportamento
brusco, mal-humorado, entediado, irritado, impaciente e desatento,
se não indiferente, como uma pessoa de verdade. Só então pôde
avaliar o quanto o desejo de agradar impunha distância, criava
falsidade, mesmo quando uma afirmação feita para ser agradável
era verdadeira; aquilo estragava o senso de humor.
Com afeto, Carter se lembrou de pôr a caixa de mogno do
faqueiro dentro de uma surrada sacola de lona usada para carregar
livros e distribuída pela Barnes & Noble, extinta desde longa data.
Levou-a tranquilamente para o banco de trás do carro, certificando-
se de voltar a trancar o automóvel antes de retornar para buscar a
bagagem. Para sua consternação, Douglas se apegara a uma
enorme mala de couro da década de 1940, coberta de etiquetas de
destinos exóticos e criada para viagens marítimas com enxurradas
de carregadores. Sem rodinhas! E também não havia carregadores,
já que os funcionários da Braços Acolhedores tinham ficado de mau
humor com os moradores cujas contas estavam em atraso. Aos
setenta anos, Carter não deveria estar puxando fardos tão
desajeitados e pesados, não com sua artrite nos joelhos e com um
disco meio duvidoso na coluna lombar. Dos degraus da recepção,
alguns musculosos auxiliares de enfermagem latinos observavam as
suas dificuldades com desdenhosa indiferença.
Finalmente arrastada até o BeEtle, a maldita bagagem não entrou
no porta-malas do carro. Sob o olhar implacável dos tais auxiliares,
foi humilhante desconstruir o trabalho de embalagem feito por seu
pai e enfiar os ternos brancos, as gravatas, as cuecas com
monograma e os sapatos de cordovão, com delicadas costuras
manuais, nos sacolões de lona guardados sob o banco dianteiro do
carona para as viagens a Fairway. Espremidos entre as pilhas de
fraldas geriátricas que Carter tivera a prudência de surrupiar dos
armários da clínica, os pertences pareciam doações para um bazar
de caridade. Ele não conseguia imaginar Jayne passando todas
aquelas peças de linho.
Luella caminhara para longe. Os dois homens levaram meia hora
para encontrá-la, choramingando e com a roupa presa no arame
farpado do perímetro. De modo inquietante, em vez de ajudar a
soltar o vestido de sua mulher, Douglas voltou para o carro,
arrastando os pés. Ao se debater, Luella tornava a prender o vestido
quase com a mesma velocidade com que Carter conseguia soltar o
tecido, aos gritos de “Phasers regulados para tontear, Capitão!”.
Carter bateu palmas depois que ela se soltou.
— Vamos lá, Luella! Isso, menina, vamos andando!
Quando ela o atendeu, Carter percebeu como seu pai havia caído
naquela história de tratá-la como bicho de estimação. No carro,
porém, ela empacou, menos como um cachorro do que como uma
vaca que sente o cheiro do abatedouro.
— Nunca, não quero, não posso, não! — gritou, sacudindo os
braços para a frente e para trás. Como as crianças pequenas, era
comum Luella situar seu único senso de ação na negativa.
— É melhor deixar que ela se canse — recomendou Douglas, do
banco do carona. Dito e feito: após se debater por alguns minutos,
Luella arriou no cascalho feito roupa amarfanhada, e Carter pôde
levantá-la e depositá-la no banco traseiro, com os olhos revirados
para trás e os braços e pernas moles.
— As vacinas dela estão em dia? — perguntou Carter, dando a
partida no carro. — É que ela se arranhou naquele arame farpado
enferrujado. Pode haver perigo de tétano.
— A gente sempre pode ter esperança — disse Douglas.
No trajeto melancólico para a cidade, Carter indagou:
— Vocês têm alguma fonte de renda neste momento?
Rendimentos, aposentadorias, debêntures de empresas?
Agora que não havia dinheiro, eles podiam falar de dinheiro. O
risinho de Douglas transformou-se em tosse.
— Sempre temos o Seguro Social!
— Não zombe. Muita gente só está se aguentando por causa do
Seguro Social.
— Mas de onde vem o dinheiro deles? A retenção sobre as folhas
de pagamento deve ter despencado.
— Eles têm que entregar aqueles cheques, ou haveria uma
insurreição nacional.
— Na minha idade, eu não assustaria muitos burocratas num
piquete.
— Você ainda pode votar.
— Por enquanto — disse Douglas. — Sei que nós, as relíquias,
tendemos a ver as coisas com pessimismo. Mas eu não contaria
com mais nada, e isso inclui o direito de chutar os vagabundos para
fora do governo.
Fazer previsões sobre o fim da democracia americana parecia
tolice, e Carter não levou o assunto adiante.
Após um trajeto que se tornara sinuoso desde o fechamento
parcial da autoestrada Brooklyn-Queens, eles entraram em Carroll
Gardens.
— Eu achava que este bairro tinha se transformado na reluzente
fortaleza da classe dos profissionais liberais — comentou Douglas.
— Não é tão chique quanto eu lembrava.
Todos os quarteirões sofriam o flagelo das propriedades
comerciais fechadas. Restaurantes da elite que, nove meses antes,
mantinham longas listas de espera, tinham janelas sujas, cobertas
por cartazes de “aluga-se”. Lojas que vendiam quinquilharias de
luxo, como móbiles para berços, estavam fechadas com tábuas de
madeira. A cidade reduzira os gastos com a limpeza urbana, de
modo que havia lixo acumulado nas calçadas. Os mendigos eram
não só mais numerosos, como também mais velhos e mais bem-
vestidos. A mendicância sempre aumentava nas fases de declínio
da atividade econômica, mas os cartazes que os pedintes
carregavam eram característicos desta fase: ARRUINADA POR MEU
PRÓPRIO GOVERNO! ALVARADO ME DEIXOU LISA — DOE, POR FAVOR! MINHA
FILHA E O MEDICAID SE RECUSAM A ME ACOLHER!! EU PODERIA SER SUA AVÓ.
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MATERIAL DESCARTADO
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Quando a família saltou em bando do Jeep Jaunt (para simplificar,
eles tinham sido obrigados a vender o elegante GMFord Catwalk de
Lowell), o clima era alegre. Abraços apertados e cumprimentos
empolgados lembraram visitas anteriores, da época em que as
crianças eram menores e ansiavam por passar algum tempo com a
tia e o primo em Nova York. Recém-saída do abraço da irmã, Avery
pôde tirar da cabeça a lembrança de que eles não eram convidados,
mas parasitas por prazo indeterminado. Além disso, desde que se
casara com Lowell, ela fora designada como a irmã que vivia na
moleza, de modo que a inversão de papéis era libertadora. Desde
quando ela conseguia se lembrar, ter vantagens neste país havia
conferido uma clara desvantagem social.
Eles puxaram as malas pela entrada até o porão escuro, de onde
um inquilino sem um centavo fora retirado; por razões que
escapavam à compreensão de Avery, o homem não tinha sido posto
no olho da rua, mas deslocado para a sala do andar de cima. O ar
era bolorento. Havia um colchão de casal no chão, ao lado de dois
colchões infláveis para solteiro. O carpete — um daqueles tons de
azul que não combinam com nada — era fino como feltro. O
banheiro não tinha banheira. Uma cozinha compacta exibia uma pia
e um fogão pequenos e uma minigeladeira com decalques
horrorosos de flores amarelas e brancas. Era vertiginosa a queda —
vindo de uma espaçosa cozinha em Washington, com paredes
revestidas de couro e um robô chamado Feiticeira, programado para
preparar frango à caçadora. A animação inicial de Avery
desapareceu; o que ela foi obrigada a disfarçar imediatamente.
— Viram? — disse em tom animado aos filhos, que examinavam
com incredulidade a nova moradia. — Será como acampar.
— Detesto acampar — respondeu Goog.
— Mamãe! — Bing se encolheu diante de algo que passou
correndo. — Tem bichos aqui!
— E cheira mal — acrescentou Savannah.
— Tivemos uns problemas com a umidade — argumentou
Florence, monocórdica.
— Ah, não ligue para Savannah — respondeu Avery. — Ela não
entende que todos os porões ficam meio bolorentos.
— O nosso não ficava — Goog a contradisse. — E tinha uma
mesa de sinuca.
— Nesse caso, foi uma pena você não ter trazido — disse
Florence. — Poderia dormir em cima dela.
Avery detectou na irmã uma frieza pragmática. Uma recusa, que
era nova, a se deixar provocar. Em tempos idos, ela fora uma
esquentadinha moralista. Florence havia mencionado ser
continuamente “sitiada” no seu abrigo, onde esse estilo não reativo
devia ser uma mão na roda.
— O porão foi impermeabilizado contra umidade há dois anos —
continuou Florence, dirigindo-se a Avery —, mas quando tentei fazer
a companhia cumprir a garantia de cinco anos, o site estava fora do
ar. A empresa fechou as portas.
— Sei como é — afirmou Avery. — Eu quase trouxe o nosso
aspirador robô. Mas uma aba de plástico sem a qual ele não
funciona quebrou, o fabricante faliu e é impossível achar qualquer
peça.
— Uma verdadeira tragédia americana — disse Willing da escada
que levava ao térreo. Por sua inflexão neutra, era impossível dizer
se estava sendo sarcástico.
— Uma verdadeira tragédia americana é a gente acabar nessa
pocilga — rebateu Goog.
— Obrigada — disse Florence, com uma olhadela para a irmã.
Belo trabalho de criação de filhos, fofinha.
— Tragédia é acabar na rua — sapecou Avery — e não ter
parentes generosos que ofereçam refúgio.
— Se isto aqui é um “refúgio” — disse Savannah em tom seco,
postada a certa distância do resto da família, como uma
observadora indiferente —, quer dizer que somos “refugiados”?
— Sim — respondeu Avery. — De certo modo, somos refugiados.
— Que bobagem, querida — disse Lowell, da escada da entrada
externa, onde lutava com o maior baú da família. — Estamos nos
Estados Unidos, não no Iêmen. Logo, logo, vocês se lembrarão de
comentários exagerados dessa natureza e se sentirão ridículos.
— Não entendo por que não podemos alugar um lugar decente
— choramingou Goog. — Não estamos falidos. Você disse que teve
lucro com a venda da casa.
— Sem ter renda fixa? — disse Avery, cerrando os dentes. —
Nem locação nem financiamento. O que qualquer filho de um ás da
economia deveria saber, mesmo que eu já não tivesse dito isso dez
vezes.
Tendo abandonado a mala, Lowell estava vasculhando o porão
com o cenho franzido; testava a estabilidade de uma mesinha,
desligava um abajur e arrastava-o pelo cômodo, depois, de joelhos,
procurava alguma coisa ao longo da parede.
— Meu bem — chamou Avery —, o que você está fazendo?
— Tentando encontrar uma tomada. Preciso montar um espaço
de trabalho. No caminho para cá, tive umas ideias que preciso
anotar.
Avery tentara tolerar a presunção do marido a respeito do seu
“trabalho”; alguma análise econômica vital, sem a qual o mundo viria
abaixo. Como o mundo já viera abaixo, a tolerância dela se
transformara em desdém. Em retrospectiva, parecia muito
engraçado que a família inteira, sem a menor sutileza, houvesse
descartado sua clínica, a MenteCorpo, como charlatanice, quando
todo o campo de Lowell tinha sido desmascarado como uma
embromação muito mais suspeita. Na pior das hipóteses, os
tratamentos de Avery apenas prometiam demais, ao passo que o
bando de charlatães de Lowell provocara um caos nacional. No
entanto, ela cuidara humildemente de fazer todas as malas e toda a
limpeza, e de acalmar as angústias e indignações dos filhos; tinha
saltado todos os obstáculos burocráticos para providenciar a venda
da casa, enquanto Lowell fechava a cara para seu fleX, digitava
febrilmente e, de vez em quando, passava segundos seguidos
apertando a tecla “apagar”, na extrema direita, com desgosto
melodramático. Ele fazia Avery se lembrar, incomodamente, de
quando ela brincava com o antigo BusyBox do pai na casa da vó
Mimi, aos quatro anos; girando uma manivela que não movia nada,
rodando um disco de telefone que não fazia nenhuma ligação,
abrindo uma gaveta dentro da qual não havia coisa alguma e
acertando um relógio que não dizia as horas.
— Lowell, você trancou o carro? — perguntou Florence. — Não é
só em Nova York, mas, sobretudo aqui, não se pode deixar nada
aberto.
Com um suspiro meio bufado, Lowell voltou a se arrastar para o
lado de fora.
— Acho que esgotamos os colchões, para não falar do espaço no
piso — disse Florence. — Então, pensei que Goog poderia dividir a
cama com Willing lá em cima. É uma cama de solteiro, mas Willing
está mais para magrinho.
— Puxa, cara! — exclamou Goog. — Ser gay é muito démodé.
Prefiro dormir no carro.
— Você está bem com isso, Willing? — Avery conhecia tão bem a
territorialidade dos garotos adolescentes que não precisaria ter
perguntado.
— Não faz diferença se está bom para mim — respondeu Willing.
Era embaraçoso que ele tivesse razão.
— Sinto muito por estas acomodações não serem o que vocês
estavam acostumados — disse Florence à irmã, em voz baixa. —
Eu avisei que seria um aperto.
— Eu é que devo pedir desculpas — respondeu Avery entre
dentes. — As crianças têm sido umas bostejantas...
— Foi um choque para eles — apaziguou Florence. — Já vi isso
inúmeras vezes. Todo mundo se adapta sem esforço a uma vida
mais luxuosa, e a melhora da situação sempre parece merecida.
Mas ir no sentido inverso parece contrariar a natureza. O mais
venenoso é que isso também parece injusto. Existe toda uma outra
classe de pessoas que sempre enfrentaram dificuldades, e elas
encaram a adversidade como um fato corriqueiro. Podem não achar
que merecem aquilo, mas aceitam; é com isso que estão
acostumadas, e não reclamam muito com os deuses. Mas nunca vi
ninguém cuja vida tivesse dado uma guinada súbita para pior que
achasse que essa reviravolta do destino era justamente o que ela
merecia. A indignação, a consternação, a fúria, todos impotentes...
bem. Reveses nunca trazem à tona o que as pessoas têm de
melhor.
Lowell voltou, abanando a cabeça.
— Não acredito que roubaram os salgadinhos.
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AGLOMERAÇÃO CÁRMICA II
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No depósito do porão, Willing recalibrou os pneus da bicicleta.
Pegou seu kit de ferramentas, as cestas laterais e umas cordas
elásticas, enquanto, ao fundo, Lowell esbravejava que “a proteção
da propriedade privada é responsabilidade primordial do Estado!”.
Willing não pôde deixar de sorrir. Certas pessoas simplesmente não
conseguiam mudar de paradigma.
Sentiu-se melhor depois de cuidar daquela tarefa. Fazia algum
tempo que não verificava as quinquilharias atrás da caldeira, mas
elas estavam seguras. Embora ele fosse suspeito para falar, era um
ótimo esconderijo. Curioso era que a mãe nunca havia perguntado
por essas coisas. Tinha medo de ser presa. Willing se perguntou se
alguém ainda fazia isso — prender pessoas.
Ao prender a bicicleta com um cadeado ao poste de uma placa
de estacionamento, do lado de fora, Willing viu seu avô curvar-se na
escada do porão. Carter pôs alguma coisa no degrau e se abaixou
sobre ela com seu cobertor. Ao levantar os olhos, pôs um dedo
sobre os lábios.
Não ficou claro o que Carter estava tramando, mas a expressão
desvairada que ele exibia desde o incêndio ficara ainda mais louca.
Willing não queria atrair a atenção de Sam, e aquele não era o
momento de fazer uma preleção para seu avô sobre sistemas
complexos que entram em desequilíbrio. Ele se contentou em
abanar a cabeça vigorosamente, a fim de desestimular qualquer
plano idiota que o velho tivesse concebido, enquanto movia os
lábios para dizer NÃO, NÃO FAÇA ISSO, e movia as mãos espalmadas
de um lado para outro — código universal para Esqueça!, mas
Willing era um mero neto subestimado de dezesseis anos, e fazia
dois anos inteiros que Carter E. Mandible estava prestes a matar
alguém.
Correndo de volta para a escada, Willing apontou para o interior:
Volte lá para baixo. Carter puxou o cobertor em volta do pescoço e
fechou a cara. Não ia entrar.
Inquieto, Willing juntou-se ao grupo reunido na sala. Sam parecia
esgotado. Queria que eles saíssem, daquele jeito exausto e comum
com que a gente quer ver pelas costas convidados que abusaram
da nossa hospitalidade — para poder começar a arrumar a cozinha,
tomar uma saideira em paz, assistir ao noticiário.
— Dinheiro — disse Sam.
Eles esvaziaram os bolsos usados como disfarce.
— Chaves da casa — anunciou Sam a seguir, estendendo um
cesto da mesinha de centro como se fosse uma travessa de coleta
na igreja. — Não quero visitas.
Enquanto os despejados se enfileiravam no vestíbulo, Sam fez
uma inspeção desanimada em suas bolsas e mochilas, enfiando o
cano da arma em compartimentos sem zíper, fazendo o exame
superficial de um velho guarda de museu. Infelizmente, confiscou o
pedaço de pão que a mãe de Willing escondera, mesmo com Tanya
de sentinela na cozinha. Mas deixou Kurt levar seu saxofone. Tendo
perdido tudo que possuía, Jayne não tinha pertences e se deixou
ficar junto à escada, embrulhada em seu cobertor, enquanto os
outros iam saindo, cabisbaixos, um a um. Devia estar tentando se
manter aquecida pelo maior tempo possível. Tivera um dia
cansativo.
— Que droga é aquilo? — perguntou Sam, quando Nollie chegou
à porta. A caixa parecia pesada demais para uma mulher de quase
setenta e cinco anos.
— Material descartado — respondeu Nollie.
— Arterial apalavrado — disse Luella, às suas costas. —
Conversa espreitada. Ajuste de miado, capuz rasgado, cadeira
inteirada. Pedro Piferaro pegou um pote de pasta cervejada…
— Alguém tire essa bruxa daqui — rosnou Sam. Soltando as
rédeas da mulher do balaústre a que estava amarrada, MGM foi
puxando Luella porta afora.
— Manuscritos dos meus livros — explicou Nollie. — Podem não
ter valor para qualquer outra pessoa, mas valem alguma coisa para
mim.
Sam abriu as abas da caixa e, dito e feito, ela transbordava de
folhas impressas amarradas com elásticos.
— Caramba, tem maluco para tudo, não é?
Agora Sam segurava Bing com a firmeza habitual do pai que
arrasta o filho enquanto cuida de seus afazeres, e Jake parecia
enciumado. Carregando o casaco e a mochila do segundo filho,
Avery não estava disposta a ir embora sem o caçula. Afora isso,
quando Sam inspecionou os retardatários com rigor, eles estavam
reduzidos a Willing e Jayne.
— Ei, cadê aquele velhote rabugento que me ameaçou com uma
ocupação pacífica? — perguntou Sam.
O olhar de Willing foi atraído por um movimento atrás de seu
captor. Para disfarçar o olhar capaz de traí-lo, sugeriu, às pressas:
— Carter... meu avô, ele deve estar no banheiro.
Assomando na escada junto à porta aberta, Carter levantou bem
alto as duas mãos atrás das costas de Sam. Enquanto seu cobertor
voava para trás, ele cravou um utensílio reluzente de uns trinta
centímetros no ombro do invasor. Sam deu um berro. Com um grito
de guerra simultâneo, Jayne jogou seu cobertor sobre as cabeças
de Tanya e Ellie, prendendo os braços da mulher, que envolviam a
menina. A pistola disparou. Bing soltou um uivo.
Arrancando do ombro direito o objeto estranho, Sam virou-se,
meio cambaleante, para apontar a pistola na direção do agressor.
Depois de se jogar no chão, Tanya chutou Jayne para longe e se
desvencilhou do cobertor. Então pegou Ellie e recuou para trás do
marido. Avery correu até o filho para examinar seu pé. A briga
acabou em segundos.
— Que porra é essa? — perguntou Sam, brandindo a arma de
prata de dois dentes, que terminavam em duas pontas delicadas,
agora molhadas e escuras. Era um utensílio elegante, cujo design
refinado ele não parecia disposto a admirar.
— Um pegador de aspargos — declarou Carter, impenitente, com
os olhos arregalados e sombrios. Acenou com a cabeça para a
arma: — Vá em frente. Alegre o meu dia.
— Querido, implorar por suicídio pelas mãos de um cafajeste não
é uma boa saída! — gritou Jayne, levantando-se. — Isso só tem
graça se você for o Dirty Harry empunhando uma Magnum, e não
um velho com um pegador de aspargos!
— Fora daqui, vocês todos, já! — disse Sam, sacudindo a pistola.
— Você acertou o dedão do sapato do meu filho — Avery o
repreendeu. — O pé dele vai congelar lá fora. Pelo menos, me deixe
buscar outro par lá embaixo.
— Acabou o tempo de ser bonzinho. Fora, agora.
O ombro de Sam sangrava e ele não parecia com um desses
durões tinhosos que são indiferentes à dor.
Jayne, Avery, Bing e Willing saíram em fila para se juntar aos
outros na calçada, onde puderam ouvir o clique da fechadura de sua
própria porta de entrada e o chacoalhar da corrente ao ser passada.
Os mesmos sons foram emitidos na entrada do porão.
— Pai, sei que sua intenção foi boa — disse Avery com um braço
em volta do caçula, que choramingava e cujo tênis esquerdo ficara
com um furo. — Mas sua ousadia foi perigosa. Foi um milagre o tiro
não ter acertado o pé do Bing. Os dedos deles parecem
chamuscados.
— Pegador de aspargos? — perguntou Nollie. — Carter, que tal
uma porra de uma faca?
— Todas as facas do faqueiro de prata estão cegas, e a mulher
do cara estava na cozinha. — Carter pegou seu cobertor do chão e
o sacudiu, fulo da vida. — Pelo menos eu tentei alguma coisa.
Jayne ajeitou a túnica de combate do marido ao redor do pescoço
dele. A façanha dos dois não dera em nada, mas talvez o risco
tivesse valido a pena: os dois avós estavam com a postura ereta,
orgulhosos, parecendo anos mais novos à luz do poste de
iluminação. Enquanto isso, Esteban murmurava para Florence:
— Eu podia ter acertado aquele tonto com uma pá, mas recebi
ordens de não fazer isso.
— Que faca, que nada, por que não usar um martelo? — Nollie
continuou a atormentar o irmão. — Tem uma caixa de ferramentas
no porão, e o nosso amigo Sam deu essa ideia de bandeja para
você!
(Era impossível imaginar Carter Mandible esmagando o crânio de
Sam com um martelo. Engraçado, Willing podia facilmente visualizar
Nollie fazendo isso.)
Carter rebateu:
— Pelo menos, aquele pegador de prata é muito mais mortífero
que uma caixa com esses malditos manuscritos.
— Como vamos carregar isso, Nollie? — disparou Lowell. — É
uma coisa desajeitada e incrivelmente pesada. Você não vai
conseguir carregar essa maldita caixa nem até o fim do quarteirão.
— Pois observe — respondeu Nollie, com ar sinistro. Nunca era
boa ideia questionar a mestria atlética de Enola Mandible.
— Passei a vida inteira suportando a sua egomania — disse
Carter à irmã. — Mas aqui é o limite. Neste momento, salvar os
originais da sua o-o-o-o-oeuvre já seria bem imbecil se você fosse o
Tolstói. Mas você é uma escrevinhadora. Li a crítica sobre O
freelance no Times: “uma prosa que é, milagrosamente, tanto
insípida quanto prolixa...”.
— Pelo menos, uma o-o-o-o-oeuvre inteira — retrucou Nollie — é
melhor que um punhado de artigos sobre carros com porta traseira e
sobre condomínios...
— Crianças! — gritou MGM. — Chega! Carter, sua irmã recebeu
muitas críticas positivas, e ninguém publica múltiplos romances sem
atrair um ou outro cafajeste. Enola, não há nada de desonroso em
artigos sobre condomínios, desde que seja escrito com verve.
Escutei essa porcaria durante a vida inteira, e não deveria ter que
aguentar briguinhas desse tipo na minha idade.
— Mesmo assim, Nollie, se o peso nos retardar — disse a mãe
de Willing —, vamos virar alvos. A esta hora da noite, as quadrilhas
andam soltas pelo bairro todo.
— Acho que, se alguém criar caso com a gente — disse Avery —,
sempre podemos ameaçá-lo com o material descartado.
Não era justo. Estavam implicando com Nollie por não poderem
descontar sua frustração em Sam e Tanya, ou no Banco Central, ou
no presidente.
— Eu carrego, por enquanto — ofereceu-se Esteban, com certa
má vontade, já sobrecarregado com a maior das mochilas. — Mas
fique de olho em alguma caçamba de lixo.
— Não — disse Willing.
Ele pegou a caixa de Nollie. Tinha um peso assombroso; talvez
sua tia-avó estivesse mesmo em ótima forma. Puxou da mochila
uma folha de plástico e embrulhou a caixa, para protegê-la da névoa
gelada. Apoiou-a na traseira da bicicleta e prendeu-a no suporte
com cordas elásticas.
— Willing — disse Carter, pegando a caixa que deixara na
escada do porão. — Você acha que também consegue cuidar disto?
Atado com outra corda elástica, o faqueiro de prata coube
certinho em uma das cestas laterais. Embora os metais preciosos
tivessem valor como objetos de escambo, Willing já desenvolvera
um apego sentimental a moedas funcionais. Por isso, jurou não
trocar aqueles utensílios gravados por comida e abrigo transitórios,
a não ser que a vida deles dependesse disso. Aquele faqueiro de
prata era a herança deles. Sam e Tanya tinham ficado com o sofá. O
patrimônio dos Mandible, os apetrechos fabulosos da Casa da
Abundância, tudo se resumia a essa caixa solitária.
***
***
Fazia pouco tempo que ele se mudara de volta para a East 55th
Street. De menor ordem, esse regresso também acarretara uma
violação. A casa fora ocupada por estranhos durante nove anos. O
resíduo alheio deixado por eles estava em toda parte — camisas
sujas, garrafas vazias de bebida, seringas. Mais perturbador era o
familiar — xícaras que sua mãe tinha lavado carinhosamente na
água cinzenta guardada na pia de plástico, ano após ano, agora
lascadas e sem as alças. Dos pratos ou tigelas com os quais ele
crescera, mal restava um que não estivesse quebrado ou rachado.
Comicamente, havia remanescentes das idas de Avery à
Walgreens, à Staples e à Home Depot. Willing continuou a topar
com uma ou outra embalagem de mãos-francesas, meio vidro de
cola Gorilla, muitos clipes coloridos espalhados no porão. Pelas
embalagens rasgadas, deduziu que alguém realmente se servira
dos kits de tratamento de fungos nas unhas dos pés. Os armários
tinham sido vasculhados. Os poucos frangalhos restantes do
guarda-roupa de sua mãe estavam manchados de mofo. Seu
querido cesto de vime para roupas, da Bed Bath & Beyond, símbolo
da dedicação de Esteban, fora deslocado para a cozinha, a fim de
ser usado como cesta de lixo, e cheirava mal. O simples trabalho de
limpeza foi árduo, e por baixo da imundície e da poeira espreitavam
problemas estruturais mais sérios. A umidade penetrante era
sinistra. Ah, Florence Darkly, você e a sua obsessão com
impermeabilização barata!
Desde o começo ele soube dos montes de empregos disponíveis:
vagas de auxiliar de saúde domiciliar, trabalho em venda e
faturamento de seguros de saúde, concepção e manutenção de
sites de assistência à saúde, atendimento em centrais telefônicas de
orientação e informações de saúde, fabricação de equipamentos
médicos, manutenção e assistência técnica de equipamentos
médicos, transporte médico, pesquisas médicas, fabricação de
produtos farmacêuticos, pesquisas farmacêuticas, propaganda
farmacêutica, serviços de lavanderia hospitalar, serviços de
alimentação hospitalar, administração hospitalar, construção de
hospitais e trabalho em instituições residenciais assistidas que
prestavam serviços a todos os níveis de decrepitude (desde os
portadores de deficiências leves até os moribundos). Como muitas
pessoas da sua idade, Willing abandonara os estudos no ensino
médio. Isso excluía um emprego em neurocirurgia.
Assim, ele achou pela internet uma vaga em uma clínica de
repouso chamada Campos Elísios, na Eastern Parkway, à distância
de uma pequena corrida de bicicleta. Para o trabalho sujo e pouco
requisitado — esvaziar comadres e limpar o chão —, tudo que eles
exigiam eram jovens saudáveis. (A juventude era o único recurso da
sua pequena tropa que estava em alta no mercado.) Assim, durante
a entrevista de emprego, sua contratação parecia líquida e certa, até
ele mencionar, como se só então a lembrança lhe viesse à cabeça
— se isso constituísse um problema, era melhor abordar de uma
vez o assunto —, que não havia implantado um chip.
A notícia levantou todas as sobrancelhas na sala.
— Isso é muito irregular — murmurou um membro da comissão.
— Será que isso é legal, hoje em dia? — cochichou outro.
Foi como se Willing tivesse revelado que era portador da gripe do
esquilo-cinzento. Eles se afastaram instintivamente do entrevistado,
dois ou três centímetros. Informaram-lhe que o chip era uma
condição não negociável do emprego, não apenas ali, mas em
qualquer lugar do estado de Nova York. Se ele resolvesse isso —
“coisa de cinco minutos”, garantiu-lhe um deles, “uma dorzinha
maior para um adulto que para um bebê, mas você estará novo em
folha no dia seguinte”, acrescentou outro burocrata, “pode ser feito
em qualquer clínica ou pronto-socorro, como paciente ambulatorial,
e de graça! Eu fui um dos primeiros a adotá-lo, e, para mim, custou
duzentos nuevos” —, o emprego estaria garantido.
Ao chegar em casa, Nollie se posicionou de forma ferrenha; uma
postura fácil para ela, já que os cidadãos acima de sessenta e oito
anos estavam isentos.
— É uma ideia monstruosa — disse. — Você vai ser um fantoche
deles.
Mas, afinal, os idosos sempre relutaram diante da inovação. Se a
velharia tivesse ficado no comando, todo mundo ainda estaria
andando de carroça puxada a burro.
Em vez disso, Willing poderia varrer a casa da melhor maneira
possível e vender o imóvel caquético de East Flatbush abaixo do
preço. Ele e Nollie poderiam voltar para a Cidadela. Mas Jarred
tinha se tornado irascível. Embora as fazendas aos poucos
estivessem voltando a ser privatizadas, agora que o pior da
escassez de víveres ficara para trás, ele se enfurecia com a ideia de
ter de recomprar sua propriedade. Da família extensa que dera
apoio e enchera de humor e solidariedade os dias da adolescência
de Willing, restara apenas Kurt. Nollie podia não acreditar, mas
precisava de acesso mais rápido a uma assistência médica de
qualidade do que a oferecida em Gloversville. A resistência a um
simples pré-requisito da vida no mundo moderno pareceu ser, ao
mesmo tempo, coisa de criança e birra de velho.
Assim, fechando os olhos para um peso no estômago, como se
tivesse comido dois pratos de bolinhos, Willing entrou com extrema
displicência no pronto-socorro do King’s e declarou a que vinha.
— Nossa! — exclamou a enfermeira. — Você é muito velho para
ser virgem! Como foi que conseguiu se arranjar? Não é um
daqueles grevistas, é? Dos que ficam refestelados no sofá dos pais?
— Não — respondeu ele. Não gostou da forma como o toque
dela no seu ombro o direcionava. Uma reivindicação, um
encurralamento, uma inclusão conspiratória, um bem-vindo-ao-
clube. Mas era tarde demais. A enfermeira já pusera as mãos nele,
literalmente.
Na sala branca simples, ele foi instruído a se deitar de bruços,
enquanto um rápido sequenciamento da amostra de sua saliva era
feito; o chip ficaria eternamente ligado ao seu DNA. Sua testa se
encaixou em um suporte acolchoado, enquanto a enfermeira
ajustava os parafusos de fixação até pôr cada ponta em contato
com a sua cabeça. O fixador craniano fez lembrar o abatedouro a
que Jarred levava as bezerras que não valia a pena criar até virarem
vacas adultas pois a recompensa seria muito escassa: um tubo
estreito firmou o crânio, para garantir que o pino na têmpora
entrasse no lugar certo. Willing não podia mexer a cabeça nem um
milímetro. A ideia era essa. Para proteção dele, explicou
meigamente a enfermeira. Caso contrário, o menor tremor “podia
deixá-lo paraplégico”. Ela riu.
Willing não gostou de ficar deitado de bruços. Era uma posição
sexual, uma postura de submissão. Combateu o pânico crescente
quando a mulher girou um mecanismo atrás dele e o nivelou com a
base do seu crânio — uma depressão macia, tenra, indefesa. Por
mais que fosse feito de vidro e cromo, o aparelho se assemelhava a
um revólver. Quando a enfermeira o disparou, uma dor aguda fez
surgir em um flash o rosto de Magno Grand Man, descarnado,
pálido e vermelho de um lado, antes de tombar ao lado da fogueira.
***
***
***
***
***
***
Tentar fazer a travessia para o Estado Livre pela I-80 parecia meio
óbvio. A opção pela estrada menos movimentada fora toda a razão
de eles escolherem um ponto setentrional de entrada em Nevada,
para começo de conversa: quase todos os emigrantes subversivos
pegavam a I-70 para Las Vegas. Se o grau de fortificação na
fronteira variasse, o Serviço de Imigração e Fiscalização Aduaneira
certamente concentraria suas ações dissuasivas perto da maior e
mais famosa cidade do estado renegado, no seu extremo sul.
Por isso, Nollie saiu da autoestrada interestadual para a rodovia
secundária paralela, a Rota 58, que levava à cidade de Wendover,
cujos limites municipais originais abarcavam os dois lados da
fronteira entre Utah e Nevada. À primeira vista, Wendover pareceu
mais agitada do que outras comunidades similares no caminho. Até
ali, os motéis de beira de estrada tinham sido decrépitos, com
colchas esfarrapadas e copos recicláveis de plástico já rachados.
Em Wendover, as pousadas mais sofisticadas pareciam novas, com
nomes como Repouso do Peregrino, Ponto Final do Peregrino e
Travesseiro do Peregrino. Não pareciam se referir a refugiados
religiosos com chapéus de aba larga. Quando o trio enveredou mais
para dentro da cidade, proliferaram restaurantes, cassinos e lojas
vistosos: Pousada Vira-Casaca, Areias do Desertor e Restaurante
João Traição. Múltiplos estabelecimentos faziam alusões divertidas
àquilo que os visitantes como Willing mais temiam: Peixe Te Fritas,
ou Quem Sai do Chip Não Degenera. O Bar Última Chance
anunciava drinques batizados de Congelamento Cerebral e Derrame
em Copo.
Goog gemeu que estava faminto. Todos estavam.
— E quanto às mãos dele? — perguntou Willing à tia-avó.
— Esta cidade é tão maluca que ninguém vai olhar duas vezes
para uma fita — disse ela. A imobilização nominal de Goog já estava
frouxa a ponto de se qualificar como uma pulseira, e mais de uma
vez Willing o vira recolocar o bracelete esticado.
Assim, pararam em um restaurante familiar chamado Banquete
Final. Na recepção, um garoto de cinco anos fazia algazarra em
uma réplica de cadeira elétrica que girava, vibrava e soltava
fagulhas de verdade. O cardápio fora criado em torno da última
refeição pedida por condenados no corredor da morte. O prato à
John Allen Muhammad era composto de frango com molho de
tomate, acompanhado por bolo de morango. O John Wayne Gacy
vinha com KFC (Korean Fried Chicken, ou Frango Frito Coreano) e
camarão. Ou então, era possível escolher uma refeição mais leve: a
John William Elliot era uma xícara de chá quente com seis biscoitos
de chocolate; a James Rexford Powell, um bule de café.
— Isso não tem gosto de nada — comentou Nollie, examinando
as entradas.
— Como você pode saber sem pedir alguma coisa? —
questionou Goog. Ela revirou os olhos.
— Vou pedir o Ron Scott Shamburger — decidiu Willing: nachos
com molho chili, jalapeños, molho picante, cebola grelhada e tacos.
— Esse cara bateu as botas com estilo.
— Olá! — Como seus colegas, a garçonete do restaurante estava
vestida de guarda presidiária, trazendo no peito um distintivo
reluzente que dizia “Betsy”. — O que posso trazer para vocês?
— Vou começar por uma Injeção Letal — disse Goog.
— Ótima escolha! — exclamou Betsy, embora o coquetel de
conhaque, birita de fabricação caseira e xarope de romã parecesse
um horror. Depois de anotar os demais pedidos do trio, ela
perguntou, em tom simpático: — Vocês são desertores?
— Se fôssemos — respondeu Nollie, com um olhar desconfiado
para a moça —, por que lhe diríamos?
— Só estou puxando conversa, meu bem. Já repararam — Betsy
se dirigiu aos homens — como essas queridas senhorinhas tendem
a ficar paranoicas?
— Há alguma boa razão para se ficar paranoico? — indagou
Willing.
— Sei o que você está perguntando, benzinho — disse Betsy. —
É o que vocês todos querem saber. Mas os que cruzam a fronteira
nunca voltam. Entenda como quiser. Temos fregueses que se
repetem, sim, mas a maioria é gente que ficou com medo na última
hora. Às vezes, isso os deixa numa fria danada, porque todos usam
as reservas que tinham no chip em grandes farras nos cassinos. A
gente vê essas pessoas na rua, pedindo transferências para seus
chips, com intenção de voltar para casa.
— Vocês recebem muitos desses desertores? — perguntou
Goog, desconfiado, como o sacal que os outros às vezes esqueciam
que ele ainda era.
— Ah, os peregrinos deram uma boa levantada na economia
daqui! Volto já com o seu rango.
***
Após o almoço tardio, eles voltaram à estrada, e em seguida
estacionaram. A cerca de um quilômetro e meio, descendo a 58 —
tão reta quanto a interestadual de que era paralela —, o fleX de
Nollie indicou a fronteira de Nevada. E, de fato, uma espécie de
edifício se erguia no fim da estrada. Difícil dizer de que altura,
àquela distância, ou discernir se havia guardas atiradores de elite
com rifles agachados em seu terraço. Willing e Nollie concordaram
que chegar mais perto, em uma área populosa, seria um erro.
Melhor seguir mais para o sul, por estradas locais pequenas, e
explorar a natureza das defesas federais no meio de lugar nenhum.
— Olha, eu sei que nem sempre nos demos bem — disse Goog a
Willing, do banco de trás, enquanto a poeira levantava ao redor do
carro. — Isso não quer dizer que eu queira que o seu cérebro
queime feito uma lâmpada. Podemos fazer uma trégua? Esta
viagem foi um barato. Faça a volta, e talvez possamos passar pelo
Colorado no caminho de casa. Até me proponho pagar o preço
absurdo que os caras-de-prato cobram para a gente ver o Grand
Canyon. Sério, é por minha conta, para nós três. Juro que não vou
entregar vocês. Não vou denunciar o sequestro. Deixo até você ficar
com a porcaria da sua pistola.
— Isso é de uma generosidade incrível — disse Willing.
— Nunca sei quando você está sendo sarcástico — rosnou Goog.
— Escute, por que se arriscar a derreter a cabeça? O país... não é
tão ruim assim!
— Não era bem isso que os pais fundadores tinham em mente?
— perguntou Willing. — Um país que não é tão ruim.
— Nem tão ruim é melhor do que um entulho! — implorou Goog.
— Sei que vai ser duro por uns tempos, mas, chegando aos
sessenta e oito anos, é moleza! É só você contribuir com o seu
tempo!
— Por que você não vem conosco? — indagou Willing.
— De jeito nenhum — respondeu Goog. — Você não conhece o
SACS como eu conheço. Esses caras não são brincadeira. Você acha
que eles não atacariam os contribuintes insubordinados? Num
piscar de olhos. Pô, é incrível que ainda não tenham feito execuções
públicas. E não é por serem bandidos. O público em geral não faz
ideia de como as coisas estão aflitivas. O orçamento... Ele é uma
megacatástrofe. É um milagre conseguirmos bancar os sanduíches
da Suprema Corte.
Depois de se afastarem bastante da cidade, Nollie tornou a virar
à esquerda. A estrada de terra esburacada parecia a que os tinha
levado ao silo subterrâneo. Associações: nada bom. Goog fez
piadas sem graça sobre os instintos de Nollie que causavam sua
atração por cadáveres.
No entanto, ao se aproximarem do que o GPS identificava como o
fim do mundo, tal como eles o conheciam, nenhuma Grande
Muralha se ergueu para recebê-los. Seu veículo não explodiu ao
passar por cima de uma mina terrestre. No lugar em que Nollie
parou o Myourea e todos desceram, dois fios de arame farpado
enferrujado estendiam-se frouxamente de um lado a outro da
estrada, entre postes meio inclinados e mal ancorados. A cerca
prosseguia no eixo norte-sul nas duas direções. Do outro lado, uma
placa escrita à mão dizia: BEM-VINDOS AOS ESTADOS UNIDOS DE NEVADA.
Com as mãos nas cadeiras, Goog inspecionou a notória fronteira,
enojado.
— Não consigo acreditar nisso.
— Essa cerca — disse Nollie — não impediria nem a entrada de
galinhas.
Uns dez metros além do arame farpado ficava uma casinha
vermelha de tábuas de madeira. Na varanda, um velho reclinava-se
em uma cadeira de balanço, fumando. Mais raro nessa época do
que um SUV, seu cigarro de palha parecia um cigarro de verdade.
Willing acenou. O velho retribuiu o aceno.
Willing se aproximou do poste da direita. As pontas do arame
farpado eram fechadas em alças e penduradas em pregos vergados
para cima.
— PARE! — gritou Goog, quando o primo levou a mão a uma das
alças. — Agora faz todo sentido para mim! Eles ficam felizes por
deixar velhotes sem chip como Nollie cambalearem para fora do
país. Até agradecem. Essa gente custa uma fortuna, porra! Mas,
para contribuintes como você, Wilbur, do tipo que só dá e não
recebe nada, só existe uma razão possível para não haver muro
nem guardas nem minas: os caras não precisam disso. Se você
quer uma prova sólida de que estou certo sobre a autodestruição, é
essa cerquinha de merda.
Willing soltou os dois arames dos ganchos e os afastou do
caminho do carro, permanecendo nos EUA. Nollie tornou a ocupar o
que insistia em chamar de assento do motorista, deslizou para a
terra da traição e da secessão e estacionou o carro.
Agora a linha estava literalmente traçada na areia. Um desafio.
Por Deus do céu, foi comovente. Goog cobriu o rosto com as
mãos e declarou:
— Não posso ver isso.
Sem mais cerimônias, Willing entrou no Estado Livre.
• CAPÍTULO 5 •
Partiram por uma estrada de mão dupla, a US 93. A terra era plana
e seca, com uma ondulação de montanhas baixas no horizonte.
Tufos de arbustos empelotavam a planície como os flocos de
cúmulos no alto, fazendo do terreno um reflexo perfeito do céu.
— Você pareceu muito confiante ao cruzar a fronteira —
comentou Nollie.
— Tinha mais que os seus 60% de confiança, pelo menos —
disse Willing. — Quando Goog falou das condições do Monumento
a Washington, alguma coisa se encaixou na minha cabeça. É mais
econômico monitorar fotografias na internet do que limpar os
monumentos na vida real. Por isso, quando vi a cerca, entendi. Eles
não têm cães, atiradores de elite, nem uma enorme barreira de
concreto ao redor de todo o perímetro de Nevada. Mas não porque
o chip esteja programado para se autodestruir. É que eles são
avarentos demais.
Nollie deu uma risadinha.
— Mesma razão pela qual não se interessaram por travar outra
guerra civil, para começo de conversa.
— Os boatos são grátis, se espalham sozinhos. Contratar gente
para postar uma porção de disparates sobre os Estados Unidos de
Nevada não custa quase nada. Foi o que Fifa disse sobre o
terrorismo de Estado. Policiar por meio da propaganda economiza
dinheiro. E, sinceramente, Noll —, acrescentou Willing,
reconsiderando —, estamos falando dos Estados Unidos. Não se
trata do país que já foi, mas eles ainda não assassinam as pessoas
por evasão fiscal.
Tiveram sua primeira lição prática com os nevadenses naquela
mesma noite. Estavam rodando com o finzinho do combustível e
não chegariam a Las Vegas sem reabastecer. Embora a
cidadezinha de Ely tivesse uma hospedaria e um restaurante, Nollie
e Willing não tinham dinheiro para nenhum dos dois. Assim,
pararam no acostamento da estrada, trancaram as portas e se
embrulharam nos suéteres que só Nollie tinha pensado em pôr na
mala em julho. Ficava frio no deserto depois do pôr do sol.
Willing não se incomodou. Já sentira mais frio: durante o inverno
de 2031 e 32, quando sua mãe se recusava a regular o termostato
acima de 6ºC — só o suficiente para impedir que os canos
congelassem. Encolhido em uma tubulação que gotejava, a caminho
de Gloversville, impossibilitado de dormir, esperando o sol nascer.
Congelando os dedos no guidom, ao empurrar a bicicleta por
margens de rio cobertas de mato, lutando para mantê-la em pé,
porque as caixas de Nollie e Carter tornavam a carga superpesada.
Podia fazer muito tempo que a energia dos tacos do Banquete Final
acabara, mas estava longe de ser a primeira refeição que ele perdia.
Avery levara um ou dois anos para distinguir luxos de necessidades.
Willing sabia a diferença desde pequeno.
Pegou a estrada cedo e se ofereceu para ajudar no restaurante,
ele podia fritar algumas coisas. De má vontade, o proprietário
concordou, mas só durante a correria do café da manhã. Ouviu
resmungos sobre “imigrantes ilegais” — um uso ligeiramente
distorcido, uma vez que o que tornava Willing e Nollie ilegais não
era ter a permissão para entrar nesse novo país negada, mas ser
proibido que deixassem o deles. Depois de também limpar os
banheiros, ele ganhou seus primeiros continentais, cujo enigmático
desenho colonial, em tom sépia, era ainda mais fora de moda e retrô
do que as antigas cédulas verdes.
Se os preços do cardápio podiam servir de guia, sua
remuneração foi um lixo — mais baixa que o pagamento da Elísios
depois da dedução dos impostos. Mas a sensação de ganhar menos
dinheiro e conservar todo ele foi melhor que a de ter um valor líquido
maior depois de a renda ser saqueada. O fato de o dono do
restaurante não pedir o endereço eletrônico do metal do seu
pescoço foi empolgante. Era sua primeira renda, em seis anos, não
automaticamente informada ao governo federal nem quase toda
transformada em vapor por ele. Meu caro Goog, gostaria que você
estivesse aqui.
Em seguida, ele recolheu montes de esterco seco de vaca, para
vender como adubo a um rancho próximo da rodovia. Passou a
tarde consertando as cercas do rancheiro — justamente a tarefa
cotidiana que havia matado sua mãe. Tomou o cuidado de usar
luvas, mesmo no calor. O trabalho lhe trouxe recordações. O dedo
indicador de Florence, a princípio apenas gordinho como uma
salsicha, com um halo vermelho em volta do corte. Ela procurou ser
cuidadosa, mergulhando a laceração em água morna com sal, o que
depois o médico disse ter sido inútil. Em dois dias, a mão inchou até
virar uma teta não ordenhada, e listras vermelhas riscaram o braço
musculoso. Supostamente, o resultado teria sido o mesmo se eles a
tivessem levado correndo para o hospital, no instante em que o
dedo começou a inchar. “Os remédios que não funcionam”,
anunciou com ar desolado o clínico geral, entregando a bandana
respeitosamente dobrada, como se fosse uma bandeira americana
em miniatura em um funeral militar, “não funcionam melhor quando
ministrados mais cedo”.
Enquanto isso, Nollie fez polichinelos ao lado do carro, o que
proporcionou aos locais uma infindável hilaridade bisbilhoteira.
Willing nunca chamaria a atenção dela para isso, mas sua forma
havia se deteriorado. Suas mãos já não se juntavam acima da
cabeça, subindo apenas até a altura das orelhas, e depois desciam
até o nível da cintura. O resultado era um movimento fraco de
borboleta agonizante. Os saltos também eram pouco eficazes.
Antigamente, ela juntava os calcanhares com uma batida. Agora,
seus pés subiam e desciam no mesmo lugar, aproximadamente na
largura dos ombros. No breve instante em que ficava no ar, ela
pairava a apenas dois centímetros do chão — mal se poderia
chamar aquilo de salto. A deterioração doía em Willing. Aquele
regime lunático sempre tivera um lado cômico, porém essa versão
mais debilitada só poderia divertir os estranhos.
Nem mesmo Enola Mandible seria capaz de fazer ginástica o dia
inteiro, por mais imperfeita que fosse a articulação dos gestos. No
segundo dia, ela mesma saiu à procura de biscates: arrumar
mercadorias enlatadas nas prateleiras do minimercado, passar pano
de chão. Depois disso, com dor nas costas, não precisava dos
polichinelos.
Era uma região pobre, ainda mais empobrecida porque os
turistas de cidades como Boise e Portland já não passavam por ali a
caminho de Las Vegas. Pior que isso, tal como Willing, logo depois
da secessão, toda a população do estado — sem contar o setor sem
chip vastamente maior do que a média nacional — tivera suas
contas zeradas pelos satélites do SACO. Os nevadenses chamavam
essa depenada punitiva de despedida de “o Pequeno Furto”. A
espoliação acumulada não tinha sido insignificante. O nome aludia
menos a um pequeno fruto de roubo do que à mesquinharia.
À medida que os trocados que os moradores locais podiam pagar
a seus visitantes migrantes foram se transformando em um bom
montante, a hostilidade da população diminuiu. Willing trabalhava
bem e com afinco. Mantinha a boca fechada. No final, mais de um
nativo de Ely os tinha convidado para uma refeição. Após cinco dias
vivendo no Myourea, eles juntaram uma quantia suficiente de
continentais para reabastecer o carro.
***
***
© Sarah Lee
Pátria
Fernando Aramburu
Pachinko
Min Jin Lee
Destinos e fúrias
Lauren Groff