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RESENHAS Clame! Chame! Chame o ladrao!" PARANHOS, Adalberto. O Roubo da fala: origens da ideologia do trabalhismo no Brasil. Sao Paulo ~ SP: Boitempo Editorial, 1999. 231 p. (Colecao “Mundo do Trabalho”). Agradavel e polémico é 0 minimo que se pode dizer do livro “O Roubo da Fala ~ origens da ideolo- gia do trabalhismo no Brasil”, escrito por Adalberto Paranhos e editado pela Boitempo em 1999. Tais atributos fizeram-me nao resistir a tentagao ¢ titu- lar esta resenha ao seu estilo, cheio de passagens que ilustram musicalmente o seu relato histérico. Logo em seu inicio, a industrializacao brasileira dos anos 30 é apresentada através da musica de Noel Rosa... Vejamos 0 que nos diz Adalberto, para en- tender, depois, por que chamamos 0 ladrao. O livro trata das origens da ideologia do tra- balhismo no Brasil e, com tal objetivo, abrange os anos de 1937-45, particularmente 1942-43, quan- do Gettilio Vargas exercia o poder de forma ditato- rial, sob 0 Estado Novo. O seu objeto de pesquisa é construido a partir de um variado conjunto de tex- tos de personalidades politicas da época. Num pri- meiro plano de sua andlise, privilegiou as falas e escritos de Azevedo Amaral, Cassiano Ricardo, Francisco Campos, Marcondes Filho e Segadas Vi- ana, seguidos, longinquamente, por Lindolfo Co- lor ¢ 0 préprio Gettilio Vargas. Mais distantemen- te, encontram-se Jodo Daudt ¢’Oliveira, Monte Arrais, Roberto Simonsen e Salgado Filho. Apenas mencionados, encontram-se Almir de Andrade, Agamenon Magalhaes e Waldemar Falco. A partir da andlise destas personalidades, Pa- ranhos agrega suas manifestagdes, formando um conjunto homogéneo, para destacar tanto os argu- mentos centrais como os secundarios. Deste modo, * Na misica ‘Acorda Amor”, composta por Chico Buarque em 1974, sob 0 pseudénimo Julinho da Adelaide, o “personagem central" acordado na madrugada por um pesadelo, que é a polica, clama, aténito, ajuda do ladrdo. In: www.chicobuarque.com.br. Guilherme Cavalheiro - UFRN considera que a ideologia do trabalhismo realiza a seguinte operacao: ela cria e desenvolve o mito de que 0s direitos sociais implementados pelo Estado naqueles anos foram outorgados por Getiilio Var- gas, cobrando dos trabalhadores disciplina e fideli- dade ao governo, forma de sua gratidao ao “gran- de lider”. Ademais, Paranhos mostra ao leitor como outros mitos, “de apoio”, como o “grande lider”, 0 “Estado Autoritério” e 0 “Estado Providéncia’, au- xiliam o regime estadonovista na sua busca de le- gitimidade. Em sua critica a ideologia do trabalhismo, Paranhos defende a tese central de seu livro, e que Ihe inspira o titulo, de que a imagem de gratidao pela outorga, sendo ideologia e nio realidade, rou- ba dos trabalhadores a sua verdadeira fala. Esta nao seria a fala do “muito obrigado”, mas a voz das greves e das lutas que arrancaram seus direi- tos de Vargas. Esta troca historicamente ilicita, Paranhos se propée reparar mobilizando (1) a exis- téncia de contradigées internas aos documentos analisados, (2) 0 seu questionamento tedrico atra- vés da literatura critica aos conceitos de mito e ideologia e (3) 0 seu contraste com os fatos hist6- ricos que negam a passividade dos trabalhadores e as boas intengdes de Vargas. Somente a definicao da ideologia do traba- Ihismo realizada pelo autor, a partir de intimeros trechos de pronunciamentos oriundos de diferen- tes autores, torna “O Roubo da Fala” indispensavel para todos aqueles que se interessam pela luta dos trabalhadores sob a “Era Vargas” e, em especial, sob 0 Estado Novo. No entanto, o livro nos brinda com * p. 167 € 173. a ww Cronos, Natal-RN, v.1, n.2, p. 153-155, jul./dez. 2000 154 outras qualidades. Cuidadoso e preciso no manu- seio de suas inspiracdes tedricas, Paranhos delimi ta, num espaco repleto de fontes aparentemente incompativeis, um eclético ponto de partida para sua anélise. Nele encontramos Bakthin ¢ Barthes, Canetti e Castoriadis, Ginzburg e Gramsci, entre muitos outros, repensados criativamente na dificil tarefa de se definir 0 conceito de ideologia, o que merece a atengio de qualquer pesquisador interes- sado por este conceito. Quanto a histéria do perio- do, deve-se destacar que o autor debate intensamen- te a literatura sobre o tema, dividindo com parciménia os elementos considerados positivos equivocados, sempre incorporando os primeiros rebatendo os segundos, mesmo que, as vezes, este- jam dentro de um mesmo autor. Por fim, ha de se elogiar a fluéncia de seu texto que, se nao é de um escritor profissional, muito dele se aproxima coma elegncia de seu ritmo e fluidez, carac- teristicas cada ver mais raras nos textos de origem aca- démica, Mas a proximidade de sua narrativa como gé- nero literdrio ndo se faz apenas pela forma mas, igualmente, pelo seu contetido. Paranhos, como foi dito no inicio desta resenha, parece ser capaz de musicar qualquer argumento, sempre rememorando letras con- sagradas da mtsica popular brasileira, descrevendo acon- tecimentos de seus mais ilustres compositores e intér- pretes. O uso que faz da miisica, seja da letra, seja de sua hist6ria, na confecgio de cenérios por onde transita ‘sua narrativa também nos serviu de metéfora para indi- carmos o que é passivel de critica em seu livro. Se esti- ‘véssemos ouvindo uma composi¢ao de Paranhos, diria- ‘mos que algum desafino, nao pequeno, machuca-nos 0 ouvido e que este mal-estar ¢ acentuado pelo lugar que ocupamos entre os ouvintes deste hipotético auditério. Em primeiro lugar, vejamos o que nos pare- ceu desafinar e pensar, tal como Julinho da Adelai- de, em chamar 0 ladrdo... Deve-se destacar 0 fato de que Geuiilio Vargas s6 foi abordado, como tema secundario, como o personagem da ideologia que o manipulava enquanto mera alegoria no desenho do grande lider. Estamos cientes, desta forma, que nao cobramos de Paranhos o que ele nao se propos, ou seja, avaliar o papel histérico de Vargas frente As classes dominadas. Todavia, se os idedlogos pesqui- sados so os responsaveis diretos pela deformacao da histéria, pelo “roubo da fala”, Vargas acaba sen- do o principal herdeiro da pesquisa de Paranhos, uma vez. que todas as evidéncias apresentadas pelo autor o indicam nao sé como beneficidrio no poder da ideologia que o legitima mas, fundamentalmen- te, como “mandante do crime”. Uma vez socorridos 0 trabalhadores, e isto Paranhos fez brilhantemen- te, é preciso ser questionado uma das conseqiiénci- as de seu livro, invertendo-se o saldo negativo que se impés a Vargas. E este nosso interesse nao é mo- vido pelo fato de Vargas ser enfocado exclusivamente no papel de ditador, nao sendo vistos os anos em que foi lideranca insurreta e presidente democrati- camente eleito, mas pelo que consideramos insufi- ciente na andlise feita pelo autor. Vejamos a avaliacdo de Paranhos ao se de- ter na ideologia do trabalhismo: nao a cotejou sis- tematicamente em sua contrapartida objetiva, porém nas acdes concretas e positivas de Vargas em seu atendimento as reivindicagées que Ihe fo- ram feitas, Conseqientemente, se a ideologia aba- fou a voz de protesto dos trabalhadores, a andlise do fenémeno ideolégico acabou por tomar os fei- tos de Vargas majoritariamente na forma de seu exagero propagandista, negligenciando a existén- cia real de um incipiente Estado providéncia, fun- damental para a eficdcia dos discursos analisados. ‘Assim, Paranhos acaba por substituir 0 mito do bom chefe, que outorga, por uma avaliagao igual- mente inveridica, onde s6 os trabalhadores seriam autores de sua histéria, criadores das conquistas sociais daquele periodo. O que deveria ser acres- centado, em sua critica a ideologia oficial, é que, havendo concessdes e nao outorga, houve, no mi- nimo, uma co-autoria entre 0 movimento operé- rio-popular e Vargas no estabelecimento daquelas conquistas. Segundo o préprio autor, comentan- do os gastos dispensados aos programas de bem- estar, a partir de 1942, “os mitos, afinal, nao se nutrem s6 de palavras”? Aqui, nao havendo espa- o para um exame mais detido acerca das causas desta insuficiéncia, indicariamos, enquanto nos- sa suspeita, que, talvez, a riqueza de inspiragées 3p. 139. Cronos, Natal-RN, v.1, n.2, p. 153-155, jul./dez. 2000 tedricas, de que se valeu o autor, se Ihe propiciou uma andlise multifacetada das entranhas do dis- curso trabalhista, e Ihe tomou a visdo de parte subs- tancial do contexto objetivo que o alimentava. Em segundo lugar, a metéfora do auditério, que acentua 0 desafinado acima descrito, serviu- nos para refletir um pouco sobre a distincia exis- tente entre a realizacao da pesquisa e seu impacto entre os leitores. Na atualidade, quando vemos a Constituicdio de 1988 ser revisada em todos os sen- tidos, na pratica, pelo Congreso Nacional, e, na teoria, por novos idedlogos deformadores, encon- trando-se em ambos a convergéncia critica de que, em seus artigos relativos as garantias sociais, hou- ve um retrocesso politico e econémico, ressurrei- cao da “Era Vargas”, perspectiva associada aos tra- balhadores, que seria obrigada, em alguma medida, a colocar-se favoravelmente em relagao aquela qua- dra historica. Ao leitor, identificado politicamente com as classes dominadas no Brasil, e que sofre, por este motivo, a pressao neoliberal por todos os lados, torna-se desarménico com o presente o dire- cionamento do trabalho de Paranhos. Neste senti- do, é elucidativa a revelacao do autor. “Ao me sentir atraido pela pesquisa em tor- no dos mitos forjados pela ideologia do trabathis- mo, fui movido por propésitos politicos que me diziam que nés, trabalhadores, precisamos apren- der a nos defendermos de nossos ‘defensores’ ”.° ‘Afinal, perguntam-se os leitores, 1é no fundo do auditério, estariamos em tempo de nos defender de nos- os “defensores”, mesmo que comprovadamente sua aco apenas atendeu as nossas reivindicagées? Talvez as motivacées de Paranhos possam ser compreendidas se ele, como intérprete, for in- serido historicamente. Parece-nos que, para o bem € para o mal, 0 autor traz de volta as tematicas amplamente desenvolvidas pelos cientistas sociais € historiadores em fins dos anos 70, que pleitea- vam, em seu af critico do populismo, indicar no- vos caminhos para os movimentos sociais que sur- giam a partir da crise da ditadura e que, de alguma forma, desaguariam no Partido dos Trabalhado- »p. 207. 155 res. Descobrindo e defendendo a “autonomia” dos movimentos operario e popular, a extensa litera- tura que se forjou nestes anos intitulava a tudo e a todos com o prefixo “novo”, sempre os compa- rando ao passado populista e “pecebista”, respon- saveis, em diferentes medidas, pelo malogro de 1964. Eram tempos de empolgacdo e otimismo, de alta dos movimentos de massa, de esperancas com © socialismo. Nossa sensagao é que somente a con- juntura de fins dos anos 70, quando nao tinha- ‘mos limite para nossos sonhos e sequer imagind- vamos como seriam terriveis os anos do Consenso de Washington, pode explicar a equivocada con- clusdo de que a ideologia do trabalhismo foi, ex- clusivamente, falsificagao da histéria, pois somente aquele otimismo faria esquecer como haviamos sido “felizes”, ao lado de quem soube conceder, na busca de um consenso nacional-desenvolvimen- tista, ao lado, quem diria, daquele saudoso ladrao, A critica de Paranhos nos remonta aqueles bons tempos, tempos de se criticar 0 mito do “Es- tado providéncia”, enquanto outorga de Vargas, ¢ de se desejar um Estado socialista. Mas entre o tem- po da interpretacao e 0 tempo de nossa leitura, muita coisa aconteceu ¢ a critica ao roubo da fala, mantém o seu vigor na defesa da vitima, e acen- tua o seu mal-estar ao lembré-la que o ladrao da- queles tempos é preferivel a “policia” neoliberal de hoje. Cronos, Natal-RN, v.1, n.2, p. 153-155, jul./dez. 2000

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