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Carlos Alberto Faraco ORMACULTA BR desatando alguns nés AFMANDO CONCBIOS 45 tanto, assim como nfo ha norma “pura”, nfo ha também nenhuma norma estatica. Estes diversos fatores — contatos entre normas, hibridizagdes e mudancas — acrescentam ingredientes fundamentais a qual- quer discussio sobre questées de lingua: nunca é possivel deixar de considerar que toda realidade lingiiistica é organizada, hete- rogénea, hibrida e mutante™. Tendo este panorama geral sobre as normas lingiiisticas no horizonte, podemos nos encaminhar para a discussaéo da chamada norma culta, Norma CuLTA Antes de mais nada, é preciso dizer que nao é simples conceituar e identificar, no Brasil, a norma a que se da o qualificativo de culta. Para facilitar, pode ser util tomar eomo ponto de partida uma bre- ve fotografia de pelo menos parte do amplo espectro das varieda des que constituem a lingua portuguesa no nosso pais. [BN Os trés continua e a linguagem urbana comum Embora nao exista ainda um levantamento exaustivo (ou su ficientemente abrangente) da diversidade constitutiva do portu- gués brasileiro, dispomos j4 de ricos acervos de dados dialetolé- gicos é sociolingilisticos, além de um significativo registro da nossa lingua escrita do ultimo meio século. Ha, desses dados, consolidagées parciais, mas ainda nos falta uma consolidagio geral que apresente uma descricaio mais siste- matica da cara lingiiistiea do pais eomo um todo. ** Niio é demais lembrar aqui que eatea fatos caracteristicos de toda realidade lingiistica conflitam com as representagSes que o senso comum tem da lingua como uma-realidade homogénea, pura ¢ estatica. Essas representagdes impedem, muitas vezes, um debate proficuo sobre questées lingilisticas. 46 NORMA CULTA BRASILEIRA: DESATANDO AUGUNS NOS ® Carlos Aiberto faraco Apesar dessa auséncia, esta bastante claro que nenhum corte dicotémico da realidade lingiiistica brasileira — como portugués culto/ portugués popular, portugués formal/portugués informal ou identi- ficacgées simplistas como portugués formal/lingua escrita e portu- gués informal/lingua falada — é suficiente para representa-la. O modelo que, no momento, parece fornecer o melhor instru- mental para registro da diversidade ja estudada é o proposte por Stella Maris Bortoni-Ricardo (2005), que busca distribuir as varie- dades em trés continua que se entrecruzam: o continuum rural- urbano, o de oralidade-letramento e o da monitoragao estilistica. Considerando as caracteristicas da urbanizacaio do pais (que, em menos de cingiienta anos, inverteu a distribuicio da populagiio entre o campo e cidade, tornando o Brasil um dos paises mais urbanizados do mundo, com aproximadamente 80% de sua popula- ¢ao vivendo hoje nas cidades); e o aleance de seus meios de comuni- cago social (o rédio esta em praticamente todos os lares brasilei- ros e a televisio, com produgao e transmissdo fortemente centrali- zadas, chega a mais de 90% deles), podemos dizer que as varieda- des que exercem, hoje, a maior forca de atracao sobre as demais sao as faladas pelas populagdes tradicionalmente urbanas, situadas na escala de renda de média para alta e que, por isso, tem garantido para si, historicamente, bons niveis de escolaridade (pelo menos a educacdo média completa) e 0 acesso aos bens da cultura escrita. Adotando o modelo dos trés continua, podemos caracterizar estas variedades como aquelas que se distribuem no entrecruzamen- to do pélo urbano (no eixo rural-urbano) com 0 pélo do letramento (no eixo oralidade-letramento). No eixo da monitoragao estilistica, essas variedades conhecem, como todas as demais, diferentes esti- los, desde os menos até os mais monitorados. A maior forca de atracao dessas variedades (intimamente re- lacionadas com a vida ¢ a cultura tradicionalmente urbana) e a observagéo de seus efeitos levaram Dino Preti, um dos principais estudiosos da variacao lingiiistica do Brasil, a designa-las pela expressao linguagem urbana comum (ver Preti, 1997). AFNANDO: CONCETOS ay Essas variedades sio dominantes nos nossos meios de comu- nicacdo social’’. Seus diferentes estilos (ive., suas diferentes ma- nifestagdes no continuum da monitoragao estilistica) esto ai muito bem representados, desde os estilos menos monitorados (nas novelas, programas humoristicos e sitcoms, por exemplo), até os mais monitorados (em noticidrios e programas de entrevis- tas como o emblematico Roda Viva da TV Cultura de So Paulo). Essa dominaneia lhes da ampla audibilidade e ressonancia. Nenhum outro conjunto de variedades do pais tem a mesma audibilidade e ressonancia’*. Nao é de estranhar, portanto, que sejam justamente elas a exercer um poder centripeto permanen- te e irresistivel. Trazem para mais perto de si as variedades rurais e rurbanas faladas pelas populagdes que, por forca do intenso éxodo rural das ultimas décadas, se tornaram urbanas sé mais recentemente™. O conjunto destas variedades constitui o que alguns estudiosos costu- mam chamar de portugués popular brasileiro em contraste com um portugués dito culto (cf, Mattos e Silva, 2004a: e Lucchesi, 1994). Ao mesmo tempo, é a linguagem urbana comum que caracte- riza boa parte das manifestagdes orais mais monitoradas dos fa- “’ Pelus caracteristicas socineconimicas # sociolingiisticas da maioris dos professores da educagiio basica, podemos afirmar que estas variedades, na intersecgao com um grau (digamos assim) médio de letramento e pelo menos em seus estilos medianamente monitorados, sao dominantes também no contexto escolar. Uma discussio ampla dessa questio pode ser lida em Mattos e Silva, 2004b. ™ Como frute das politicas homogeneizantes do Estado Novo getulista (1937-1945), nos- sos meios de comunicagiio social — o rédio, primeiro, e, depois, a televisio — tenderam sempre a uma pasteurizagiio da variedade lingiiistica, harrando a presenga, no seu espa- go, da maior parte das variedades do portugués faladono Brasil. 86 mais recentemente é que se comecau a fazer mengio 4 necessidade de dar espacoe audibilidade aos diferentes {assim chamados) sotaques brasileiros. Note-se, porém, que por “sotaques” normalmente se entende, neste tipo de discurso, no toda e qualquer variedade, mas apenas as diferen- tes pronincias regionais das variedades urbanas tradicionais, ou soja, da linguagem urbana comum. " Os efeitos centripetos das variedades tradicionalmente urbanas estao ainda por ser analisados em detalhes, Na entanto, eles sfo jd bastante perceptiveis nos estudos de Bortoni-Ricardo (ver, por exemplo, Bortoni-Ricardo, 2005). 48 NORMA CULTA BRASILEIRA: DESATANDO ALGUNS NOS a Cortes Alberto Foraco lantes que poderiam ser classificados de “cultos”. Em outros ter- mos, a norma culta brasileira falada pouco se distingue dos esti- los mais monitorados dessa Jinguagem urbana comum, segundo fica demonstrado pela andlise dos dados coletados pelo projeto NURC (Norma Lingiiistica Urbana Culta) — (cf. Pretti, 1997). Essa constatagfio empirica causou surpresa em alguns estudio- sos dos dados do NURC. Imaginavam eles que os falantes cultos, nas situagGes de fala mais monitoradas, tinham uma variedade bem distinta da linguagem urbana comum, ou seja, acreditavam eles que, na norma culta falada, os falantes seguiam estritamente, por exem- plo, os preceitos da tradicgéo gramatical normativa, A realidade, porém, desconcertou o imagindrio: a norma cul- ta brasileira falada se identifica, na maioria das vezes, com a lin- guagem urbana comum, ou seja, com a fala dos falantes que estao fora do grupo dos chamados (tecnicamente) de cultos (cf. Preti, 1997: 18)" e nfo propriamente com as prescricdes da tradicao gra- matical mais conservadora™. Vale lembrar, neste ponto, que o projeto NURC restringiu seu corpo de informantes a falantes que tinham escolaridade supe- rior completa. $6 estes eram considerados pertencentes ao grupo dos “cultos”, ou seja, dos usuarios da “boa linguagem”. Encontramos aqui um primeiro critério para identificar o fe- nomeno lingiiistico a que se dé o nome de norma culta‘ ela seria a “ Preti (1997! 26) conclui seu texto com a seguinte observagio: “Em sintese, 0 que 0 corpus do Projeto NURCISP tem-nos mostrado (e isso jd na década de [19]70) 4 que os falantes cultos, por influéncia das transformagées sociais contempordneas a que aludi- mos antes (fundamentalmente, o processo de democratizagao da cultura urbana), 0 uso lingiiistico comum (principalmente, a agdo da norma empregada pela midia), além de problemas tipicamente interacionais, utilizam praticamente o mesmo discurso dos falan- tes urbanos comuns, de estolaridade média, até em gravagies conscientes e, portanto, de menor espontaneidade”. 41 Isso nda significa que os falantes ditas cultos nao usem estruturas preconizadas pela tradicdo gramatical conservadora em sua fala monitorada. Algumas destas ocorrem na norma culta falada, mas, pelo que os dados indicam, sempre varinvelmente com suas correspondentes nfio“autorizadas” (e até mesmo “condenadas’) pela tradigao gramatical mais conseryadora, que, no entanto, silo normais na linguagem urbana comum (ef, a discussiio em Leite, 1997). AFINANDO CONCETTOS ag variedade de uso corrente entre falantes urbanos com escolarida- de superior completa, em situagdes monitoradas. Ou seja, a nor- ma culta seria, pelos critérios do NURC, a variedade que estA na interseccio dos trés continua em seus pontos mais proximos do urbano, do letramento e dos estilos mais monitorados. Nesse sentido, ela seria, no Brasil, a manifestagao lingiiistica de uma parcela infima da sociedade, considerando que aqui, no inicio do século XXI, menos de 10% da populagao adulta tem es- colaridade superior. Desse modo, a norma culta nfo estaria, en- tre nés, desvencilhada de um certo matiz aristocrdtico: seria pro- priedade exclusiva da elite altamente letrada. No entanto, a forga centripeta da linguagem urbana comum quebra, em parte, esse vinculo! de um lado, porque é ela que bali- za, de fato, o falar culto brasileiro (a norma culta falada pouco se distingue dela); e, de outro, porque é hegemdnica nos meios de eomunicacéo social®*. Em suma, é esta linguagem urbana comum que baliza de fato o falar culto (o que se poderia chamar tecnicamente de norma cul- ta falada) e, ao mesmo tempo, tem poderoso efeito homogeneizante sobre as variedades do chamado portugués popular brasileiro”. As principais caracteristicas sintaticas da linguagem urbana comum do Brasil podem ser facilmente catalogadas: desde o sé- culo XTX elas estao listadas pelos comentadores gramaticais mais conservadores como “erros comuns” da fala brasileira. Isto é, as propriedades correntes (habituais, normais) na nossa linguagem ® Diante disso, fiea a questfo: tem sentido ainda insistirmos numa norma culta falada como distinta da linguagem urbana comum em seus estilos mais monitorados? ” Apesar desse poder centripeto que a linguagem urbana comum exerce sobre as varie~ dades do portugués popular, no podemos deixar de notar que talvez esteja se consolidan- do, entre as geragdes mais novas da populagho urbana da chamada periferia das grandes cidades, uma certa resisténcin a esse poder centripeto. O rap (que tem ocupado espaco nos meios de comunicacio social) ¢ as manifestagdes literdrias como a de Ferréz, entre outros, podem estar sinalizando uma ereacente direedo anti-homogencizante, Sé o estu- do empirico sistemiatico ¢ 0 futuro poderao esclarecer e confirmar (ou nfo) essa nossa impressiio. 50 NORMA CULTA BRASILEIRA; DESATANDG ALGUNS NOS « Carlos Alberto Fanaco: urbana comum tém sido tradicionalmente classificadas nfio como peculiaridades do portugués urbano brasileiro, mas como “erros’. Interessante notar, nesse sentido, que os comentadores do sé- culo XIX e inicio do XX, em geral, nao distinguiam propriedades do portugués brasileiro que poderiamos chamar de popular das proprie- dades do portugués que estamos chamando de linguagem urbana comum das populagdes tradicionalmente urbanas e escolarizadas. Em outras palavras (e aproveitando a formulagao de Bortoni- Ricardo, 2005), esses comentadores nao distinguiam os tragos gra- duais (comuns, em graus variaveis, a todas as variedades brasi- leiras — 0 uso de ‘ele’ como objeto direto, por exemplo) dos tragos descontinuos (caracteristicos das variedades ditas populares — as prontncias barde por balde ou teia por telha, por exemplo). Como veremos adiante ¢, em mais detalhes, no capitulo 2, a nossa elite letrada conservadora, em seu afa de parecer européia e “civilizada”, recusou legitimidade tanto 4s variedades do portu- gués brasileiro popular, quanto aquelas do portugués brasileiro dito culto: tudo o que se afastasse da norma-padrao artificialmen- te construida era tachado de “erro”, mesmo que normal (i.e., co- mum) na fala mais monitorada dos falantes cultos. Ainda hoje, essa indistingao continua muito presente nas rea- codes ds criticas dos lingiiistas 4 norma-padrao artificialmente construida no século XIX, Nessas reagées, o eixo basico da argu- mentacao continua sendo: ou a norma-padrio (artificial) ou o caos. Embora alguns desses pretensos “erros” estejam ja abonados pelos autores da norma gramatical contemporanea (em razdo de terem sido usados na escrita por autores consagrados), 0 imagi- nario que transformou nossas peculiaridades lingiiisticas em “er- ros” é ainda forte nas discussées sobre lingua no Brasil, como ve- remos ¢m mais detalhes a frente. Nao podemos deixar de dar destaque, neste ponto, ao fato de que os chamados “erros” comuns permanecem inalterados na fala AFINANDO CONCETOS: 51 culta brasileira apesar da repetida e insistente condenagado de mais de um século dos comentadores ¢ manuais mais conservadores. Ha aqui, sem sombra de duyida, um sério (e secular) equivoco de andlise da realidade lingiiistica do nosso pais: o que se chama de “erros” comuns — por serem justamente “erros” de todos — constituem, na verdade, caracteristicas definidoras do portugués brasileiro urbano comum. Por isso mesmo, nao ha sobre eles qual- quer efeito, seja da recorrente condenagado conservadora, seja da insistente aco “higienizadora” da escola. Milroy & Milroy (1999) desenvolvem, a propdésito do inglés britanico, rica discussao so- bre as atitudes condenatérias em lingua e seu pouco ou nenhum efeito sobre o comportamento dos falantes. Essas consideracdes nfo encerram o tema da norma culta. Ou- tros aspectos precisam ser ainda apreciados — o que fazemos a seguir. () Algumos distingées pertinentes Estamos usando no singular as expressées norma culta e lin- guagem urbana comum. £ importante nao perder de vista, porém, que essas manifestagdes lingilisticas, embora tenham certa unidade, nfo so uniformes: como qualquer realidade lingijistica, elas com- portam variabilidade, Como bem demonstrou Celso Cunha (1985: 36), “unidade lingitistica no implica uniformidade normativa”. Essa variabilidade pode ser observada no modo como a nor- ma culta e a linguagem urbana comum sao realizadas em diferen- tes regides do pais ou, mesmo, entre diferentes geragdes de falan- tes. Assim, sao comuns e cultas as pronuncias ‘pasta’ ou ‘pashta’ (para a palavra pasta), ‘dia’ ou ‘djia’ (para a palavra dia), ‘awto’ ou ‘alto’ (para a palavra alto). Igualmente o sao (cf. Luft, 2006: 79 e 534) as regéncias assis- tir 0 jogo e assistir ao jogo (assistir no sentido de ver), visar o cargo e visar ao cargo (visar no sentido de almejar); e as coloca- gdes (cf. Cunha e Lindley Cintra, 2001: 314-317) Ele néo nos vai 52 NORMA CULTA BRASILEIRA: DESATANDO ALGUNS NOS # Caries Alberto Farace dar um presente caro / Ele naéo vai nos dar um presente caro / Ele nao vai dar-nos um presente caro. Por outro lado, é também indispensavel distinguir a norma culta falada da norma culta escrita. Isso porque ha fenomenos que ocorrem na fala culta (pela sua grande proximidade com a lingua- gem urbana comum), mas no ocorrem na escrita culta ou chegam mesmo a ser criticados quando nela:aparecem. Em alguns casos, somos ainda uma sociedade que, em situagdes altamente monitora- das, usa uma variedade na fala ¢ outra na escrita. Um exemplo simples dessa diferenga sio os pronomes pes- soais obliquos de terceira pessoa (0, a, os, as). Eles praticamen- te desapareceram da norma culta falada no Brasil. No entanto, ainda so bastante comuns na escrita culta (Nés ja o analisa- mos em outras ocasides — em que o pronome o pode ter como antecedente, por exemplo, a expressio nominal plena este fe- némeno socioeconémico). Embora na fala culta a sintaxe preferida nesse caso seja a do objeto nulo (a posigdo do objeto direto fiea vazia — Nés ja analisa- mos em outras ocasides) ou a mera repeticao do sintagma pleno (Nés ja analisamos este fendmeno socioeconémico em outras oca- sides), encontramos também os pronomes retos de terceira pes- soa (Nés jé analisamos ele em outras ocasides). Ha, porém, por mera ranhetice de certa tradigfio gramatical™, uma interdicfio sobre este uso do pronome reto na norma culta eserita, embora tal uso ocorresse j4 no periodo arcaico da lingua (ef. Silveira Bueno, 1955: 210-211) e, modernamente, alguns escri- * Nao posso deixar de comentar, neste ponto, um fate que muito diz das dificuldades que ha no nosso pais para lidar com a realidade da lingua portuguesa urbana comumd/culta que aqui se fala @ se escreve. A ranhetice a que me refiro ¢ tao nefasta que resultou num ato de censura de um texto que escrevi para a revista Discutindo lingua portuguesa (Sio Paulo: Editora Escala Educacional), Era um texto sobre mudanga linguistica. Citei o caso do elena posig&io de objeto direto e afirmei que a restrigdo sobre seu uso normal na eserita decorria de mera ranhetice de certa tradi¢aio gramatical. O texto foi publicado, mas (conforme constatei, estupefito, ao ler a revista) esta afirmagdo foi consurada pelos editores/revisores! APRIANDO CONCERTOS 53 tores consagrados, como Clarice Lispector e Luis Fernando Verissi- mo, tenham lhe dado acolhida em seus textos”. Outro exemplo curioso é a contracao da preposigao com 0 pro- nome sujeito ou com o determinante (artigo ou demonstrative) de um sintagma nominal sujeito de uma oragdo subordinada reduzi- da de infinitivo. Na norma culta falada, essa contracio é a cons- trucio normal. Assim, dizemos: O fato deles aceitarem propina nfo espantou ninguém, O motivo do juiz transferir o julgamento foi um pedido do promotor, Apesar da chuva espantar alguns turistas, a festa foi um sucesso. Muitos, porém, consideram inadequada sua ocorréncia na escrita culta. Ha até aqueles que chegam a afirmar que a contra~ cdo nao segue a “norma da lingua” — seja 14 o que querem dizer com essa expressao™. Nao ha, porém, para esse juizo prescritivo nenhum fundamen- to plausivel, como bem argumenta Evanildo Bechara em sua. Mo- derna gramatica portuguesa (p. 567-8). Apesar da cristalina argumentagao de Bechara, sustentada em exemplos de cldssicos da lingua, o texto do Acordo Ortografi- co assinado em 1990 pelos paises que tém como oficial a lingua portuguesa determina (em sua Base XVIII, item 2°, letra b) que nao se faca a contragdo na escrita. Quando tal Acordo comegar a vigorar, teremos, seguindo a argumentacdo de Bechara, empobre- cido os recursos estilisticos da lingua por mera picuinha. No entanto, 6 em tais picuinhas, como veremos adiante ao discutir o que chamamos norma curta, que se sustenta uma certa * Sobre isso ha uma interessante discussio, com farta exemplificacéo, em Bagno 2001, cap: 4, ¢ em Bagno 2003, cap. 3. Nio esquecamos da brilhante ansilise que Mattoso Camara Jiinior fez desse fondmeno em seu estudo “Ele como um acusativo no portugués do Brasil”, publicado originalmenteem 1957. * Esta obscura expressdo consta do Manual de redagao e estilo de O Estado de 8, Paulo {p. 88) 54 NORMA CULTA BRASILEIRA: DESATANOO ALGUNS.NOS s Corr Alberta Faraco disputa pelo poder simbélico de ditar o que constitui a lingua le- gitima no Brasil*’. Um exemplo um pouco mais complexo das diferencgas entre a norma culta falada e a escrita sio as chamadas oracées relativas cortadoras. Na fala culta brasileira, é comum (6 normal) 0 nao-uso da preposigAo antecedendo o pronome relativo, Dizemos, por exemplo, Este é o livro que mais gostei e mais raramente Este éo livro de que mais gostei. Para confirmar isso, basta analisar as falas em debates televisivos como os do programa Roda Viva (TV Cultura de Sao Paulo), em que, de regra, entrevistado e entrevista’ dores sao falantes brasileiros classificiveis no grupo dos chama- dos cultos. Tal sintaxe, porém, apesar de ser j4 encontrada com certa freqiiéncia em textos da grande imprensa (ef, Bagno 2001, cap. 3), é ainda considerada inadequada na escrita culta. Obviamente, esses dois fatos — a norma culta ser varidvel e haver diferencas entre a fala culta ¢ a escrita culta — so, de novo, determinantes de flutuacdes, desbordamentos e mudancas. De um lado, as fronteiras nunca sao bem precisas e, de outro, inovagdes na fala culta (sempre menos conservadora que a escrita) alean- gam inexoravelmente a escrita culta — mesmo que continuamen- te condenadas por certos comentadores gramaticais™. Um exemplo interessante dessas transposigdes da fala culta para a eserita sdo os verbos originalmente pronominais — como iniciar (A feira se inicia hoje), estragar (O leite se estragou), der- ramar (O vinho se derramou), quebrar (O vaso se quebrow), esgo- tar (A nova edi¢io ja se esgotou), deitar (Eles se deitam cedo) ete. * Sobre o eonceito de lingua legitima, ver Bourdieu (1996). ® Nessa sentido, a nossa linguagem urbana comum — da qual, como vimos, 8 norma culta falada poueo se distingue — exerce sua forga centripeta também sobre a norma eulta brasileira escrita, Eas descrigées do acervo de lingua escrita do Laboratorio de Estudos Lexicogrificos da UNESP de Araraquara deixam isso muito claro (ef. Borba, 1990 ¢ 2002; Neves, 2000 © 2003), APMANDO CONCBTOS 55 Na fala culta moderna, esses verbos ocorrem mais freqiiente- mente como nao-pronominais. Dizemos, entao, A feira inicia hoje / O leite estragou / O vinho derramou / O vaso quebrou / A nova edigao do livro ja esgotou / Eles deitam cedo etc. E esse uso é hoje ja bastante comum também na escrita culta, de tal modo que sao poucos os falantes que notam essa diferenga. Ha, porém, aqueles que ainda condenam tal mudan- ga (cf, por exemplo, 0 Manual de redacao e estilo de O Estado de S. Paulo, p. 148). No entanto, ela é tao difundida que ja esta devidamente registrada nos grandes diciondrios brasileiros con- tempordneos da lingua. Segundo eles (cf. os verbetes nos dicio- ndrios Houaiss e Aurélio correspondentes aos verbos mencio- nados acima), a norma culta brasileira usa estes verbos quer como pronominais (sintaxe classica), quer como nfio-pronomi- nais (sintaxe moderna). Diante desse registro, fica injustificada a condenagao que al- guns fazem desse fato (como o Manual citado). A menos, claro, que admitamos que og nossos melhores diciondrios nio devem ser le- vados a sério, Mas, nesse caso, se nossos melhores diciondrios nao servem de referéncia, fica a pergunta: quem serve? Ou, em outros termos, quais podem ser, entéo, nossas referéncias? a O adjetivo ‘culta' em questao Ainda um detalhe importante que nfo podemos perder de vis- ta é que a qualificagaéo culta dada a determinada norma foi apenas parte de um processo mais geral. No desdobramento dos estudos lingiiisticos, foi preciso qualificar o termo norma, agregando a ele diferentes adjetivos tais como regional, popular, rural, informal, Juvenil, culta etc. Essa qualificagao do termo decorreu da necessi- dade de se distinguir com mais precisio os diversos modos sociais de falar e escrever a lingua, buscando dar adequado acolhimento a heterogeneidade lingiiistica e a correlagio das normas com seus diferentes condicionantes sociais. 56 NORMA CULTA BRASILEIRA? DESATANDO ALGUNS NOS « Cortes Aiberto Foraco Esse reconhecimento da diversidade contribuiu também para refinar a percep¢io a que jd nos referimos antes, ou seja, a per- cepeio de que, do ponto de vista exclusivamente lingiiistico, os diferentes modos sociais de falar e escrever a lingua se equiva- lem: cada grupo de falantes realiza a lingua por normas diferen- tes, mas nenhum deixa de ter suas normas. Qutra percepeaio importante desse processo de qualificagado das normas foi a de que existe uma hierarquizagao social delas. Isto 6, embora nao haja critérios lingiifsticos capazes de susten- tar uma diferenciagao qualitativa das normas, esta diferenciagio ocorre e é feita por determinados segmentos da sociedade toman- do por base valores socioculturais e politicos”. Ha, na designacéo norma culta, um emaranhado de pressupos- tos e atitudes nem sempre claramente discerniveis. O qualificativo “culta”, por exemplo, tomado em sentido absoluto, pode sugerir que esta norma se opde a normas “incultas”, que seriam faladas por gru- pos desprovidos de cultura. Tal perspectiva esta, muitas vezes, pre- sente no universo conceitual e axiolégico dos falantes da norma cul- ta, como fiea evidenciado pelos julgamentos que costumam fazer dos falantes de outras normas, dizendo que estes “nfo sabem falar”, “fa- lam mal", “falam errado”, “sio incultos”, “sfo ignorantes” etc. Contudo, nao ha grupo humano sem cultura, como bem demons- tram os estudos antropolégicos. Por isso, é preciso trabalhar criti- camente o sentido do qualificatiyo culta, apontando seu efetivo li- mite! ele diz respeito especificamente a uma certa dimenséo da cultura, isto é, 4 cultura escrita. Assim, a expressao norma culta deve ser entendida como designando a norma lingiiistica pratica~ da, em determinadas situagdes (aquelas que envolvem certo grau maior de monitoramento), por aqueles grupos sociais que tém esta~ do mais diretamente relacionados com a cultura escrita, Por outro lado, é interessante lembrar que essa designacao foi criada pelos proprios falantes dessa norma, o que deixa trans- ® Uma densa discussdo da complexa questo da hierarquizagio das normas, tendo o contexte francés coma pano de fundo, pode ser lida em Bourdieu (1996) AFMANDO CONCETOS 57 parecer aspectos da escala axiolégica com que interpretam 6 mun- do, Seu posicionamento privilegiado na estrutura econémica e social os leva a se representar como “mais cultos” (talvez porque, historicamente, tenham se apropriado da cultura escrita como bem exclusivo, transformando-a em efetivo instrumento de poder) e, por conseqiiéncia, a considerar a sua norma lingitistica — mesmo difusa em sua variabilidade de prontincia, vocabulario e sintaxe e, na fala, pouco distinta, no caso do Brasil, da linguagem urbana comum — como a melhor em confronto com as muitas outras nor- mas do espago social. Isso, como sabemos, 6 fonte de varios pré- Juizos e preconceitos lingiiisticos que afetam o conjunto da socie- dade, mas, em especial, os falantes de normas que siio particular- mente estigmatizadas pelos falantes da norma culta. E em razdo de todos esses fatores que podemos afirmar ser a questao da norma culta certamente das mais complexas no campo das investigagdes lingilisticas, particularmente quando com ela se mescla a questao da norma-padrao. Foi talvez este fato que levou Haugen (1966/2001: 102) a dizer que, “na tentativa de eselarecer essas relagées, a ciéncia lingtifs- tica tem tido um sucesso apenas modesto’. De fato, quando nos embrenhamos em seu estudo, fica logo evidente que nao se trata apenas de recortar um conjunto deter- minado de expressGes da lingua, como se o fenémeno sociocultural da norma culta se resumisse a um problema exclusivamente de vocabulario e estruturas gramaticais, O que encontramos nesta area é um complexo entrecruza- mento de elementos léxico-gramaticais ¢ outros tantos de natu- reza axiolégica que, em seu conjunto, definem o fenémeno que designamos tecnicamente de norma culta, E. é esse conjunto que tem de ser considerado se queremos desenvolver um entendimento cientifico abrangente da complexidade desse fendmeno — enten- dimento este que tera de ser, portanto, multidisciplinar e nao apenas lingitistico. 58 NORMA GULTA BRASILEIRA: DESATANDO ALGUNS NOS « (Caries siborto Farce. BE preciso lembrar, por exemplo, que a norma culta esta vin- culada estreitamente ao espectro de praticas socioculturais que constituem o que se pode chamar de cultura letrada em sentido amplo, isto 6, as praticas culturais que envolvem nado apenas ati- vidades de leitura e escrita como tais, mas toda e qualquer ativi- dade (mesmo que, em si, se dé apenas oralmente) que tem o pro- cesso historico do escrever como pano de fundo. Em outras palavras, a cultura letrada 6, como tém procurado demonstrar os estudos sobre letramento (ef., entre outros, Soares 1998), maior do que apenas ler e escrever. Do mesmo modo, a nor- ma culta é mais que apenas um rol de elementos léxico-gramati- cais. Ela combina praticas culturais, valores sociais e elementos propriamente lingiiisticos. O dominio da cultura letrada esta ensopado de uma densa teia de valores que produz e mobiliza uma vasta gama de modos de ser, de agir, de pensar e, evidentemente, de dizer — seja no sentido de géneros discursivos (cf. Bakhtin, 1952/1992); seja no sentido do prestigio que se da a certas formas léxico-gramaticais. Essa densa teia de valores participa do processo de constituigao e funcionamento do universo do imagindrio social que recobre os fenémenos lingiiisticos. Por outro lado, 0 dominio da cultura letrada e seus valores estao articulados a tedo um arcabouco institucional (ele mesmo, alias, em boa medida, fruto da cultura letrada) correlacionado com 0 processo de discriminacgao dos elementos propriamente lexicais e gramaticais identificados como cultos: interesses do Estado e seus aparelhos (como a escola, por exemplo), instrumentos de codificagao (formuldrios ortograficos, gramaticas, dicionarios) e agéncias de comunicacao social. Dadas essas consideragoes, pode parecer que o problema esta suficientemente esclarecido. No entanto, as questées nessa drea da norma culta sio mais complieadas do que parecem. HA muitos nos que precisam ser desatados para podermos avancar na com- preensao desse fendmeno. APNANDO CONCETOS 59 (0) Afinal, quem é um falante “culto"? O primeiro deles — e nao certamente o menor — é saber quem sao os letrados na sociedade brasileira, ou seja, qual ou quais gru- pos sociais servem de referéncia para delimitarmos objetivamen- te os fenémenos que constituem a norma culta brasileira. Como vimos anteriormente, o projeto NURC restringiu a clas- sificagdio de “eultos” (de mais letrados) aos falantes com educacao superior completa. No entanto, numa sociedade que distribua de maneira mais equanime os bens educacionais e culturais, 6 mais adequado con- siderar letrados todos os que concluem pelo menos o ensino mé- dio. Este 6 um critério que se constituiu historicamente nas socie- dades industriais modernas nos ultimos duzentos anos”, Dois fatores principais participaram da construcdo desse critério: a) as exigéncias trazidas pela economia que se desenyolveu a partir da Revolugao Industrial: b) as pressdes ideolégicas do conceito de cidadania que se criou no século XVIII, em especial com o pensamento iluminista e com as mudangas sociais, politicas e cultu- rais trazidas pela Revolucdo Francesa. Quanto ao fator econémico, é importante lembrar que a econo- mia industrial — diferentemente da economia agraria tradicional — comegou a exigir um nivel basico de qualificagaio das pessoas en- volvidas no processo industrial. E esse nivel foi se alterando 4 medi- da que os processos de produgdo foram se tornando mais. complexos. Se no inicio bastava ser alfabetizado, logo a industria come- gou a exigir um minimo de quatro anos de escolaridade. Assim é ™ Neste ponto, vale trazer a baila dados estatisticos apontados pelo IBGE (ef. 0 site www.ibge.gov.br, consultado em 20/09/2007). Enquanto nos paises da OCDE (Organiza- sho para a Cooperagio e Desenvalyimento Eeondmico) mais de 60% da populagaa entre 25 @ G4 anos tom pelo menos 0 ensina médio completo, no Brasil apenas 28% deste segmento da populagio o tem: 60 NORMA CULTA BRASREIRA: DESATANDO ALGUNS NOS = Coos Abert Farace que — nos fins do século XTX — vemos a Franga, a Inglaterra e alguns outros paises europeus universalizando a educagao pri- maria de quatro anos. Cingtienta anos depois, terminada a Segunda Guerra Mun- dial, a demanda nesses paises era ja por onze anos de escolarida- de e vamos ver a educagéo média se universalizando na Europa, nos Estados Unidos e no Japao ja no inicio da década de 1950, Hoje, passados outros cinqiienta anos, discute-se nesses mesmos paises a universalizagao de uma educacao superior basica de qua- tro anos para todos os jovens entre 18 e 22 anos. O segundo fator que mencionamos, ou seja, as pressdes ideo- légicas do conceito moderno de cidadania, tem a ver com o fato de que os membros de uma sociedade deixaram de ser entendidos como stiditos de um rei e passaram a ser entendidos como cida- dios com igualdade politica e juridica, Nesse novo contexto ideolégico, acredita-se que, para esta cidadania se estabelecer efetivamente, é preciso cumprir varias exigéncias, entre as quais a garantia de educacio bésica comum a todos os cidados. E consenso hoje que a educacgdo basica comum inclui pelo menos o ensino médio e, portanto, deve cobrir um pe- riodo minimo de 11 a 12 anos de escolaridade. Dai dizermos que, em tese, 6 mais adequado considerar letrado todo aquele que com- pletou o ensino médio, que teve acesso 4 educagao basica comum a todos os cidadios — uma educacdo que possa garantir a todos, entre outros aspectos, uma imersao na cultura letrada é¢, em con- seqiiéncia, o dominio da variedade da lingua a ela atrelada. O acesso a essa variedade seria entfio, em principio, um fator de inclusdo na cidadania j4 que correlacionada com a democratizacado da cultura escrita e com o exercicio da fala nos grandes espacos publicos. No Brasil, porém, esse ideal esta ainda longe de ser alcancado. Nés mal conseguimos universalizar a educagéo primaria de quatro anos. Estamos ainda distantes de garantir oito anos de escolarida- de para todos. E o ensino médio 6 ainda quase uma raridade. ABINANDO CONCETOS 61 Os dados oficiais (ef. Lima, 2004: 98) indicam que, nesta déca- da de 2000, dos 10 milhées de jovens brasileiros entre 15 e 17 anos, a metade esta fora da escola. Um milhao destes jovens esta ainda na escola fundamental. Estéo, portanto, com sua escolari- dade atrasada. E os demais alunos do atual ensino médio tém 18 anos ou mais, ou seja, estao também com sua escolaridade atrasa~ da, Nesse quesito, estamos, portanto, cingitenta anos atras das sociedades industriais avangadas™. Se a maioria da atual populagao adulta brasileira nao chegou a completar o ensino médio, a maioria dos nossos jovens nao tem ainda acesso garantido a esse nivel de ensino. Ou seja, os bens educacionais e culturais estaéo muito mal distribuidos na nossa sociedade. Uma das conseqiiéncias disso é que s6 uma minoria tem acesso efetivo 4 cultura letrada, o que inclui o estudo da cha- mada norma culta, Esta, embora em boa parte identificada, na fala, com a lin- guagem urbana comum em seus usos mais monitorados, continua sendo, no Brasil, em especial na escrita, um fendmeno restrito: é ainda um bem cultural de poucos. Por isso também é que ela pode ainda funcionar entre nés como um fater de discriminagao social, cultural e econdmica. No fundo, ela nao perdeu ainda entre nés seu defeito de origem — ou seja, continua recoberta por uma aura elitista que se materializa na nor- ma curta, ou seja, na insisténcia em se interditar a ocorréncia na escrita de fendmenos normais na fala culta. Sao picuinhas gramati- eais, mas ainda funcionam com certa forca no jogo simbélico que, pela desqualificagéo lingiiistica, discrimina e exclui. Por isso, é importante sempre abordar essa questéo numa perspectiva social e historica e nfo apenas lingiiistica. " O Censo Escolar de 2006 (segundo os dados publicados pelo INEP — Instituto Nacional de Estudos ¢ Pesquisas Educacionais Anisio Teixeira em seu site www.inep.gov br — consultado em 20/09/2007) mostra que esta situagio mudou pouco em cinco anos A escola média tem hoje 9 milhdes de alunos matriculades, sendo 4,6 milhées de jovens entre 16 € 17 anos. Os demais 4,4 milhdes tém 18 anos ou mais, 62 NORMA CULTA BRASILEIRA: DESATANDO ALGUNS NOS » Carlos Alberto Foraco. Desde que temos registro desse fendmeno de prestigio e cul- tivo de determinada variedade da lingua na cultura ocidental, ele tem uma clara marca elitista, aristocratica. A idéia de uma variedade cultivada da lingua resultou sempre do esforco das elites para criar simbolos que pudessem distingui-las das camadas populares — ou seja, como se diz de modo bastante depreciativo, as elites sempre se esforgaram para criar simbolos que pudessem distingui-las da “plebe rude”, do “vulgo”, do “populacho”. Assim, os patricios romanos — e todas as elites que vieram depois deles — marcavam sua “nobreza” por meio do vestudrio, da arquitetura e decoragdo de suas casas, por meio de habitos alimen- tares e de lazer e também por meio do modo como falavam a lingua, Nesse processo, agregava-se a certa variedade da lingua va- lores simbdélicos poderosos. Ela se tornava simbolo de pertenci- mento a uma classe social, emblema de nobreza, fator de discri- minagdo e exclusio. Na hist6ria moderna, a chamada sociedade de corte (ou seja, 0 modo como a nobreza se organizou ao redor da corte real, no cha- mado antigo regime, em especial na Franga de Luis XIV) foi eximia nesse processo, conforme se pode ler no estudo que Norbert Elias fez dela. Suas praticas de valoragaéo de suas proprias formas de falar e escrever (ao lado de outros tantos processos simbélicos) serve de contraponto ao que veio a ocorrer na sociedade que a sucedeu. As transformagées econémicas, sociais, politicas e culturais dos tiltimos 200 anos afetaram profundamente esse perfil elitista, tradicionalmente agregado a certa wariedade da lingua. Claro, os diferentes modos de falar e escrever ndo deixaram de ser emblemas de classe, jd que a sociedade continuou assim dividida. No entanto, a sociedade contemporanea foi historicamen- te levada a atribuir outras fung6es a uma variedade relativamen- te cultivada da lingua**. ® Para uma interessante andlise de aspectos desse complexo process em relaglio a inglés britanico, cf. Williams (1961), ARNANDO CONCETOS: 63 i Como bem sabemos, a sociedade industrial moderna trouxe consigo uma série grande de efeitos, redesenhando a face do mun- do contemporaneo: provocou uma intensa urbanizacao da popula- fo: teve de expandir o sistema educacional para qualificar os en- volvidos direta ou indiretamente nos processos industriais (o que acabou por trazer como resultado, nas sociedades mais avanga- das, a necessidade de garantir a todos uma educag¢ao basica de pelo menos 11 anos); deu relativa amplitude, em termos politicos, ao conceito moderno de cidadania. Por fim, o desenvolvimento tecnolégico redundou na criacao, na sociedade industrial moder- na, de sistemas de comunicagao social de massa tais como os que conhecemos hoje. A conjuncao de todos esses fatores alterou profundamente as relacgées econémicas, sociais ¢ culturais. Alteradas essas condi- goes objetivas do funcionamento da sociedade, alteraram-se tam- bém as condigdes objetivas do funcionamento social da lingua. A urbanizacao intensa, a expansdo do sistema educacional, a formu- lagao e difusao politica do conceito moderno de cidadania e o de- senvolvimento dos sistemas de comunicagio social de massa de- ram hegemonia e ampla difusdo social a certas variedades da lin- gua, em particular as variedades tradicionalmente urbanas, que passaram a exercer poderosa forga centripeta sobre as demais variedades, Nao se trata mais de uma variedade de poucos e para poucos. Nao se trata mais do exercicio de um obsoleto beletrismo numa rarefeita “reptiblica das letras”. Nao se trata mais de um emblema discriminatério de “nobreza”. A sociedade contemporfinea, em toda a sua complexidade, ao criar as condigdes que permitem amplificar a presenga social de certas variedades da lingua, as faz funcionar, pragmaticamente, como um elemento de relativa agregacdo social. Essas variedades passam a se sobrepor aos limites da comunicagao caseira, da comu- nicagdo restrita ao imediato, ao local, ao regional: respondem aos desafios postos pela urbanizacao intensa, pela complexificagao das relacées sociais e pela massificagdéo dos meios de comunicacao. 64 NGRMA CULTA BRASIEIRA! DESATANDO ALGUNS NOS © Carlos AlbartaFaraco: (8) Norma culta: ainda faz sentido usar esta expressGo? Nessa nova conjuntura histérica, a idéia de uma norma culta (ou, melhor dizendo, de uma norma comum/standard)™ perdeu sua aura aristocritica e adquiriu fungdes de amplo alcance social numa so- ciedade urbanizada, massificada e, claro, alfabetizada, isto é, uma sociedade em que todos os cidadaos tém, em principio, acesso a uma educagio basica de qualidade e aos bens da cultura escrita. No Brasil, contudo, nossa histéria de contradigGes, nossas herangas coloniais ainda embaracam a democratizacao da norma culta/ecomum/standard, em especial da norma escrita. Estamos longe de torné-la um fenémeno de amplo uso social. Primeiro, porque ainda nfo universalizamos a educagio basica de 11 anos. Segundo, porque a educacao lingiiistica que oferecemos a nossos estudantes 6 ainda de baixissima qualidade. E, por fim, nfo con- seguimos ainda aceitar com clareza a nossa norma culta/comum/ standard efetiva e nos aproveitamos, no jogo dos poderes simbéli- cos, da tradigao que se consolidou na norma curta. Estamos ha mais de um século perdidos em grande confusao quanto ao reconhecimento das nossas caracteristicas lingilisticas. “ Por tudo 0 que afirmamos no texto, talvez melhor fariamos se abandonfssemos « denominagao norma culta, De um lado, nos livrariamos de sua carga de injustificavel elitismo, Por outro lado, estariamos nos aproximando de uma andlise mais precisa da realidade lingiiatica brasileira, na medida em que n’o h4, pelo menos no plano da fala, diferencas substancisis entre o que se poderia chamar de norma culta e a linguagem urbana comum. Por tudo isso, ganhariamos se adotassemos uma designagéo como nor- ima comum ou norma standard, qualificagdes que parecem carregar menos impregna~ gdes axiolégicas:do que o adjetivo culta. A questao terminolégica continua, porém, anos desafiar: como encontrar qualificagies de baixa teor valorative e que facam justica & nossa realidade lingiistica? Bagno (2003: 63ss,) prope que se use variedades pres- tigiadas (em vez de norma culta) e variedades estigmatizadas (em vez de norma popu" Jar}, Claro, a0 apontarmos a estigmatizacao, podemos contribuir para superé-la critica mente. No entanto, podemos também favorecer uma sua naturalizacao, o que, obvia- mente, correria contra nosso esforgo critico. O mesmo poderia ocorrer com a idéia de prestigio, se nio ficasse bem evidente que ele é efeito da dindmica aécio-histériea © nfo um-fator intringeco (“natural”) Aquelas yariedades, Como contribuigao a buscada me- Ihor terminologia, usaremos no texto os trés adjetivos em seqiiéncia alternativa: norma culta/comum/ standard. AFINANDO CONCHTOS 65 Ainda nos atrapalha enormemente o espirito aristocratic que, no século XIX, quis nos impingir certa norma lusitana como nossa norma-padriéo e tachou de “incorretos” muitos dos nossos usos cultos normais. E, mais grave: nao conseguimos ainda assimilar conceitualmente os efeitos das mudangas que tém alterado pro- fundamente a cara da nossa sociedade, em especial suas reper- cussées sobre nossa realidade lingiiistica. Por isso, nos digladiamos ha mais de um século a propésito das mesmas picuinhas gramaticais (e de outras tantas que, de tempos em tempos, os cultores da norma curta inventam). Faz mais de um século que perdemos nosso tempo e nossas energias com questées equivocadas e altamente irrelevantes em matéria de lingua™. Ainda circula com certa forga entre nés um discurso excessivamente purista (ou pseudopurista) sobre as questées lin- giiistieas, como se féssemos uma sociedade colonial agraria com uma minuscula “republica das letras”, uma minoria inexpressiva para quem fazia sentido o jogo de saldo de apontar “erros de portugues” em seus pares”, {0 Um caso exemplar Qs exemplos desse modo de se relacionar com a lingua sio muitos. Selecionamos aqui o mais recente deles. Tudo comecou com a fala do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no en- cerramento do 3° congresso do seu partido (dia 23/11/07) em Brasilia. Disse ele que o Brasil quer dirigentes que falem bem a lingua, que sejam melhor educados e que nfo desprezem a educa- ¢ao, a comegar pela propria. Indiretamente, como todos bem en- tenderam, FHC lancaya farpas contra o presidente Lula. ™ Obviamente, é preciso dizer que, se essas questdes permanccem vivas, 6 porque tém sua fungiio nos jogos de poder simbélico ¢é par esse viés que precisam ser ndequadamen: tecriticadas, ® Celso Cunha, nosso grande fildlogo e importante gramatico, ja chamava nossa atengio para “a freqdente confusio entre norma culta e norma purista, ¢ sobre a inconveniéneia da diltima num pais como o Brasil” (1985: 86). ry) NORMA CULTA BRASILEIRA: DESATANDO ALGUNS NOS = Carlos Alberto Faraco As reagdes nao se fizeram esperar. Criticos e a midia sairam em campo tentando desqualificar a fala de FHC apontande nela um suposto “erro” de gramatica no uso da expresso “melhor edu- cados”. Aparentemente, o feitico virava contra o feiticeiro: fala mal da lingua dos outros, mas comete um “erro” de gramatica... O caso é banal, mas riquissimo pelo que revela do modo como se concebe a lingua entre nds e do modo como ela é transformada em argumento nos debates. Apesar de todo o episédio sugerir que o que esta em foco é uma questao lingiiistica, nao nos deixemos iludir: ela é fundamentalmen- te uma questao politica. E é nesse plano que deveria ser debatida. Ao dizer “melhor educados” em vez de “mais bem-educados”, teria FHC cometido um “erro” de gramatica, “tropecado” no idioma, “escor- regado” no portugués formal como afirmaram a midia e seus criticos? A resposta é nao: FHC ndo cometeu um “erro” de gramatica, nao “tropecou” no idioma nem “escorregou” no portugués formal. Para deixar isso claro, basta uma consulta aos nossos melhores e mais confidveis instrumentos normativos. Em todos eles, encontramos abonacao para a estrutura “melhor educados", como veremos mais adiante, Nao é, portanto, pela gramatica que FHC merece ser criti- cado, mas por outras questées embutidas nas suas afirmacées. Se nosso melhores e mais confidveis instrumentos normativos abonam a construgéo “melhor educados", por que, entéo, a midia € os criticos insistiram ém tacha-la de “erro”? E por que persisti- ram insistindo mesmo quando foi demonstrado o contrario? Fizeram isso porque tomam como referéncia uma das nossas maiores fraudes histdricas. Falam eles em nome da chamada “nor- ma culta”, mas, de fato, estaéo se baseando no que poderiamos me- lhor designar pela expresso norma curta — uma concepgao que apequena a lingua, que encurta sua riqueza, que nado percebe (por conveniéncia ou ignorancia?) que o uso culto tem abundancia de formas alternativas e nao se reduz a preceitos estreitos e rigidos. AFINANDO CONCEIOS 67 Infelizmente, é a norma curta que tem sido usada, no Brasil, para balizar os juizos sobre os fatos da lingua portuguesa com muito mais forga do que os bons instrumentos normativos funda: dos em sélida pesquisa filolégica e lingiiistica. 56 isso merece uma reflexfio cuidadosa: por que, afinal, nossa cultura se apega tanto 4 norma curta (4 mediocridade gramatical) e raramente da a devida atengado e espaco aos bons instrumentos normativos? Por que o dizer dogmatico tem, entre nés, mais forca que a criteriosa e sdlida investigagao filolégica e lingiiistica? Ainda hoje, apesar do que apresentam em contrdério os nos- sos bons instrumentos normativos, é a norma curta que prevale- ce no discurso da escola, do senso comum e, principalmente, da midia. E isso certamente porque ela tem 14 sua utilidade nos nos- sos jogos de poder: afinal é dela que se servem os que, em algum momento, desejam desqualificar os outros. Alguém disse que, no nosso pais, toda polémica termina na gramatica. Isso quer dizer que, a falta de argumentos para sus- tentar o debate, nosso costume é apelar para 0 trambique retérico, ou seja, tentar desqualificar 0 oponente apontando-lhe “erros” de portugués. Em outros termos, quando nos faltam argumentos, nosso ultimo recurso é xingar o adversdrio de ignorante, “pois nem a lingua sabe falar bem”. Assim, quando FHC, no congresso de seu partido, disse que o pais quer dirigentes que saibam falar bem a lingua e que sejam melhor educados, nao manifestou um juizo apenas individual con- tra seus adversdrios. O que ele fez foi lancar mAo do velho trambique retorico, reproduzindo um gesto que historicamente tem sido par te inerente da nossa maneira de debater. E esse trambique que deve ser criticado. E preciso desvelar 0 que ele de fato significa. Obviamente, nao é 4 toa que se apela a esse trambique. Ele é recorrente nos jogos argumentativos porque tem o efeito deseja- do de desqualificagao do oponente. E, para ficarmos no vocabuld- rio da retérica, um lugar-comum — uma crenga disseminada no 6B NORMA CULTA BRASILBRA: DESATANDO ALGUNS NOS @ Catlot Alberto Faraco: senso comum dos escolarizados de que é importante falar bem a lingua (embora — reconhegamos — nunea fique muito claro 0 que se quer dizer com “falar bem a lingua”), Assim, por esse viés, quem fala mal a lingua (seja 1 o que isso quer dizer) 6 um desqualificado, Podemos, entao, perguntar por que, na sessfio de encerramen- to do congresso do PSDB, seu lider de maior expressfo teve jus- tamente de desancar os oponentes pelo fato de supostamente fa- larem mal o portugués? Parece nao ser dificil responder: o apelo ao velho trambique retérico desnuda o fato de que os dois partidos que mais se digladiam na arena politica nacional nao tém propostas politicas efetivamen” te alternativas. Face a isso, s6 resta mesmo desqualificar os opo- nentes, Ou seja: se nao ha diferencas substanciais de programa ¢ pratica politica, o que sobra além de desqualificar os oponentes dizendo que nem a lingua eles falam bem? As reacdes & fala de FHC atacaram nao a falta de idéias e projetos politicos alternativos, mas o que consideraram ser uma indelicadeza, um preconceito, uma expressiio de soberba e de des- peito do ex-presidente. E, gléria das glérias, puderam apontar uma suposta “derrapada” lingitistica (ou, como preferem alguns jornalistas, um “erro” de gramatica, uma “escorregada” no portu- gués formal) no préprio enunciado de FHC. E, nesse tipo de jogo argumentativo, nada melhor do que poder rebater a desancada, desancando, Ou seja, nada melhor do que achar, no préprio enunciado de quem critica a lingua do outro, um “erro” de portugués. E isso nunca sera dificil, ja que ninguém fala e esereve de acordo com a norma curta. Ela é uma enorme fraude histérica, mas utilissima para preservar a cara de quem nada tem a dizer. Em suma, quando a lingua é trazida para a cena argumentativa, estejamos certos de que é outra coisa que esta efetivamente em pauta. Para encerrar, visitemos alguns dos nossos bons instrumen- tos normativos a propésito da construcgéo “pessoas melhor educadas”: AFIMANDO CONCETOS 8F @ Celso Cunha e Lindley Cintra, na sua Nova gramiatica do portugués contempordneo (p. 550), dizem que, diante de adjetivos-participios, usamos preferencialmente “mais bem". Note-se que se trata de um uso preferencial e nfo obrigatério. Portanto, podemos, sem nenhum problema, considerar as construcées “mais bem educados” e “melhor educados” como formas cultas alternativas: ®@ o mesmo diz o Dicionario Aurélio (consultar o verbete me- Jhor): mesmo citando exemplos de Machado de Assis, Ale- xandre Herculano e Aquilino Ribeiro (que usaram, diante de adjetivos-participios, “melhor” e nfo “mais bem” — FHC esta, entao, em boa companhia...), diz que, neste contexto, prefere-se “mais bem”. De novo, nao se trata de obrigatorie- dade, mas de preferéncia de uso; @ o Diciondrio Houaiss apresenta a questao de modo um pou- co diferente (consultar o verbete bem). Depois de dizer que “em lugar de mais bem, nas comparagées, usa-se melhor (saiu-se b. na prova escrita e melhor na oral”, diz que, “div ante de um participio, é vernaculo empregar mais bem (uma parede mais b. pintada que outra: um embrulho mais b. fei- to que outro)”. Ou seja: lembra que “melhor” substitui “mais bem” nas comparacées, mas, para evitar que se tome “mais bem” sempre como improprio, chama a atengaio do consulente para o fato de que seu uso é perfeitamente ade- quado (“6 verndculo”) quando diante de um participio: ® 0 filélogo Candido Juca (filho), em seu Diciondrio escolar das dificuldades da lingua portuguesa”, diz, no verbete bem, que este advérbio participa de locugdes adjetivas (bem acom- panhado, bem feito) e que faz, nestes casos, 0 comparativo regularmente (isto 6, mais bem acompanhado, mais bem feito) e conclui afirmando, respaldado por um exemplo de Camilo Castelo Branco, que se pode também usar “melhor”. De novo, as construgées sao registradas como alternativas; @ o gramatico Rocha Lima, em sua Gramética normativa da lingua portuguesa (p. 347), diz 0 mesmo! “Em vez de me~ Jhor e pior empregam-se os comparativos mais bem e mais 70 NORMA CULTA BRASILERA: DESATANDO ALGUNS NOS @ Cortes Alborte Farace mal antes de adjetivos-participios: Trabalhos mais bem cui- dados. Planos mais mal urdidos. Mas diz-se também: Obra melhor talhada. Coisas mal ouvidas e pior entendidas.”; | por fim, o Guia de usos do portugués, organizado pela lin- gitista Maria Helena de Moura Neves, nos informa (no ver- bete melhor) que tradicionalmente se recomenda que, antes de participio, se use a forma analitica mais bem e nao me- Thor (note bem: é uma recomendagio, nfio uma determina- go). Contudo, os dados analisados por ela no interior do vasto acervo do Centro de Estudos Lexicograficos da UNESP de Araraquara mostram que s4o usuais, nos diversos tipos tex- tuais, construgdes com melhor em vez de mais bem. Acreditamos que essas seis referéncias sao suficientes para di- rimir qualquer diivida: ambas as expressGdes — melhor educados e mais bem-educados — sao adequadas na norma culta brasileira real. Nao custa lembrar que melhor, neste caso, é advérbio e, por isso, é sempre invaridvel (flexiond-lo seria, sim, uma improprie- dade gramatical). Por fim, nao custa também comentar a questao do hifen. Al- guns disseram que nao se poderia dizer “melhor educados” por- que a palavra bem-educado se escreve com hifen. Ora ha, neste comentario, dois problemas. Primeiro, uma clara confusao entre lingua falada e lingua escrita. O hifen é apenas uma convencao (muito mal regulada, alids, pelo nosso Vocabulario Ortografico) da forma de grafar as palavras. Nada tem a ver com a fonologia e a sintaxe da lingua falada. Por outro lado, a questao grafica neste caso é controversa. Como falta as regras de uso do hifen um minimo de racionalidade, ha quem defenda as duas possibilidades graficas — “hem-educa- do” e “bem educado”. No primeiro caso, a expressdo significaria *cortés, polido”; no segundo, “que recebeu boa educacéo escolar’. Os nossos diciondrios, porém, registram “bem-educado” com os dois sentidos. Assim, penso que ficamos bem respaldados se nfo quisermos entrar nesta controvérsia algo metafisica. AFINANDO CONCEIOS. 71 [) H4 saidas? Uma das conseqiiéncias dessa situagio toda é que nado consegui- mos ainda criar uma educagio de qualidade na drea da linguagem verbal, nem sequer desenvolver uma cultura positiva diante de nos- sas questoes de lingua, como detalharemos nos capitulos seguintes. Para alterar substancialmente esse quadro, precisamos al- cancar pelo menos trés metas: 1*— universalizar a educagao basica, isto é, garantir de 11 a 12 anos de escola a todas as nossas criancas e adoles- centes} 2" — oferecer a todos uma educagao de qualidade, o que sig- nifica, na drea da linguagem, garantir, entre outras coi- sas, que os alunos saiam da escola basica com um bom dominio das praticas sociais de leitura e escrita; 3"— redesenhar nossa maneira de encarar nossa realidade lingitistica, em especial, nosso modo de entender a nor- ma culta/ecomum/standard falada e escrita. Nossa intengdo, com essas consideragées, é deixar claro que o problema da norma culta — de que tanto se fala hoje no discurso da escola e da midia — nao se resolve em si. Nao se resolve pela insisténcia em “corrigir” pontualmente os “erros de portugués”. A norma culta/comum/ standard, na funcdo moderna que lhe atribui a sociedade urbanizada, massificada e alfabetizada, esta direta- mente correlacionada com a escolarizagao, com o letramento, com a superagao do analfabetismo funcional. Nosso problema lingiiistico nao é a regéncia desse ou daque- le verbo} nao é esta ou aquela concordancia verbal: nfo so as re- gras de colocagio dos pronomes obliquos, nado é a (mal) chamada mistura de pronomes. Nosso problema sfio 5 milhdes de jovens entre 15 e 17 anos que estao fora da escola, Nosso problema sdo os elevados indices de evasio escolar. Nosso problema é termos ainda algo em torno 72 NORMA CULTA BRASILEIRA! DESATANDO ALGUNS NOS. @ Carlos Alberto Faraco: de 12% de analfabetos na populagao adulta. Nosso problema é 0 tamanho do analfabetismo funcional, isto é, a quantidade daque- les que, embora freqiientem ou tenham freqiientado a escola, nao eonseguem ler e entender um texto medianamente complexo. Os estudos sugerem que apenas 25% da populacéo adulta bra- sileira, perto de 30 milhées de pessoas, alcancam esse nivel de letramento, isto é, conseguem ler e entender um texto mediana- mente complexo™, Seria, em principio, o uso normal desses falantes que consti- tuiria, no Brasil, a referéncia para a descrigao da norma culta/ comum/standard. Foi na produgao escrita, de 1950 para ca, dease segmento da populagdo que o projeto de pesquisa da norma escri- ta do Laboratério de Estudos Lexicograficos da Faculdade de Ci- éncias e Letras da UNESP, Campus de Araraquara, foi buscar seus 80 milhGes de ocorréncias. Esse corpus extenso e representativo nos dé balizas impor- tantes para explicitarmos, sem a arbitrariedade dos que teimam em se nomear legisladores da lingua, as caracteristicas da nossa norma culta/comum/standard escrita. 56 assim podemos dar fun- damento seguro ao projeto de democratizar seu uso. No entanto, para isso nao bastam esses estudos baseados em carpus do uso lingiiistico efetivo se, ao mesmo tempo, nao enfren- tarmos os problemas socioeducacionais a que vimos nos referin- do. A democratizacio da norma culta/comum/standard escrita sera apenas conseqiiéncia da superacaéo desses problemas: ™ Estamos utilizando aqui os dados do [NAF - Indicador de Alfabetismo Funcional, que é uma pesquisa realizada periodicamente pelo Instituto Paulo Montenegro, vinculado ao IBOPE. Na sua edico de 2006 (dados obtidos em www.ipm.org. br em 20/09/2007), o INAF constatou que, entre og alfabetizados brasileiros com mais de 15 anos, apenas 26% sfio plenamente alfabetizados, perto de 30 milhdes de pessoas. Este 4, segundo o INAF, o contingente populacional que tem a leitura como atividade corriqueira e consegue ler compreensivamente textos longos ¢ consegue fazer relagdes entre os textos que 1é. Nao sabemos quantos desses alfabetizados funcionais efetivamente escrevem com desenvol- tura. O INAF verifica apenas a capacidade de Jeitura. AFINANDO CONCETOS 73 Norma CULTA, NORMA-PADRAO E NORMA GRAMATICAL A expressao norma culta/comum/standard, como discutimos aci- ma, designa o conjunto de fenémenos lingiiisticos que ocorrem habi- tualmente no uso dos falantes letrados em situag6es mais monitora- das de fala e escrita. Esse vinculo com os usos monitorados e com as praticas da cultura eserita leva os falantes a lhe atribuir um valor social positivo, a recobri-la com uma capa de prestigio social. Por essa mesma razfo, ela se tornou historicamente objeto privilegiado de registro, estudo e¢ cultivo sociocultural. Esse pro- cesso produziu, no imagindrio dos falantes, a representagao des- sa norma como uma variedade superior, como uma variedade melhor do que todas as demais. Essa representacao os leva, inclusive, a confundir essa nor- ma com a lingua, ou seja, a imaginar que a norma mais monitorada é a lingua. E que todas as demais variedades sao deturpagées, corrupeées, degradagées da lingua verdadeira. Por outro lado, é essa mesma identificagdo imaginaria que faz as pessoas dizerem alarmadas que a lingua esta decaindo quando se véem diante de mudancas que comecam a alcancar essa norma, Tal representac&o imaginaria, embora bastante forte entre nds, nfo encontra, porém, sustento na realidade. Primeiro, por que as mudancas, como bem demonstra a lingiiistica histérica, nunca alteram a plenitude estrutural de nenhuma das varieda- des da lingua. Elas passam sim por continuas reconfiguragdes estruturais, mas nunca perdem seu cardéter estruturado™. Segundo, porque qualquer lingua 6 sempre heterogénea, ou seja, constituida por um conjunto de variedades (por um conjunto de normas). Nao ha, como muitas vezes imagina 0 senso comum, a lingua, de um lado, e, de outro, as variedades. A lingua é em si o conjunto das variedades. Ou seja, elas nfo sao deturpagées, corrup- © Para mais detalhes sobre o fenémeno da mudanca lingitistica, ver Faraco (2005), 74 NORMA CULTA BRASLEIRA: DESATANGO ALGUNS NOS = Carlos Alberto Foraco: gdes, degradacées da lingua, mas sfio a prépria lingua: 6 o conjun- to de variedades (de normas) que constitui a lingua. A norma dita culta é apenas uma dessas variedades, com fun- ges socioculturais bem especificas, Seu prestigio nfo decorre de suas propriedades gramaticais, mas de processos sécio-histéri- cos que agregam valores a ela. Em outras palavras, seu prestigio no decorre de propriedades intrinsecas (lingiiisticas propriamen- te ditas), mas de propriedades extrinsecas (sdcio-histéricas). Como vimos antes, do ponto de vista estritamente gramatical, as variedades (as normas) se equivalem, isto é, todas sio igualmen- te organizadas, todas sao igualmente complexas. Isso ndo significa que todas as variedades se equivalham socialmente. HA uma dife- renciacao valorativa que hierarquiza as variedades, Por razdes his- téricas, os grupos sociais vao atribuindo diferentes valores as dife- rentes variedades. Assim, algumas variedades recebem avaliagdo social positiva, enquanto outras séo desprestigiadas e até estigma- tizadas. O importante é entender que tais valoragdes nao sao “na- turais”, ndo séo puramente lingtifsticas, mas resultam do modo como se constituem historicamente as relagdes entre os grupos sociais. Foi em razao de seu prestigio entre os letrados que a norma culta/comum/standard das linguas européias ocidentais moder- nas foi gramatizada, isto é, passou a ser objeto de gramaticas e diciondrios (cf. Auroux, 1992). 0) Norma-padrdo: a criagdo do conceito A producio desses instrumentos lingijisticos para essas lin- guas comeca na Europa nos fins do século XV, impulsionada pela necessidade politica de se alcangar certa unidade lingtiistica nos Estados Centrais que entéo se constituiam. Em outras palavras, a unificagéo e a centralizacao politica tiveram um efeito centripeto também sobre a lingua, ou seja, um mundo que superava a frag- mentacao econémica, social e politica prépria da sociedade feudal passava a ter necessidade de uma referéncia em matéria de lingua que pairasse acima da grande diversidade regional e social. ARMANDO CONCETOS 75 A sociedade feudal tinha um perfil que favoreceu o funciona- mento das forcgas sociais centrifugas. Sua descentralizagao, sua economia basicamente agraria, os poucos vinculos de comunica- cao para fora dos limites regionais resultaram, em mateéria de lin- gua, numa grande diversificacao. Algumas das mudangas que a Europa conheceu na Baixa Ida~ de Média, tais como a intensificagio das praticas mercantis e da circulagéo de pessoas, o revigoramento e a expansao da vida ur- bana e a progressiva centralizagao politica alteraram substancial- mente esse quadro, passando a favorecer as forgas centripetas. Em resposta a profunda diyersificagéo do mapa lingtiistico de cada um dos novos Estados, emergiu um projeto padronizador. Des~ de Antonio de Nebrija (autor daquela que é considerada a primeira gramatica de uma lingua moderna — a gramatica do castelhano publicada em 1492) se buscou estabelecer, por meio de instrumentos normativos (gramaticas e diciondrios), um padrao de lingua para os Estados Centrais Modernos, de modo a terem eles um instrumento de politica lingiiistica capaz de contribuir para atenuar a diversida- de lingiiistica regional ¢ social herdada da experiéncia feudal. A esse instrumento damos hoje o nome de norma-padrao. Se a norma culta/comum/standard é a variedade que os letrados usam correntemente em suas praticas mais monitoradas de fala e escri- ta, a norma-padrao no é propriamente uma variedade da lingua, mas — como bem destaca Bagno (2007a) — um construto sécio-histérico que serve de referéncia para estimular um processo de uniformizagéo. Enquanto a norma culta/comum/standard 6 a expresso viva de certos segmentos sociais em determinadas situagdes, a norma padrao é uma codificagaio relativamente abstrata, uma baliza ex- traida do uso real para servir de referencia, em sociedades marcadas por acentuada dialetagao, a projetos politicos de unifor- mizacao lingtistica. No caso europeu, a variedade de lingua tomada como refe- réncia para a construgio da norma-padrao diferiu de Estado para 76 NORMA CULTA BRASILEIRA! DESATANDO ALGUNS NOS. = Cotios Alero Faraco Estado — ora resultou de uma perspectiva mais conservadora, ora de uma perspectiva mais pragmatica (conforme discutiremos no capitulo 3). Em geral, porém, nfo deixou de estar préxima da norma culta/comum/standard, ou seja, da variedade praticada A época pela aristocracia ou, mais propriamente (considerando que a questao da norma-padrao foi, antes de tudo, um trabalho dos homens letrados), da variedade praticada pelos “bardes doutos” — na feliz expressiio do erudito portugués do século XVI, Joao de Barros, autor, entre ou- tras obras, de uma das primeiras gramaticas do portugués. Nesse contexto histérico, as gramiéticas e dicionaérios nfo foram entendidos apenas como instrumentos descritivos (isto é, de registro da norma culta/comum/standard), mas como instrumentos padronizadores, ou seja, como instrumentos de fixagéo de um padrao a ser tomado como regulador (normatizador) do comportamento dos falantes, visando aleangar uma “lingua” para o Estado Centralizado. As gramaticas e os diciondrios adquiriram, entao, certa forga coercitiva. Eles passaram a ser aceitos como instrumentos de medi- da do comportamento. Criou-se uma expectativa forte de que a fala e a escrita formais se conformassem ao que estava neles estipulado. Em decorréncia disso é que a palavra norma tem, no uso con- temporaneo, dois sentidos. No primeiro, norma se correlaciona com normalidade (é norma o que é normal. No segundo, norma se correlaciona com normatividade (é norma o que é normativo). Nos estudos lingiiisticos, norma designa primordialmente aquele conjunto de fenémenos lingiiisticos que sao correntes, ha- bituais (“normais") numa determinada comunidade de fala. No funcionamento monitorado da lingua, porém, a palavra norma é usada com o sentido de preceito, isto 6, designa aquilo que tem cardter normativo, que serve, no interior de um projeto politico uniformizador, para regular explicitamente os comporta- mentos dos falantes em determinadas situagées. O exemplo classico de padronizagao sera sempre o que esteve aliado & constituigao dos Estados Modernos na Europa. Posterior eee AFINANDO CONCETOS 7 mente, ha outros casos bastante relevantes para se compreender os processos padronizadores, quer os dos paises que sairam do colonialismo das Grandes Descobertas (basicamente a situagao dos paises americanos — e aqui vai nos interessar em especial o caso brasileiro), quer os dos paises que sairam do colonialismo tardio. Para este segundo caso, vale a pena acompanhar 0 que ocorreu e vem ocorrendo com o tok pisin® na Papua Nova Guiné (cf. Romaine 1992 e 1994), em especial o fato de serem preferidas, como referén- cia padronizadora, as variedades rurais e nao propriamente as urba- nas (estas foram, 4 época, consideradas menos “auténticas” por te- rem incorporado varios elementos lingiifsticos externos) — o que d4 uma diregdo totalmente inusitada ao processo, se o considerarmos pelo viés da experiéncia dos continentes europeu e americano. De todo modo, as experiéncias padronizadoras tentadas fora do continente europeu tiveram sempre como paradigma o ocorrido na Europa pés-medieval. Suzanne Romaine (1994), ao estudar o proces- so de transformacao, pelos missionarios europeus, do tok pisin numa lingua-padrao escrita, demonstrou, nesse sentido, que a propria no- cao de lingua-padrao é um conceito especificamente europeu, cujos critérios definidores so baseados em atributos das linguas-padrao européias e em valores culturais europeus. A autora diz ainda mais: “Na verdade, eu ainda iria além e diria que a propria nogio de uma lingua é em boa parte um artefato europeu” (1994: p. 20). Tais afirmagodes coincidem, de certa forma, com as reflexdes de James Milroy (2001), que, ao discutir o tema da padronizacao lingiiistica, em especial o fato de que ela nao é um universal, mos- tra como, no fundo, o pensamento lingitistico esteve e esta conta~ minado por aquilo que ele chama de ideologia da lingua-padrao, e como contribui para a reprodugio dessa mesma ideologia. Grosso modo, pode se caracterizar tal ideologia como a pers- pectiva que confunde uma lingua com seu padrao, o que é particu- =O tok pisin é uma lingua crioula que teve o inglés como base, Ela evoluiu de um pidgin eé, hoje, a lingua mais falada na Papua Nova Guiné e uma de suas linguas oficiais. 78 NORMA CULTA BRASILEIRA, DEEATANDO ALGUNS NOS w Carlos Alberto Faraca larmente o caso cultural da maioria das linguas européias de amplo uso. Lembrando que boa parte dos métodos e teorias em lingitistica foram (e sao) elaborados tendo essas linguas em sua forma-padrao como referéncia, Milroy (2001) considera que inevi- tavelmente aquela ideologia interfere diretamente na lingilistica e na andlise das linguas em geral. E afirma (p. 531): Podemos muito bem suspeitar de que hé influéncias ideolégicas veladas em alguns aspectos do pensamente lingilistico e de que muitas dessas influéncias nao sao identifieadas e reconhecidas, Além disso, algumas dessas influéncias emanam do fato de que, como observamos, um ntimero de linguas importantes (i, e., amplamente usa- das) que possuem forma escrita sio tidas por seus falantes. como existin- do em formas padronizadas. Nossa dependéncia em relagiio as linguas- padrao dos Estados-nacdes pode, portanto, ter distorcido de algumas maneiras 0 nosso entendimento, Se, no Ambito do trabalho cientifico, 6 dificil separar as coi- sas nessa complexa drea, mais dificil fica quando se trata de deba- ter extramuros a questao da norma-padrao: quanto mais os envol- vidos no debate estéo distantes do trato cientifico da lingua — no qual, em principio, as assertivas devem ser sustentadas empirica- mente e nfo apenas enunciadas categoricamente; ou, em outras palavras, no qual a validade das proposigGes nfo decorre da auto- ridade de quem as enuncia —, mais nebulosa fica a possibilidade de enfrentamento desapaixonado da questao. Bastaria lembrar aqui a enorme dificuldade de se instaurar no Brasil um amplo debate social — que envolva lingiiistas, gramaticos, professores, jornalistas, escritores, autoridades publicas e interes- sados em geral — em torno do problema da norma-padrao. Uma primeira razio para essa dificuldade advém do fato de que boa parte dos que se envolvem com o tema, costuma ter uma visdo reducionista do problema: a norma-padrao 6, nessa perspec~ tiva, apenas um rol congelado de formas ditas “corretas”. E o tom do debate no Brasil (ha mais de século) 6 sempre o mesmo: recrimi- na-se os brasileiros por nao cuidarem de sua lingua e por suposta- AFINANDO CONCETOS 79 mente nao saberem falar e escrever “corretamente” (recriminacaéo que nao é dificil de ser feita, porque, em geral, nem mesmo os mais letrados usam as formas cultuadas na velha norma-padrao). Por outro lado, qualquer debate hoje costuma logo ser abor- tado por recorrentes acusacdes da e na midia de que os lingiiistas so (perigosamente) relativistas e, portanto, contrérios ao ensino de um padrao de lingua. Mesmo admitindo com Haugen que os lingiiistas avangaram pouco no deslinde da questfo como um todo, eles tém razodvel clareza do sentido sociolingiiistico de um padrao de lingua e, por isso, nao sao, em principio, contrérios a seu cultivo e ensino (ver, por exemplo, Castilho, 2002; e nossa discussao no capitulo 4)**. O que os lingiiistas brasileiros vém efetivamente combaten- do é o carater excessivamente artificial do nosso padrao; é a con- cepcaio do padrao como uma camisa-de-forca e todos os preconcei- tos dai advindos. Desse modo, so essas as questées que devem. constituir o ponto de partida e o micleo de qualquer debate e nfo a equivocada acusacao de relativismo, Como essa acusacao, no entanto, decorre de um grosseiro mal- entendido, o desafio preliminar que se pde aos lingilistas é buscar meios de limpar a area, meios de esclarecer publicamente seu efetivo posicionamento. Dai nosso esforco aqui neste capitulo para afinar os conceitos. Como dissemos antes, a norma-padrao, enquanto realidade léxico-gramatical, é um fenémeno relativamente abstrato: ha, em sua codificagéo, um processo de relativo apagamento de marcas ™ Para deixar mais claro ainda o posicionamento dos lingiistas, vale. pena reproduzir aqui as palavras do insuspeite Celso Cunha (1985: 86): “Impossivel, pois, querermos manter a quimera de uma norma purista no conturbado e interligado mundo que nos tocou viver. Nao se conclua dessa afirmagao, e de outras que temos feito sobre a arbitra riedade com que se vieram estabelecendo alguns padrées inexeqiiveis de corregio gra~ matical, que propomos a anarquia lingiiistiea. Nada menos exato, Reconhecemos apenas a inoperdncia e a inconveniéncia da maioria dos processos adotados até aqui para impedir 0 laissex aller idiomatico”, 80 NORMA CULTA BRASILEIRA: DESATANDO ALGUNS NOS = Carlos Alberto Foraco dialetais muito salientes. E por ai que a norma-padrao pode se tornar uma referéncia supra-regional e transtemporal, Nesse sentido, o padrao tem sua importancia e utilidade como forga centripeta no interior do vasto universo centrifugo que ca- racteriza as linguas, em especial nas situacdes em que se busca aleangar certa uniformidade que atenue uma intensa dialetagao. O padrao nfo conseguira jamais suplantar integralmente a diversidade porque, para isso, seria preciso aleancar o impossi- vel (e o indesejavel, obviamente): homogeneizar a sociedade e a cultura e estancar 0 movimento e a histéria. Mesmo assim, o pa> dréo tera sempre, por coacdes sociais, certo efeito unificador so- bre as demais normas. Embora o padrao nao se confunda com a norma culta/comum/ standard, esta mais proximo dela do que das demais normas, por- que os codificadores e os que assumem o papel de seus guardides e cultores saem dos estratos sociais usudrios dessa norma. Se esse 6 um fator de aproximacéo, 6 também um fator de tensdo porque o inexoravel movimento histérico da norma culta/ comum/standard tende a criar um fosso entre ela e o padrao, fi- eando este cada vez mais artificial e anacrénico, se niio houver mecanismos socioculturais para realizar os necessarios ajustes. §) Norma-padrao no Brasil O caso brasileiro é particularmente exemplar nesse sentido, em especial porque o padrao foi construido, ja na origem, de forma excessivamente artificial. A codificagao que se fez aqui, na segunda metade do século XIX, nao tomou a norma culta/eomum/standard (a linguagem urbana comum, nos termos de Preti, 1997) brasileira de entao como referéncia. Bem ao contrario: a elite letrada conser- vadora se empenhou em fixar como nosso padrao certo modelo lu- sitano de escrita, praticado por alguns escritores portugueses do romantismo (cf. Pagotto, 1998: e nossa discussao no capitulo 2).

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