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AULA 5

IDENTIDADE E COMUNIDADE
AFRICANA NO BRASIL

Profª Edimara Gonçalves Soares


TEMA 1 – PÓS-ABOLIÇÃO: POLÍTICAS DE INTEGRAÇÃO

Esta aula tem como objetivo evidenciar as diversas manifestações


organizacionais da população negra no Brasil República, no período pós-abolição.
Trata-se de focalizar recortes de períodos considerados mais significativos para
os sujeitos negros no Brasil, no que tange à inexistência de políticas de integração
e à criação de mecanismos estratégicos para manutenção da população negra às
margens ou ocupando posições subalternas na sociedade brasileira. Também
pretendemos mostrar as organizações negras que suscitaram profundas reflexões
e ensejo de mudanças sociais no seu tempo.
A inexistência de políticas públicas de integração da população negra no
pós-abolição foi uma das barreiras sociais estratégicas impostas à população
negra liberta, não menos excludentes e ainda carregadas dos vícios do sistema
escravista.
A inserção no mundo do trabalho e nas relações capitalistas que se
desenvolviam rapidamente não pertencia a esse grupo étnico, de maneira que “o
homem negro é tangido para os porões do capitalismo nacional [...] o senhor
liberta-se do [escravizado] e traz o assalariado, migrante ou não [ex-escravizado]
passaria a viver como um estigma na sua cor” (BosI, 1992, p. 272).
Nesse sentido, têm origem as desigualdades raciais, que desde sempre
evoluíram, ganhando outras dimensões. A cor da pele torna-se um marcador
histórico e social bastante eficiente para distinguir quais grupos étnicos
seriam/poderiam ascender socialmente.
Para Costa (2001, p. 43), os problemas de integração da população negra
no pós-abolição estavam mais atrelados à “manutenção de uma política autoritária
em cuja definição a presença da discriminação não pode ser esquecida”, ou seja,
comportamentos, discursos e práticas sociais presos à lógica escravista.
No ano seguinte à abolição, em 1889, ocorre a Proclamação da República,
o que implica alterações significativas nas relações raciais, sociais e políticas do
país.
Nesse contexto, com base na literatura pertinente, Schwarcz (1996);
Munanga e Gomes (2006); Leite (2000); Fernandes (1989), entre outros
intelectuais, é possível sintetizar três situações, cujas consequências perduram
até a atualidade, sendo:

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• Ausência de políticas públicas de integração social – a incipiente República
brasileira não criou leis que instituíssem um regime de segregação racial
após o término da escravização (diferentemente dos Estados Unidos da
América e da África do Sul), portanto, não houve definição legal do
pertencimento étnico-racial.
• Incentivo à imigração europeia branca – o ideal de branqueamento da
população brasileira estava em sintonia com as políticas racistas
eugenistas desenvolvidas na Europa do século XIX.
• Ausência de políticas públicas de reparação material e simbólica – a nação
não elaborou projeto com leis específicas voltadas para integração dos
negros, criando as bases para desigualdades entre brancos e negros, que
historicamente evoluíram e se consolidaram com o racismo.

Nessa perspectiva, Florestan Fernandes (1989), ao analisar o pós-


abolição, ressalta que a negritude liberta foi entregue à sua própria sorte, pois,

[...] expulso de uma economia, de uma sociedade e de uma cultura, cujas


vigas ele forjara, e enceta por conta própria o penoso processo de
transitar de escravo a cidadão. [...] Então começa a pugna feroz do negro
para ‘tornar-se gente’, para conquistar com suas mãos sua auto
emancipação coletiva. (Fernandes, 1989, p. 80)

Disso depreendemos o início das profundas desigualdades sociais/raciais


na sociedade brasileira, pois os mecanismos criados pós-abolição foram
estratégicos para manter e naturalizar condições de subalternidade, inferioridade
e exclusão sistemática da população negra. Para Cunha Jr. (2008, p. 1), a
“abolição foi um processo que deveria ter produzido uma revolução social e
modificado de forma substancial a vida dos ex-escravizados, mas foi freada e ficou
inacabada”.
A ausência de políticas afirmativas/reparatórias que permitissem à
população negra escravizada, por mais de três séculos, ter as mesmas condições
de oportunidades em relação aos demais segmentos étnicos do nosso país é uma
manifestação do racismo estrutural. Esse fenômeno não é individual, atua de
forma invisível e um grupo tem privilégios sociais em relação ao outro, sendo
mostrados com naturalização.
Também o racismo institucional se impõe como fator obstaculizar na
construção de políticas sociais reparatórias à população negra no pós-abolição,
com normas e práticas aparentemente neutras, mas potentes o suficiente para
produzir efeitos excludentes.

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TEMA 2 – TEORIA DO BRANQUEAMENTO NA PRÁTICA

Conforme Schwarcz (2007), as teorias raciais constituem as discussões


europeias com êxito em meados do século XIX e chegam ao Brasil tardiamente,
entretanto, com entusiástica acolhida, principalmente nos estabelecimentos que
reuniam a elite pensante da recente República.
As ideologias raciais foram elaboradas no âmbito da ciência europeia para
justificar a subordinação/exploração de povos e culturas diferentes, portanto as
diferenças deveriam ser assinaladas/registradas como sinônimos de inferioridade.
A propagação dessas teorias pela elite intelectual brasileira gerava contradições
difíceis, visto que, aqui, a miscigenação estava na origem da população.
Assim, como adotar teorias que elegiam a pureza branca como
representação do progresso e desenvolvimento? No Brasil, as teorias racistas
foram utilizadas para defender a inferioridade da população negra, e no que tange
à miscigenação há uma reinterpretação seguida de uma atitude absolutamente
destrutiva do prisma da psicologia social, que é branquear essa população. O ideal
do branquear foi incorporado por parcela significativa da população negra, e isso
fez com que repelisse a si próprio e seu grupo, projetando sua identidade para o
futuro, “pois espera, um dia, ser ‘branco’, pela miscigenação e/ou ascensão social”
(Munanga, 2004, p. 140).
Nesse sentido, conforme D'Adesky (2001, p. 173), a ideologia do
branqueamento é um ideal perverso de limpeza étnica, que supõe diluição e
aniquilamento da negritude. Também descaracteriza de forma sutil as referências
étnico-raciais e cria sentimento de despertencimento grupal. Para o autor, o ideal
do branqueamento, é “um racismo etnocida que opera sobre a base de um
discurso ambíguo. Ao fazer a apologia da mistura inter-racial, ele induz os grupos
a abandonarem suas características étnicas, apontando ao mesmo tempo o grupo
a ser erradicado”.
Esse ideal de branqueamento se manifesta nas nossas relações étnico-
raciais cotidianas por meio de diversas expressões, como “limpeza de sangue”,
“cabelo bom” e “cor no ponto”. É uma concepção nativa, que se disseminou e foi/é
socialmente aceita e legitimada, portanto misturar-se tornou-se um desejo, uma
possibilidade para liberdade e emancipação.
No âmbito da psicologia social para a negritude, o branqueamento
provocou na coletividade negra efeitos destrutivos em relação à sua própria

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imagem. Predominou a inculcação da negação de si mesmo, no corpo e na mente,
rejeição de valores culturais e estéticos com objetivo de ser socialmente aceito.
O branqueamento na sociedade brasileira funcionou e, em contextos
específicos, ainda funciona como uma espécie de eufemismo, que tenta
“branquear” as características fenotípicas das pessoas negras, fortalecendo a
noção de miscigenação. Para D'adesky:

O ideal do branqueamento, que se apresenta por meio da miscigenação


como antirracismo, revela na realidade um racismo profundamente
heterófobo em relação ao negro. De fato, ele oculta uma integração
distorcida, marcada por um racismo que pressupõe uma concepção
evolucionista da caminhada necessária da humanidade em direção ao
melhor, isto é, em direção a uma população branca, pelo menos na
aparência (D’ Adesky, 2001, p. 69).

Mas como branquear, miscigenar a população brasileira até então


majoritariamente negra? A solução foi estimular a política de imigração europeia,
priorizando aqueles povos que tinham conhecimento nas atividades agrícolas.
Alguns autores defendem a ideia de que com o fim da escravização era
urgente a vinda de imigrantes para trabalhar nas lavouras e continuar o
desenvolvimento e progresso do país. Todavia, um ano antes da abolição,
segundo o relatório do Ministério da Agricultura, estima-se que havia no país uma
população de 723.419 pessoas escravizadas (Maringoni, 2011).
Nesse sentido, Leite (2000) faz uma observação interessante quando
destaca que “Em diferentes partes do Brasil, sobretudo após a abolição (1888),
os negros e [negras] têm sido desqualificados e os lugares em que habitam são
ignorados pelo poder público ou mesmo questionados por outros grupos recém-
chegados, com maior poder e legitimidade junto ao Estado” (Leite, 2000, p. 334).
São fatos históricos que evidenciam as barreiras estruturais oficialmente
impostas à população negra. Essas barreiras estruturais, no pós-abolição, podem
ser compreendidas na perspectiva da “naturalização do privilégio”, que encobre
práticas discriminatórias repetidamente desde a abolição. Assim, tornou se um
hábito ver a população negra em posições sociais subalternas, a ponto de parecer
natural a diferença de posição social entre os grupos étnicos negros e brancos.

TEMA 3 – DEMOCRACIA RACIAL E MISCIGENAÇÃO

O ideário do branqueamento fortaleceu a concepção de democracia racial,


e na década de 1930 a ideia de mestiço estava consolidada como símbolo da
identidade nacional, o que vigorou uma percepção de harmonia e cordialidade nas
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relações étnico-raciais no Brasil. A expressão original foi elaborada por Gilberto
Freyre (1944) como democracia étnica e social, para descrever a diversidade
étnica/cultural do Brasil.
Na interpretação de Guimarães (2008), quem primeiro utilizou a expressão
democracia racial foi Roger Bastide em artigo publicado no Diário de São Paulo
em 1944. Já a expressão mito da democracia racial foi elaborada por Florestan
Fernandes, que, desde sua formação, dialogava de maneira crítica com as ideais
de Gilberto Freyre. Assim, a crença de que o Brasil era um país sem barreiras que
impedissem a inserção e mobilidade social das pessoas, considerando as
características fenotípicas, difundiu-se nos âmbitos interno e externo.
A crença no mito da democracia racial se instalou no imaginário social e
se manteve como ilusão na harmonia e igualdade racial/étnica, sendo a
miscigenação o fator de manutenção no sentido de que somos um povo único,
descendentes de africanos, indígenas e brancos, porém sem conflitos
étnicos/raciais, em que não existiam mecanismos oficiais para barrar/restringir a
ascensão e mobilidade social.
Nessa perspectiva, Munanga nos permite ampliar a reflexão quando
destaca:

O mito de democracia racial, baseado na dupla mestiçagem biológica e


cultural entre as três raças originárias, tem uma penetração muito
profunda na sociedade brasileira: exalta a ideia de convivência
harmoniosa entre os indivíduos de todas as camadas sociais e grupos
étnicos, permitindo às elites dominantes dissimular as desigualdades e
impedindo os membros das comunidades não-brancas de terem
consciência dos sutis mecanismos de exclusão da qual são vítimas na
sociedade. (Munanga, 2004, p. 89)

Conforme a literatura pertinente, o mito da democracia racial dificultou a


organização e a integração da população negra na sociedade brasileira. Aliás,
havia uma convivência “tolerável” do ponto de vista cultural, porém negligenciada
em direitos e oportunidades. As desigualdades socioeconômicas e educacionais
eram disfarçadas e a crença na hormônica entre os diferentes grupos étnicos-
raciais torna-se um obstáculo para o questionamento da exclusão sutil e
silenciosa, cujos efeitos eram sentidos pela população negra.
A imagem cordial, harmoniosa, existente na da diversidade étnica/racial do
Brasil chamou atenção de organismos internacionais. Logo após a Segunda
Guerra Mundial, a Unesco lançou um projeto com objetivo de descobrir os motivos
que mostravam o Brasil convivendo de maneira harmônica e pacífica com sua
diversidade. Naquele momento, o Brasil, na concepção da Unesco, representava
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uma imagem positiva no que tange à questão étnica/racial. Assim, tratava-se de
investigar por que as relações entre negros e brancos no Brasil eram mais
cordiais, harmoniosas, se comparadas aos EUA e África do Sul.
Contudo, os resultados das pesquisas e estudos realizados nas principais
cidades brasileiras frustram as expectativas da Unesco, evidenciando a existência
de uma “polidez cerimoniosa” da elite branca em relação à população negra. A
suposta harmonia, cordialidade, não correspondia a uma igualdade de
oportunidades e mobilidade social entre os grupos brancos e negros. Os dados
das pesquisas mostravam que a cor branca, ou quanto mais próxima do ideal de
branqueamento, tornava mais fácil a ascensão social, ao passo que a cor preta
sinalizava maior preterição social, e não uma exclusão incondicional (Nogueira,
1985).
Como se trata de uma lógica de preterição, e não uma exclusão
incondicional, em circunstâncias específicas, alguns negros podem romper as
barreiras sociais impostas e ocupar posições em que serão “únicos”, “exceções”.
Isso é utilizado nos debates como argumento a favor da democracia racial e da
meritocracia no âmbito das relações raciais. Conforme Chalhoub (2017), a
concepção de meritocracia como valor universal, desconexa das condições
sociais e históricas que marcam a sociedade brasileira, é um mito útil na
reprodução e manutenção das desigualdades sociais/raciais que imprimem
marcas profundas na sociedade brasileira.
Outro resultado das pesquisas desenvolvidas no âmbito do Projeto Unesco
foi a descoberta de uma forma de “preconceito de ter preconceito”, isto é, os
brasileiros admitem e reconhecem a existência do racismo e do preconceito, mas
todos negam serem preconceituosos ou racistas.
Com base nas pesquisas sobre democracia racial e miscigenação é
possível verificar um paradoxo, uma contradição, pois a um só tempo a
miscigenação é algo positivo, evidencia a diversidade entre grupos étnicos no
Brasil. Entretanto, opera de forma negativa quando ancorada no mito da
democracia racial para esconder as profundas desigualdades
históricas/estruturais/étnicas e quando se coloca em prática a “política do
branqueamento”, ou seja, ser branco como algo que legitima superioridade e
privilégio.
Assim, no contexto da sociedade brasileira, é fundamental refletir e
compreender que a diversidade étnica/racial não se “constitui num fator de

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superidoridade ou inferioridade entre os grupos humanos, mas sim, ao contrário,
um fator de complementariedade e de enriquecimento da humanidade em geral”
(Munanga, 2005, p. 15).

TEMA 4 – FRENTE NEGRA E TEATRO EXPERIMENTAL DO NEGRO

A Frente Negra foi fundada em 1931. Seus integrantes, todos negros,


portavam uma “carteira de identificação” com foto. Assim, quando as autoridades
policiais abordavam pessoas negras em posse desse documento, elas eram
respeitadas, pois havia o reconhecimento tácito de que quem fazia parte da Frente
Negra era pessoa de bem (Munanga; Gomes, 2006)
A população negra foi estrategicamente impedida de ter acesso à política,
visto que as Constituições de 1824, de 1891, de 1934, de 1937 e de 1946 não
permitiam o direito político a analfabetos e mendigos, situação na qual se
encontravam a maioria das pessoas negras recentemente libertas até aquela
época. A negação e exclusão são legisladas nos chamados Códigos de Posturas
de cada município, e no início do século XX a cultura e as tradições (cantos, bailes,
danças) afro-brasileiras foram proibidas, a capoeira foi considerada crime pelo art.
402 do Código Penal de 1890, em vigência até 1940.
A Frente Negra Brasileira foi uma entidade de organização da negritude
brasileira de fundamental importância, uma vez que aglutinava desejos e
aspirações da população negra na década de 1930. Sua importância reside no
fato de que desempenhou um papel que o Estado deveria ter feito em relação à
população negra, qual seja: garantir o acesso à escola, assistência na área da
saúde e social e formação e atuação política com expressão da negritude
brasileira. Sua principal centralidade estava nas questões políticas, envolvendo a
participação negra.
O Teatro Experimental do Negro (TEM) foi outra organização significativa
da/para a população negra na luta por reconhecimento e inserção/participação
cultural na sociedade brasileira. Também trazia no bojo questões políticas,
portanto, para além da questão cultural, o foco estava na organização da negritude
brasileira por emancipação, liberdade e reconhecimento enquanto grupo étnico
importante no Brasil.
Conforme Nascimento (1949b), a criação do teatro foi uma forma de
vincular a organização negra à realidade social vivida naquela época pela gente
negra do Brasil, majoritariamente analfabeta, como uma preparação de

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continuidade para os movimentos negros politicamente organizados que viriam
posteriormente. Nas palavras do autor:

O Teatro Experimental do Negro pertence à ordem dos meios. Ele é um


campo de polarização psicológica, onde se está formando um núcleo de
um movimento social de vastas proporções. [...] A gente negra sempre
se organizou objetivamente, entretanto, sob o efeito de apelos religiosos
ou interesses recreativos. Os terreiros e as escolas de samba são
instituições negras de grande vitalidade e de raízes profundas [...].
Desejo assinalar que o Teatro Experimental do Negro não é, nem uma
sociedade política, nem simplesmente uma associação artística, mas um
experimento psico-sociológico, tendo em vista adestrar a gente negra
nos estilos de comportamento da classe média e superior da sociedade
brasileira. (Nascimento, 1949b, p. 11)

Em 1944, foi fundado o Teatro Experimental do Negro, o TEN, na cidade


do Rio de Janeiro. O grupo foi fundado e dirigido por Abdias do Nascimento e “o
objetivo era abrir as portas das artes cênicas brasileiras para os atores negros”
(Munanga; Gomes, 2006, p.121).
O grupo do TEN foi responsável pela produção e publicação do jornal
Quilombo, que informava e provocava reflexões sobre o ambiente político e
cultural daquele momento, bem como a mobilização antirracista e o início da
democracia contemporânea. Assim, o TEN não era somente um grupo de atores
e atrizes negros que desejavam representar, mas uma frente de luta, um polo de
cultura que visava a emancipação cultural do povo negro.
O Teatro Experimental do Negro tinha como premissa fazer uma arte por
meio da leitura, percepção e do olhar da própria negritude e da herança africana
à cultura produzida no Brasil. Na concepção de Nascimento (1997), todos
estavam acostumados a afirmar que o teatro nasceu na Grécia, mas mil anos
antes já havia textos dramáticos no Egito Negro. A partir daí, surge a necessidade
de criar personagens baseadas na mitologia africana, visto que foi na África que
essa cultura se expandiu.
É importante destacar que, em 1922, no Movimento da Semana da Arte
Moderna, realizado em São Paulo, os principais artistas que compunham esse
Movimento optaram pelo silenciamento, invisibilidade acerca da complexidade
das relações étnico-raciais (brancos e negros) no Brasil naquele momento. A
cultura afro-brasileira foi negada, posicionada como inferior, portanto, ainda
predominava na mentalidade dos grupos brancos que formavam a elite pensante
e econômica do país a ideia da inferioridade negra, resquício dos mais de 300
anos de escravização (Nascimento, 2003).

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Nesse sentido, o autor ainda destaca os desafios para organizar a
negritude brasileira. Era preciso, de forma urgente, denunciar os equívocos da
alienação dos estudos afro-brasileiros e fazer com que os próprios negros se
conscientizassem de maneira objetiva da realidade na qual estavam inseridos.
Tratava-se de uma tarefa árdua que, vislumbrada no horizonte, parecia impossível
mediante a escravização espiritual, cultural, socioeconômica, física, psíquica
antes e depois de 1888, quando a libertação ocorreu sem efeitos práticos no que
tange à integração/inclusão para a negritude.
Sabemos que o pós-abolição foi marcado pela ausência de políticas de
integração, de inserção da negritude na sociedade brasileira. Ao contrário, foram
fortalecidas concepções que remetiam à necessidade branquear a população e/ou
mantê-la em posições subalternas, e isso paulatinamente foi se naturalizando.
Nesse sentido, o TEN precisou atuar no processo de letramento e
alfabetização dos seus membros, dentre eles operários, empregadas domésticas,
pessoas sem profissão definida, enfim, quem estivesse disposto a compreender
e lutar por condições de igualdade de oportunidades na sociedade brasileira.
Assim, o TEN lhes propiciava também outra forma de ver, compreender e refletir
sobre a posição e os espaços ocupados pela negritude no contexto nacional. Há,
portanto, ações práticas de inclusão de um pequeno número de pessoas negras,
“cerca de seiscentas pessoas, entre homens e mulheres, se inscreveram no curso
de alfabetização do TEN”, vinculadas à conscientização crítica da população
negra sobre si mesma e sobre sua situação na social (Nascimento, 2003, p. 211).
Assim, o TEN, como uma dentre as organizações dos sujeitos negros,
influenciou os futuros movimentos negros, com o propósito de discutir soluções
justas e de igualdade de oportunidade para/as relações raciais no Brasil. A
formação de uma elite artística negra era uma das formas de mudança social
possíveis naquele período.

TEMA 5 – IRMANDADES NEGRAS

A palavra irmandade vincula-se à concepção de fraternidade, de boa


relação entre as pessoas, remete à ideia de membros da mesma família, como se
fossem irmãos ou irmãs. Também pode ser compreendida como uma associação,
confraria ou grupo, pessoas que se agrupam em torno de um objetivo comum,
havendo confiança mútua entre os membros.

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As irmandades surgem ainda no período escravista e tiveram continuidade
e fortalecimento no pós-abolição. A população negra era proibida de frequentar
os mesmos espaços religiosos que a população branca e, assim, a Igreja Católica
criou espaços exclusivos para que a negritude se integrasse às tradições
católicas. No entanto, as irmandades, além da perspectiva religiosa, tinham
objetivo de reunir pessoas negras que apresentassem o mesmo ofício, ou
compartilhassem dos mesmos interesses e objetivos. Assim, conforme
Domingues (2004, p.60), “surgiram dezenas, centenas de grêmios ou associações
negras em diversos Estados, de cunho mais assistencial, recreativo e/ou cultural,
tendo como principal atividade social a realização de bailes”.
O motivo do associativismo negro foi a discriminação/exclusão racial em
todas as regiões brasileiras, em algumas, com mais intensidade. De acordo com
Domingues (2004, p. 322), em São Paulo, a segregação racial atingia algumas
praças, avenidas, ruas e até bares. O espaço público ficava, em muitos lugares,
restrito aos brancos, não havia proibição formal, mas os códigos indicavam por
onde a população negra poderia transitar sem impedimentos/constrangimentos.
Com base no autor supracitado, infere-se que cada grupo étnico ocupava
um lugar demarcado por fronteiras simbólicas/étnicas na sociedade brasileira,
“onde o negro colocava o pé, o branco não frequentava e vice-versa, dessa forma
a população negra teve que “cavar espaços autônomos de lazer” (p. 325). A rede
associativa, a Irmandade, tinha como objetivo agrupar os iguais, demarcando e
afirmando positivamente suas diferenças em relação aos demais grupos étnicos
(Domingues, 2004, p.325).
No que tange às congregações religiosas na Bahia João José Reis (1996,
p. 10), destaca que podiam ser percebidas como um “um espaço de relativa
autonomia negra, no qual seus membros [...] construíam identidades sociais
significativas, no interior de um mundo às vezes sufocante e sempre incerto”.
Ainda conforme o autor, as confrarias ou irmandades religiosas funcionavam
como instituições nas quais a negritude se agregava de forma mais ou menos
autônoma, mantendo o princípio de ajudas mútuas.
As Irmandades Negras conferiam importância e representatividade positiva
a seus membros. Várias regiões do país formaram Irmandades Negras, de acordo
com suas particularidades históricas e culturais, assim não podem ser
compreendidas como bloco único, com características iguais.

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Uma irmandade de expressão nacional é a Irmandade Nossa Senhora do
Rosário, que tinha, inicialmente, o propósito maior de devoção religiosa e,
posteriormente, de instrução formal, escolarizada, pois somente com a educação
formal/escolar os(as) negros(as) poderiam alcançar melhores condições de vida.
Segundo Muller (2008, p. 264), ao ingressar na Irmandade do Rosário, essas
pessoas iniciaram um processo de diferenciação em relação aos seus
companheiros, que optaram em não aderir ou não tiveram condições para se
filiarem à Confraria.
Conforme Domingues (2004), a organização negra no Brasil se intensifica
no período pós-abolição e inclui associações de cunho recreativo, cívico e
beneficente, ou seja, é diversificada. Em geral, com uma estrutura organizacional
semelhante, com estatuto e diretoria, escolhida mediante eleição com os sócios,
o objetivo era promover a inclusão social/lazer da coletividade negra.
O fortalecimento das associações negras por todo território nacional se
constitui um fator de integração social e cultural da negritude, mas, sobretudo, se
impunha como uma necessidade de sobrevivência em uma sociedade que
mantém um racismo silencioso, às vezes disfarçado, às vezes explícito, e diversas
manifestações de discriminação étnica em relação à negritude.
Nesse sentido, Loner (2001) destaca que não havia alternativas para a
população negra desde o pós-abolição até hoje que não inventassem formas de
organização coletivas e solidárias, mediante a força da discriminação/exclusão na
sociedade brasileira. Era necessário ter criatividade e perseverança para lutar por
direitos de cidadania e resistência contra o racismo estrutural, o preconceito e
estigma em relação ao pertencimento étnico. Assim, as irmandades tinham como
propósito comum a inserção social de pessoas negras, impedidas de participar
das estruturas sociais já existentes, criadas pela elite.
Conforme Soares (2000), as irmandades mais conhecidas de origem
africana foram a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e a de São Benedito
dos Homens Pretos. No final do século XIX, essas irmandades ganharam força e
ampliaram sua influência e organização, ramificando-se para outra forma de
organização mais recreativa/lazer: as Sociedades Recreativas. Tais organizações
se caracterizavam como lugares de diversão respeitosa e sadia para as famílias
negras e tinham a intenção de mostrar à sociedade excludente que pessoas
negras também nutriam valores de respeito, moral e dignidade.

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Nesse sentido, as pessoas negras ligadas aos clubes negros, onde eram
realizados os bailes, se sentiam diferenciadas e procuravam ostentar símbolos de
distinção, não apenas nas roupas que trajavam nos eventos sociais, mas
principalmente no comportamento. Era imperioso se comportar de acordo com as
regras de etiqueta, polidez e boas maneiras e, ao mesmo tempo, desvencilhar-se
da imagem de vadio, bêbado, analfabeto, brejeiro, imoral, ou seja, livrar-se dos
estereótipos negativos tradicionalmente associados à negritude (Domingues,
2009).

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REFERÊNCIAS

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