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David Graeber

Dívida
Os primeiros 5.000 anos

I R a d u ç ã o Rogério Bettoni

- J I RÊS
^ ESTRELAS
(m.
2.
O mito do escambo
^ r
Para cada pergunta sutil e complexa há uma resposta
perfeitamente simples e clara: a que está errada.
H. L. M E N C K E N (C I T A Ç Ã O L I V R E M E N T E A D A P T A D A )

I J im I » .1 diferença entre a m era obrigação, a sensação de que é preciso se


i « m i i | m»11.ti de determ inada m aneira, ou de que se deve algo a algucm , e a
lilii.l.i |M«i|>i i.imcnte dita? A resposta é simples: o dinheiro. A diferença entre
$ tllviiU <• .i obrigação é que a dívida pode ser quantificada com precisão.

II|t*o nqiiei dinheiro.


N.ii i «• só o dinheiro que torna a dívida possível: dinheiro e dívida apare-
ciui exatamente ao m esm o tempo. Alguns dos primeiros documen-
It i i t tt 1 11«»*. q u e i hegaram até nós são tabuletas mesopotâmicas com registros
tli mi «III«is e débilos, provisões distribuídas pelo templo, dinheiro devido pelo
I il.is |erras do templo, com o valor de cada item especificado precisa-
tllHH« • m >;i.ins e prata. Algum as das primeiras obras de filosofia moral, por
|Mit' • f "lii ullexos du que significa conceber o com portam ento moral nos
fllH^IM.^ Ir» mos c o m q u e se trata a dívida - ou seja, em termos m onetários.
I 'mm lilsiórlu da divida. portanto, é necessariamente uma história do di-
filiMo • i ,i i i M u e i r a mais fácil de compreender o papel que a dívida desempe-
Jlli*»u mu mi Inlmle humana consiste em acom panharas formas que o dinheiro
rtftmmilii, • o m odo com o o dinheiro foi usado ao longo dos séculos, bem
HHHm •»<< dht ussoes resultantes sobre o significado disso tudo. Ainda assim,
Utrt * • • » ti Umienle uma história do dinheiro bem diferente daquela com a
iMrtl m iiim o* tu 0*1 lim ados. Quuiulo os econom istas falam sobre a origem
•li• i l l i i li i l i o , |»oi exemplo, eles sempre consideram a dívida algo secundário.

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Primeiro vem o escam bo, depois o dinheiro; o crédito só se desenvolve p os­
teriormente. Mesmo quando consultam os livros sobre a história do dinheiro,
por exemplo, na China, França ou índia, o que geralmente encontramos é uma
história da cunhagem, com pouquíssimas discussões sobre acordos de crédito.
. Durante quase um século, antropólogos que seguem a m esm a linha de ra­
ciocínio que eu têm apontado que há algo m uito errado nessa abordagem .
A versão com um da história econôm ica tem pouco a ver com o que obser­
vam os quando analisam os com o a vida econôm ica é de fato organizada, nos
mercados e comunidades reais, em praticamente todos os lugares - nos quais
é muito provável encontrarm os pessoas endividadas de diversas maneiras, e
transações que em sua m aioria se dão sem o uso de moeda.
Por que essa discrepância?
Parte dela diz respeito apenas à natureza dos fatos: m oedas são preser­
vadas nos arquivos arqueológicos; acordos de crédito em geral não o são.
Todavia, os problem as são mais profundos que isso. A existência do crédito
e da dívida sem pre teve um a conotação de escândalo para os econom istas,
um a vez que é praticam ente im possível fazer de conta que as pessoas que
em prestam dinheiro e tom am em préstim os estejam agindo por interesses
puramente “econôm icos” (por exemplo, que o empréstimo para um estranho
seja a m esm a coisa que o em préstim o para um prim o); parece im portante,
portanto, começar a história do dinheiro em um mundo imaginário do qual o
crédito e a dívida tenham sido eliminados. Antes de aplicarm os as ferram en­
tas da antropologia para reconstruir a história real do dinheiro, precisam os
entender o que há de errado com a explicação convencional.
. Os econom istas geralmente falam em três funções do dinheiro: meio de
j x oca. unidade de contas e reserva de valor. Todos os manuais econômicos tra-
- t a n LO meio deJxocaxom o função primária. Vejamos um trecho razoavelmente
típico do livro Economics, de Karl Case, Ray Fair, Mandred Gärtner e Ken Heather:

O dinheiro é vital para o funcionamento da economia de mercado. Imagine


como seria a vida sem ele. A alternativa à economia monetária é o escambo,
em que as pessoas trocam diretamente bens e serviços por outros bens e
serviços, em vez de trocá-los por meio do dinheiro.

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Como funciona o sistema de escambo? Suponha que você queira crois­
sants, o v o s e suco de laranja para o café da manhã. Em vez de com prar os
produtos na mercearia usando dinheiro, você teria de encontrar alguém que
tivesse esses produtos e quisesse trocá-los. Além disso, você precisaria ter
algo que o padeiro, o fornecedor de suco e o vendedor de ovos quisessem.
Ter lápis para trocar não adiantará de nada se o padeiro, o fornecedor de
suco e o vendedor de ovos não quiserem lápis.
O sistema de escambo requer uma dupla coincidência de desejos para que a
troca aconteça. Ou seja, para efetuar a troca, eu não preciso apenas encon­
trar alguém que tenha o que quero, mas a pessoa também precisa querer o
que tenho.. Quando a variedade de bens trocados é pequena, o que costuma
acontecer em economias relativamente rudimentares, nào é difícil encontrar
alguém para realizara troca, e o escambo costuma ser usado.1

Esse último ponto é questionável, m as é colocado de maneira tão vaga


que seria difícilçontestá-lo:

I m uma sociedade complexa com muitos bens, o escambo requer muito


esforço. Imagine-se tentando encontrar pessoas que ofereçam todos os tipos
tle produtos comprados na mercearia e que queiram aceitar os produtos que
você tem a oferecer em troca dos dados que eles possuem.
Algum meio de troca acordado (ou meio de pagamento) praticamente
elimina o problema da dupla coincidência de desejos.2

I im portante ressaltar que isso não é apresentado com o algo que de


(Min u <mtcceu, m as sim com o um exercício puram ente im aginário. “ Para
Vtllrinln com o a sociedade se beneficia de um m eio de troca, im agine uma
im Miioim a dc escam b o ”, escrevem David Begg, Stanley Fischer e Rudiger
I »mi u i mi m h | Economics, 2005]. “ Imagine a dificuldade que você teria hoje se
Mv» v.t tle irocar seu trabalho diretamente pelos frutos do trabalho de outra
, est revem Peter Maunder, Danny Myers, Naney Wall e Rober Miller
|! *MMiMlt\ I xplaincd, 1991]. "Imagine que você tenha galos, mas queira rosas”,es-
>o-v* 111 Mu hael Parkln e I )avltl King [Economia, 1995].' Poderíamos multiplicar

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infinitamente esses exem plos. Q uase todos os m anuais de econom ia usados
hoje em dia colocam o problem a da m esm a maneira. Historicam ente, afir­
mam eles, sabemos que houve uma época em que não existia dinheiro. Como
poderia ter sido essa época? Ora, im aginem os uma econom ia parecida com
a que tem os hoje, m as sem dinheiro. Seria algo certam ente inconveniente!
É claro, as pessoas inventaram o dinheiro visando à eficiência.
-A história do dinheiro para os econom istas sempre com eça no reino da
fantasia do escambo.^O problem a é onde situar essa fantasia no tem po e no
espaço: estam os falando dos hom ens das cavernas, dos nativos das ilhas do
Pacífico, das primeiras colônias norte-americanas? Um manual, escrito pelos
econom istas Joseph Stiglitz e John Driffill, nos leva ao que parece ser uma ci­
dade imaginária na Nova Inglaterra ou no Centro-Oeste dos Estados Unidos:

Podemos imaginar um antigo sistema de escambo rural com o ferreiro, o


alfaiate, o merceeiro e o médico em uma cidade pequena. Para que o simples
escambo funcione, no entanto, deve haver uma dupla coincidência de desejos.
[...] Henry tem batatas e quer calçados, Joshua tem um par de calçados so­
brando e quer batatas. O escambo pode deixar os dois mais felizes. Mas se
Henry tem lenha e joshua não precisa de lenha, o escambo pelos calçados
de Joshua requer que os dois, ou apenas um deles, saiam procurando mais
pessoas na esperança de realizar uma troca multilateral. O dinheiro propor­
ciona um modo muito mais simples de realizar a troca multilateral. Henry
vende a lenha para outra pessoa por dinheiro e usa o dinheiro para comprar
os calçados de Joshua.4

Repetindo, essa é apenas um a terra im aginária, m uito parecida com


a nossa, m as sem o dinheiro. Sendo assim , ela não faz sentido nenhum :
quem , em sã consciência, m ontaria um a m ercearia em um lugar desses?
E co m o con segu iria suprim en tos? Mas deixem os isso de lado. Há um a
razão sim ples que leva todos os autores de m anuais de econom ia a nos
con tar a m esm a h istória. Para os eco n o m istas, trata-se, em um sentido
m uito verdadeiro, da h istória m ais im p ortan te que já nos foi contada.
Foi contando essa história, 110 significativo ano de 1776, que A dam Sm ith,

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I*i i »fes.sor de filosofia moral da Universidade de Glasgow, criou efetivamente
I rcoiK>mia com o disciplina.
I lc n ão criou essa história sem algum em basam ento na realidade- Em
I |i• a.( A ristóteles já especulava sobre o assunto em um a linha bastante
ilm il.u em seu tratado sobre política. Antes, sugeria ele, as fam ílias deviam
|tro<luzir tudo aquilo de que precisavam. Gradualmente, algumas delas presu­
m ivelm ente teriam se especializado, algum as plantando milho, outras fabri-
ItliloY inhos, e teriam passado a trocar seus produtos.5 O dinheiro, supunha
\i i int( lcs.d eve 4£iLsurgido de tal processo. Mas, assim com o os estudiosos
tnt dievais que de vez em quando repetiam a história, Aristóteles nunca disse
i liii .uneiite co m o ele surgiu.6
Nus anos que se sucederam a Colom bo, enquanto aventureiros esp a­
nhol*. r portugueses varriam o mundo em busca de novas fontes de ouro e
Im »i.i ess.is histórias imprecisas desapareceram. Certamente ninguém relatou
tlM deneoberto uma terra onde vigorava o escam bo. A maioria dos viajantes
tio* •»» » ulos x v i e x v n , nas índias Ocidentais ou na África, supunha que todas
*<• um ledadcs teriam necessariam ente as próprias form as de dinheiro, uma
si / que todas as sociedades tinham governos e todos eles emitiam m oeda.7

\dam Smith, por outro lado, estava determinado a subverter a sabedoria


• o u i u u i tlc sua época. Em primeiro lugar, ele se opôs à ideia de que o dinheiro
IHM »• laçAo de governos. Nesse aspecto, Sm ith foi o herdeiro intelectual da
iMilKito dc filósofos liberais com o john Locke, que argum entava que o go-
- 1 >mi\a na necessidade de proteger a propriedade privada e funciona
• qii.mdo tenta se lim itara essa funçãoj>m jth.am pl4ou^^rgum ento,
"• I ...... • que propriedade, dinheiro e m ercados não só existiam antes das
Hh» ii uii^oes políticas, com o eram os próprios fundamentos da sociedade hu-
UltUM I »1 .se m o d o , uma vez que o governo tinha de exercer algum papel nas

|)Hi ii oi 11 ii >iictarias. ele deveria se limitar a garantir a estabilidade da moeda.


|'i*» • ui dei oi i cncia dessa tese que Adam Smith conseguiu afirm ar que a eco-
H l" u i 11 |*oi si só um cam po da investigação humana com princípios e leis
|mi.|<» ii.', nu seju, algo distinto da ética ou da política, por exem plo.
I \ iillilo esniíuç.u o argum ento de Adam Smith porque, com o eu disse,
♦•■♦in te do grMiulc mito fundador da econom ia com o disciplina.

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,0KKcn V u h! J Wv ,’
Q ual é - assim ele com eça - a base da vida econôm ica propriam ente
dita? Trata-se de “certa tendência ou propensão existente na natureza humana
[...] a intercambiar, perm utar ou trocar uma coisa pela outra”. Os animais não
fazem isso. “Ninguém jam ais viu um cachorro fazer uma troca justa e delibe­
rada de um osso por outro, com um segundo cachorro.”8 Os seres humanos,
se deixados agir por conta própria, inevitavelmente com eçarão a perm utar
e com parar as coisas. É isso que eles fazem. Até m esm o a lógica e a conversa­
ção n ão^ assam de m odos de estabelecer trocas, e, com o em todas as outras
coisas, os seres hum anos sempre tentarão tirar o m áxim o de vantagem, bus-
ç.arãojQjmÍQxJuçro que p ossam obter com a troca.9
E esse im pulso para a troca, por sua vez, que cria a divisão do trabalho,
responsável por todo avanço da humanidade e pela civilização. Aqui a cena
muda para outra terra da fantasia dos economistas - que parece um amálgama
dos índios norte-am ericanos com os pastores nômades da Ásia Central:10

Em uma tribo de caçadores ou pastores, por exemplo, determinada pessoa


faz arcos e flechas com mais habilidade e rapidez do que qualquer outra.
Muitas vezes os trocará com seus companheiros por gado ou por carne de
caça; considera que, dessa forma, pode conseguir mais gado e mais carne
de caça do que conseguiria se ele mesmo fosse à procura deles no campo.
Considerando primeiramente, portanto, o interesse próprio, resolve que
fazer arcos e flechas será sua ocupação principal, tornando-se uma espécie
de armeiro. Outra pessoa é particularmente hábil em fazer o madeiramento
e as coberturas de suas pequenas cabanas ou casas removíveis. Ela está ha­
bituada a ser útil a seus vizinhos dessa forma, os quais a remuneram da
mesma maneira, com gado e carne de caça, até que, ao final, acaba achando
interessante dedicar-se inteiramente a essa ocupação e tornar-se uma espécie
de carpinteiro dedicado à construção de casas. Da mesma forma, um ter­
ceiro torna-se ferreiro ou funileiro, um quarto se faz curtidor ou preparador
de peles ou couros, componente primordial da roupa dos silvícolas [...]

É somente quando surgem fabricantes de arcos, cabanas etc. que as pes­


soas percebem a existência de um problema. Observe que, com o ocorre em

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la u to s out r os exemplos, nós tendemos a passar de silvícolas imaginários para
I" • 11K nos com erciantes em cidadezinhas:

Q uando a divisão do trabalho estava apenas em seu início, esse poder de


li oca deve ter deparado frequentemente com grandes empecilhos. Pode­
m os perfeitamente supor que um indivíduo possua uma mercadoria em
quantidade superior àquela de que precisa, ao passo que outro tem menos.
( ousequentemente, o primeiro estaria disposto a vender uma parte do que
IIu* é supérfluo, e o segundo a comprá-la. Todavia, se esse segundo indiví­
duo nào possuir nada daquilo que o primeiro necessita, não poderá haver
nenhuma troca entre eles. O açougueiro possui mais carne do que a quan-
i kiiidc de que precisa para seu consumo, e o cervejeiro e o padeiro estariam
dispostos a comprar uma parte do produto. Entretanto, estes nada têm a
o lerecer em troca [...]. A fim de evitar o inconveniente de tais situações,
lodo hom em prudente, em qualquer sociedade e em qualquer período da
historia após ter se estabelecido pela primeira vez a divisão do trabalho, deve
uiii ural mente ter se empenhado em conduzir seus negócios de tal forma que
.1 <tida momento tivesse consigo, além dos produtos diretos de seu trabalho,
«n t«i quantidade de uma mercadoria ou outra - mercadorias tais que, em
«eu entender, poucas pessoas recusariam receber em troca do produto do
im balho delas.11

I irsse m odo, todos com eçaram inevitavelm ente a estocar aquilo que
.........Itam ser da necessidade de outras pessoas. Isso produziu um efeito
((HhiilnH.il p orq u e, em dado m om ento, em vez de aquela m ercadoria ficar
iih um . \ iliosa (uma vez que todos já têm um pouco dela), ela se torna mais
fflllim a (porque se transforma, efetivamente, em moeda):

« • mia se que na Abissínia o instrumento comum para comércio e trocas é


• • ' .tl em algumas regiões da costa da índia, é determinado tipo de conchas;
mi leria Nova é o bacalhau seco; na Virgínia, o tabaco; em algumas das nos-
<ni*»olónlas do oesie da índia, o açúcar; em alguns outros países, peles ou
i ornou preparados; ainda hoje segundo me loi dito existe na Escócia uma

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aldeia em que não é raro um trabalhador levar pregos em vez de dinheiro,
quando vai ao padeiro ou à cervejaria.12

Por fim, obviam ente, pelo m enos para o com ércio de longa distância,
tudo se reduz a metais preciosos, pois estes idealmente são apropriados para
servir com o m oeda por serem duráveis, portáteis e capazes de serem dividi­
dos continuam ente em porções idênticas:

Diferentes foram os metais utilizados pelas diversas nações para esse fim.
O ferro era o instrumento comum de comércio entre os espartanos: entre
os antigos romanos era o cobre; e o ouro e a prata em todas as nações ricas
e comerciantes.
De início, parece que os referidos metais eram utilizados para esse fim
em barras brutas, sem gravação e sem cunhagem. [...]
O uso de metais nesse estado apresentava dois consideráveis inconve­
nientes: a pesagem e a verificação da autenticidade ou qualidade do metal.
Nos caso dos metais preciosos, em que uma pequena diferença de quanti­
dade representa uma grande diferença no valor, até mesmo o trabalho de
pesagem, para ser feito com a precisão necessária, requer no mínimo pesos
e balanças muito exatos. Particularmente a pesagem do ouro é uma opera­
ção precisa e sutil.13

Não é difícil deduzir o resultado disso. Usar lingotes irregulares de me-


tal é m ais fácil que praticar o escam bo, m as padronizar as unidades - diga-
m os, prensar peças de metal com designações uniform es que garantam o
peso e a pureza da liga, em diferentes denom inações - não facilitaria ainda
m ais as coisas? Certam ente sim , e dessa form a nasceu a cu nh agem . De
fato, a difusão da cunhagem im plicou d envolvim ento dos governos, pois
geralm ente eram os governos que forjavam as m oedas; m as, na versão clás­
sica da história, os govern os tinham apenas esse papel lim itado - garantir
a oferta m on etária - e tendiam a exercê-lo sem a m en o r com p etên cia,
um a vez que, durante a história, reis inescrupulosos m uitas vezes frauda­
vam a cu nh agem , d e sv a lo riz an d o a m oeda, geran d o in flação e o u tro s

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I ipos de danos políticos àquilo que originalm ente era apenas um a questão
il< sim ples bom senso econôm ico.
De maneira reveladora, essa história teve um papel crucial não só na fun-
»
il.içào da econom ia com o disciplina, mas na própria ideia de que existia algo
<liumado “econom ia”,.que funcionava com regras próprias, separado da vida
nu>ral ou política - ou seja, algo que os econom istas podiam tom ar com o
• .impo de estudos. “A econom ia” é a área em que exercemos nossa propensão
ii.Hural a intercam biar e permutar. Ainda estam os intercam biando e perm u-
l.mdo e sempre estarem os. A m oeda é apenas o m eio mais eficaz para isso.
Mais tarde, econom istas com o Karl Menger e Stanley jevons m elhora-
i m i os detalhes dessa história, basicamente acrescentando diversas equações
matemáticas para m ostrar que um agrupam ento aleatório de pessoas com
li ejos aleatórios poderia, em teoria, produzir não só uma única mercadoria
I- li .1 ser usada com o dinheiro, mas também um sistema de preços uniformes.
Nesse processo, elçs também substituíram todo o vocabulário técnico p om ­
poso (por exemplo, “inconveniências” se transform ou em “custos de transa-
i" i () problema, contudo, é que essa história se tornou senso com um para
i m.iloria das pessoas. Nós a ensinam os para crianças nos livros escolares e
lios museus. Todo m undo a conhece. “Era um a vez o escam bo, um sistema
illlu il. rn tão as pessoas inventaram o dinheiro. P e p o iF v e io o desenvolvi­
mento do sistema bancário e do crédito.” Tudo isso constitui uma progressão
i" 11' itamente sim ples e objetiva, um processo de sofisticação e abstração
i .1*1.1 vez m aior que levou a humanidade, de maneira lógica e inexorável, da
lini .1 de presas de m astodonte na Idade da Pedra às bolsas de valores, aos
Imulos de hedge e aos derivativos securitizados.14
I ssa ideia tornou-se realmente onipresente. Onde quer que haja dinheiro,
li.ivri.i essa história. Certa vez, na cidade de Arivonim am o, em Madagascar,
11vi- o privilégio de entrevistar um kalanoro, uma criaturinha fantasm agórica
•|i ii um médium local dizia manter escondida dentro de um baú em sua casa.
i »i •.|»11 itoera do irm ão de uma agiota local, uma mulher horrenda chamada
Nimllne, e, para ser sincero, relutei um pouco em me envolver com a famí-
llii, mas alguns am igos insistiram afinal de contas, tratava-se de um ser de
li iiipos remotos. A criatura falava por trás de uma cortina com a voz trêmula

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e sinistra. Mas o único assunto que lhe interessava era o dinheiro. Por fim, um
pouco irritado com toda aquela farsa, eu perguntei: “ Então, o que você usava
com o dinheiro nos tem pos antigos, quando ainda estava vivo?”.
A voz m isteriosa respondeu im ediatam ente: “ Não. A gente não usava
dinheiro. Nos velhos tem pos, trocávam os diretam ente um a m ercadoria
por outra”.

Essa história, portanto, tornou-se o m ito fundador do nosso sistema de re­


lações econôm icas. E esse mito está estabelecido de m odo tão profundo no
senso com um que, até m esm o em lugares com o Madagascar, a m aioria das
pessoas não im aginaria outra maneira possível de aparecimento do dinheiro.
Qproblema-é-que não há nenhum indício de que isso um dia aconteceu,
m as há num erosos indícios sugerindo que possa não ter acontecido.
Há séculos os pesquisadores tentam encontrar essa lendária terra do
escam bo - sem sucesso.. Adam Smith usa com o pano de fundo para seu re­
lato a A m érica do N orte e seus aborígenes (outros preferem a Á frica ou o
^Pacífico). Em defesa de Sm ith, pelo m enos poder-se-ia dizer que na época
dele não havia in form ações confiáveis sobre os sistem as econôm icos dos
. norte-am ericanos nativos em bibliotecas escocesas. Já seus sucessores não
p od em recorrer a desculpas. Mas, em m eados do século, as descrições de
Lewis Henry Morgan das Seis Nações dos Iroqueses, entre outras, foram am ­
plam ente difundidas - e deixaram claro que a principal instituição econô­
mica nas nações iroquesas eram habitações coletivas, cham adas longhouses,
em inglês, onde a m aior parte dos produtos era estocada e depois distribuída
pelos conselhos de mulheres, e ninguém nunca trocava pontas de flecha p o r
pedaços de_carne. O s econom istas sim plesm ente ignoraram essa inform a­
ção .15 Stanley jevons, que em 1871 escreveu o que seria considerado o livro
clássico sobre as origens do dinheiro, retira seus exem plos de Adam Smith,
com o ao falar de índios que trocam carne de caça por cervos e pele de cas­
tor, e não utiliza nenhum a descrição real da vida indígena, deixando claro
que Adam Sm ith sim plesm ente inventou esses exem plos. Mais ou m enos
na m esm a época, m issionários, aventureiros e adm inistradores coloniais

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viajavam pelo mundo todo e levavam consigo cópias do livro de Adam Smith,
esperando encontrar a terra do escam bo. Ninguém nunca encontrou. O que
descobriram foi um a variedade quase infinita de sistem as econôm icos. Até
lioje, ninguém conseguiu localizar nem uma parte do rriundo sequer onde o
m o d o com um de transação econôm ica entre vizinhos seja na form a de troca
de "vinte galinhas por uma vaca”.
A obra antropológica definitiva sobre o escam bo, escrita por Caroline
I liimphrey, da U niversidade de Cam bridge, não poderia ser m ais enfática
im nas conclusões: “N unca foi descrito nenhum exem plo puro e sim ples
,da econom ia de escam bo, m uito m enos de que o dinheiro tenha surgido
d o escam bo; toda a etnografia existente sugere que esse tipo de econom ia
......... . existiu”.16
Ora. tudo isso dificilm ente quer dizer que o escam bo nào existiu - ou
|ih ui nua tenha sido praticado pelo tipo de gente que Adam Smith chama-
• i.i de "selvagens”.„Significa apenas que quase nunca era em pregado, com o
• I* Imaginava, entre hom ens de uma m esm a aldeia. Comum ente, ele acon-
i entre e s t ranhos, até entre inim igos. Tom em os com o exem plo os índios
unmhiquaras, no Brasil. Eles parecem corresponder a todos os critérios: uma
led.idc sim ples, praticam ente sem divisão de trabalho, organizada em
|*• <|iieiu)S gru pos que tradicionalm ente são form ados, quando m uito, por
• • ui pessoas cada um. De vez em quando, se um grupo vê que outro grupo
Hi i ndeii .is fogueiras para cozinhar, manda em issários para negociar um en-
i n u lio io m propósitos de troca. Se a oferta é aceita, eles prim eiro escondem
h* mulheres e as crianças na floresta, depois convidam os homens do outro
)|iu |hi pura visitar o acampamento. Cada grupo escolhe um chefe; depois que
Indi m reúnem, cada chefe profere um discurso formal enaltecendo a outra
|m iu i ubestim ando o próprio grupo; todos deixam as arm as de lado para
• .mi ii i dançar juntos - em bora a dança imite o confronto de guerra. Depois,
tM Indivíduos de um gru po se dirigem aos do outro para a troca:

*.i uiu Indivíduo quer um objeto qualquer, ele o enaltece dizendo o quanto
• hoiu Se um homem valoriza um objeto e quer algo cm troca por ele, em
vi / de dizer o quanto e valioso, diz que nào é bom, demonstrando assim

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seu desejo de mantê-lo consigo. “ Esse machado não é bom, é muito velho
e perdeu o corte", dirá ele, referindo-se ao seu machado que o outro quer.
Esse argumento é defendido em um tom furioso até que se chega a um
entendimento. Feito o acordo, um pega o objeto da mão do outro. Se um ho­
mem fez o escambo de um colar não irá retirá-lo e entregá-lo, é o outro que
deve arrancá-lo exibindo força. Discussões, que muitas vezes levam a lutas,
ocorrem quando uma das partes é um pouco precipitada e apanha o objeto
antes que o outro tenha terminado de argumentar.17

Toda a negociação termina com um grande banquete para o qual as mulhe­


res reaparecem, mas isso também pode causar problemas, uma vez que a m ú­
sica e a boa comida costumam dar margem à sedução,18 o que muitas vezes leva
a rixas provocadas pelo ciúme. De vez em quando, algumas pessoas são mortas.
..O escam bo, portanto, apesar de todos os elem entos festivos, era reali­
zado entre pessoas em geral inimigas e podia estar a um passo de se converter
em uma guerra com pleta - e caso o etnógrafo esteja correto, se um dos lados
concluía que havia sido explorado pelo outro, a situação podia m uito facil­
mente levar de fato a um conflito real.
Virem os agora os holofotes para o outro lado do m undo, mais precisa­
mente para o lado ocidental da Terra de Arnhem , na Austrália, onde o povo
gunw inggu é fam oso por divertir os povos vizinhos em rituais de escam bo
cerim onial chamados dzamalag. Aqui, a ameaça de violência real parece muito
mais distante. Isso porque, parcialmente, as coisas são mais fáceis por causa
da existência de um sistem a de “m etades exogâm icas” adotado em toda a
região: não é perm itido se casar ou fazer sexo com pessoas da m esm a m e­
tade em que o gru po se divide, não im porta de onde elas tenham vindo, mas
qualquer pessoa que seja da outra metade tecnicamente é um par potencial.
Desse modo, para os homens, m esm o em comunidades distantes, metade das
m ulheres é estritamente proibida, e a outra parte é um alvo legítimo. A região
tam bém é unida pela especialização local: cada povo tem seu próprio p ro­
duto de troca para realizar o escam bo com outros grupos.
O que se segue se baseia na descrição de um dzamalag ocorrido na década
de 1940, tal com o observado pelo antropólogo Ronald Berndt.

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Mais uma vez, a história com eça quando estranhos, depois de algum as
n» v:* iações iniciais, são convidados para o acam pam ento dos anfitriões. Os
v hii.m ies, nesse exem plo, eram conhecidos por suas “lanças dentadas muito
tipi rt iadas” - e os anfitriões tinham acesso a boas vestim entas vindas da Eu-
*h |m O negócio com eça quando o gru p o visitante, form ado por hom ens
V mulheres, entra na área circular reservada para as danças, e três pessoas
• nuteçam a entreter os anfitriões com m úsica. Dois hom ens cantam e um
h i. eiro os acom panha tocando didjeridu. Pouco tem po depois, as mulheres
||m ki 11| h> de anfitriões chegam e atacam os m úsicos:

I Inmens e mulheres se levantam e começam a dançar. O dzamalag tem iní-


t lo quando duas mulheres gunwinggus da metade oposta à dos homens
que «.antam “dão o dzamalag” para estes. Elas presenteiam cada homem com
um pedaço de tecido, dào uma pancada neles ou os tocam, jogando-os no
i IlAo, chamando-os de marido do dzamalag e brincando com eles de maneira
n ótica. Depois outra mulher da metade oposta à do homem que toca o
liisti umento de sopro lhe dá um tecido, golpeia-o e brinca com ele.
I sse é o início da troca dzamalag. Os homens do grupo visitante sentam-se
quietos enquanto as mulheres da metade oposta se aproximam, acertam-
lhes um golpe e os convidam para a cópula; elas tomam todas as liberda-
•I«»» para com os homens, entre diversão e aplausos, enquanto o canto e a
iliinsa continuam. As mulheres tentam tirar as vestimentas que cobrem os
•|iM<li is dos homens ou tocar o pênis deles, arrastando-os para fora da área
•Ir dança para o coito. Os homens saem com suas parceiras de dzamalag,
demonstrando relutância, para copularem moitas distantes das fogueiras
!|iie Iluminam os dançarinos. Eles dào tabaco e contas para as mulheres.
( J i i n i k Io elas voltam, dão parte do tabaco para os maridos, que as haviam
• ui ni.ijadoa ir para o dzamalag. Os maridos, por sua vez, usam o tabaco para
l*.in.ii por suas próprias parceiras de dzamalag [...].19

Nnvos cantores e m úsicos aparecem ; tam bém são abordados e levados


|m i 4 lis m atagais; os hom ens encorajam suas esposas a "não terem verg o ­
nha paia assim manter a repulaçAo hospitaleira dos gunw inggus; algum as

45
vezes esses hom ens tom am a iniciativa com as esposas dos visitantes, ofere­
cendo roupas, golpeando-as e levando-as para os matagais. Contas e tabaco
circulam . Por fim, depois que todos os participantes saíram aos pares pelo
m enos uma vez, e os convidados estão satisfeitos com as vestimentas que ad­
quiriram , as m ulheres param de dançar, form am duas fileiras, e os visitantes
se organizam para pagar a elas.

Então os visitantes de uma metade dançam para as mulheres da metade


oposta para “dar-lhes o dzamalag”. Eles seguram lanças de ponta triangular
e fingem espetar as mulheres, mas, em vez de golpeá-las com a ponta, eles
as golpeiam com a haste da lança. “Nós não espetaremos vocês com a lança
porque já espetamos com o pênis.” Eles entregam as lanças para as mulheres.
Depois os visitantes da outra metade procedem da mesma maneira com as
mulheres da metade oposta, dando-lhes lanças de pontas dentadas. Com isso
a cerimônia termina e segue-se uma ampla distribuição de comida.20

Esse caso é particularm ente dram ático, mas casos dram áticos são reve­
ladores. O que os anfitriões gunw inggus parecem fazer aqui, devido às rela­
ções relativamente am igáveis com os povos vizinhos da Terra de Arnhem , é
tom ar todos os elementos do escam bo dos nam biquaras (a m úsica e a dança,
a hostilidade potencial, a intriga sexual) e os transform ar em um tipo de jogo
festivo - um jogo que talvez não deixe de ter seus perigos, mas (como enfatiza
o etnógrafo) é considerado extremamente divertido por todos os envolvidos.
Esses casos de troca pelo escam bo têm em com um o fato de serem en­
contros entre estranhos que muito provavelmente jam ais se encontrarão de
novo, e entre os quais certamente não se desenvolverão relações duradouras.
E por isso que uma relação de troca direta, de um para um, é apropriada: cada
uma das partes faz sua troca e vai em bora. Tudo se torna possível quando se
firma o prim eiro estágio da sociabilidade na form a de prazeres com partilha­
dos, m úsica e dança - a base com um de convívio sobre a qual o com ércio
deve sem pre se construir. Depois vem a troca real, em que os dois lados fa­
zem uma bela exibição da hostilidade latente que necessariamente existe em
qualquer troca de bens materiais entre estranhos - nenhuma d.is partes tem

46
I azões particulares para não tirar vantagem da outra parte - por m eio de uma
lalsa agressão, em tom de brincadeira, em bora no caso dos nam biquaras, em
que o manto da sociabilidade é extrem am ente tênue, a falsa agressão corra o
»onstante perigo de se transform ar em agressão real. Os gun w in ggus, com
mi.i atitude mais relaxada ante a sexualidade, conseguiram de um m odo enge­
nhoso transform ar os prazeres com uns e a agressividade que com partilham
exatam ente na m esm a coisa.
Recordemos aqui a linguagem dos manuais de econom ia: “ Imagine uma
•mm ledade sem dinheiro” ou “im agine um a econom ia de esca m b o ”. Esses
• n mplos deixam m uito claro com o é limitada a im aginação da m aioria dos
• • onomistas.21
Por quê? A resposta m ais sim ples seria esta: para que exista um a dis-
• Ipllna cham ada “econom ia”, um a disciplina que diga respeito, em prim ei-
t iv.nno lugar, a com o os indivíduos buscam o acordo m ais vantajoso para
il I toca de calçados por batatas, ou de roupas por lanças, é preciso assum ir
•| im a iroca desses bens não tem nada a ver com guerra, paixão, aventura,
nu a •m i, sexo ou morte. A econom ia pressupõe um a divisão entre diferentes
»«li I .is do com portam ento hum ano que, entre povos com o os gunw inggus
• n.imbiquaras, sim plesm ente não existe. Essas divisões, por sua vez, são
|MiMlb|litadas por acordos institucionais bem específicos - a existência de
•1*1 vi irad o s, prisões e polícia - para garantir que até m esm o as pessoas que
♦lio »siam umas das outras, que não têm interesse nenhum em desenvolver
tjtiitli|iiri tipo de relação duradoura, mas só estão interessadas em se apode-
Mi ao m axim o das posses do outro, não tenham de recorrer ao expediente
Httll* o b v io (o roubo). Isso, p or sua vez, nos perm ite assum ir que a vida é
Imihk Mtlosamente dividida entre o mercado, onde fazem os nossas com pras,
p <* Vilrt ,i de consum o”, onde nos envolvem os com a música, os banquetes e
Mtw liM ' » 1 m outras palavras, a visão de mundo que está na base dos manuais
!*• onom la, cu jo estabelecim ento se deve tanto a A dam Sm ith, tornou-
*• I mu I« tiU» lundam ental do senso com um que para nós é difícil im aginar
um o» (tirnsívrl configuração.
i ont esses exem plos, com eça a ficar claro p orq u e nào existem socieda-
•• • hasi ailas no escam bo. I Jma tal sociedade só poderia ser aquela em que
todos estão o tem po todo a um passo de se engalfinharem , em constante
tensão, prontos para atacar, m as nunca atacando de fato. E verdade que o
escam bo às vezes acontece entre pessoas que não se consideram estranhas
umas às outras, mas elas poderiam muito bem ser estranhas - ou seja, são pes­
soas sem espírito de confiança ou responsabilidade m útua, ou que não têm
desejo nenhum de desenvolver relações duradouras. Os pachtuns do norte
do Paquistão, por exem plo, são fam osos p or sua generosa hospitalidade.
O escam bo é o que se pratica com as pessoas às quais você não é ligado por
laços de hospitalidade (ou parentesco, ou qualquer outra coisa):

A forma predileta de troca entre os homens é o escambo, ou adal-badal (toma


lá, dá cá). Os homens estão sempre atentos à possibilidade de escambar uma
de suas posses por algo melhor. E comum a troca acontecer entre coisas
semelhantes: um rádio por outro rádio, óculos de sol por outros óculos de
sol, um relógio por outro relógio. No entanto, objetos diferentes também
podem ser trocados, como, por exemplo, uma bicicleta por dois jumentos.
O adal-badal é sempre praticado entre pessoas que não são aparentadas e
proporciona muito prazer aos homens, pois eles tentam tirar vantagem de
seu parceiro de troca. Uma boa troca, na qual o homem sente que se saiu
melhor depois do acordo, é motivo de vaidade e orgulho. Se a troca é ruim,
o recebedor tenta voltar atrás no negócio ou, quando não consegue, [pro­
cura] se livrar do objeto defeituoso passando-o para outra pessoa que não
suspeita de nada. O melhor parceiro de adal-badal é uma pessoa distante em
termos espaciais, ou seja, que terá poucas chances de reclamar.22

Porém, esses m otivos inescrupulosos não estão limitados à Ásia Central.


Eles parecem inerentes à própria natureza do escam bo - o que explicaria o
fato de, um ou dois séculos antes de Adam Smith, as palavras inglesas truck
e barter [troca e escam bo], assim com o seus equivalentes em francês, espa
nhol, alemão, holandês e português, significarem à época “trapacear, enganai
e tirar vantagem ”.23 Trocar um a coisa diretam ente pela outra enquanto se
tenta conseguir a m elhor vantagem com a transação é a form a com um de
lidar com as pessoas pelas quais nào se tem muita considernçAo e que não se

48
rwpera ver de novo. Quais seriam os m otivos para não tentar tirar vantagem
ilr uma pessoa assim? Se, por outro lado, alguém tem certa consideração por
uma pessoa - um vizinho, um am igo - a ponto de realizar um acordo justo
• honesto, inevitavelmente tam bém se interessará por levar em conta as ne-
»rssldades e os desejos dessa pessoa. Ainda que estejamos fazendo a troca de
iiiiM coisa pela outra, provavelmente encararem os a troca com o um presente.

r.it.i <st larecer o que quero dizer com isso, voltem os aos m anuais de e co ­
nomia c ao problem a da “dupla coincidência de desejos”. Q uando falam os
♦I** I Irnry, ele precisava de um par de calçados, m as só dispunha de algu-
HMt balatas. Joshua tinha um par de calçados sobrando, mas não precisava
•li Iu i.ii.is. Com o o dinheiro ainda não foi inventado, eles têm um problem a.
• • •i»I« v.io fazer?
A prim eira coisa que deve ficar clara nesse ponto é que precisam os real-
fHlHH«' conhecer um pouco mais sobre Joshua e Henry. Quem são eles? São
|Mit iiii Se sim , qual é o parentesco? Os dois parecem viver em um a co-
IltiMtl« l.ulc* pequena. Q uaisquer pessoas que vivam na m esm a com unidade
(•»•im im terào algum tipo de história com plicada em relação às outras. Eles
Irtn .unidos, rivais, aliados, am antes, inim igos ou várias dessas coisas ao
nu *11111 tempo?
« >•* autores do exem plo original pensaram em dois vizinhos mais ou me-
Mif m i m esm a condição, não tão próxim os, m as am igáveis - ou seja, uma
HpUsfli»• om .1 maior neutralidade possível. Mesmo assim, isso não diz muito.
m plo, sc* 1 lenry m orasse em uma habitação coletiva e precisasse de
|«K*iIm V lo slu ia nem sequer entraria na jogada; Henry sim plesm ente co-
f»Mlla, iii ii (alo com a esposa, que tocaria no assunto com outras m atronas,
INI*« iii iii m.iirri.il no depósito da habitação coletiva e confeccionaria os cal-
I >ma alternativa, para encontrarm os um cenário que se encaixe em
manual Im aginário de econom ia: teríam os de posicionar Joshua e Henry
jUtlto« • ui uma com unidade pequena e bem íntima, com o uma tribo nambi-
tyiHM mi um y ru p o d e gunw inggus:
CE NÁRI O I

Henry se aproxima de joshua e diz: “( aliados bonitos!".


joshua diz: "Ah, nem sào tão bonitos assim , mas, com o você gostou
deles, pegue-os”.
Henry pega os calçados.
Eles não tratam das batatas de Henry porque os dois sabem perfeita
mente que, se Joshua precisar de batatas em algum momento, Henry lhe
dará algumas.

E nada m ais que isso. O bviam ente não está claro, nesse caso, quanto
tem po H enry ficará com os calçados. Provavelm ente depende do estado
deles. Se os calçados forem com uns, esse pode ser o fim da questão. Se fo ­
rem bonitos ou únicos de algum a maneira, podem ser passados adiante. Há
uma história fam osa contada por John e Lorna M arshall, antropólogos que
fizeram um estudo na década de 1960 com bosquím anos do deserto Kala-
hari [África]: eles deram um a faca de présente para um de seus inform antes
prediletos. Um ano depois eles voltaram e descobriram que quase todos os
indivíduos do gru po tiveram a posse da faca em algum m om ento. Por outro
lado, vários am igos árabes me confirm aram que, em contextos estritamente
m enos igualitários, ocorre certo expediente. Se um am igo elogia um brace­
lete ou uma bolsa, espera-se que você diga imediatamente: “Tom e” - mas, se
você está determ inado a m anter o objeto consigo, você sem pre pode dizer:
“E bonito, não é? Foi um presente”.
Está claro, no entanto, que os autores do manual de econom ia têm em
mente uma transação um pouco mais im pessoal. Eles parecem im aginar os
dois hom ens com o chefes de unidades fam iliares patriarcais, mantendo boas
relações entre si, m as que guardam os próprios suprim entos. Talvez eles vi­
vam em um daqueles vilarejos escoceses, com o açougueiro e o padeiro do
exem plo de Adam Smith, ou em um assentamento de colonos na Nova Ingla­
terra. A diferença é que eles nunca ouviram falar em dinheiro. E uma fantasia
peculiar, mas vejam os o que podem os fazer:

50
I I nAmii > >

11- in v s« aproxim a de Joshua c diz: “C alçados bonitos!".


t hi rnt Ao para deixar esse cenário um pouco tnais realista - a esposa de
Hflli V rsi.i i on versa ndo com a esposa de Joshua e deixa escapar estrategi-
i hi ii nii ijue o estado dos calçados de Henry está tão ruim que ele começou

• d i lamar dos calos.


A mensagem é transmitida e Joshua aparece no dia seguinte para ofere-
i • i .1 I lenry, com o presente, seu par de calçados que está sobrando, insis-
|littli • que se trata apenas de um gesto amigável. Jamais ele aceitaria alguma
i Mivt t «uno compensação.
NAo importa se Joshua está sendo sincero. Ao fazer o que fez, Joshua
'• Nisira um crédito. Henry lhe deve uma.
( oino Henry poderia pagar a Joshua? Há infinitas possibilidades. Talvez
(••.Ima realmente queira algumas batatas. Henry espera passar um pequeno
m in valo e entrega as batatas para Joshua, insistindo também que se trata
*|trnus de um presente. Ou talvez Joshua não precise de batatas agora, então
I Irnry espera até que ele precise. Ou talvez ainda um ano depois, quando
lotliua planejar um banquete, ele passe pelo curral de Henry e diga: “Que
M o porco...”.

I ui qualquer um desses cenários, o problema da “dupla coincidência de


•li n los", tào evocado nos m anuais de econom ia, sim plesm ente desaparece.

Himh v pode não ter algo de que Joshua precise agora mesm o. Mas, se os dois
Mo vl/in h o s, obviam ente será uma questão de tem po até que Joshua precise
•It iil^iuna coisa.24
IV>r sua vez, isso significa que a necessidade de estocar itens com um ente
It rll iveis, da m aneira que sugeriu Adam Sm ith, tam bém desaparece. Com
I m o extingue-se a necessidade de m oeda. A ssim com o acontece em m uitas
• i II mm idades pequenas atuais, todas as pessoas simplesmente guardam con-
nl|!< i .1 inform ação de quem deve o que para quem.
I lá apenas um problema conceituai importante aqui - um problema que
• • I* lior atento já deve ter notado. Henry “deve um a a Jo sh u a”. Uma o quê?

5i
Como sc quantifica um favor? Ila.scailo* cm que uns di/cmos que css.i poi\.io
de batatas, ou esse porco grande, parei c m.ns ou menos equivalente a um
par de calçados? Porque, mesmo sc essas coisas forem meras aproximado»
rudimentares, tem de haver alguma maneira de estabelecer que X equivali
mais ou menos a Y, ou que é um pouco melhor ou um pouco pior. Isso n.io
indica que algo parecido com o dinheiro, pelo menos no sentido de uma uni
dade de contas que permita comparar o valor de diferentes objetos, já exist .1
Na verdade, há um modo rudimentar de resolver o problema na maio
ria das economias da dádiva. Estabelece-se uma série de categorias de tipos
de coisas. Porcos e calçados devem ser considerados objetos de equivalência
aproximada: pode-se dar um em troca de outro. Colares de corais já seriam
uma questão totalmente diferente; seria preciso dar em troca outro colar,
ou pelo menos outra joia - os antropólogos costumam se referir a essas si­
tuações como criadoras de diferentes “esferas de troca”.25 De certa forma,
isso simplifica as coisas. Quando o escambo transcultural se torna uma coisa
regular e corriqueira, ele tende a funcionar de acordo com princípios seme­
lhantes: existem apenas certas coisas troCadas por outras (roupas por lanças,
por exemplo), o que facilita a elaboração de equivalências tradicionais. No
entanto, isso não nos ajuda em nada no problema da origem do dinheiro. Ao
contrário, torna tudo ainda mais difícil. Por que estocar sal, ouro ou peixe se
eles só podem ser trocados por certas coisas e não outras?
Na verdade, há boas razões para acreditarmos que o escambo não é um
fenômeno particularmente antigo, mas que só se difundiu de fato nos tempos
modernos.-Na maioria dos casos que conhecemos ele acontece entre pessoas
familiarizadas com o uso da moeda mas que, por uma ou por outra razão, não
têm tanto dinheiro disponível. Sistemas de escambo mais elaborados em geral
afloram como consequência do colapso de economias nacionais: mais recente­
mente, na década de 1990, na Rússia, e por volta de 2002, na Argentina, quando
, os rublos (no primeiro caso) e os dólares (no segundo) desapareceram.26 Em
determinadas ocasiões ainda é possível encontrar algum tipo de moeda come­
çando a se desenvolver: por exemplo, nos acampamentos de prisioneiros de
guerra e em muitas prisões é sabido que os reclusos usam cigarros como um
tipo de moeda, para o deleite e a comoção dos economistas profissionais.2'

52
|l|lll l.lllll'» III ( Slíimos l.ll.liulu de pcssn.is t|UC i ICSl CI.IIII us .mhIo O til
•i.i I...... .mi sc virai sei11 ele exatamente .i situação "imaginada"
........... . unia com os quais eu comecei.
A «oluç.io mais Irequente é adotar algum tipo de sistem a de crédito. Pa-
hn i In ’ iil«» Isso que aconteceu quando a m aior parte da Europa “reverteu-se
c*u .tiuiu > depois do colapso do Im pério R om ano e tam bém depois
tyti» i • Iiii) mrio C arolíngio desm oronou da m esm a m aneira. As pessoas con-
■ tiM M iu m antendo suas contas no antigo dinheiro im perial, m esm o que
H n iinimscm mais m oedas cunhadas.28 De maneira semelhante, os pachtuns
■ N " * Mv que gostam de trocar bicicletas por jumentos, conhecem muito bem
piiHH ilo dinheiro. O dinheiro existiu naquela parte do m undo por milhares
d l ai» I les sim plesm ente preferem a troca direta entre iguais - nesse caso,
‘iÉBfi|iii a ( onsideram mais m asculina.29
i »mi , iis notável é que m esm o nos exem plos de Adam Smith sobre peixe,
JffPtiou c i.ibaco usados com o dinheiro acontecia o m esm o tipo de coisa. Nos
M que sc seguiram à publicação de A riqueza das nações, os pesquisado-
fpft .»vi i iguaram a m aior parte dos exem plos e descobriram que, quase em
ms i asos, as pessoas envolvidas no escam bo eram bem fam iliarizadas
IImm • • Ms o do dinheiro e na verdade usavam o dinheiro - com o unidade de
'd fom em os o exem plo do bacalhau seco, supostam ente usado com o
Htonlii cm Terra Nova. Com o afirm ou o diplom ata inglês A. Mitchell Innes
tlft ijliiise um século, o que Adam Smith descreve na verdade era uma ilusão
I I ).*•!.i |k *i um simples acordo de crédito:

Nus primeiros dias da indústria de pesca em Terra Nova, não havia uma
|M»|nilação permanente europeia: os pescadores iam para lá apenas na tem-
| mii ,u I.i de pesca, e os que nào eram pescadores eram comerciantes que com-
|Miiv,im o peixe seco e vendiam para os pescadores seus suprimentos diários.
I *les vendiam a pesca para os comerciantes conforme o preço de mercado
em libras, xelins epennies, e obtinham como retorno um crédito nas contas,
m in o qual pagavam por seus suprimentos. O saldo devedor por parte dos
i Kinerciantes era pago com títulos de crédito na Inglaterra ou na França.

53
Acontecia quase a mesma coisa no vllairjo rtto i ó s . NAoé que as pessoas
realmente entrassem em uma taberna loi .il, jogassem um prego no balcao v
pedissem um caneco de cerveja. Os empregadores, na época de Adam Smith,
muitas vezes careciam de m oedas para pagar aos trabalhadores; os salários
podiam atrasar um ano ou mais; nesse ínterim, era considerado aceitável que
os em pregados levassem em bora alguns produtos que fabricaram ou alguma
sobra de material de trabalho, com o m adeira, tecidos, cordas etc^Qs pregos
eram de fato interessantes por serem produto dos em pregadores. Entào eles
iam às tabernas, abriam uma conta e, quando a ocasião permitia, levavam um
saco de pregos para liquidar a dívida, O fato de a lei ter tornado o tabaco uma
m oeda corrente na Virgínia parece ter sido uma tentativa dos agricultores de
obrigar os com erciantes locais a aceitar o produto com o crédito na época
de colheitas. Com efeito, a lei obrigou todos os com erciantes na Virgínia a
se tornarem revendedores do negócio do tabaco, quisessem eles ou não; da
m esm a m aneira, todos os com erciantes das índias Ocidentais foram obriga­
dos a negociar açúcar, uma vez que o açúcar era tudo o que os consum idores
mais ricos produziam para liquidar suas‘dívidas.
Os exem plos básicos, portanto, são aqueles em que as pessoas im provi-
saram sistemas de crédito porque o dinheiro verdadeiro - m oedas de ouro e
prata - estava escasso. Mas o golpe m ais surpreendente à versão convencio­
nal da história econôm ica surgiu com a tradução prim eiro dos hieróglifos
. egípcios e depois da escrita cuneiform e m esopotâm ica, que am pliou as fron­
teiras do conhecim ento dos pesquisadores da história escrita em quase 3 mil
anos, do tem po de Hom ero (cerca de 800 a.C.), mais ou m enos, que era até
onde ia o conhecim ento na época de Adam Smith, para aproxim adam ente
3500 a.C. Esses textos revelaram que sistem as de crédito desse m esm o tipo
na verdade precederam a invenção das m oedas cunhadas em milhares de anos.
O sistem a m esop otâm ico é o m ais bem docum entado, m ais do que o
sistem a do Egito faraônico (que parece semelhante), o da China da dinastia
Shang (do qual p ouco sabem os) ou o da civilização do Vale do Indo (sobre
o qual não sabem os nada). A liás, sabem os m uita coisa sobre a M esopotâ-
m ia porque a gran de m aioria dos docu m en tos cu n eifo rm es era de n atu ­
reza financeira.

54
\ r« oitom la siim éria 1« >i d o m in ad a p o r v.istos co m p le x o s de tem p los c
................ I sses co m p le x os m uitas vezes eram presididos p o r m ilh ares de pes-
«ii< n d o tcs e oficiais, artesãos que trabalhavam em oficinas, fazendeiros
ie com andavam suas propriedades. Ainda que a Sum éria antiga
dividida em diversas c idades-l-stado independentes, o passado descorti-
lltld.» ilti Mi topotâm ia até cerca de 3500 a.C. revelou que os adm inistradores
H p 1 1 | m plos j.i pareciam ter desenvolvido um sistem a único e uniform e de
ItiltHbillil.iile um sistema que, em alguns aspectos, continua conosco até
l»i|» ........rdade porque devem os aos sum erianos algum as coisas com o a
HM•' '1 >111 por dúzias, a hora de 60 minutos ou a divisão do dia em 24 horas.52
A unidade m onetária básica era o siclo de prata. O peso de um siclo de prata
, f f f pihiltrln ido com o o equivalente a u m gur, ou bushel de cevada. O siclo era
' ||tl-.li' i.li.ln em sessenta m inas, correspondendo a uma porção de cevada -
g|MM Imm no princípio de que havia trinta dias em um mês, e os trabalhadores
tlii n 111pio recebiam duas rações de cevada por dia. É fácil perceber que o
tlllili.». i”, nesse sentido, não é de m odo nenhum o produto de transações
fMintii Mis Na verdade, ele foi criado por burocratas para rastrear os recursos
9 Ifniitlt i 11 itens entre departam entos.
« burocratas do tem plo usavam o sistem a para calcular as dívidas
(ftliiiMii k , im postos, em préstim os etc.) em prata. Efetivamente, a prata era
dltil» li o I ela de fato circulava na form a de pedaços não cunhados, “barras
• ................ui*» disse Adam Sm ith.^ Nisso ele estava certo. Mas praticamente só
|Mi te do relato estava correta. Para começar, a prata não circulava muito.
A mmIoi parte dela ficava arm azenada nos tesouros do templo e do palácio,
alyinri desses tesouros continuaram guardados no m esm o lugar durante
Ifilllitii 1 x de anos - literalmente. Seria muito fácil na época padronizar os lin-
I m1 1ix, 1-los, criar um sistema confiável para garantir sua pureza. Existiu
Mi ilt i^i.1 para isso. No entanto, ninguém sentiu a necessidade particular de
fi#*1 l<* I )ma das razões é que, apesar de as dívidas serem calculadas em prata,
t*|.i*t ii.in precisavam ser pagas em prata - na verdade, elas podiam ser pagas
(IMl* 1 ui menos com qualquer coisa de que se dispusesse. Os cam poneses que
»1» v Min dinheiro ao templo ou ao palácio, ou para algum oficial do templo ou
»In |mI;u lo, parecem ter liquidado suas dívidas principalm ente com cevada,

55
e p o r isso era tào im p o rtan te lixai .i p ro p m \A o d.i prata para a cevada. Mas
era perfeitam ente aceitável aparecer to m i a b u s , m ob ília ou lápis-lazúli. ( )s
tem plos e palácios eram o p eraçõ es industriais gigan tescas desse m odo, po
diam dar utilidade a praticam ente qualquer c o is a .14
Nas praças de mercado que surgiram nas cidades da M esopotâm ia, os
p re ç o s tam bém eram calculados em prata, e o preço das m ercadorias que
não eram totalm ente controladas pelos tem plos 1 palácios tendia a flutuar
de aco r 5 o c o m a õfêrta e a procu ra. Mas, m esm •
tem os sugerem que a m aioria das transações era baseada no crédito. Os
com erciantes (que às vezes trabalhavam para os templos, às vezes de forma
independente) estavam entre os poucos que usavam com frequência a prata
nas transações; mas até m esm o eles faziam a m aior parte de suas transações
à base do crédito, e as p essoas com uns que com pravam cerveja das “cer­
vejeiras” ou dos estalajadeiros locais tam bém abriam um a conta que seria
liquidada, na época da colheita, com cevada ou outra coisa que tivessem
em m ão s.35
N essa altura, praticam ente todos ós aspectos do relato convencional
sobre as origens do dinheiro caem por terra.. Pouquíssimas vezes uma teoria *
i listó rica foi refutada de m aneira tão absoluta e sistem ática. Nas prim eiras
décadas do século x x , já sexonheciam todas as peças para que a história do
dinheiro fosse inteiramente reescrita. A prim eira peça foi m ovim entada por
Mitchell Innes - o m esm o que citei ao falar do bacalhau - em dois ensaios
publicados no Banking Law Journal de Nova York, em 1913 e 1914. Neles, Mitchell
Innes expõe sem nenhum rodeio as falsas suposições nas quais se baseava a
história da econom ia com o a conhecíam os e sugere que precisam os na ver­
dade de uma história da dívida:

Uma das falácias populares em relação ao comércio é que, nos tempos m o­


dernos, foi introduzido um recurso econômico chamado crédito e que, antes
de esse recurso^er conhecido, todas as compras eram pagas em dinheiro
vivo, em outras palavras, em moedas. Uma investigação cuidadosa mostra
que justamente o inverso é verdadeiro. Antigamente, as moedas tinham um
papel muito menor no comércio do que têm hoje. Na verdade, a quanti-

56
,1. . 1, inunl.r. disponív el cia (Ao pequena que ucm sequer hastava para as
H*t Mkltlatlrt da lainílla real |Inglesa medieval| e dos estam entos que regu-
lm nu nu usavam v.u los tipos de moeda sim bólica com o propósito de rea-
j Ê Ê f |in|i il uos pag am e n to s. Com efeito, a cunhagem era tão insignificante

jâ M Mui li ii‘<v» /es os reis nAo hesitavam em retirar todas de circulação para
■tyi fitMcm rei unhadas e redistribuídas, e apesar disso o com ércio conti-
JHi«iv«i t «aiainente do m esm o jeito.16

N k i- h U I e, nosso relato-padrãoda história m onetária é definitivamente


N o m i Ao u imeçamos com o escambo e depois passamos pela desco-
iii • iIn ilii Iro, alé chegarm os ao desenvolvimento dos sistemas de crédito,
Um u i ontr. i rio. O que hoje cham am os de m oeda virtual veio prim eiro.
•I i .li melai apareceu muito tem po depois, e seu uso se difundiu ape-
. ... d e s i g u a l , sem jam ais substituir por com pleto os sistemas de
o Mim ninho, por sua vez, parece ser principalm ente um tipo de sub-
iii i. idi ui.d d o uso da cunhagem ou do dinheiro em papel: em term os

Ittli n*. o est am bo tem sido principalmente o que as pessoas acostumadas


£ IfUniav><*s l’m dinheiro vivo fazem quando, por alguma razão, não têm
IÉ l l ineda corrente. .
i» i ui h >so é que isso nunca aconteceu: essa nova história nunca foi es-
■ N. ío que os econom istas tivessem refutado Mitchell Innes. Eles simples-
- tu >i,ii.mi. Os m anuais nào m udaram seus relatos - m esm o que
■ t i n i a i e vi d e n c i a s deixassem claro que eles estavam errados. A sj^essoas
iÜ tytliiuam esi revendo histórias do dinheiro que na verdade são histórias da
m, partindo do pressuposto de que, no passado, as duas coisas eram
MM «i. i »s períodos em que a cunhagem desapareceu em grande.escala ainda
j f l i ’ iltmi i ii p f com o épocas em que a econom ia “retornou para o escam bo”,
• . • sentido dessa frase fosse evidente, ainda que ninguém saiba real-
Jftuni. iique significa. De m odo que não temos praticamente nenhuma ideia
■ l l i ii i i M os habitantes de um a cidade holandesa em 950 d.C., por exemplo,
miimi r 111.1111 queijo, colheres ou m úsicos para tocar no casam ento de suas
HIIm i menos ainda com o isso se dava em Pemba ou em Sam arcanda. ''

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