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Falhas Nao Reconhecimento Da Alteridade No Casos de Devolução de Adoções Tardias
Falhas Nao Reconhecimento Da Alteridade No Casos de Devolução de Adoções Tardias
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Artigo
Falhas no reconhecimento da alteridade nos casos
de devolução em adoções tardias
Débora da Silva Sampaio
Andrea Seixas Magalhães
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Resumo: Este estudo é parte de uma ampla investigação sobre vivência do processo de adoção malsucedida
de crianças e adolescentes sob a perspectiva dos adotantes. Foi realizada uma pesquisa qualitativa, com base em
entrevistas semiestruturadas com 11 sujeitos independentes, nove mulheres e dois homens, moradores de diferen-
tes estados do Brasil, que passaram por adoções malsucedidas. Neste trabalho, buscamos investigar as falhas no
reconhecimento da alteridade do filho, vivenciadas no período do estágio de convivência, nos casos de devolução
na adoção. Foi comum, entre os participantes, a busca por uma explicação psicopatológica para os comportamentos
considerados ruins da criança/adolescente. Ficou evidente a necessidade de maior investimento afetivo-emocional
nos períodos iniciais do estabelecimento do vínculo parento-filial, para o acolhimento da criança/adolescente em sua
totalidade e individualidade.
http://dx.doi.org/10.1590/0103-6564e210008
Débora da Silva Sampaio & Andrea Seixas Magalhães
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Destacamos, nesse processo, o confronto com o do igual representaria a recusa ao reconhecimento da
reconhecimento da alteridade do filho, que passa a ser alteridade e à experiência intersubjetiva. O encontro
evidenciado a partir do período de convivência, no início do com o outro passa pelo inevitável choque da não
processo de adoção. O reconhecimento da alteridade inclui adaptação plena, ou seja, da impossibilidade de
o confronto com semelhanças e diferenças, proximidade adequação (Coelho & Figueiredo 2004).
e distanciamento (Coelho & Figueiredo, 2004). O conceito de alteridade é marcado pelas dimensões
O termo reconhecimento traz em seu significado do processo da intersubjetividade e suas vicissitudes como
dois aspectos importantes. O primeiro estaria relacionado área recente de estudo e pesquisa em psicologia. Coelho
ao reconhecimento racional e objetivo de características e Figueiredo (2004) apresentam quatro matrizes dos
particulares, como quando alguém é reconhecido em estudos sobre intersubjetividade. Os autores traçam um
uma fotografia, por exemplo. Já o segundo aspecto percurso desde as discussões mais filosóficas, passando tela
denota o reconhecimento em termos do sentimento intersubjetividade marcada pelo traumático em E. Lévinas,
de honra, admiração. O reconhecimento da alteridade indo para o pragmatismo social e o interacionismo simbólico,
inclui essas duas dimensões, com a validação das até chegar às contribuições da psicanálise na constituição
características individuais e o discernimento quanto à subjetiva do eu, por meio de uma intersubjetividade
singularidade do outro em termos subjetivos, envolvendo intrapsíquica. Essas matrizes indicam dimensões da
familiaridade e respeito pelo outro. Nesse sentido, o alteridade que devem ser pensadas como processos
reconhecimento exige certo grau de amadurecimento simultâneos na elaboração e constituição subjetivas.
consciente em uma dimensão ética dos relacionamentos. A psicanálise traz contribuições importantes para
Caso contrário, pode-se invadir o outro com verdades compreendermos a constituição subjetiva a partir das
tidas como absolutas (Machado, 2012). relações primordiais com o outro e, portanto, destacamos
A experiência de reconhecimento da alteridade a centralidade do conceito de alteridade para discutir
exige que o sujeito seja capaz de lidar com diferenças essa constituição. O bebê humano é marcado pela
e semelhanças, aproximação e distanciamento, para necessidade de um outro que o acolha para garantir sua
que os contornos psíquicos da individualidade do outro sobrevivência. Assim, o reconhecimento do outro em
sejam respeitados. Quando se invadem os limites do sua alteridade pode ser pensado desde os primórdios da
espaço de autonomia do outro, esse encontro, em vez nossa constituição psíquica, quando precisamos de um
de proporcionar reconhecimento das singularidades, se outro para sobreviver, em todos os sentidos, inclusive
transforma em um meio de colonização, impossibilitando afetivos. Dito de outro modo, para existir, o ser humano
os espaços de troca, aprendizagem e amadurecimento. precisa de um outro que o reconheça.
O que predomina, então, é uma relação de subordinação
(Frosh & Baraitser, 2003). Santos e Fortes (2011) assinalam que, no processo
Para Frosh e Baraitser (2003), o reconhecimento de constituição subjetiva, a dupla face do outro está sempre
da alteridade não seria algo exclusivamente relacionado operando na relação com o bebê, por vezes amparando
a capacidades cognitivas ou a um espelhamento das e contendo, e, em outros momentos, desamparando e
características do outro. Todavia nos remete a um lugar faltando. Esses dois aspectos seriam inerentes à alteridade.
sagrado que se refere à autonomia e singularidade do O outro é determinante na constituição psíquica do bebê, ao
espaço interno desse outro. Para os autores, permitir passo que constrói um laço libidinal entre eles, oferecendo
a diferença e apreciar a semelhança seria a dimensão destino e contenção ao excesso pulsional originário.
do reconhecimento que impediria que este outro fosse Desse modo, a presença do outro está necessariamente
colonizado. Assim, entender o outro como diferente inscrita no modelo freudiano de psiquismo.
não seria suficiente, podendo funcionar como defesa Podemos dizer que o reconhecimento da
contra o reconhecimento. É preciso notar e experimentar alteridade evidencia a dimensão ética nas relações,
a semelhança da experiência humana. No tocante às temática aprofundada por Lévinas (1997). Para o
adoções tardias, o não reconhecimento da alteridade da autor, a alteridade pode contribuir para uma forma
criança/adolescente implica uma colonização outro, uma mais humana de convívio em sociedade, uma vez
tentativa de apagar ou desconsiderar, em parte, a sua que cada um tenha responsabilidade pelo próximo.
própria subjetividade. No encontro com o filho, é comum O autor propõe a ética como filosofia primeira,
que a ênfase recaia sobre a busca pelas semelhanças, considerando a alteridade como princípio da relação
enquanto o encontro com as diferenças aponta para o humana. Nesse sentido, a alteridade representa
estranho na relação, aquilo que não se reconhece e, por elemento essencial na constituição da subjetividade
esse motivo, pode se tornar insuportável, resultando na e, para compreender esse processo, o conceito
devolução da criança/adolescente. de intersubjetividade se faz presente na obra do
A vivência da alteridade representa o trabalho autor. Para Lévinas, a intersubjetividade implica
existente entre convivência e transformação que no deslocamento ou modificação da experiência
permeia o encontro com o outro. Por isso, compreender subjetiva em sua abertura inevitável ao outro. Assim,
a experiência de subjetivação apenas pela assimilação a alteridade sempre ultrapassará a capacidade de
Abstract: This study derives from a broader investigation on the experience of unsuccessful adoptions of children and
adolescents from the adopters’ perspective. Based on a qualitative approach, we conducted semi-structured interviews with 11
independent subjects (nine women and two men), living in different states of Brazil, who experienced unsuccessful adoptions.
The research investigates the failure in recognizing the child’s alterity, experienced during the cohabitation stage, in cases of
disruptions. Common among the participants was the search for a psychopathological explanation for the child/adolescent’s
supposed bad behaviors. Results show the need for greater emotional-affective investment in the initial periods of establishing
the parent-child bond, to welcome the child/adolescent in their totality and individuality.
Résumé: Cette étude découle d’une recherche approfondie sur l’expérience des adoptions infructueuses d’enfants et
d’adolescents du point de vue des adoptants. Axé sur une approche qualitative, on a mené des entretiens semi-structurés avec
11 sujets indépendants (neuf femmes et deux hommes), habitant dans différents États du Brésil, qui ont vécu des adoptions
infructueuses. La recherche s’intéresse à l’échec de la reconnaissance de l’altérité de l’enfant, vécues pendant la phase de
coexistence, dans les cas d’interruption de l’adoption. Il était courant, chez les participants, la recherche d’une explication
psychopathologique aux comportements dit mauvais de l’enfant/adolescent. Les résultats montrent la nécessité d’un plus
grand investissement émotionnel-affectif dans les périodes initiales d’établissement du lien parent-enfant, pour accueillir
l’enfant/adolescent dans son intégralité et son individualité.
Resumen: El presente estudio es parte de una extensa investigación sobre la experiencia del proceso fallido de adopción
de niños, niñas y adolescentes desde la perspectiva de los adoptantes. Se realizó una investigación cualitativa, basada en
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