Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Dossiê Sobre BOURDIEU Da Revista CULT
Dossiê Sobre BOURDIEU Da Revista CULT
A
valiar o impacto que a sociologia de Pierre Bourdieu
(1930-2002) provocou no pensamento do século 20
certamente envolve uma espécie de constrangimen-
to. Em primeiro lugar, porque Bourdieu construiu
um enorme corpo teórico, incluindo estudos em quase todos
campos de interação social; seja na economia, na religião, na
arte, na politica, na comunicação ou na educação, suas análises
buscaram compreender os fenômenos sociais tanto sob uma
perspectiva estrutural, na interposição entre agentes dominan-
tes e dominados em um campo social determinado, quanto sob
a perspectiva "concreta" desses mesmos fenômenos, a exemplo
das análises empíricas sobre alta-costura, sobre as visitas aos
museus na Europa, sobre o mercado imobiliário, sobre o agen-
da setting no jornalismo, ou até sobre os jogos olímpicos. Ao
tentar resumir a multiplicidade de sua produção, em um dossiê
de poucas páginas, corre-se o risco portanto das distorções que
todo grande pensador pode eventualmente sofrer.
Mas a tarefa se torna ainda mais problemática quando sa-
bemos que Bourdieu é um dos autores mais lidos nas ciências
humanas. De fato, alguns dos conceitos operacionais criados
pelo sociólogo, como "capital cultural", habitus, "campo"
[ver quadro neste dossiêJ, hoje são colocados em circulação
no meio acadêmico como instrumentos indispensáveis para
TE DE COMBATE
as diversas práticas sociológicas que não se limitam ao diag- Durkheim e Weber, além de internalizar os aportes teóricos
nóstico das assimetrias económicas de classes. Valem para que o estruturalismo oferecia à compreensão das diferentes
o conhecimento transversal que perpassa desde a medicina dinâmicas culturais, nem por isso imunizou as críticas ao aos
social até o jornalismo. Além disso, seu engajamento, suas rígidos estamentos universitários; fato que lhe rendeu severa
intervenções como figura marcante no debate público fran- antipatia entre alguns de seus pares.
- cês e nos movimentos globais contra o neoliberalismo (basta Assim, apesar das dificuldades de dar conta em poucas
recordar sua participação na greve de 1995 que paralisou o páginas de uma obra tão polêmica e multifacetada como a de
sistema de transportes na França), concederam-lhe uma po- Bourdieu, o dossiê desta edição privilegiou aqueles aspectos
pularidade controversa e bastante rara entre os intelectuais, que pelo menos asseguram um panorama consistente de suas
sobretudo a partir da década de 70. Na melhor tradição de idéias principais e de seu ativismo político. Como introdução,
Zola, Bourdieu acreditava que o intelectual deveria servir aos Maria das Graças Setton fala sobre a formação do "gosto",
interesses de uma verdadeira práxis de transformação social, sob a ótica de Bourdieu; José Sérgio Leite Lopes, sobre sua
apontando os mecanismos de reprodução de toda dominação trajetória e participação política; Clóvis de Barros Filho, so-
simbólica. O papel da sociologia, subsidiária de uma ampla bre sua sociologia da comunicação; Ilana Goldstein, sobre
teoria reflexiva, seria o de fornecer então as armas teóricas a sociologia da cultura; Ana Paula Hey e Afrânio Catani,
necessárias para esse desvelamento da realidade e para sua sobre sua decisiva contribuição para a educação. Em entre-
conseqüente transformação. É nesse sentido que "a sociologia vista, Bourdieu afirmou que "atualmente estamos engajados
é um esporte de combate", boutade que virou título de um num combate, em defesa de uma civilização, e o Brasil, que
documentário sobre o cotidiano do sociólogo. sofreu a política neoliberal (... ) mas que tem grandes recursos
A originalidade de metodologia de Bourdieu e sua rela- culturais, históricos, pode ser um dos lugares de resistência".
ção com os saberes instituídos, por outro lado, não deixa- Compreender Bourdieu significaria, portanto, compreender
ram de ser alvo de ataques passionais. Afinal, se num primei- também nosso imperativo de resistência.
ro momento soube assimilar o cânone formado por Marx, (Eduardo Sacha)
45
DOSSIÊ ) PIERRE BOURDIEU
estratégia: em Coisas Ditas, Bourdieu afirma sentido prático: origem das práticas rituais que
que "a noção de estratégia é o instrumento estabelecem a coerência parcial em um deter-
de uma ruptura com o ponto de vista objeti- minado campo.
vista e com a ação sem agente, suposta pe-
lo estruturalismo (que recorre por exemplo à violência simbólica: termo que explicaria a
noção de inconsciente) [... ] Ela é produto do adesão dos dominados em um campo: trata-
sentido prático." se da dominação consentida, pela aceitação das
regras e crenças partilhadas como se fossem
habitus: sistema aberto de disposições, ações "naturais", e da incapacidade crítica de reconhe-
e percepções que os indivíduos adquirem com cer o caráter arbitrário de tais regras impostas
o tempo em suas experiências sociais (tanto na pelas autoridades dominantes de um campo.
dimensão material, corpórea, quanto simbólica, (Eduardo Socha)
46
Uma introdução
a Pierre Bourdieu
Pela discussão do gosto, Bourdieu denunciou as distorções na
produção da cultura e na sua difusão educacional
47
DOSSIÊ ) PIERRE BOURDIEU
49
DOSSIÊ ) PIERRE BOURDIEU
50
Articulações inovadoras
entre ciência e política
A posição política de Bourdieu está diretamente associada aos instrumentos de
libertação fornecidos pela pesquisa científica
José Sérgio Leite Lopes
do Estado, o Estado social de que nos fala passou, mas pleno também dos instrumentos
dois anos depois Robert Castel (em seu livro intelectuais e científicos para fazê-lo, Bourdieu
Metamorfoses da questão social). É então que, torna-se um colega maldito por muitos de seus
perto da aposentadoria compulsória aos 70 pares concorrentes, que O vêem 'como um soci-
anos no ano 2000, Bourdieu torna-se um in- ólogo rigoroso, pouco político no sentido tra-
telectual de projeção nos movimentos sociais dicional do intelectual total, mas incômodo
e na resistência à intensificação da entrada do na crítica reflexiva ao mundo intelectual. A
capitalismo em todas as esferas da vida, fazen- relutância de Bourdieu de participar nas for-
do aumentar as distâncias entre classes e gru- mas tradicionais de assinatura de manifestos
pos sociais, e, como salientado por ele, amea- e petições acaba também ocultando o sentido
çando processos históricos de autonomização político de sua prática de pesquisador. Essa
do campo cultural em relação ao poder eco- prática é uma contribuição política de longo
nômico, revertendo o que foi sendo construído prazo, investida nos resultados e na maneira
desde séculos anteriores. de fazer pesquisa.
Desde o desvendamento da transmissão
Estudo das formas de dominação da herança familiar que traz o aluno diante
Essa posição de intelectual de grande visi- da escola pública republicana, reproduzindo
bilidade política dos anos 1990 surpreendeu a as desigualdades na escola, o chamado ca-
imagem que tinham de sua trajetória anterior pital cultural (ver a coletânea Escritos sobre
colegas mais distantes ou rivais e, portanto, educação,organizada por A. Catani e Maria
certo senso comum na universidade francesa. Alice Nogueira, Ed. Vozes), até as formas de
De fato, Bourdieu distinguia-se por escolher poder criadas pelas grandes escolas do siste-
novas formas inusitadas de dominação para ma universitário bi-partido francês que se cris-
analisar, através de modos reflexivos de análise talizam numa nova nobreza de Estado, pas-
- inclusive a análise crítica da escola, da arte, sando pela análise do campo político e pelo
da ciência e dos intelectuais - ameaçando de campo econômico, Bourdieu orienta-se para
certa maneira o conformismo escolar e univer- a dissecação crítica do campo do poder na
sitário. Após sua experiência no mundo rural sociedade moderna. No entanto, aquilo que
em transformação, tanto argelino como fran- aprendeu nas sociedades tradicionais e cam-
cês - onde estuda o drama do celibato campo- ponesas e nos fenômenos de proletarização e
nês em seu próprio povoado de origem (sem sub-proletarização do início de sua carreira, e
dizê-lo), reconciliando-se, através do que viu que é trabalhado de forma teórica em seus li-
do mundo rural argelino, com seu mundo de vros Esboço de uma teoria da prática (1972)
origem, do qual se distanciara por sua forma- e O senso prático (1979), estará sempre pre-
ção universitária - Bourdieu tem as condições sente em sua noção de habitus, construída na
materiais (como diretor de pesquisa da Escola primeira socialização familiar e também na
de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris ação de inculcação escolar ou profissional. Sua
aos 34 anos de idade) de estudar sistematica- insistência no entendimento da prática e das
mente as formas específicas de dominação que condições de possibilidade da ação humana
se manifestam na educação e na cultura. faz par com sua aversão ao saber escolástico
Cria assim a noção de campo que dá des- do mundo acadêmico e intelectual, visto co-
taque à autonomia de certo domínio de con- mo uma forma de dominação. E é na virada
corrência e disputa interna, noção que é um dos anos 1990 que Bourdieu volta de forma
instrumento na constituição de um método re- analítica à empatia que tem pelos dominados
lacional de análise das dominações e práticas (e que se manifestara na sua produção sobre
específicas a um determinado mundo social. o campesinato argelino e francês), acionando
Dotado de um impulso e uma libido volta- sua rede de pesquisadores para os apresentar
dos para a análise crítica do mundo artístico de forma sensível, através de entrevistas apro-
e intelectual, possivelmente advindos de suas fundadas, como em A miséria do mundo e em
experiências de origem social confrontadas às capítulos importantes de seu livro de maturi-
hierarquias e dos internatos escolares por que dade Meditações pascalianas.
52
Origens e características da trajetória que compõem sua marca distintiva no campo das ciências sociais de·
Mas essa forma diferente de construir um seu tempo. Esses instrumentos poderão ser ilustrados pela leitura do
outro ponto de vista sobre a política vinha sen- seu livro publicado em 1968 com seus colegas de então J. C. Passeron
do feita desde o início de sua trajetória profis- e J. C. Chamboredon, A profissão do sociólogo. Essa opção na filosofia
sional, embora somente reconhecida por um contribuiu para fazê-lo aproximar-se das ciências sociais e lhe deu uma
círculo mais próximo de colaboradores e leito- sólida base para apropriar-se da etnologia, da sociologia e das técnicas
res, incluindo uma rede internacional de pes- estatísticas de forma não-escolar e de forma autodidata. Além disso,
quisadores que teve a estratégia de longo pra- deu-lhe condições de valorizar todos os procedimentos do trabalho
zo de estimular. Esse estilo de tomar posição científico, mesmo as consideradas mais modestas, usualmente delega-
através da prática científica, desvendando os das a alunos e auxiliares.
mecanismos mais sutis de dominação e vendo
tal conhecimento servindo como instrumentos Período na Argélia
de libertação, pode explicar-se por algumas A sua conversão para a etnologia e depois para a sociologia se deu
características de sua trajetória. no impacto de sua estadia na Argélia. Logo após completar seus estudos
Uma dessas características é o fato de ter na École Normale, passar pelo concurso da agrégation que o habilita
incorporado ao longo de sua obra um trabalho ao ensino secundário e universitário no sistema público de educação
reflexivo permanente e sutil sobre os efeitos de nacional (e que o dispensou posteriormente de fazer o doutorado),
sua origem, incorporados à sua trajetória esco- Bourdieu é convocado aos 25 anos para o serviço militar na Argélia.
lar e profissional, assim como à sua percepção Serviu numa guarnição que protegia um enorme estoque de munição no
dos processos sociais. Embora anteriormente interior da então colônia e depois passou para o serviço burocrático do
à sua obra póstuma de auto-análise os leito- governo geral francês em Argel. Paralelamente a suas tarefas de escri-
res familiares e atentos à sua obra pudessem turário e redator no gabinete militar, fazia para si mesmo anotações de
perceber através de seus textos algo dos refe- suas observações sobre o país que culminaram em seu primeiro livro,
ridos efeitos de forma implícita, somente após Sociologie de I'Algérie, publicado em 1958 na coleção "Que Sais-je?"
a publicação de Esboço de auto-análise (ver ("Saber Atual"), onde sua empatia pelo povo argelino dominado pela
também o prefácio de Sergio Miceli na edição França se vestia do conhecimento da complexidade da tradição cultural
brasileira) que essa característica fica mais evi- de suas diferentes etnias, no momento mesmo em que tal tradição é ne-
denciada para um público leitor mais amplo. gada na metrópole colonial e mal conhecida pelos próprios intelectuais
Como se sabe, Bourdieu teve uma infância pas- franceses engajados contra o colonialismo.
sada num povoado rural dos Pirineus france- Ao término do serviço militar, deu cursos de filosofia e sociologia na
ses, neto de camponeses e filho de funcionário Faculdade de Argel, onde pôde reunir um grupo de estudantes para fa-
local dos correios, origem esta muito impro- zer pesquisas de campo, complementares aos cursos, e depois pesquisas
vável de compatibilizar-se com o seu ótimo etnográficas e estatísticas, desenvolvidas por uma associação que reuniu
percurso escolar que o levou pelo sistema me- jovens estatísticos do INSEE (o IBGE francês) e sua própria equipe de
ritocrático do ensino público francês a suces- estudantes, onde se destacava seu futuro colega e amigo de toda a vida
sivos internatos, primeiramente no ginásio da Abdelmalek Sayad. Foi assim que na Argélia, fascinado pela tradição
cidade maior da região, depois no renomado cabila que se perdia e pela transformação brusca do campesinato pela
liceu Louis le Grand de Paris e finalmente no modernização capitalista e pela política colonial, Bourdieu desenvolve
setor de filosofia da Escola Normal Superior de de forma autodidata a pesquisa etnográfica e o aprendizado das técnicas
Paris. No seu esboço de auto-análise Bourdieu estatísticas. É do tesouro de aprendizados e de lições humanas vividos
dá destaque à sua vivência das agruras entre na Argélia, a que é levado de início ao acaso e compulsoriamente, que
os alunos internos da província e de origem Bourdieu tirará materiais analíticos pelo resto de sua vida, alimentan-
popular, dos quais ele fazia parte, e os alunos do sua obra futura - e isso, mesmo quando ela se volta para realidades
externos parisienses de alta origem, como que empíricas distintas.
lhe proporcionando uma visão precoce e inter- Também é do período argelino o início da elaboração de suas po-
nalizada das desigualdades sociais no acesso à sições políticas relacionadas ao conhecimento científico.· Nesse caso,
educação e à cultura. sua posição era a de fazer a pesquisa etnológica, mesmo enfrentando
Uma segunda característica na formação de os perigos da situação extrema de guerra colonial contra a insurreição
Bourdieu se dá através do seu treinamento na nacionalista argelina, e revelar ao público a análise de processos sociais
área de filosofia e história da ciência, que lhe desconhecidos das autoridades coloniais, bem como dos intelectuais
propiciou instrumentos de base epistemológica críticos franceses, assim como de boa parte da rede de militância e de
53
DOSSIÊ ) PIERRE BOURDIEU
apoio dos revoltosos. Isso é argumentado no verdadeiro manifesto que que podem ser fornecidos pela pesquisa cientÍ-
é o prólogo que inicia a segunda parte do livro Trabalho e trabalha- fica naquela situação. Além disso, no prefácio
dores na Argélia, de 1963 (versão resumida em português, O desen- do livro, sobre o que denomina de "fetichismo
cantamento do mundo), onde se coloca contra as posições de princípio da estatística", inicia uma linha de crítica aos
destituídas do mínimo de conhecimento empírico dos processos sociais artefatos estatísticos utilizados para justificar
em questão da parte de intelectuais franceses críticos à guerra colonial efeitos de dominação social, análise que pros-
(tendo como mote o artigo de um etnólogo declarando ser impossível seguirá posteriormente com relação às sonda-
fazer-se pesquisa naquelas condições). A posição política implícita de gens de opinião pública que regem cada vez
Bourdieu se dá através da valorização dos instrumentos de libertação mais a política eleitoral.
54
Legado congregando uma rede de intelectuais euro-
De fato, em sua trajetória ascendente ful- peus críticos e coleções de livros a baixo custo
minante no mundo universitário, Bourdieu numa linha militante como Raisons d/agir -,
contará com o acaso e o senso de oportunida- tomaram-lhe parte importante de seu ritmo
de de oferecer análises decisivas a fenômenos impressionante de atividades.
e processos sociais que estiveram no centro Seu legado é constituído pela profusão de
da atualidade política e social. Assim foi com instrumentos de pesquisa, por ele formulados,
suas análises das sociedades argelina e cabília para serem desenvolvidos em várias áreas das
quando a guerra da Argélia era a questão de- ciências humanas. Embora ainda visto freqüen-
cisiva para a França no início dos anos 1960; temente com antipatia no pequeno mundo dos
assim foi também com suas análises, junto com colegas concorrentes, de alguns jornalistas e in-
l.C. Passeron, sobre o sistema escolar fran- telectuais midiáticos, e da profusão de escolas
cês e sobre a centralidade ocupada pela escola de pensamento rivais na França, seu renome
nas sociedades contemporâneas, antecipando científico internacional é cada vez maior. No
a crise de 1968 e dando instrumentos para a Brasil sua recepção foi precoce, comparado
sua compreensão (o livro Les heritiers, ainda particularmente aos campos acadêmicos norte-
não traduzido, é de 1964). Também esse senso americano e inglês. Enquanto estes descobri-
de estar tocando, pelos resultados de pesqui- ram Bourdieu no final dos anos 1980 e durante
sa, em problemas cruciais da atualidade, sem os anos 1990, traduzindo já suas obras mais
estar procurando para isso satisfazer à mídia famosas e maduras, no Brasil ele é ensinado
(antes pelo contrário, analisando seus efeitos em algumas pós-graduações de antropologia e
nefastos), se produz também como vimos nos sociologia (a partir de alguns poucos ex-alunos
anos 1990, quando da publicação de A misé- brasileiros) desde o início dos anos de 1970,
ria do mundo. através de artigos em revistas e seus primeiros
Bourdieu dá importância aos imponderá- livros. Também desde 1974, com a publicação
veis da vida real, que acabam fazendo da ne- da coletânea A economia das trocas simbóli-
cessidade virtude, baseado em sua própria tra- cas, organizada por Sergio Miceli, seus artigos
jetória pessoal. Assim foi com o fato de fazer iniciais esclarecedores, difíceis de serem encon-
dos prolongamentos de seu serviço militar a trados hoje em francês, ficaram accessíveis pa-
ocasião de seus primeiros trabalhos científi- ra o público universitário brasileiro.
cos de peso, de fazer de sua falta de capital Além disso, suas reflexões inovadoras e sua
cultural herdado um estímulo à análise crítica própria prática, articulando atividade científica
dos intelectuais e dos artistas após um enor- e intervenções políticas, chegando a resulta-
me esforço de aquisição dos instrumentos de dos mais gerais a partir de objetos de análise
conhecimento necessários; assim foi também singulares inusitados, assim como trabalhan-
transformar suas posições de desvantagem so- do sobre objetos tradicionais - entre os quais
cial vividas no impulso de desvendamento das aqueles banalizados pelas atualídades da mídia
dominações e na sensibilidade que tem com os - sob novos pontos de vista, constituem sua
dominados. Mesmo o fato de trabalhar forte- contribuição a perdurar, conservando seu po-
mente em equipe no início de suas pesquisas, der inovador e sua atualidade no futuro. ri
formando uma extensa rede de colaboradores
na França e internacionalmente, deu-se pela
sua necessidade (e ansiedade) de afrontar-se
aos seus colegas estabelecidos, afeitos às prá-
ticas de cátedra, nas instituições prestigiosas
a que foi galgado. Não somente suas próprias
obras, como a revista inovadora Actes de la
Recherche em Sciences Sociales, fundada em
José Sérgio Leite Lopes é professor do Museu Nacional/UFRJ (Antropologia
1975, e as coleções que dirigiu, introduzindo Social), autor de O vapor do diabo: O trabalho dos operários do açúcar (1976) e
em língua francesa autores de outras tradi- organizador de A ambientalização dos conflitos sociais: Participação e controle
ções nacionais - e depois revistas como Líber, público da poluição industrial (2004).
55
DOSSIÊ ) PIERRE BOURDIEU
56
nfelizmente o sociólogo Pierre revista Contigo, e exclui prováveis sociológico que recentemente se im-
57
DOSSIÊ ) PIERRE BOURDIEU
objeto, as mais teóricas. Logo, expli- senso comum acadêmico que avalia a por jovens, cheios de hormônios, que
car a produção dos meios de comuni- mídia segundo "achismos". Ao cons- habitam os centros acadêmicos.
cação através de dados de audiência, tatar que o discurso de um jornalista, A produção da notícia, ou da pro-
tiragem, assinantes, cliques, e quanti- ou de um relações públicas, não é em paganda, também não é fruto de dese-
dade de anúncios recai num equivoco nenhum momento pautado pelos cri- jos individuais que querem se expres-
grave que só é justificado pelo imagi- térios "idealistas" de transparência, sar em toda sua "força" visando sua
nário do senso comum. objetividade, neutralidade e democra- satisfação e fluidez, característico das
tização do conhecimento, constata- ditas "sociedades pós-modernas" de
"Um jornalista escreve para mos que tais produções são frutos de consumo. Não é o hedonismo naif o
outro jornalista" um jogo de desejos. As matérias são "combustível" que move os comunica-
O campo de produção de conte- selecionadas e escritas visando atin- dores de diversas áreas, como querem
údos midiáticos tem regras próprias gir interesses os mais diversos, deter- acreditar os pensadores pós-moder-
que se encontram em seus próprios minados pela posição do agente no nos. São desejos complexos de aceita-
agentes e nas suas relações com os campo. Sem altruísmos e sem pensar ção no campo, disputa e dominação
demais. No meu livro O 'habitus' na no "bem comum", apesar de seus dis- que estão em jogo. São os troféus dos
comunicação, mostro como a produ- cursos identitários. campos e suas posições de destaque e
ção jornalística é fruto de um habi- dominância o fim último da produção
tus jornalístico, utilizando o jargão Jogo da comunicação de notícia. A "preocupação" com o
de Bourdieu, onde os critérios de fato Nem mesmo os publicitários, ti- leitor, telespectador, ou consumidor é
jornalístico e de pauta não são meras dos como manipuladores, estão inte- somente uma desculpa para justificar
estratégias burguesas de dominação, ressados no bem de seus clientes ou seus acertos ou fracassos. Respeitar
como diria um marxista, mas sim fru- dos consumidores. No que se refere o "bem" da empresa que contrata o
tos de uma interiorização da aprendi- aos discursos acadêmicos dominan- comunicador é somente uma mera
zagem jornalística. Interiorização esta tes sobre a comunicação, a sociologia desculpa para se manter empregado e
que aprende a ver o mundo segundo de Bourdieu, através de uma pesqui- continuar jogando o jogo da comuni-
uma determinada importância, classi- sa de campo rigorosa, expõe as in- cação. Jogo esse com regras bem cla-
ficada em certas editorias jornalísticas genuidades e os erros que perspecti- ras, mas quase nunca expressas.
(primeira página, cidade, esporte, in- vas marxistas e pós-modernas fazem Por essas duas razões, a sociolo-
ternacional etc.), pensa numa quan- da produção midiática. Há, sim, in- gia de Pierre Bourdieu encontra difi-
tidade "x" de caracteres, e avalia a teresses envolvidos na fabricação de culdades em se estabelecer no mundo
matéria segundo as observações de uma notícia, como ambos denunciam. acadêmico e mercadológico. Os méto-
seus pares. Como nossos pesquisados Mesmo nesta matéria que eu escrevo, dos de investigação, e seus resultados,
confessam, "um jornalista escreve pa- denunciando os interesses. Porém, o desmancham os mecanismos de defesa
ra outro jornalista". Assim como em comunicador não é movido por uma de ambos os campos. Desmascara os
nossas pesquisas sobre o campo pu- ideologia burguesa para a domina- agentes da comunicação e os interes-
blicitário, feitas na Escola Superior de ção de massa. A reunião de pauta ses acadêmicos mais sórdidos. Ao en-
Propaganda e Marketing, escutamos das grandes mídias não é, em nenhum carar tanto a produção da noticia ou
constantemente entre os dominantes momento, uma reunião de porcos as- publicidade e sua crítica voraz como
a mesma observação: "Minha pro- querosos que visam camuflar a explo- produtos de consumo recheados de in-
paganda se impõe contra meu con- ração capitalista e combater a ameaça teresses, essa sociologia cria inúmeros
corrente ... Apesar de existirem as comunista até seu total extermínio, inimigos. Nesse sentido, imita seu pró-
exigências do briefing imposto pelo posição esta compartilhada por mui- prio criador. Odiado em vida por mui-
contratante, nossa equipe está pouco tos acadêmicos da "velha guarda" e tos e admirado por muito poucos. li
preocupada com a recepção do públi-
co final. Só nos interessa o que nossos
colegas vão dizer".
O forte apego à pesquisa de cam-
po, exigência central feita pela socio-
Clóvis de Barros Filho é professor livre-docente da ECAlUSP,
logia de Bourdieu, desmascara não professor e organizador de curso na ESPM. É autor de Ética na
só o discurso interessado dos agen- comunicação (Summus, 2006) e O 'habitus' na comunicação
tes da comunicação mas também o (Ed. Paulus, 2003)
58
Hierarquias da cultura
A sociologia da arte de Bourdieu procurou evidenciar a estreita ligação
entre política e preferências estéticas
Ilana Goldstein
B
ourdieu construiu pilares fundamen- obras guardam traços de determinismos sociais
tais para o estudo sociológico da cul- que se exercem por meio do habitus do produ-
tura e da arte, a partir da aplicação tor (família, escola, contatos profissionais) e
dos conceitos de "campo" e de "ha- das demandas e constrangimentos sociais ins-
bitus" a diversas esferas de criação simbólica, critos na posição ocupada por esse artista no
como a alta-costura, a fotografia, as artes plás- campo de criação (... ). Flaubert, enquanto de-
ticas e a literatura. No pólo da criação artística, fensor da arte pela arte, ocupava uma posição
Bourdieu questionou a crença no "gênio", ou neutra no campo, opondo-se ao mesmo tempo
seja, a idéia de que um artista possa produzir à arte social e à arte burguesa".
de maneira isolada, guiado apenas por sua ins- De acordo com Bourdieu, a maior parte
piração individual. Propôs que, para se com- das estratégias artísticas são simultaneamen-
preender a gênese de uma obra, sejam levadas te estéticas e políticas. O processo pelo qual
em conta as relações do artista no campo de determinadas obras se impõem sobre outras
produção simbólica a que pertence, bem como é produto das lutas entre aqúeles que ocupam
os constrangimentos sociais e materiais a que momentaneamente a posição dominante den-
está submetido. Já no pólo da recepção, pôs em tro do "campo", em virtude de seu "capital"
xeque a idéia de que as diferenças nas atitudes e específico - e que tendem à conservação e à
escolhas do público se devam a faculdades sen- rotinização da ordem simbólica estabelecida
soriais e predisposições naturais - o "bom ou- - e aqueles que são inclinados à "ruptura he-
vido", o feeling e assim por diante. Por meio de rética", à crítica das formas estabelecidas e à
pesquisas empíricas, o autor demonstrou que as subversão dos modelos em vigor. Nessa pers-
preferências estéticas estão relacionadas, antes, pectiva, um dos grandes desafios do cientista
à origem familiar, ao grau de instrução e à po- social é desvendar as disputas envolvidas na
sição socioeconômica dos indivíduos. definição das categorias e classificações inter-
Um sociólogo de inspiração bourdieusiana nas aos campos - como "belo", "legítimo" ou
interessado em compreender o papel e a po- "moderno" -, explicitando a posição de onde
ética de determinado criador irá reconstituir fala cada agente. Faz-se necessário, portanto,
o percurso biográfico, intelectual e profissio- reconstituir o processo de construção do câno-
nal de seu objeto de estudo, mapeando suas ne, a hierarquização que preside os sistemas de
relações com outros agentes do "campo" e classificação em gêneros, escolas, estilos e pres-
seus investimentos ao longo da vida. Bourdieu tígio - frutos de disputas que acabam sendo na-
chamou esse procedimento metodológico de turalizadas. A micro-história própria do "cam-
"estudo de trajetória" e, em Razões práticas, po" é o pré-requisito para a sua interpretação.
definiu-o da seguinte maneira: "diferentemen- É por isso que uma das principais críticas que
te das biografias comuns, descreve a série de Bourdieu faz às análises marxistas das obras
posições sucessivamente ocupadas pelo mes- culturais, como as de Lukács e Goldmann, é o
mo escritor em estados sucessivos do campo". fato de elas colocarem entre parênteses a lógica
Um exemplo concreto de "estudo de trajetória" e a história específicas de cada "campo", rela-
encontra-se em As regras da arte, livro em que cionando a obra diretamente à "classe" para
o sociólogo francês se debruça sobre o escri- a qual ela é destinada e fazendo do artista o
tor Gustave Flaubert e no qual afirma que "as porta-voz dos interesses gerais de uma classe.
59
DOSSIÊ ) PIERRE BOURDIEU
60
política cultural francesa. Desde 1974, o gover-
no encomenda levantamentos estatísticos perió-
dicos sobre a vida cultural das regiões, para um
relatório intitulado Les pratiques culturelles des
(rançais. São estimados, para cada faixa etária
e categoria socioprofissional, o número médio
de idas a museus, de freqüência ao cinema e ao
teatro, de visitas a monumentos históricos, a
prática amadora de modalidades artísticas, en-
tre outros indicadores. A partir daí, delineiam-
se as estratégias e prioridades do Ministério da
Cultura para os anos seguintes.
É interessante notar que, também no Brasil,
uma das preocupações da atual gestão do
Ministério da Cultura é criar indicadores cul-
turais que possam nortear seu planejamento.
Para suprir a lacuna de informações nesse se-
to r, o IBGE, o MinC, o Instituto de Pesquisas
Económicas Aplicadas - IPEA e a Casa de Rui
Barbosa assinaram uma parceria, há quatro
anos, criando uma base de dados culturais.
Inicialmente, estão apenas sendo aproveitadas
informações já coletadas pelo IBGE em pesqui-
sas gerais, que permitem aferir conclusões so-
bre a oferta e a demanda de bens e serviços
culturais, os gastos das famílias e os gastos pú-
blicos com cultura, além do perfil da mão-de-
obra ocupada em atividades culturais. Mas a
idéia é realizar sondagens, mais adiante, espe-
Vernissage em Melke, Áustria: o uso estratégico do gosto permite a
demarcação social e o reconhecimento de maior capital simbólico cificamente sobre práticas e demandas culturais
dos diversos segmentos da população. Curiosa
o autor argumentava que os atores sociais fazem um uso estratégico do coincidência: as traduções de O amor pela arte
gosto, manejando sua destreza lingüística e estética como maneira de se e A distinção só foram publicadas, no Brasil, a
demarcar socialmente de grupos com menor "capital cultural" e de obter partir de 2004, mesmo ano em que se selou a
reconhecimento simbólico e prestígio. Nessa lógica, o consumo cultural parceria entre o MinC, o IBGE e o IPEA para a
e o deleite estético são acionados como forma de distinção, ou seja, a fa- construção do Sistema de Indicadores Culturais.
miliaridade com bens simbólicos traz, consigo, associações como "com- Talvez se trate apenas de uma coincidência de
petência", "educação", "nobreza de espírito" e "desinteresse material". datas; ou talvez estejamos diante de uma saudá-
E o cruel é que a divisão da sociedade entre "bárbaros" - incapazes de vel retroalimentação entre as políticas públicas,
se deleitar com uma bela sinfonia ou uma pintura expressionista - e "ci- a divulgação científica e a reflexão acadêmica,
vilizados" - eruditos e dotados de "bom gosto" - acaba tendo conseqü- como agradaria a Pierre Bourdieu. [!ii
ências políticas: justifica o monopólio dos instrumentos de apropriação
dos bens culturais por parte desses últimos.
61
DOSSIÊ ) PIERRE BOURDIEU
Bourdieu e a educação
Pelo sistema de ensino, as diferenças iniciais de classe são transformadas em
desigualdades de destino escolar e em forma específica de dominação
Partir dos anos 1960, e du- e de distribuição dos bens culturais e pretensão e pela privação. Definida
62
"Tratando todos os educandos como iguais em direitos e deveres, o sistema escolar é levado a dar sua sanção às desigualdades iniciais de cultura"
lhes assegura um privilégio considerá- escrevia em Propos sur l'éducation - capital cultural apresentarão uma re-
vel no destino escolar e profissional. Pédagogie enfantine, de maneira apo- lação com as obras da cultura veicu-
No Destino, enfim" ("A Educação de- logética, que "se pode perfeitamente ladas pela escola que tende a ser inte-
pois de 1968", em Os Descaminhos dizer que não há pensamento a não ressada, laboriosa, tensa, esforçada,
da Educação, ed. Brasiliense). ser na escola". enquanto para os alunos originários
Bourdieu construirá sua trajetó- de meios culturalmente privilegiados
A escola como reprodutora da ria analítica no domínio da sociolo- essa relação está marcada pelo dile-
dominação gia da educação procurando opor-se tantismo, desenvoltura, elegância, fa-
A função do sistema de ensino é ser- a um idealismo como o preconizado cilidade verbal "natural". Ao avaliar o
vir de instrumento de legitimação das por Alain, em que a reflexão é des- desempenho dos alunos, a escola leva
desigualdades sociais. Longe de ser li- tituída de qualquer fundamento his- em conta, conscientemente ou não, es-
bertadora, a escola é conservadora e tórico, como na velha tradição fran- se modo de aquisição e uso do saber.
mantém a dominação dos dominantes cesa. Em artigo de 1966, "A escola Segundo Bourdieu, "para que se-
sobre as classes populares, sendo repre- conservadora: as desigualdades frente jam desfavorecidos os mais favoreci-
sentada como um instrumento de refor- à escola e à cultura" , rompe com as dos, é necessário e suficiente que a es-
ço das desigualdades e como reprodu- explicações fundadas em aptidões na- cola ignore, no âmbito dos conteúdos
tora cultural, pois há o acesso desigual turais e individuais e critica o mito do do ensino que transmite, dos métodos
à cultura segundo a origem de classe. "dom", desvendando as condições so- e técnicas de transmissão e dos crité-
O filósofo idealista Alain (Émile ciais e culturais que permitiriam o de- rios de avaliação, as desigualdades cul-
Chartier, 1868-1951) foi professor senvolvimento desse mito. Desmonta, turais entre as crianças das diferentes
durante décadas na Khâgne (classes também, os mecanismos através dos classes sociais. Tratando todos os edu-
preparatórias às Escolas Normais quais o sistema de ensino transforma candos, por mais desiguais que sejam
nas áreas de letras e filosofia, on- as diferenças iniciais - resultado da eles de fato, como iguais em direitos e
de são recrutados os intelectuais de transmissão familiar da herança cul- deveres, o sistema escolar é levado a
maior prestígio no campo intelectu- tural- em desigualdades de destino es- dar sua sanção às desigualdades ini-
al francês) do Lycée Henri IV (Paris) colar. Explora a relação com o saber, ciais diante da cultura" .
tendo, dentre centenas de outros alu- em detrimento do saber em si mesmo, Bourdieu constrói seu esquema
nos, Raymond Aron, Simone Weill e mostrando como os estudantes pro- analítico relativo ao sistema esco-
Georges Canguilhem. Em 1932, Alain venientes de famílias desprovidas de lar e às relações não explícitas que o
63
DOSSIÊ ) PIERRE BOURDIEU
ancoram em uma longa trajetória que escolas e os das faculdades (ao anali- dependência entre poder material e
envolve análises empíricas objetivas, sar o campo universitário francês e o poder simbólico". Sua sociologia da
centradas em estatísticas da situação papel das Grandes Écoles), Bourdieu educação é, antes de tudo, uma "antro-
escolar francesa. Já em 1964, em Les desvela a crueza da desigualdade so- pologia generativa dos poderes focada
étudiants et leurs études (Os estudan- cial e, ao mesmo tempo, como ela é na contribuição especial que as formas
tes e seus estudos) eLes héritiers. Les simulada no sistema escolar e entra- simbólicas dão à respectiva operação,
étudiants et la culture (Os herdeiros. nhada nas estruturas cognitivas dos conversão e naturalização. (... ) O inte-
Os estudantes e a cultura), escritos participantes desse universo - profes- resse de Bourdieu pela escola deriva do
com Jean-Claude Passeron, examina sores, alunos, dirigentes. papel que ele lhe atribui como garan-
como os estudantes se relacionam com tidor da ordem social contemporânea
a estrutura do sistema escolar e co- Conhecimento e poder via magia do Estado que consagra as
mo são nele representados, e constata Assim, a instituição escolar é vis- divisões sociais, inscrevendo-as simul-
a desigual representação das diferen- ta como desempenhando uma grande taneamente na objetividade das distri-
tes classes sociais no sistema superior. função de produção de diferenças cog- buições materiais e na subjetividade
Investiga a cultura "legítima", aquela nitivas, uma vez que ajuda a produzir das classificações cognitivas".
das classes privilegiadas que é validada esquemas de apreciação, percepção e A apropriação do autor no campo
nos exames escolares e nos diplomas ação do mundo social por via da inter- educacional brasileiro ocorre de for-
outorgados, e o ensino, aquele que au- nalização dos sistemas classificatórios ma mais incisiva no uso de suas no-
tentica um corpo de conhecimentos, dominantes no mundo social global. ções mais evidentes e, não raramente,
de saber-fazer e, sobretudo, de saber Suas análises da educação, então, desvinculadas de sua epistemologia.
dizer, que constitui o patrimônio das passam a pertencer ao campo da so- É por isso que podemos encontrar os
classes cultivadas. ciologia do conhecimento e da socio- "teóricos" de Bourdieu, os "ativistas"
O fato de desvendar as desigual- logia do poder, pois como ele mesmo e, de forma menos usual, aqueles que
dades do ensino francês, tanto como afirma, longe de ser uma ciência apli- se apropriam de sua "prática episte-
sistema como em seu interior, signifi- cada e adequada somente aos peda- mológica". Constata-se a necessida-
ca uma grande mudança no pressu- gogos, ela se situa na base de uma de de re-conhecer o autor, buscando
posto já canonizado - principalmente antropologia geral do poder e da le- o entendimento da teoria sociológica
com Durkheim, que personifica o ide- gitimidade, porquanto se detém "nos que embasa suas noções mais conhe-
al da Terceira República (1870-1940), mecanismos responsáveis pela repro- cidas e também mais banalizadas, as-
conhecida como "A República dos dução das estruturas sociais e pela re- sim como o sentido da percepção do
Professores" -, em que a escola de- produção das estruturas mentais". mundo social que tal teoria informa.
veria fornecer a educação para todos Para LOle Wacquant, Bourdieu ofe- Bourdieu nos ensina que toda prática
os indivíduos, proporcionando-lhes rece uma anatomia da produção do humana encontra-se imersa em uma
instrumentos que pudessem garantir novo capital [o cultural] e uma aná- ordem social, sobretudo essa catego-
sua liberdade, mas, também, sua as- lise dos efeitos sociais de sua circula- ria específica de práticas inerentes ao
censão social. ção nos vários campos envolvidos no mundo acadêmico. Fazer uma socio-
Ao afirmar q ue o sistema esco- trabalho de dominação. Em La no- logia da educação bourdieusiana, ana-
lar institui fronteiras sociais análo- hlesse d'État (A nobreza do Estado) lisando o papel do sistema de ensino
gas àquelas que separavam a grande comprova e reforça suas teses iniciais na consagração das divisões sociais e
nobreza da pequena nobreza, e esta sobre o sistema de ensino e a "rela- consolidando um novo modo de do-
dos simples plebeus, ao instaurar uma ção de colisão e colusão, de autono- minação, torna-se um desafio até para
ruptura entre os alunos das grandes mia e cumplicidade, de distância e de os acadêmicos mais ousados. 8
64
Bibliografia selecionada disponível no Brasil
Coletâneas de artigos Livro de grande repercussão social
- -- A Dominação Masculina
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999
_ _ _ O poder simbólico
Lisboa / Rio de Janeiro: DIFEU
Bertrand Brasil, 1989 Revista Sociologia e Política
n. 26, junho de 2006
(disponível em http:// www.scielo.br)
~,:::,"
'~~
1B--- Escritos Sobre Educação
Petropol~, Vozes, 1999
o Desencantamento do Mundo
São Paulo: Perspectiva, 1979
Jo'I (RStE:
5oUROOEU
- - - Razões Práticas
RAZÕES
~~2.I.S.~~ São Paulo: Papirus, 1996 livro sobre classificações sociais, cultura e poder
_ _ _ A Distinção; Crítica Social do
Julgamento
- - - A Sociologia de Pierre Bourdieu Porto Alegre/São Paulo:
... São Paulo: Olho d'água, 2005 Zouk/EDUSP, 2007 (1979)
65