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DOSSIÊ ) PIERRE BOURDIEU

A
valiar o impacto que a sociologia de Pierre Bourdieu
(1930-2002) provocou no pensamento do século 20
certamente envolve uma espécie de constrangimen-
to. Em primeiro lugar, porque Bourdieu construiu
um enorme corpo teórico, incluindo estudos em quase todos
campos de interação social; seja na economia, na religião, na
arte, na politica, na comunicação ou na educação, suas análises
buscaram compreender os fenômenos sociais tanto sob uma
perspectiva estrutural, na interposição entre agentes dominan-
tes e dominados em um campo social determinado, quanto sob
a perspectiva "concreta" desses mesmos fenômenos, a exemplo
das análises empíricas sobre alta-costura, sobre as visitas aos
museus na Europa, sobre o mercado imobiliário, sobre o agen-
da setting no jornalismo, ou até sobre os jogos olímpicos. Ao
tentar resumir a multiplicidade de sua produção, em um dossiê
de poucas páginas, corre-se o risco portanto das distorções que
todo grande pensador pode eventualmente sofrer.
Mas a tarefa se torna ainda mais problemática quando sa-
bemos que Bourdieu é um dos autores mais lidos nas ciências
humanas. De fato, alguns dos conceitos operacionais criados
pelo sociólogo, como "capital cultural", habitus, "campo"
[ver quadro neste dossiêJ, hoje são colocados em circulação
no meio acadêmico como instrumentos indispensáveis para
TE DE COMBATE
as diversas práticas sociológicas que não se limitam ao diag- Durkheim e Weber, além de internalizar os aportes teóricos
nóstico das assimetrias económicas de classes. Valem para que o estruturalismo oferecia à compreensão das diferentes
o conhecimento transversal que perpassa desde a medicina dinâmicas culturais, nem por isso imunizou as críticas ao aos
social até o jornalismo. Além disso, seu engajamento, suas rígidos estamentos universitários; fato que lhe rendeu severa
intervenções como figura marcante no debate público fran- antipatia entre alguns de seus pares.
- cês e nos movimentos globais contra o neoliberalismo (basta Assim, apesar das dificuldades de dar conta em poucas
recordar sua participação na greve de 1995 que paralisou o páginas de uma obra tão polêmica e multifacetada como a de
sistema de transportes na França), concederam-lhe uma po- Bourdieu, o dossiê desta edição privilegiou aqueles aspectos
pularidade controversa e bastante rara entre os intelectuais, que pelo menos asseguram um panorama consistente de suas
sobretudo a partir da década de 70. Na melhor tradição de idéias principais e de seu ativismo político. Como introdução,
Zola, Bourdieu acreditava que o intelectual deveria servir aos Maria das Graças Setton fala sobre a formação do "gosto",
interesses de uma verdadeira práxis de transformação social, sob a ótica de Bourdieu; José Sérgio Leite Lopes, sobre sua
apontando os mecanismos de reprodução de toda dominação trajetória e participação política; Clóvis de Barros Filho, so-
simbólica. O papel da sociologia, subsidiária de uma ampla bre sua sociologia da comunicação; Ilana Goldstein, sobre
teoria reflexiva, seria o de fornecer então as armas teóricas a sociologia da cultura; Ana Paula Hey e Afrânio Catani,
necessárias para esse desvelamento da realidade e para sua sobre sua decisiva contribuição para a educação. Em entre-
conseqüente transformação. É nesse sentido que "a sociologia vista, Bourdieu afirmou que "atualmente estamos engajados
é um esporte de combate", boutade que virou título de um num combate, em defesa de uma civilização, e o Brasil, que
documentário sobre o cotidiano do sociólogo. sofreu a política neoliberal (... ) mas que tem grandes recursos
A originalidade de metodologia de Bourdieu e sua rela- culturais, históricos, pode ser um dos lugares de resistência".
ção com os saberes instituídos, por outro lado, não deixa- Compreender Bourdieu significaria, portanto, compreender
ram de ser alvo de ataques passionais. Afinal, se num primei- também nosso imperativo de resistência.
ro momento soube assimilar o cânone formado por Marx, (Eduardo Sacha)

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DOSSIÊ ) PIERRE BOURDIEU

Pequeno glossário da teoria de Bourdieu


Os conceitos de campo: noção que caracteriza a autonomia de cultural, entre outras). O habitus vai, no entanto,
Bourdieu, aqui ex- certo domínio de concorrência e disputa intema. além do indivíduo, diz respeito às estruturas re-
postos de maneira Serve de instrumento ao método relacional de lacionais nas quais está inserido, possibilitando
esquemática, devem análise das dominações e práticas específicas a compreensão tanto de sua posição num cam-
ser compreendidos de um determinado espaço social. Cada espa- po quanto seu conjunto de capitais. Bourdieu
em sua interdepen- ço corresponde, assim, a um campo específico pretende, assim, superar a antinomia entre ob-
dência, ou seja, na - cultural, econômico, educacional, científico, jetivismo (no caso, preponderância da estruturas
rela,iío de um ao jornalístico etc -, no qual são determinados a sociais sobre as ações do sujeito) e subjetivismo
outro. Como adverte posição social dos agentes e onde se revelam, (primazia da ação do sujeito em relação às de-
o próprio autor, em por exemplo, as figuras de "autoridade", deten- terminações sociais) nas ciências humanas (ver
Réponses: "noções toras de maior volume de capital. estratégia). Segundo Maria Drosila Vasconcelos,
como habitus, campo trata-se de "uma matriz, determinada pela posi-
e capital podem ser capital: ampliando a concepção marxista, ção social do indivíduo que lhe permite pensar,
definidos, mas somen- Bourdieu entende por esse termo não apenas ver e agir nas mais variadas situações. O habitus
te no interior do sis- o acúmulo de bens e riquezas econômicas, mas traduz, dessa forma, estilos de vida, julgamentos
tema teórico que eles todo recurso ou poder que se manifesta em uma políticos, morais, estéticos. Ele é também um
constituem, nunca atividade social. Assim, além do capital econô- meio de ação que permite criar ou desenvolver
isoladamente. » mico (renda, salários, imóveis), é decisivo para estratégias individuais ou coletivas."
o sociólogo a compreensão de capital cultural
(saberes e conhecimentos reconhecidos por papel da sociologia: para Bourdieu, "a sociolo-
diplomas e títulos), capital social (relações so- gia não mereceria talvez nenhuma hora de aten-
cíais que podem ser convertidas em recursos ção se tivesse como objetivo apenas descobrir
de dominação). Em resumo, refere-se a um ca- os fios que movem os indivíduos que ela obser-
pital simbólico (aquilo que chamamos prestígio va, se ela esquecesse que tem compromisso
ou honra e que permite identificar os agentes com os homens, justamente quando estes, à
no espaço social). Ou seja, desigualdades so- maneira das marionetes, participam de um jogo
ciais não decorreriam somente de desigualdades cujas regras ignoram, enfim, se ela não tivesse
econômicas, mas também dos entraves causa- como tarefa restituir o sentido dos próprios atos
dos, por exemplo, pelo déficit de capital cultural destes homens" (Le bal des célibataires, inédito
no acesso a bens simbólicos. no Brasil)

estratégia: em Coisas Ditas, Bourdieu afirma sentido prático: origem das práticas rituais que
que "a noção de estratégia é o instrumento estabelecem a coerência parcial em um deter-
de uma ruptura com o ponto de vista objeti- minado campo.
vista e com a ação sem agente, suposta pe-
lo estruturalismo (que recorre por exemplo à violência simbólica: termo que explicaria a
noção de inconsciente) [... ] Ela é produto do adesão dos dominados em um campo: trata-
sentido prático." se da dominação consentida, pela aceitação das
regras e crenças partilhadas como se fossem
habitus: sistema aberto de disposições, ações "naturais", e da incapacidade crítica de reconhe-
e percepções que os indivíduos adquirem com cer o caráter arbitrário de tais regras impostas
o tempo em suas experiências sociais (tanto na pelas autoridades dominantes de um campo.
dimensão material, corpórea, quanto simbólica, (Eduardo Socha)

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Uma introdução
a Pierre Bourdieu
Pela discussão do gosto, Bourdieu denunciou as distorções na
produção da cultura e na sua difusão educacional

Maria da Graça Jacintho Setton

onsiderado um dos maiores soci-

C ólogos de língua francesa das úl-


timas décadas, Pierre Bourdieu é
um dos mais importantes pensa-
dores do século 20. Sua produção intelectual,
desde a década de 1960, estende-se por uma
extensa variedade de objetos e temas de es-
tudo. Embora contemporâneo, é tão respei-
tado quanto um clássico. Crítico mordaz dos
mecanismos de reprodução das desigualdades
sociais, Bourdieu construiu um importante re-
ferencial no campo das ciências humanas.
No entanto, mesmo sendo reconhecida pe-
la originalidade, a obra de Bourdieu é objeto
de grande controvérsia. A maior parte de seus
críticos, numa leitura parcial de seus traba-
lhos, classifica-o como um teórico da repro-
dução das desigualdades sociais. Não obstan-
te, a reflexão de Bourdieu se destaca por uma
singularidade. Para ele, os condicionamentos materiais e simbólicos
agem sobre nós (sociedade e indivíduos) numa complexa relação de
interdependência. Ou seja, a posição social ou o poder que detemos
na sociedade não dependem apenas do volume de dinheiro que acu-
mulamos ou de uma situação de prestígio que desfrutamos por pos-
suir escolaridade ou qualquer outra particularidade de destaque, mas
está na articulação de sentidos que esses aspectos podem assumir em
cada momento histórico.
Para o autor, a sociologia deve aproveitar sua vasta herança aca-
dêmica, apoiar-se nas teorias sociais desenvolvidas pelos grandes pen-
sadores das ciências humanas, fazer uso de técnicas estatísticas e et-
nográficas e utilizar procedimentos metodológicos sérios e vigilantes
para se fortalecer como ciência. Bourdieu fez de sua vida acadêmica e
intelectual uma arma política e de sua sociologia uma sociologia enga-
jada, profundamente comprometida com a denúncia dos mecanismos
de dominação em uma sociedade injusta. De acordo com sua perspec-
tiva, a sociedade ocidental capitalista é uma sociedade hierarquizada,

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DOSSIÊ ) PIERRE BOURDIEU

organizada segundo uma divisão de poderes


extremamente desigual. Mas como se organi-
zaria essa distribuição desigual de poderes?
Como as formações sociais capitalistas conse-
guem manter os grupos sociais e os indivíduos
hierarquizados? Em outras palavras, como se
perpetua uma situação de dominação entre os
grupos sociais?

Concepção relacional da sociedade


É possível afirmar que Bourdieu tem uma
concepção relacional e sistêmica do social. A
estrutura social é vista como um sistema hie-
rarquizado de poder e privilégio, determinado
tanto pelas relações materiais e/ou económi-
cas (salário, renda) como pelas relações sim-
bólicas (status ) e/ou culturais (escolarização)
entre os indivíduos. Segundo esse ponto de
vista, a diferente localização dos grupos nessa
estrutura social deriva da desigual distribuição
de recursos e poderes de cada um de nós. Por
recursos ou poderes, Bourdieu entende mais
especificamente o capital económico (renda,
salários, imóveis), o capital cultural (saberes
e conhecimentos reconhecidos por diplomas 6
Cartaz do documentário "A
e títulos), o capital social (relações sociais que Sociologia é um Esporte de
podem ser revertidas em capital, relações que Combate" (2001), de Pierre Caries,
podem ser capitalizadas) e por fim, mas não sobre o cotidiano de Bourdieu
por ordem de importância, o capital simbó-
lico (o que vulgarmente chamamos prestígio
e/ou honra). Assim, a posição de privilégio A produção do gosto
ou não-privilégio ocupada por um grupo ou Posto isso, a sociologia de Bourdieu é mais
indivíduo é definida de acordo com o volume que uma sociologia da reprodução das dife-
e a composição de um ou mais capitais ad- renças, materiais ou económicas; é uma so-
quiridos e ou incorporados ao longo de suas ciologia interpretativa do jogo de poder das
trajetórias sociais. O conjunto desses capitais distinções económicas e culturais de uma so-
seria compreendido a partir de um sistema de ciedade hierarquizada. Aqui chamo atenção
disposições de cultura (nas suas dimensões para um aspecto de sua obra relativa à in-
material, simbólica e cultural, entre outras), terpretação da produção do gosto cultural.
denominado por ele habitus. Bourdieu considera que o gosto e as práticas
A sociologia, para Bourdieu, é uma ciên- de cultura de cada um de nós são resultados
cia que incomoda, pois tende a interpretar os de um feixe de condições específicas de socia-
fenómenos sociais de maneira crítica. Para os lização. É na história das experiências de vi-
interesses desta introdução, vejamos apenas da dos grupos e dos indivíduos que podemos
uma de suas muitas contribuições no campo apreender a composição de gosto e compre-
da Sociologia da Cultura; mais especificamen- ender as vantagens e desvantagens materiais
te, a maneira pela qual Bourdieu interpreta e simbólicas que assumem.
a formação do gosto cultural de cada um de Nas décadas de 60 e 70 do século passado,
nós, pondo em xeque um dos consensos mais Bourdieu se envolve em uma série de pesqui-
difundidos de nossa história cultural, o de que sas de caráter qualitativo e quantitativo sobre
gosto não se discute. a vida cultural, sobre as práticas de lazer e de
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consumo de cultura entre os europeus, sobre- acelerado, adquiridos nas instituições de en-
tudo, entre os franceses. sino, fora do ambiente familiar, em tese um
Dessas experiências de investigação conhecimento aberto para todos.
Bourdieu publica, em 1976, uma grande pes- Assim, a distinção entre esses dois tipos de
quisa intitulada Anatomia do gosto. Mais tar- aprendizado, o familiar e o escolar, refere-se
de, essa mesma pesquisa passa a ser objeto de a duas maneiras de adquirir bens da cultura
publicação de sua obra prima, lançada em e com eles se habituar. Ou seja, os aprendi-
1979: o livro intitulado A distinção - críti- zados efetuados nos ambientes familiares se-
ca social do julgamento. Nessas duas obras, riam caracterizados pelo seu desprendimento
Bourdieu e uma equipe de pesquisadores ten- e invisibilidade, garantindo a seu portador
tam explicar e discutir a variação do gosto en- um certo desembaraço na apreensão e apre-
tre os segmentos sociais. Isto é, analisando a ciação cultural; por sua vez, o aprendizado
variedade das práticas culturais entre os gru- escolar sistemático seria caracterizado por ser
pos, Bourdieu acaba por afirmar que o gosto voluntário e consciente, garantindo a seu por-
cultural e os estilos de vida da burguesia, das tador uma familiaridade tardia com a produ-
camadas médias e do operariado, ou seja, as ção cultural.
maneiras de se relacionar com as práticas da Essas duas formas de aprendizado, segun-
cultura desses sujeitos, estão profundamente do Bourdieu, seriam responsáveis pela forma-
marcadas pelas trajetórias sociais vividas por ção do gosto cultural dos indivíduos. Seria,
cada um deles. especificamente, o que se chamaríamos de
Mais especificamente Bourdieu afirma "capital cultural incorporado", uma dimen-
que as práticas culturais são determinadas, são do habitus de cada um; uma predispo-
em grande parte, pelas trajetórias educativas sição a gostar de determinados produtos da
e socializadoras dos agentes. Dito com outras cultura, por exemplo, filmes, livros ou mu-
palavras, Bourdieu afirma, causando um gran- sica, consagrados ou não pela cultura culta;
de mal-estar na época, que o gosto cultural é uma tendência desenvolvida em cada um de
produto e fruto de um processo educativo, am- nós, incorporada e que supõe uma interiori-
bientado na família e na escola e não fruto de zação e identificação com certas informações
uma sensibilidade inata dos agentes sociais. e/ou saberes; um capital, enfim, em uma ver-
são simbólica, transvertido em disposições de
"Capital cultural incorporado" cultura, portanto, fruto de um trabalho de
Nesse sentido, Bourdieu põe em discussão, assimilação, conquistado a custa de muito in-
desafiando várias autoridades, um consenso vestimento, tempo, dinheiro e desembaraço
muito em voga, relativo à crença de que gos- no caso dos grupos privilegiados.
to e os estilos de vida seriam uma questão de
foro íntimo. Para o autor, o gosto seria, ao o descompasso educacional
contrário, o resultado de imbricadas relações Seria pertinente perguntar: qual o signifi-
de força poderosamente alicerçadas nas insti- cado dessas contribuições de Bourdieu para a
tuições transmissoras de cultura da sociedade interpretação das culturas? Qual o significado
capitalista. da perspectiva crítica sobre a produção do
Para fundamentar essa afirmação, gosto cultural nas sociedades capitalistas?
Bourdieu argumenta que essas instituições se- Para responder a essa questão, valeria fa-
riam a família e a escola; seriam elas respon- zer uma pequena digressão. É sabido, entre os
sáveis pelas nossas competências culturais ou sociólogos da educação, que todas as relações
gostos culturais. De um lado, chamou a aten- educativas e socializadoras são relações de
ção para o aprendizado precoce e insensível, comunicação. Isto é, a mensagem comunica-
efetuado desde a primeira infância, no seio tiva, mais propriamente o conjunto de regras
da família, e prolongado por um aprendizado culturais disponibilizadas pela escola, sobre-
escolar que o pressupõe e o completa (apren- tudo aquelas relativas às artes eruditas ou à
dizado mais comum entre as elites). De outro, cultura letrada dependem da posse prévia de
destacou os aprendizados tardio, metódico e códigos de apreciação. Em outras palavras,

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a sensibilidade estética, a capacidade de as- contribuindo para reproduzir e legitimar as


similar e se identificar com um objeto artÍs- diferenças de gosto entre os grupos sociais.
tico dependem fundamentalmente do acesso Posto isso, as disposições exigidas pela esco-
e, sobretudo, de um aprendizado prévio de la, como por exemplo, as sensibilidades pelas
códigos e instrumentos de apropriação, isto letras ou pela estética visual ou musical, en-
é, uma sensibilização anterior, normalmente fim, uma estética artística, privilégio de alguns
conquistada no seio familiar. poucos, tendem a intensificar as vantagens
Ora, diria Bourdieu, em uma sociedade daqueles mais bem aquinhoados, material e
hierarquizada e injusta como a nossa, não são culturalmente.
todas as famílias que possuem a bagagem cul-
ta e letrada para se apropriar e se identificar Distinções do gosto
com os ensinamentos escolares. Alguns, os de Com esse argumento Bourdieu põe em dis-
origem social superior, terão certamente mais cussão um dos maiores consensos do século,
facilidade do que outros, pois já adquiriram qual seja, gosto não se discute. Ao contrário,
parte desses ensinamentos em casa. Existiria para ele o gosto não é uma propriedade inata
uma aproximação e uma similaridade entre a dos indivíduos. O gosto é produzido e é re-
cultura escolar e a cultura dos grupos sociais sultado de um feixe de condições materiais e
dominantes, pois estes há muitas gerações simbólicas acumuladas no percurso de nossa
acumulam conhecimentos disponibilizados trajetória educativa. Para ele, o gosto cultu-
pela escola. Nesse sentido, o sistema de ensi- ral se adquire; mais do que isso, é resultado
no que trata a todos igualmente, cobrando de de diferenças de origem e de oportunidades
todos o que só alguns detêm (a familiaridade sociais e, portanto, deve ser denunciado en-
com a cultura culta), não leva em considera- quanto tal.
ção as diferenças de base determinadas pelas Nesse sentido, as distinções do gosto cul-
desigualdades de origem social. Bourdieu de- tural revelam, sobretudo, uma ordem social
tecta então um descompasso entre a compe- injusta, em que as diferenças de cultura de
tência cultural exigida e promovida pela es- origem podem ser transubstanciadas em dife-
cola e a competência cultural apreendida nas renças entre o bom e o mau gosto numa per-
famílias dos segmentos mais populares. manente estratégia de classificar hierarquica-
Em síntese, para Bourdieu o sistema es- mente a cultura dos segmentos sociais.
colar, em vez de oferecer acesso democrático Para finalizar, seria interessante fazer al-
de uma competência cultural específica para gumas ressalvas a esse pensamento. Pierre
todos, tende a reforçar as distinções de capital Bourdieu é ainda hoje respeitado como um
cultural de seu público. Agindo dessa forma, dos fundadores do paradigma teórico acerca
o sistema escolar limitaria o acesso e o pleno das práticas de cultura. Não obstante, uma
aproveitamento dos indivíduos pertencentes série de trabalhos vem tentando atualizar su-
às famílias menos escolarizadas, pois cobra- as contribuições, admitindo a existência de
ria deles os que eles não têm, ou seja, um co- outros espaços transmissores e legitimado-
nhecimento cultural anterior, aquele necessá- res de um gosto cultural. Entre eles podemos
rio para se realizar a contento o processo de destacar o poder das mídias ou, no caso es-
transmissão de uma cultura culta. Essa co- pecifico dos jovens, seus grupos de pares. Nas
brança escolar foi denominada por ele como sociedades modernas, portanto, uma gama
uma violência simbólica, pois imporia o re- complexa de referências de cultura partilharia
conhecimento e a legitimidade de uma única com a escola e a família a formação do gosto
forma de cultura, desconsiderando e inferiori- de todos os segmentos sociais. [!I
zando a cultura dos segmentos populares.
Assim, convertendo as desigualdades so-
ciais, ou seja, as diferenças de aprendizado Maria da Graça Jacintho Setton é professora de Sociologia na
anterior, em desigualdades de acesso à cultura Faculdade de Educação da USp, autora de Rotary Club: habitus,
estilo de vida e sociabilidade (Ed. Annablume) e organizadora
culta, o sistema de ensino tende a perpetuar a dos artigos de Bourdieu reunidos em A produção da crença: uma
estrutura da distribuição do capital cultural, contribuição para uma teoria dos bens simbólicos (Ed. Zouk).

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Articulações inovadoras
entre ciência e política
A posição política de Bourdieu está diretamente associada aos instrumentos de
libertação fornecidos pela pesquisa científica
José Sérgio Leite Lopes

ViSibilidade dos posicionamentos

A públicos de Pierre Bourdieu se deu


amplamente com sua defesa dos di-
reitos dos ferroviários e dos traba-
lhadores e funcionários que fizeram uma greve
em dezembro de 1995 paralisando a França.
Nessa ocasião ele fora uma voz isolada a de-
fender os trabalhadores dentre a maioria dos
intelectuais de renome, que se conformava
com uma modernização inelutável diante do
que era visto como um movimento grevista
desesperado em defesa do passado. Mas tal
visibilidade se deu por ser ele um sociólogo
de grande notoriedade científica, produtor de
uma obra enorme e inovadora e que havia gal-
gado os postos mais prestigiosos de professor
e pesquisador na Escola de Altos Estudos em
Ciências Sociais e no College de France. Dali
até a sua morte, no início de 2002, ocupou a
posição de intelectual contestatário com gran-
de presença na vida pública.
Dois anos antes da greve de 1995, Bourdieu
havia sido condecorado com a medalha de ou-
ro do Conselho Nacional de Pesquisa Científica
da França (CNRS) pelo conjunto de sua obra
- mas 1993 é também o ano da publicação do
livro A miséria do mundo, obra coletiva por
ele organizada. Esse livro - de mais de 600
páginas, com uma tiragem enorme, em várias
reimpressões, inusitada para um livro de ciên-
cias sociais - chama atenção para o sofrimento
social causado pelas bruscas transformações
Greve em dezembro de 2005. na França: a participção ativa de Bourdieu nos
capitalistas por que passava a França (como movimentos contra o neoliberalismo concedeu grande popularidade ao sociólogo
em diversas partes do mundo).
No livro é destacado o fenômeno da miséria de posição ressentida
por grupos sociais e indivíduos que perdem a antiga sociabilidade e o
sentido da vida no trabalho, na vizinhança ou na família e têm o senti-
mento de piora com a diminuição do que ele chama de mão esquerda
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DOSSIÊ ) PIERRE BOURDIEU

do Estado, o Estado social de que nos fala passou, mas pleno também dos instrumentos
dois anos depois Robert Castel (em seu livro intelectuais e científicos para fazê-lo, Bourdieu
Metamorfoses da questão social). É então que, torna-se um colega maldito por muitos de seus
perto da aposentadoria compulsória aos 70 pares concorrentes, que O vêem 'como um soci-
anos no ano 2000, Bourdieu torna-se um in- ólogo rigoroso, pouco político no sentido tra-
telectual de projeção nos movimentos sociais dicional do intelectual total, mas incômodo
e na resistência à intensificação da entrada do na crítica reflexiva ao mundo intelectual. A
capitalismo em todas as esferas da vida, fazen- relutância de Bourdieu de participar nas for-
do aumentar as distâncias entre classes e gru- mas tradicionais de assinatura de manifestos
pos sociais, e, como salientado por ele, amea- e petições acaba também ocultando o sentido
çando processos históricos de autonomização político de sua prática de pesquisador. Essa
do campo cultural em relação ao poder eco- prática é uma contribuição política de longo
nômico, revertendo o que foi sendo construído prazo, investida nos resultados e na maneira
desde séculos anteriores. de fazer pesquisa.
Desde o desvendamento da transmissão
Estudo das formas de dominação da herança familiar que traz o aluno diante
Essa posição de intelectual de grande visi- da escola pública republicana, reproduzindo
bilidade política dos anos 1990 surpreendeu a as desigualdades na escola, o chamado ca-
imagem que tinham de sua trajetória anterior pital cultural (ver a coletânea Escritos sobre
colegas mais distantes ou rivais e, portanto, educação,organizada por A. Catani e Maria
certo senso comum na universidade francesa. Alice Nogueira, Ed. Vozes), até as formas de
De fato, Bourdieu distinguia-se por escolher poder criadas pelas grandes escolas do siste-
novas formas inusitadas de dominação para ma universitário bi-partido francês que se cris-
analisar, através de modos reflexivos de análise talizam numa nova nobreza de Estado, pas-
- inclusive a análise crítica da escola, da arte, sando pela análise do campo político e pelo
da ciência e dos intelectuais - ameaçando de campo econômico, Bourdieu orienta-se para
certa maneira o conformismo escolar e univer- a dissecação crítica do campo do poder na
sitário. Após sua experiência no mundo rural sociedade moderna. No entanto, aquilo que
em transformação, tanto argelino como fran- aprendeu nas sociedades tradicionais e cam-
cês - onde estuda o drama do celibato campo- ponesas e nos fenômenos de proletarização e
nês em seu próprio povoado de origem (sem sub-proletarização do início de sua carreira, e
dizê-lo), reconciliando-se, através do que viu que é trabalhado de forma teórica em seus li-
do mundo rural argelino, com seu mundo de vros Esboço de uma teoria da prática (1972)
origem, do qual se distanciara por sua forma- e O senso prático (1979), estará sempre pre-
ção universitária - Bourdieu tem as condições sente em sua noção de habitus, construída na
materiais (como diretor de pesquisa da Escola primeira socialização familiar e também na
de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris ação de inculcação escolar ou profissional. Sua
aos 34 anos de idade) de estudar sistematica- insistência no entendimento da prática e das
mente as formas específicas de dominação que condições de possibilidade da ação humana
se manifestam na educação e na cultura. faz par com sua aversão ao saber escolástico
Cria assim a noção de campo que dá des- do mundo acadêmico e intelectual, visto co-
taque à autonomia de certo domínio de con- mo uma forma de dominação. E é na virada
corrência e disputa interna, noção que é um dos anos 1990 que Bourdieu volta de forma
instrumento na constituição de um método re- analítica à empatia que tem pelos dominados
lacional de análise das dominações e práticas (e que se manifestara na sua produção sobre
específicas a um determinado mundo social. o campesinato argelino e francês), acionando
Dotado de um impulso e uma libido volta- sua rede de pesquisadores para os apresentar
dos para a análise crítica do mundo artístico de forma sensível, através de entrevistas apro-
e intelectual, possivelmente advindos de suas fundadas, como em A miséria do mundo e em
experiências de origem social confrontadas às capítulos importantes de seu livro de maturi-
hierarquias e dos internatos escolares por que dade Meditações pascalianas.
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Origens e características da trajetória que compõem sua marca distintiva no campo das ciências sociais de·
Mas essa forma diferente de construir um seu tempo. Esses instrumentos poderão ser ilustrados pela leitura do
outro ponto de vista sobre a política vinha sen- seu livro publicado em 1968 com seus colegas de então J. C. Passeron
do feita desde o início de sua trajetória profis- e J. C. Chamboredon, A profissão do sociólogo. Essa opção na filosofia
sional, embora somente reconhecida por um contribuiu para fazê-lo aproximar-se das ciências sociais e lhe deu uma
círculo mais próximo de colaboradores e leito- sólida base para apropriar-se da etnologia, da sociologia e das técnicas
res, incluindo uma rede internacional de pes- estatísticas de forma não-escolar e de forma autodidata. Além disso,
quisadores que teve a estratégia de longo pra- deu-lhe condições de valorizar todos os procedimentos do trabalho
zo de estimular. Esse estilo de tomar posição científico, mesmo as consideradas mais modestas, usualmente delega-
através da prática científica, desvendando os das a alunos e auxiliares.
mecanismos mais sutis de dominação e vendo
tal conhecimento servindo como instrumentos Período na Argélia
de libertação, pode explicar-se por algumas A sua conversão para a etnologia e depois para a sociologia se deu
características de sua trajetória. no impacto de sua estadia na Argélia. Logo após completar seus estudos
Uma dessas características é o fato de ter na École Normale, passar pelo concurso da agrégation que o habilita
incorporado ao longo de sua obra um trabalho ao ensino secundário e universitário no sistema público de educação
reflexivo permanente e sutil sobre os efeitos de nacional (e que o dispensou posteriormente de fazer o doutorado),
sua origem, incorporados à sua trajetória esco- Bourdieu é convocado aos 25 anos para o serviço militar na Argélia.
lar e profissional, assim como à sua percepção Serviu numa guarnição que protegia um enorme estoque de munição no
dos processos sociais. Embora anteriormente interior da então colônia e depois passou para o serviço burocrático do
à sua obra póstuma de auto-análise os leito- governo geral francês em Argel. Paralelamente a suas tarefas de escri-
res familiares e atentos à sua obra pudessem turário e redator no gabinete militar, fazia para si mesmo anotações de
perceber através de seus textos algo dos refe- suas observações sobre o país que culminaram em seu primeiro livro,
ridos efeitos de forma implícita, somente após Sociologie de I'Algérie, publicado em 1958 na coleção "Que Sais-je?"
a publicação de Esboço de auto-análise (ver ("Saber Atual"), onde sua empatia pelo povo argelino dominado pela
também o prefácio de Sergio Miceli na edição França se vestia do conhecimento da complexidade da tradição cultural
brasileira) que essa característica fica mais evi- de suas diferentes etnias, no momento mesmo em que tal tradição é ne-
denciada para um público leitor mais amplo. gada na metrópole colonial e mal conhecida pelos próprios intelectuais
Como se sabe, Bourdieu teve uma infância pas- franceses engajados contra o colonialismo.
sada num povoado rural dos Pirineus france- Ao término do serviço militar, deu cursos de filosofia e sociologia na
ses, neto de camponeses e filho de funcionário Faculdade de Argel, onde pôde reunir um grupo de estudantes para fa-
local dos correios, origem esta muito impro- zer pesquisas de campo, complementares aos cursos, e depois pesquisas
vável de compatibilizar-se com o seu ótimo etnográficas e estatísticas, desenvolvidas por uma associação que reuniu
percurso escolar que o levou pelo sistema me- jovens estatísticos do INSEE (o IBGE francês) e sua própria equipe de
ritocrático do ensino público francês a suces- estudantes, onde se destacava seu futuro colega e amigo de toda a vida
sivos internatos, primeiramente no ginásio da Abdelmalek Sayad. Foi assim que na Argélia, fascinado pela tradição
cidade maior da região, depois no renomado cabila que se perdia e pela transformação brusca do campesinato pela
liceu Louis le Grand de Paris e finalmente no modernização capitalista e pela política colonial, Bourdieu desenvolve
setor de filosofia da Escola Normal Superior de de forma autodidata a pesquisa etnográfica e o aprendizado das técnicas
Paris. No seu esboço de auto-análise Bourdieu estatísticas. É do tesouro de aprendizados e de lições humanas vividos
dá destaque à sua vivência das agruras entre na Argélia, a que é levado de início ao acaso e compulsoriamente, que
os alunos internos da província e de origem Bourdieu tirará materiais analíticos pelo resto de sua vida, alimentan-
popular, dos quais ele fazia parte, e os alunos do sua obra futura - e isso, mesmo quando ela se volta para realidades
externos parisienses de alta origem, como que empíricas distintas.
lhe proporcionando uma visão precoce e inter- Também é do período argelino o início da elaboração de suas po-
nalizada das desigualdades sociais no acesso à sições políticas relacionadas ao conhecimento científico.· Nesse caso,
educação e à cultura. sua posição era a de fazer a pesquisa etnológica, mesmo enfrentando
Uma segunda característica na formação de os perigos da situação extrema de guerra colonial contra a insurreição
Bourdieu se dá através do seu treinamento na nacionalista argelina, e revelar ao público a análise de processos sociais
área de filosofia e história da ciência, que lhe desconhecidos das autoridades coloniais, bem como dos intelectuais
propiciou instrumentos de base epistemológica críticos franceses, assim como de boa parte da rede de militância e de

53
DOSSIÊ ) PIERRE BOURDIEU

Foto tirada por Bourdieu,[>


na Argélia, onde realizou,
entre 1958 e 1961, sua
pesquisa etnográfica sobre
a desagregação dos modos
de vida dos camponeses

apoio dos revoltosos. Isso é argumentado no verdadeiro manifesto que que podem ser fornecidos pela pesquisa cientÍ-
é o prólogo que inicia a segunda parte do livro Trabalho e trabalha- fica naquela situação. Além disso, no prefácio
dores na Argélia, de 1963 (versão resumida em português, O desen- do livro, sobre o que denomina de "fetichismo
cantamento do mundo), onde se coloca contra as posições de princípio da estatística", inicia uma linha de crítica aos
destituídas do mínimo de conhecimento empírico dos processos sociais artefatos estatísticos utilizados para justificar
em questão da parte de intelectuais franceses críticos à guerra colonial efeitos de dominação social, análise que pros-
(tendo como mote o artigo de um etnólogo declarando ser impossível seguirá posteriormente com relação às sonda-
fazer-se pesquisa naquelas condições). A posição política implícita de gens de opinião pública que regem cada vez
Bourdieu se dá através da valorização dos instrumentos de libertação mais a política eleitoral.

54
Legado congregando uma rede de intelectuais euro-
De fato, em sua trajetória ascendente ful- peus críticos e coleções de livros a baixo custo
minante no mundo universitário, Bourdieu numa linha militante como Raisons d/agir -,
contará com o acaso e o senso de oportunida- tomaram-lhe parte importante de seu ritmo
de de oferecer análises decisivas a fenômenos impressionante de atividades.
e processos sociais que estiveram no centro Seu legado é constituído pela profusão de
da atualidade política e social. Assim foi com instrumentos de pesquisa, por ele formulados,
suas análises das sociedades argelina e cabília para serem desenvolvidos em várias áreas das
quando a guerra da Argélia era a questão de- ciências humanas. Embora ainda visto freqüen-
cisiva para a França no início dos anos 1960; temente com antipatia no pequeno mundo dos
assim foi também com suas análises, junto com colegas concorrentes, de alguns jornalistas e in-
l.C. Passeron, sobre o sistema escolar fran- telectuais midiáticos, e da profusão de escolas
cês e sobre a centralidade ocupada pela escola de pensamento rivais na França, seu renome
nas sociedades contemporâneas, antecipando científico internacional é cada vez maior. No
a crise de 1968 e dando instrumentos para a Brasil sua recepção foi precoce, comparado
sua compreensão (o livro Les heritiers, ainda particularmente aos campos acadêmicos norte-
não traduzido, é de 1964). Também esse senso americano e inglês. Enquanto estes descobri-
de estar tocando, pelos resultados de pesqui- ram Bourdieu no final dos anos 1980 e durante
sa, em problemas cruciais da atualidade, sem os anos 1990, traduzindo já suas obras mais
estar procurando para isso satisfazer à mídia famosas e maduras, no Brasil ele é ensinado
(antes pelo contrário, analisando seus efeitos em algumas pós-graduações de antropologia e
nefastos), se produz também como vimos nos sociologia (a partir de alguns poucos ex-alunos
anos 1990, quando da publicação de A misé- brasileiros) desde o início dos anos de 1970,
ria do mundo. através de artigos em revistas e seus primeiros
Bourdieu dá importância aos imponderá- livros. Também desde 1974, com a publicação
veis da vida real, que acabam fazendo da ne- da coletânea A economia das trocas simbóli-
cessidade virtude, baseado em sua própria tra- cas, organizada por Sergio Miceli, seus artigos
jetória pessoal. Assim foi com o fato de fazer iniciais esclarecedores, difíceis de serem encon-
dos prolongamentos de seu serviço militar a trados hoje em francês, ficaram accessíveis pa-
ocasião de seus primeiros trabalhos científi- ra o público universitário brasileiro.
cos de peso, de fazer de sua falta de capital Além disso, suas reflexões inovadoras e sua
cultural herdado um estímulo à análise crítica própria prática, articulando atividade científica
dos intelectuais e dos artistas após um enor- e intervenções políticas, chegando a resulta-
me esforço de aquisição dos instrumentos de dos mais gerais a partir de objetos de análise
conhecimento necessários; assim foi também singulares inusitados, assim como trabalhan-
transformar suas posições de desvantagem so- do sobre objetos tradicionais - entre os quais
cial vividas no impulso de desvendamento das aqueles banalizados pelas atualídades da mídia
dominações e na sensibilidade que tem com os - sob novos pontos de vista, constituem sua
dominados. Mesmo o fato de trabalhar forte- contribuição a perdurar, conservando seu po-
mente em equipe no início de suas pesquisas, der inovador e sua atualidade no futuro. ri
formando uma extensa rede de colaboradores
na França e internacionalmente, deu-se pela
sua necessidade (e ansiedade) de afrontar-se
aos seus colegas estabelecidos, afeitos às prá-
ticas de cátedra, nas instituições prestigiosas
a que foi galgado. Não somente suas próprias
obras, como a revista inovadora Actes de la
Recherche em Sciences Sociales, fundada em
José Sérgio Leite Lopes é professor do Museu Nacional/UFRJ (Antropologia
1975, e as coleções que dirigiu, introduzindo Social), autor de O vapor do diabo: O trabalho dos operários do açúcar (1976) e
em língua francesa autores de outras tradi- organizador de A ambientalização dos conflitos sociais: Participação e controle
ções nacionais - e depois revistas como Líber, público da poluição industrial (2004).

55
DOSSIÊ ) PIERRE BOURDIEU

A dinâmica dos meios de


comunlcaçao
• #It#

A sociologia de Bourdieu desmascara os interesses na produção da notícia, mas


também suas críticas acadêmicas mais ingênuas

Clóvis de Barros Filho

56
nfelizmente o sociólogo Pierre revista Contigo, e exclui prováveis sociológico que recentemente se im-

I Bourdieu legou poucos estudos


e reflexões sobre os meios de co-
municação. Apesar de uma pro-
dução abrangente que discute desde
problemas relativos à estrutura do
consumidores de revistas pornográ-
ficas que utilizam papel couché fosco.
O consumo de mídia é, portanto, ob-
jeto de distinção social. Assim como
também discrimina os agentes sociais
põe, constitui-se num objeto de inves-
tigação particularmente dramático pa-
ra o sociólogo. O consumo midiático
que, de certa forma, o traduz fenome-
nicamente, é um imenso depósito de
ensino (A reprodução), passando por que trabalham nesses meios, bem co- pré-construções naturalizadas, portan-
complicadas questões sobre o gosto, mo seus textos. to ignoradas enquanto tais no cotidia-
a arte (A distinção, As regras da arte), no, que funcionam como instrumen-
e até mesmo tratando questões liga- Teoria sobre dominação tos habituais de construção. Todas as
das ao mercado imobiliário (As estru- A definição do que é um meio de categorias comumente empregadas na
turas sociais da economia), Bourdieu comunicação legítimo é, assim, uma identificação de suas tendências, ida-
pesquisou muito pouco sobre a co- questão de primeira importância pa- de - jovens e velhos -, sexo - homens
municação. Seu principal texto so- ra todos os agentes do grupo social. e mulheres -, renda - ricos e pobres
bre o assunto foi publicado no Brasil, Afinal, alguns meios dominantes, co- -, são contrabandeadas do senso co-
em livro, intitulado Sobre a televisão. mo a Rede Globo e a Editora Abril, mum, pelo discurso científico, sem
Texto este muito aquém de seus ou- por exemplo, pretendem conservar o muita reflexão. Alem disso, o padrão
tros trabalhos. Tanto no número de status quo midiático, enquanto ou- de quem avalia um produto televisivo,
páginas, quanto no rigor de pesquisa tros, como a Rede Record e SBT, edi- por exemplo, é o padrão enraizado
e na profundidade do assunto. Coube toras periféricas e portais de internet pela trajetória social desse avaliador
então aos seus discípulos, engajados apostam na subversão da ordem es- nas suas experiências com os diversos
no campo da comunicação, usar as tabelecida, isto é, da relação de forças programas de televisão com que teve
ferramentas oferecidas por ele para que estrutura o espaço da comunica- contato desde a infância.
o estudo da mídia. ção. Por isso, essa relação de forças Essas categorias de análise do pro-
Partindo dos referenciais teóricos acaba se objetivando numa relação duto midiático fazem parte de todo
de Bourdieu, podemos afirmar que o de valores. Afinal, toda a vida orga- um trabalho social de construção de
gosto, determinante de nossas inclina- nizada em sociedade, a menos que se grupo e de uma representação desse
ções aos atos de consumo midiático, recorra à violência física, deve ser re- grupo infiltrada na ciência do mundo
tem uma origem social. Assim como conhecida e aceita como legítima. social. É o que explica tanta facilida-
a própria produção desta. E, por es- Por isso, a sociologia que estuda de de adaptação. Facilidade exagera-
sa razão, ambas devem ser objetos de os meios de comunicação, como pro- da, talvez. Aceitas as categorias, listas
investigação sociológica. Sociologia posto por Bourdieu, é indissociável e mais listas de dados estão à disposi-
do consumo midiático. Sociologia de de sua teoria sobre a dominação. É ção do pesquisador para confirmação
sua produção. Problemas intrínsecos pela demanda de seus produtos (vul- ou refutação parcial.
para quem faz uso dessa maneira de go Ibope) e pelas manifestações dos A investigação sobre as inclina-
ver o mundo. telespectadores que os dominantes as- ções de audiência deste ou daquele ni-
Com base em A distinção (1975), seguram suas posições. Abre-se, aqui, cho - respeitados os critérios estatís-
de Bourdieu, podemos constatar que todo um campo de análise dos confli- ticos de amostragem - ganham aura
tatito a produção como o consumo tos e da violência simbólica em jogo de constatação científica. A indiscuti-
de produtos ligados aos meios de co- pelos meios, na qual os dominados bilidade desse tipo de resultado legiti-
municação de massa não apenas pos- participam da construção de legiti- ma procedimentos e suas premissas.
sui uma origem social. Ela também midade imposta, aceitando suas posi- Encobre seu caráter arbitrário. Isso
discrimina e hierarquiza seus agentes. ções e ratificando um tipo dominante porque as escolhas técnicas, as mais
Classifica socialmente. Diferencia o de se fazer produtos midiáticos. aparentemente empíricas, são insepa-
leitor da revista CULT da leitora da Mas se a mídia é um objeto ráveis das escolhas de construção de

edação do jornal inglês The Oai/y Telegraph:


produção da notícia não decorre de um
donismo naif, como acreditam alguns
nsadores pós-modernos

57
DOSSIÊ ) PIERRE BOURDIEU

objeto, as mais teóricas. Logo, expli- senso comum acadêmico que avalia a por jovens, cheios de hormônios, que
car a produção dos meios de comuni- mídia segundo "achismos". Ao cons- habitam os centros acadêmicos.
cação através de dados de audiência, tatar que o discurso de um jornalista, A produção da notícia, ou da pro-
tiragem, assinantes, cliques, e quanti- ou de um relações públicas, não é em paganda, também não é fruto de dese-
dade de anúncios recai num equivoco nenhum momento pautado pelos cri- jos individuais que querem se expres-
grave que só é justificado pelo imagi- térios "idealistas" de transparência, sar em toda sua "força" visando sua
nário do senso comum. objetividade, neutralidade e democra- satisfação e fluidez, característico das
tização do conhecimento, constata- ditas "sociedades pós-modernas" de
"Um jornalista escreve para mos que tais produções são frutos de consumo. Não é o hedonismo naif o
outro jornalista" um jogo de desejos. As matérias são "combustível" que move os comunica-
O campo de produção de conte- selecionadas e escritas visando atin- dores de diversas áreas, como querem
údos midiáticos tem regras próprias gir interesses os mais diversos, deter- acreditar os pensadores pós-moder-
que se encontram em seus próprios minados pela posição do agente no nos. São desejos complexos de aceita-
agentes e nas suas relações com os campo. Sem altruísmos e sem pensar ção no campo, disputa e dominação
demais. No meu livro O 'habitus' na no "bem comum", apesar de seus dis- que estão em jogo. São os troféus dos
comunicação, mostro como a produ- cursos identitários. campos e suas posições de destaque e
ção jornalística é fruto de um habi- dominância o fim último da produção
tus jornalístico, utilizando o jargão Jogo da comunicação de notícia. A "preocupação" com o
de Bourdieu, onde os critérios de fato Nem mesmo os publicitários, ti- leitor, telespectador, ou consumidor é
jornalístico e de pauta não são meras dos como manipuladores, estão inte- somente uma desculpa para justificar
estratégias burguesas de dominação, ressados no bem de seus clientes ou seus acertos ou fracassos. Respeitar
como diria um marxista, mas sim fru- dos consumidores. No que se refere o "bem" da empresa que contrata o
tos de uma interiorização da aprendi- aos discursos acadêmicos dominan- comunicador é somente uma mera
zagem jornalística. Interiorização esta tes sobre a comunicação, a sociologia desculpa para se manter empregado e
que aprende a ver o mundo segundo de Bourdieu, através de uma pesqui- continuar jogando o jogo da comuni-
uma determinada importância, classi- sa de campo rigorosa, expõe as in- cação. Jogo esse com regras bem cla-
ficada em certas editorias jornalísticas genuidades e os erros que perspecti- ras, mas quase nunca expressas.
(primeira página, cidade, esporte, in- vas marxistas e pós-modernas fazem Por essas duas razões, a sociolo-
ternacional etc.), pensa numa quan- da produção midiática. Há, sim, in- gia de Pierre Bourdieu encontra difi-
tidade "x" de caracteres, e avalia a teresses envolvidos na fabricação de culdades em se estabelecer no mundo
matéria segundo as observações de uma notícia, como ambos denunciam. acadêmico e mercadológico. Os méto-
seus pares. Como nossos pesquisados Mesmo nesta matéria que eu escrevo, dos de investigação, e seus resultados,
confessam, "um jornalista escreve pa- denunciando os interesses. Porém, o desmancham os mecanismos de defesa
ra outro jornalista". Assim como em comunicador não é movido por uma de ambos os campos. Desmascara os
nossas pesquisas sobre o campo pu- ideologia burguesa para a domina- agentes da comunicação e os interes-
blicitário, feitas na Escola Superior de ção de massa. A reunião de pauta ses acadêmicos mais sórdidos. Ao en-
Propaganda e Marketing, escutamos das grandes mídias não é, em nenhum carar tanto a produção da noticia ou
constantemente entre os dominantes momento, uma reunião de porcos as- publicidade e sua crítica voraz como
a mesma observação: "Minha pro- querosos que visam camuflar a explo- produtos de consumo recheados de in-
paganda se impõe contra meu con- ração capitalista e combater a ameaça teresses, essa sociologia cria inúmeros
corrente ... Apesar de existirem as comunista até seu total extermínio, inimigos. Nesse sentido, imita seu pró-
exigências do briefing imposto pelo posição esta compartilhada por mui- prio criador. Odiado em vida por mui-
contratante, nossa equipe está pouco tos acadêmicos da "velha guarda" e tos e admirado por muito poucos. li
preocupada com a recepção do públi-
co final. Só nos interessa o que nossos
colegas vão dizer".
O forte apego à pesquisa de cam-
po, exigência central feita pela socio-
Clóvis de Barros Filho é professor livre-docente da ECAlUSP,
logia de Bourdieu, desmascara não professor e organizador de curso na ESPM. É autor de Ética na
só o discurso interessado dos agen- comunicação (Summus, 2006) e O 'habitus' na comunicação
tes da comunicação mas também o (Ed. Paulus, 2003)

58
Hierarquias da cultura
A sociologia da arte de Bourdieu procurou evidenciar a estreita ligação
entre política e preferências estéticas
Ilana Goldstein

B
ourdieu construiu pilares fundamen- obras guardam traços de determinismos sociais
tais para o estudo sociológico da cul- que se exercem por meio do habitus do produ-
tura e da arte, a partir da aplicação tor (família, escola, contatos profissionais) e
dos conceitos de "campo" e de "ha- das demandas e constrangimentos sociais ins-
bitus" a diversas esferas de criação simbólica, critos na posição ocupada por esse artista no
como a alta-costura, a fotografia, as artes plás- campo de criação (... ). Flaubert, enquanto de-
ticas e a literatura. No pólo da criação artística, fensor da arte pela arte, ocupava uma posição
Bourdieu questionou a crença no "gênio", ou neutra no campo, opondo-se ao mesmo tempo
seja, a idéia de que um artista possa produzir à arte social e à arte burguesa".
de maneira isolada, guiado apenas por sua ins- De acordo com Bourdieu, a maior parte
piração individual. Propôs que, para se com- das estratégias artísticas são simultaneamen-
preender a gênese de uma obra, sejam levadas te estéticas e políticas. O processo pelo qual
em conta as relações do artista no campo de determinadas obras se impõem sobre outras
produção simbólica a que pertence, bem como é produto das lutas entre aqúeles que ocupam
os constrangimentos sociais e materiais a que momentaneamente a posição dominante den-
está submetido. Já no pólo da recepção, pôs em tro do "campo", em virtude de seu "capital"
xeque a idéia de que as diferenças nas atitudes e específico - e que tendem à conservação e à
escolhas do público se devam a faculdades sen- rotinização da ordem simbólica estabelecida
soriais e predisposições naturais - o "bom ou- - e aqueles que são inclinados à "ruptura he-
vido", o feeling e assim por diante. Por meio de rética", à crítica das formas estabelecidas e à
pesquisas empíricas, o autor demonstrou que as subversão dos modelos em vigor. Nessa pers-
preferências estéticas estão relacionadas, antes, pectiva, um dos grandes desafios do cientista
à origem familiar, ao grau de instrução e à po- social é desvendar as disputas envolvidas na
sição socioeconômica dos indivíduos. definição das categorias e classificações inter-
Um sociólogo de inspiração bourdieusiana nas aos campos - como "belo", "legítimo" ou
interessado em compreender o papel e a po- "moderno" -, explicitando a posição de onde
ética de determinado criador irá reconstituir fala cada agente. Faz-se necessário, portanto,
o percurso biográfico, intelectual e profissio- reconstituir o processo de construção do câno-
nal de seu objeto de estudo, mapeando suas ne, a hierarquização que preside os sistemas de
relações com outros agentes do "campo" e classificação em gêneros, escolas, estilos e pres-
seus investimentos ao longo da vida. Bourdieu tígio - frutos de disputas que acabam sendo na-
chamou esse procedimento metodológico de turalizadas. A micro-história própria do "cam-
"estudo de trajetória" e, em Razões práticas, po" é o pré-requisito para a sua interpretação.
definiu-o da seguinte maneira: "diferentemen- É por isso que uma das principais críticas que
te das biografias comuns, descreve a série de Bourdieu faz às análises marxistas das obras
posições sucessivamente ocupadas pelo mes- culturais, como as de Lukács e Goldmann, é o
mo escritor em estados sucessivos do campo". fato de elas colocarem entre parênteses a lógica
Um exemplo concreto de "estudo de trajetória" e a história específicas de cada "campo", rela-
encontra-se em As regras da arte, livro em que cionando a obra diretamente à "classe" para
o sociólogo francês se debruça sobre o escri- a qual ela é destinada e fazendo do artista o
tor Gustave Flaubert e no qual afirma que "as porta-voz dos interesses gerais de uma classe.

59
DOSSIÊ ) PIERRE BOURDIEU

o conceito de "capital cultural"


Trata-se, portanto, de uma sociologia da
cultura que analisa o encontro entre a pulsão
expressiva dos criadores e o espaço dos "possí-
veis" em que se movem. Como resume o pró-
prio autor, em O poder simbólico: "Se existe
uma história propriamente artística, é porque os
artistas e seus produtos se acham objetivamente
situados, pela sua pertença ao campo artístico,
em relação a outros artistas e aos seus produtos
e porque as rupturas mais propriamente estéti-
cas com uma tradição artística têm sempre que
ver com a posição relativa, naquele campo, dos
que defendem esta tradição e dos que se esfor-
çam por quebrá-la".
Um segundo conjunto de questões e desafios
lançados pela sociologia da cultura de Pierre
Bourdieu diz respeito à elucidação da lógica que
rege o consumo e as práticas culturais. Uma
noção-chave, aqui, é a de "capital cultural" -
esboçada em O amor pela arte e explicitada em
A distinção. Trata-se de uma riqueza simbólica
desigualmente distribuída dentro de cada cam-
po, que é acumulada e transmitida de geração
em geração, traz poder a seus detentores e susci-
ta o desejo - consciente ou não - de se distinguir
dos demais por meio de atitudes "típicas" de
um conhecedor. Segundo Bourdieu, o "capital
cultural" pode aparecer sob três formas diferen-
tes: como habitus cultural, quando é fruto da
socialização prolongada, que garante a alguém
saber falar bem em público ou se sentir à von- de acordo com a posição socioeconômica dos entrevistados, da apropria-
tade em uma ópera, por exemplo; como forma ção mais instrumental à mais estetizante, do mero reconhecimento dos
objetivada, presente em bens culturais como li- objetos retratados a alusões complexas à qualidade formal das imagens.
vros, quadros, discos etc.; sob forma institucio- Entre as camadas populares, os pesquisadores encontraram um uso pre-
nalizada, contida nos títulos escolares e vincu- dominantemente funcional da fotografia (álbuns de família), ao passo
lada ao mercado de trabalho. Vale destacar que que as camadas médias valorizaram enfaticamente o aspecto "artístico"
não necessariamente o "capital cultural" está das imagens, ao contrário das camadas superiores, menos entusiasmadas
associado ao capital econômico; muitas vezes, com essa "arte mediana".
grupos menos privilegiados do ponto de vista
financeiro são os maiores detentores do "capital Uso estratégico do gosto
cultural". De qualquer maneira, o montante e A publicação de L'amour de l'art, em co-autoria com Alain Darbel,
a natureza do "capital cultural" possuído pelos em 1969, viria confirmar que o "amor pela arte" é fruto de aprendiza-
diferentes agentes têm relação direta com suas gem e socialização. A pesquisa revelou, por exemplo, que a diferença na
preferências estéticas e aquisições culturais. taxa de visitação anual de museus entre um agricultor e um professor
Essa hipótese surgiu primeiramente em Un europeu era da ordem de 300 vezes. A partir daí, o que hoje parece evi-
art moyen. Essai sur les usages sociaux de la dente, foi um passo decisivo na época: denunciar a ideologia do gosto
photographie (1965), escrito em conjunto com natural. Quinze anos mais tarde, em La distinction (1979), Bourdieu se
Luc Boltanski e Robert Castell. Com base em lançou à explicação das diferenças de posicionamento político, de com-
metodologias quantitativas, o objetivo do estu- portamento e de apreciação dos produtos culturais presentes nos dife-
do era desvendar os diversos usos da fotografia rentes estratos da sociedade, por meio de um novo conceito: "habitus".

60
política cultural francesa. Desde 1974, o gover-
no encomenda levantamentos estatísticos perió-
dicos sobre a vida cultural das regiões, para um
relatório intitulado Les pratiques culturelles des
(rançais. São estimados, para cada faixa etária
e categoria socioprofissional, o número médio
de idas a museus, de freqüência ao cinema e ao
teatro, de visitas a monumentos históricos, a
prática amadora de modalidades artísticas, en-
tre outros indicadores. A partir daí, delineiam-
se as estratégias e prioridades do Ministério da
Cultura para os anos seguintes.
É interessante notar que, também no Brasil,
uma das preocupações da atual gestão do
Ministério da Cultura é criar indicadores cul-
turais que possam nortear seu planejamento.
Para suprir a lacuna de informações nesse se-
to r, o IBGE, o MinC, o Instituto de Pesquisas
Económicas Aplicadas - IPEA e a Casa de Rui
Barbosa assinaram uma parceria, há quatro
anos, criando uma base de dados culturais.
Inicialmente, estão apenas sendo aproveitadas
informações já coletadas pelo IBGE em pesqui-
sas gerais, que permitem aferir conclusões so-
bre a oferta e a demanda de bens e serviços
culturais, os gastos das famílias e os gastos pú-
blicos com cultura, além do perfil da mão-de-
obra ocupada em atividades culturais. Mas a
idéia é realizar sondagens, mais adiante, espe-
Vernissage em Melke, Áustria: o uso estratégico do gosto permite a
demarcação social e o reconhecimento de maior capital simbólico cificamente sobre práticas e demandas culturais
dos diversos segmentos da população. Curiosa
o autor argumentava que os atores sociais fazem um uso estratégico do coincidência: as traduções de O amor pela arte
gosto, manejando sua destreza lingüística e estética como maneira de se e A distinção só foram publicadas, no Brasil, a
demarcar socialmente de grupos com menor "capital cultural" e de obter partir de 2004, mesmo ano em que se selou a
reconhecimento simbólico e prestígio. Nessa lógica, o consumo cultural parceria entre o MinC, o IBGE e o IPEA para a
e o deleite estético são acionados como forma de distinção, ou seja, a fa- construção do Sistema de Indicadores Culturais.
miliaridade com bens simbólicos traz, consigo, associações como "com- Talvez se trate apenas de uma coincidência de
petência", "educação", "nobreza de espírito" e "desinteresse material". datas; ou talvez estejamos diante de uma saudá-
E o cruel é que a divisão da sociedade entre "bárbaros" - incapazes de vel retroalimentação entre as políticas públicas,
se deleitar com uma bela sinfonia ou uma pintura expressionista - e "ci- a divulgação científica e a reflexão acadêmica,
vilizados" - eruditos e dotados de "bom gosto" - acaba tendo conseqü- como agradaria a Pierre Bourdieu. [!ii
ências políticas: justifica o monopólio dos instrumentos de apropriação
dos bens culturais por parte desses últimos.

Políticas culturais na França e no Brasil


As análises de Pierre Bourdieu sobre arte e cultura repercutiram muito
além da Academia. As instituições culturais e os arte-educadores passaram
lIana Goldstein é professora da FGV-SP e da
a não mais falar de um público no singular, abstrato, mas de públicos no
Escola de Belas Artes do Paraná, e doutoranda em
plural, com competências e repertórios diferenciados. O livro O amor Antropologia Social. É autora de Responsabilidade
pela arte levou os museus franceses, inclusive, a repensarem suas estraté- Social: das grandes corporações ao terceiro setor
gias de comunicação, dando origem a um dos principais instrumentos da (Ática, 2008).

61
DOSSIÊ ) PIERRE BOURDIEU

Bourdieu e a educação
Pelo sistema de ensino, as diferenças iniciais de classe são transformadas em
desigualdades de destino escolar e em forma específica de dominação

Ana Paula Hey e Afrânio Mendes Catani

Partir dos anos 1960, e du- e de distribuição dos bens culturais e pretensão e pela privação. Definida

A rante quase 45 anos, Pierre


Bourdieu produziu um con-
junto de análises no âmbito
da sociologia da educação e da cultura
que influenciou decisivamente algumas
simbólicos, entre os quais se incluem
os produtos escolares".
Bourdieu, em seus escritos, procu-
rou questionar, nas sociedades de clas-
ses, temática que persegue muitos in-
por gostos e formas de apreciação
estética, a cultura é central no pro-
cesso de dominação; é a imposição
da cultura dominante como sendo
"a cultura" que faz com que as clas-
gerações de intelectuais, obtendo o re- telectuais: a compreensão de como e ses dominadas atribuam sua situação
conhecimento de pesquisadores, estu- por que pequenos grupos de indivídu- subalterna à sua suposta deficiência
dantes e ativistas que atuam em várias os conseguem se apoderar dos meios cultural, e não à imposição pura e
outras esferas da sociedade. Em "Uma de dominação, permitindo nomear e simples. O sistema de ensino desem-
sociologia da produção do mundo cul- representar a realidade, construindo penha papel de realce na reprodução
tural e escolar", introdução a Escritos categorias, classificações e visões de dessa relação de dominação cultural,
de educação (1998), que reúne 12 mundo às quais todos os outros são funcionando ainda, para Bento Prado
textos do sociólogo francês, Maria A. obrigados a se referir. Compreender o Jr., "como chancela de diferenças cul-
Nogueira e Afrânio Catani escrevem mundo, para ele, converte-se em pode- turais e lingüísticas já dadas, antes da
o seguinte: "Ao mesmo tempo em que roso instrumento de libertação - é esse escolarização, no quadro da socializa-
colocava novos questionamentos, sua procedimento que ele realiza, dentre ção primeira, que é necessariamente
obra fornecia respostas originais, re- outros domínios, no educacional. diferencial, segundo a inscrição das
novando o pensamento sociológico A cultura vem a ser um sistema de famílias nas diferentes classes sociais.
sobre as funções e o funcionamento significações hierarquizadas, tornan- (... ) O código lingüístico da burgue-
social dos sistemas de ensino nas so- do-se um móvel de lutas entre grupos sia (com seus cacoetes, idiotismos, sua
ciedades contemporâneas, e sobre as sociais cuja finalidade é a de manter particularidade) será encontrado, pe-
relações que mantêm os diferentes gru- distanciamentos distintivos entre clas- los futuros notáveis, nas salas de aula,
pos sociais com a escola e com o saber. ses sociais. A dominação cultural se como a linguagem da razão, da cultu-
Conceitos e categorias analíticas por expressa na fórmula segundo a qual a ra, numa palavra, como elemento ou
ele construídos constituem hoje moeda cada posição na hierarquia social cor- horizonte da Verdade. O particular é
corrente da pesquisa educacional, im- responde uma cultura específica (eli- arbitrariamente erigido em universal e
pregnando boa parte das análises bra- tista, média, de massa), caracterizadas o 'capital cultural' adquirido na esfera
sileiras sobre as condições de produção respectivamente pela distinção, pela doméstica, pelos filhos da burguesia,

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"Tratando todos os educandos como iguais em direitos e deveres, o sistema escolar é levado a dar sua sanção às desigualdades iniciais de cultura"

lhes assegura um privilégio considerá- escrevia em Propos sur l'éducation - capital cultural apresentarão uma re-
vel no destino escolar e profissional. Pédagogie enfantine, de maneira apo- lação com as obras da cultura veicu-
No Destino, enfim" ("A Educação de- logética, que "se pode perfeitamente ladas pela escola que tende a ser inte-
pois de 1968", em Os Descaminhos dizer que não há pensamento a não ressada, laboriosa, tensa, esforçada,
da Educação, ed. Brasiliense). ser na escola". enquanto para os alunos originários
Bourdieu construirá sua trajetó- de meios culturalmente privilegiados
A escola como reprodutora da ria analítica no domínio da sociolo- essa relação está marcada pelo dile-
dominação gia da educação procurando opor-se tantismo, desenvoltura, elegância, fa-
A função do sistema de ensino é ser- a um idealismo como o preconizado cilidade verbal "natural". Ao avaliar o
vir de instrumento de legitimação das por Alain, em que a reflexão é des- desempenho dos alunos, a escola leva
desigualdades sociais. Longe de ser li- tituída de qualquer fundamento his- em conta, conscientemente ou não, es-
bertadora, a escola é conservadora e tórico, como na velha tradição fran- se modo de aquisição e uso do saber.
mantém a dominação dos dominantes cesa. Em artigo de 1966, "A escola Segundo Bourdieu, "para que se-
sobre as classes populares, sendo repre- conservadora: as desigualdades frente jam desfavorecidos os mais favoreci-
sentada como um instrumento de refor- à escola e à cultura" , rompe com as dos, é necessário e suficiente que a es-
ço das desigualdades e como reprodu- explicações fundadas em aptidões na- cola ignore, no âmbito dos conteúdos
tora cultural, pois há o acesso desigual turais e individuais e critica o mito do do ensino que transmite, dos métodos
à cultura segundo a origem de classe. "dom", desvendando as condições so- e técnicas de transmissão e dos crité-
O filósofo idealista Alain (Émile ciais e culturais que permitiriam o de- rios de avaliação, as desigualdades cul-
Chartier, 1868-1951) foi professor senvolvimento desse mito. Desmonta, turais entre as crianças das diferentes
durante décadas na Khâgne (classes também, os mecanismos através dos classes sociais. Tratando todos os edu-
preparatórias às Escolas Normais quais o sistema de ensino transforma candos, por mais desiguais que sejam
nas áreas de letras e filosofia, on- as diferenças iniciais - resultado da eles de fato, como iguais em direitos e
de são recrutados os intelectuais de transmissão familiar da herança cul- deveres, o sistema escolar é levado a
maior prestígio no campo intelectu- tural- em desigualdades de destino es- dar sua sanção às desigualdades ini-
al francês) do Lycée Henri IV (Paris) colar. Explora a relação com o saber, ciais diante da cultura" .
tendo, dentre centenas de outros alu- em detrimento do saber em si mesmo, Bourdieu constrói seu esquema
nos, Raymond Aron, Simone Weill e mostrando como os estudantes pro- analítico relativo ao sistema esco-
Georges Canguilhem. Em 1932, Alain venientes de famílias desprovidas de lar e às relações não explícitas que o

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DOSSIÊ ) PIERRE BOURDIEU

ancoram em uma longa trajetória que escolas e os das faculdades (ao anali- dependência entre poder material e
envolve análises empíricas objetivas, sar o campo universitário francês e o poder simbólico". Sua sociologia da
centradas em estatísticas da situação papel das Grandes Écoles), Bourdieu educação é, antes de tudo, uma "antro-
escolar francesa. Já em 1964, em Les desvela a crueza da desigualdade so- pologia generativa dos poderes focada
étudiants et leurs études (Os estudan- cial e, ao mesmo tempo, como ela é na contribuição especial que as formas
tes e seus estudos) eLes héritiers. Les simulada no sistema escolar e entra- simbólicas dão à respectiva operação,
étudiants et la culture (Os herdeiros. nhada nas estruturas cognitivas dos conversão e naturalização. (... ) O inte-
Os estudantes e a cultura), escritos participantes desse universo - profes- resse de Bourdieu pela escola deriva do
com Jean-Claude Passeron, examina sores, alunos, dirigentes. papel que ele lhe atribui como garan-
como os estudantes se relacionam com tidor da ordem social contemporânea
a estrutura do sistema escolar e co- Conhecimento e poder via magia do Estado que consagra as
mo são nele representados, e constata Assim, a instituição escolar é vis- divisões sociais, inscrevendo-as simul-
a desigual representação das diferen- ta como desempenhando uma grande taneamente na objetividade das distri-
tes classes sociais no sistema superior. função de produção de diferenças cog- buições materiais e na subjetividade
Investiga a cultura "legítima", aquela nitivas, uma vez que ajuda a produzir das classificações cognitivas".
das classes privilegiadas que é validada esquemas de apreciação, percepção e A apropriação do autor no campo
nos exames escolares e nos diplomas ação do mundo social por via da inter- educacional brasileiro ocorre de for-
outorgados, e o ensino, aquele que au- nalização dos sistemas classificatórios ma mais incisiva no uso de suas no-
tentica um corpo de conhecimentos, dominantes no mundo social global. ções mais evidentes e, não raramente,
de saber-fazer e, sobretudo, de saber Suas análises da educação, então, desvinculadas de sua epistemologia.
dizer, que constitui o patrimônio das passam a pertencer ao campo da so- É por isso que podemos encontrar os
classes cultivadas. ciologia do conhecimento e da socio- "teóricos" de Bourdieu, os "ativistas"
O fato de desvendar as desigual- logia do poder, pois como ele mesmo e, de forma menos usual, aqueles que
dades do ensino francês, tanto como afirma, longe de ser uma ciência apli- se apropriam de sua "prática episte-
sistema como em seu interior, signifi- cada e adequada somente aos peda- mológica". Constata-se a necessida-
ca uma grande mudança no pressu- gogos, ela se situa na base de uma de de re-conhecer o autor, buscando
posto já canonizado - principalmente antropologia geral do poder e da le- o entendimento da teoria sociológica
com Durkheim, que personifica o ide- gitimidade, porquanto se detém "nos que embasa suas noções mais conhe-
al da Terceira República (1870-1940), mecanismos responsáveis pela repro- cidas e também mais banalizadas, as-
conhecida como "A República dos dução das estruturas sociais e pela re- sim como o sentido da percepção do
Professores" -, em que a escola de- produção das estruturas mentais". mundo social que tal teoria informa.
veria fornecer a educação para todos Para LOle Wacquant, Bourdieu ofe- Bourdieu nos ensina que toda prática
os indivíduos, proporcionando-lhes rece uma anatomia da produção do humana encontra-se imersa em uma
instrumentos que pudessem garantir novo capital [o cultural] e uma aná- ordem social, sobretudo essa catego-
sua liberdade, mas, também, sua as- lise dos efeitos sociais de sua circula- ria específica de práticas inerentes ao
censão social. ção nos vários campos envolvidos no mundo acadêmico. Fazer uma socio-
Ao afirmar q ue o sistema esco- trabalho de dominação. Em La no- logia da educação bourdieusiana, ana-
lar institui fronteiras sociais análo- hlesse d'État (A nobreza do Estado) lisando o papel do sistema de ensino
gas àquelas que separavam a grande comprova e reforça suas teses iniciais na consagração das divisões sociais e
nobreza da pequena nobreza, e esta sobre o sistema de ensino e a "rela- consolidando um novo modo de do-
dos simples plebeus, ao instaurar uma ção de colisão e colusão, de autono- minação, torna-se um desafio até para
ruptura entre os alunos das grandes mia e cumplicidade, de distância e de os acadêmicos mais ousados. 8

Ana Paula Hey é professora no Programa de Pós-Graduação em


Educação da UMESP e autora do livro Esboço de uma sociologia do
campo acadêmico. A educação superior no Brasil (EDUFSCar/FAPESP)

Afrânio Mendes Catani é professor na Faculdade de Educação da


USP e pesquisador do CNPq. Organizou, com Maria Alice Nogueira,
Escritos de educação (Vozes), reunindo ensaios de Pierre Bourdieu.

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Bibliografia selecionada disponível no Brasil
Coletâneas de artigos Livro de grande repercussão social

=-- ..: 1 _-- A economia das trocas simbólicas


São Paulo: Perspectiva, 1974
- - - A Misêria do Mum:to
Petrópolís: Vozes, 2003

1 -- - Coisas ditas Livros com materiais da Argélia


São Paulo: Brasiliense, 1990

- -- A Dominação Masculina
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999

_ _ _ O poder simbólico
Lisboa / Rio de Janeiro: DIFEU
Bertrand Brasil, 1989 Revista Sociologia e Política
n. 26, junho de 2006
(disponível em http:// www.scielo.br)

~,:::,"
'~~
1B--- Escritos Sobre Educação
Petropol~, Vozes, 1999
o Desencantamento do Mundo
São Paulo: Perspectiva, 1979

Jo'I (RStE:
5oUROOEU
- - - Razões Práticas
RAZÕES
~~2.I.S.~~ São Paulo: Papirus, 1996 livro sobre classificações sociais, cultura e poder
_ _ _ A Distinção; Crítica Social do
Julgamento
- - - A Sociologia de Pierre Bourdieu Porto Alegre/São Paulo:
... São Paulo: Olho d'água, 2005 Zouk/EDUSP, 2007 (1979)

Livros sobre arte

Livro póstumo D' Amor Pela Arte: museus de arte


na europa e seu público
Porto Alegre: Editora Zouk, 2003
- - - Esboço de auto-análise
São Paulo: Cia. das Letras, 2005 As Regras da Arte; gênese do
campo líterá.rlo
São Paulo: Cia. das Letras, 1996

Síntese e balanço de sua obra Textos de intervenção política

~!lil: '--- Meditações Pascalianas ------ S obre a Televisão


~ Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001
Rio de Janeiro: Zahar, 1997

Livro epistemológico Contrafogos


A Profissão do Sociólogo Rio de Janeiro : Zahar, 1998
(escrito com J-C Passeron e J-C Camboredon)
Petrópolis: Vozes, 1999

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