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O Cérebro Executivo eM eC el Cageg N este livro, Elhonon Goldberg explora a parce do cérebro que define @ identidade de cada um de nds; que abriga as ambig6es, a personalidade, a esséncia de cada um, A moléstia neurolégica pode resultar na perda da lin- sguagem, meméria, percepgio ou movimento, Contudo, a esséncia do indivi duo, 0 cerne da personalidade, geralmente permanece intacta. ‘Tudo isso muda quando a moléstia araca os lobos frontais. O que é per- dido, entéo, nao é mais um atributo de sua mente, Ea sua mente, seu cere, seu eu. Os lobos frontais sto as mais especificamence humans cle todas 2s estruturas do cérebro e desempenham um papel critico no sucesso ou fracas. de qualquer empenho humano.Este trabalho iré demonstrar que nenhuma outra perda cognitiva se aproxima da perda das fung6es executivas com 0 rau de devastagio que o acometimento dos lobos fiontais provca na mente eno selfde uma pessoa, ISBN 65-312-0010-1 ‘iii ea Mente Civilizada 10 DE OLIVER Sacks ELKHONON GOLDBERG O CEREBRO EXECUTIVO LOBOS FRONTAIS E AMENTE CIVILIZADA Prefacio de Oliver Sacks Traduigao de Raul Fiker © Marcia Epstein Fiker Sumario Prefacio, Agradecimentos Introdugéo Referencias eNows Um Fim e um Comego: uma Dedicagao Nota O Dirretor-Executivo do Cérebro: 0s Lobos Frontais em um Relance AsMuitas Faces da Lideranga OLobo Executivo » Referencias e Notas Arguitetura do Cérebro: uma Cartilha AVisao Microscopica AVisto Macroscépica ‘O Posto de Comando esuas Conexdes Referencias eNotas ul 19 21 27 29 42 8 © CEREBRO EXECUTIVO 5, A Fileira Frontal da Orquestra: Sonse Mitsicos Novidades, Rotinas€ Henisférios Cerebrais AProvacao de Not e os Cenariosde Cerebro Modulo Loucura Gradientes Cognitivose Hierarquias Cognitivas Uma CoisaéumaCoisa ‘Urna Palavra para uma Cotsa Referencias eNotas 6. O Maestro: um Olhar mais Préximo nos Lobos Froniais ANavidade cos Lobos Frontais, ‘Meméria Trabalhadora—ou Trabalhando comaMeméria LiberdadedeEscolha, Ambigdidade eos Lobos Frontais Referencias eNotas, 7. Lobos Diferentes para Pessoas Diferentes: os Estilos de ‘Tomada de Decisao e 0s Lobos Frontais’ ‘A Neuropsicologia das Diferencas Individuais Estilos Cognitivos Masculine Feminino Estflos Cognitivase Fiacao do Cerebro Rebeldes em Pequena Proporeao: Fendéncia « Usar ‘uma Mio em vezda Outrae Buscade Novidade Talentos Executivos:o Fator Sea Teoria da Mente Referencias Notas 8. Quando 0 Lider Esté Ferido Os Fragels Lobos Froniais, Sindromesdo Lobo Frontal Impulso e Corpos Newtonianos: Mum studode Caso Dorsolateral OsPlanoseas"Lembrancas da Futuro” Rigidezda Mente Ponto Cego da Mente: Anosognosia Referénciase Notas 9. Maturidade Social, Moralidade, Direito e os Lobos Frontais A Sindrome *Pscudopsicopatica” Orbitofrontal eaPerdade Autocontrole A Maturidade Social ¢03 Lobos Frontais Maturacao Biologica e Maturidade Social: ‘um Enigma Historica 115 115. ile 122 Da 7 132 4 45 145. 148 150 156 162 168 170 173 173 175 7 10. M1. 12. ‘Sumario LLesao no Lobo Frontal e Comportamento Criminoso O Ladiao Desafortunado Lesao do Lobo Frontal e Ponto Cego Publico Referénciase Notas Desconexdes Decisivas 0 Cavaleiro Catdo: um Estudo de Caso Esquizofrenia: uma Conexio que Numea Foi Feita Traumana Cabeca:uina Conexio Parti Deficit de Atengio/Distirbio de Hiperatividade: ‘una Frigil Conexdo DHDA Veneida: como Toby, do Outro Lado do Mundo, Recuperou-se Tiques Espasmodicos e Piadascomo Tiques Referénciase Notas “Em qué Vocé Pode me Servir? Drogas “Cognowrépicas" *Malhando” 0 Cerebro Hist6ria da Reabilitacao Cognitiva Plasticidade Cerebral e Exersicio Cognitive Aptidao Cognitiva:o Inicio de uma Tendéncia Oiinieio dem Programa Referencias Notas s Lobos Frontais ¢ 0 Patadoxo da Lideranca Anatomiae Controle do Cerebro Autonomia e Controlena Sociedade Autonomia e Controle no Mundo Digital Referénciase Notas Fpitlogo Referencias Notas indice 180 184 189 191 198 193, 199 203 205 210 a7 230 233 233 Br 243, 245 251 254 256 259 259 263 267 270 2738 276 277 Prefacio Oliver Sacks Em 1967, Elkhonon Goldberg, entao um estuctante de neuropsicologia de vinte anos de idade em Moscou, conhecen um jovern, um outroestudante apenas uns poucos anos mais velho que ele mesmo, Vladimir, conta-nos Goldberg, estava parado na plataforma do metro de Moscou, passando uma bola de futebol de uma mao para a outta, quando a bola caiv Thos, Saltando para baixo a fim de recuperi-la, Vladimir fi atingico por wm trem e teve danos severos na parte frontal do cérebro, nos Lobos fron- tats, que tiveram de ser amputados. “A carreira de todo clinico”, escreve Goldberg, “é pontuaca por wns oUcos casos formativos. Vladimir foimeu primeiro caso formative. Inad ‘vertidamente, por meio de sua tragédi, ele me apresentou 10s ricos fend- ‘menos da doenca lobofrontal, despertow meu interesse pelos lobosfrontais| assim ajudou a moldar minha carteira.” Embora Vladimir passasse a malor parte do tempo com o clhar fixo e vazio no espaco (ainda que quando perturbado ele pudesse proferir uma corrente de imprecacaes ou artemessar um urinoD), Goldberg descobriu que ele podia, as vezes, enval- vé-lo com “ume brincadeira casualmente irreverente de estitochulo... le} uuma tenue amizade desenvolveu-se entre um estudante com lesées cere- brais e um estudante de lesdes cerebrais”, (O mentor de Goldberg, o grande neuropsicdlogo russo A. R. Luria, ‘estava cada vez mais interessado nessas partes “mais elevadlas" do cerebro, R © CEREBRO EXECUTIVO esugeritna Goldberg que o estudo deambos pudesse tornar-seseu projeto também, Esse projeto tem, agora, a duracao de umn tergo de seculo, econ- uziu Goldberg alguns dos mais profundos e estranhos dominios do fun- cionamento cérebro-menie e seus percalcos. Como Luria ele tem empre- ‘gado uma mistura de testes especialmente talhados ¢ engenhosos com uma minuciosa observacao naturalista, atenta aos caprichos da fiun¢ae do Jobo frontal nao apenas na clinica, mas na rua, em restaurantes, no teatro, por toda a parte. (Goldberg refere a si mesmo como um “voyeur cogni- tivo",) Tudo isso ¢ fermentado com excepeionais poderes imaginativos ¢ empaticos, tentando ver 0 mundo através dos ollos de seus pacientes. Com trinta anos de observacio € expericneta, ele atingiw um nivel de esclarecimento que, percebe-se, deliciaria e surpreendetia seu mentor, Luria Em 0 cézebro execulivo, Goldberg nos leva numa viagem, sta propria viagem, daqueles dias miciais em Moscou a0 presente, wma viagem a0 mesmo tempo intelectual e pessoal. le proporciona uma brilhante expo sigao das funcdes complexas dos lobos frontais, esta parte do cérebro mais recentemente evoluida ¢ espectalmente humana, examinando a grande gama de “estilos” de lobo frontal em pessoas normals, 0s tragicos percal- cos que podem ocotrer com doenge neuroldgica ou dano cerebral, as maneiras pelas quais suas funcdes podem ser testadas ¢, nao menos importante, as maneiras pelas quais a funcao do lobo frontal pode ser for talecida — em muitas das quais proprio Goldberg foi pionciro — construindo ou reconstruinde fungi cognitiva em geral, nto apenas em pacientes com lesoes cerebrais, mas tambem no cérebro saudavel. (As rhogoes de Goldberg de “estar em forma cognitivamente” e ouso de “exer- cielo cognitivo” e “academia cognitiva” sto particularmente controversas —c importantes.) Valiosos hhistéricos de casos, ao lado de breves, mas reveladores, eventos neuropsicoldgicas, formain o ceme narrativo do livro, mas sdo freqitentementeentremeados de narrativas pessoais detodo tipo, ¢ isto faz de O eércbro executivo um livro de memérias altamente cenvolvente efntimo, uma espécie de autobiografia intelectual, nao menos que uma grande obra de apresentacio cientfica e eiéncia “popular”. 0 cerebro executivo ¢ dedicado a Luria e abre comoventemente com uma lembranea de uma conversa com Luria em 1972 — Goldberg tinha 25 anosde idade naquela época, ¢ Luria, aos setenta, era ao mesmo tempo seu ilustre mentor€ wma figura patema principalmente afetuosa cestimu- ladora, Luria pressionow Goldberg a ingressar no Partido Comunista, ofe- reeendo-se para indicé-lo, e sublinhou a neeessidade disso para qualquer Prefoco B progresso na carreira na Uniio Sovietica (o proprio Luria era membro do Partido, mais por conveniéneia, talver, do que por conviegao.) Mas Gold berg era (e permanece) um rebelde de coragio, nio disposio a fazer com- promissos, por mais vantajosos, se vio contra seus instintos wis profun- dos. Tal intransigéncia custava caro na Unio Soviética c havia levado seu pai ao Gulag. Depois de tergiversar uma diizia de vezes, cle finalmente disse sem rodeios a Luria que nao ingressaria no Partido, Ademais — embora isto, claro, cle nao tenha dito —, ele havia decidido deixar a Ris- sia, a despeito de um profundo amor por sua patria ¢ lingua, Era virtual ‘mente imposstvel, para um membro da sociedacle altamente valorizado, uum estudante de doutorado na Universidade de Moscou, cleixar 0 pais, ¢0 relato de Goldberg de como ele o fez, ¢ de uma maneira que evitaria com- prometer Luria de algum modo, forma a extraordindria e absorvente introdugio aeste livro, um livro que termina 25 anos mais tarde, com uma visita de retomo a Moscou e ao pais que ele deixara meta vida antes, Os lobos frontais sto a maisrecente realizacio na evolucao do sistema nervoso; € apenas nos seres humanos (¢ grandes macacos, até certo ponto) que cles alcancamn wim desenvolvimento tao grande, Eles foram também, por umn curioso paralelo, as whimras partes do cérebro a serem reconhecidas como importantes — mesmo em meus préprios dias de cstudante, eles eram chamados “os lobos mudos”. *Mudos” de fato cles podem ser, pois earecem das fungdes simples c facilmente identificaveis das partes mais primitivas do c6rtex cerebral, as dreas sensoriais € moto- +5, por exemplo (e mesmo as "areas dle associacaio” entre estas), mas eles sio extremamente importantes. Eles sto cruciais para 0 comportamento propositaco de ordem superior — identificancio o objetivo, projetando a ‘meta, forjando planos para alcangé-la, organizando os meios pelos quais tais planos podem ser levados a cabo, monitorando ¢ julgundo as conse ‘quencias para ver se tudo ¢ realizado conforme o pretendido. Este €0 papel central dos lobos frontais, o de liberar o organisino de repertorios ¢ reacoes finas, permitindoa representacao mental dealterna- tivas, imaginacdo, liberdade, Dat as metaforas que permeiain o livto: 05, obos frontais como © CEO (diretor-executivo), capaz de assumir uma “visio aérea® de todas as outtas fungoes do cérebro € coordend-les; 0 lobos frontais como 0 maestto do cérebro, coordenando os milhares de instrumentos na orquestra do cérebro, Mas, sobretudo, os lobos frontais como 0 gitia do cerebro, guiando o individuo rumo a novidade, 2s inova- ‘des, asaventuras da vida, Sem o grande desenvolvimento dos obos fron- 4 © CEREBRO EXECUTIVO {ais no cérebro humano (associado a0 desenvolvimento das areas de lin. guagem), a civilizacao pocleria jamais ter emergico ‘A intencionalidade do individuo esta investida nos lobos frontais, ¢ estes sao cruciais para conscieneia mais elevada, para julgamento, imag nacao, empatia, identidade, “alma”, Assim, no famoso caso de Phineas Gage — um trabalhiador de ferrovia que, ao instalar uma carga ce explosi- vos em 1848, teve uma bucha de aco de setenta centimetros atingindo seus lobos frontais com a precipitacao da explosio —, embora sua inteli- ‘géncia tenha sido preservada, bem como sua eapacidade de moverse, falar e ver, outras mudangas, profundas, ecorreram nele. Ele se tornou Imprudente e descuidado, impulsivo, ireverente; ele jé nao podia plane- Jar ou pensar no futuro; e pata os que o haviam conhecido antes, "ele nao era mais Gage.” Ele perdera a si mesmo, a parte mais central de seu ser, (como ¢ o caso com todosos pacientes com severas lesoes nos Lobos fran- tals) ele nao sabia disso. Tal “anosognosta”, como € chamada, é, 20 mesmo tempo, uma bén: ao (0s pacientes nao sofrem ou se angustiam ou lamentam sta pera) € uum problema importante, pois ela solapa compreensto © motivacao, € toma as tentativas de remediiar a condigao muito mais diffceis, Goldberg também revela como, par causa da riqueza tinica das cone- xdesdos lobos frontaiscom diferentes partes do cerebro, outras condigoes ‘que tém sua patologia primria em outta parte, mesmo no subeérvex, podem evocar ou apresentar-se como disfungdes do lobo frontal, Desie ‘modo, a inércia do mal ce Parkinson, a impulsividade da sindrome de Tourette, a distracto do DHDA (distirbio de hiperatividade do deficit de atengao), a perseveranea do DOC (disttinbio obsessivo-compulsivo), a falta ce empatia ou “teoriada mente” nozutismo ou esquizofrenia cronica pociem ser compreendidas, em grande parte, pensa Goldberg, como devidas as ressonancias, aos distitbios secundérios, na fumeao dos lobos frontais, Muitas provas sdo aduzidas em favor disto, naoapenasa partic de observacao clinica ¢ testes, como dos mais recentes resultados em figura- ‘ao funcional do cérebro, ¢ os insights de Goldberg aqui ilumninam essas sindromes de uma nova mancita, ¢ podem ser muito importantes na pra tica clinica Embora pacientes com lesdes macicas no lobo frontal nao se mostrem conscientes de sti condicdo, o mesmo nao ocorre com pacientes com 0 ‘mal de Parkinson, sindrome de Tourette, DOC, DHDA owautismo; na rea- lidade, tais pacientes podem articular e com freqiéncia analisar com grande precisao 0 que esta se pasando com eles. Assim, eles podem nos Prejécio as dizer o que pacientes com patologia primaria do lobo frontal nao podem — mostrando como € sentir, no fntimo, que se tém essas diferengas e ceaprichos da fungao do lobo frontal. Goldberg apresenta essas discussdes, que poderiam de outro modo ser diffceis ow intrincadas, com grande vivacidade e humor, ¢ com fre~ ‘quentes alternancias de narrativa pessoal. Assim, no meio de sua discus sto do comporamento “dependente do campo”, a distragao incontinente tao caracteristica daqueles com lesio severa no lobo frontal, Goldberg fala de caes e de seu comportamento relativamente “afrontal", onde “fora de vista” ¢ “fora da mente’, Ele contrasta isto com 0 comportamento de ‘macacos e nos conta como, numa viagem a Tailandia, ele uma vez “fez amizade” com um jovem gibao macho, o animal de estimac2o do clono de ‘umm restaurante em Phuket ‘oda an ogibao cori divetoparaoaperto de mios, Todo membros eum pequene corpo cle se enegavaentioa uma breve danca como de uma ‘ha que, Amina maneira de medarimportincia, eu interpreta como uma expresso de algria a0 vere, Mas ent, a despeto de sus inclinagao & brineadeiraineanstel, le se postava proximno de mim e com extrema con centraao estudava os minimosdetalhes de minhasronpas ura pulsera de religio, om botéo, um sapate, meus dcalos (que, num de meus mementos de distraga, ele ion de mes rst tenton comme). Ele alhavafvamente o¢ itens intense sistemaicamente, desvinde seu ollar de um dealhe para dutro, Quando um dia aparece um curaivo em torn de meu dedoindicn der, o jovem gibto examinot-o minuicisamente, Malgrado seu status de ‘macaco *menor” (em contraste com babuinos,chimpanzés, oils e oan sotangos, que sto conhecidos como os “grandes” macacos), o gibao era Expar de manteratengdo, Mais notavelmente, o gibio invariavelmente yoltava a0 objeto de sua ccuriosidade em seguida 1 uma sibita dstracao, digamos, um ruido na rua. Ele retomava sua exploragio precisamente onde a havia interrompido, ‘mesmo quando a interrupca0 nao era \20 rapida, As agoes do gibso exam, orientadas por uma representacio interna, que "fazia uma ponte” em seu ‘comportamento entre antes e depois da distragio. "Fora de visa’ jé no era “fora da mente"! Goldberg é umamante de cies, e teve diversos deles, mas para ele “a inte- ragdo com o gibao foi tao qualitativamente diferente e tao notavelmente ‘mais rica do que qualquer coisa que eu jamais experimentara com cies, que eu flerii brevemente com aidéia de comprar um gibioe trazé-lo para Nova lorque para ser meu animal de estimagao ¢ companheiro.” 16 © CEREBRO EXECUTIVO sto, € claro, era impossivel, e Goldberg (que conheci por essa época) ficou muito triste por nao poder faze-lo, Eu seni ui grancle simpatia por cle porque eu mesmo havia tido uma experigneia quaseicéntica com um orangotango, ¢ tive mais do que meios desejos para que pudéssemos ao ‘menos enviar cartes postais tum a0 outro, +a outros temas importantes em © cerebro executivo, idetas que vieram pela primeira vez vona quando Goldberg era um estudante, eque ele vem explorando ¢ elaborando desie entao, Elas tema ver com diferentes tipos de desafio que enfrentam um organismo: o encontrode novassituacoes (canecessidade de chegar'a novas solucoes) eanccessidade de ter estabe- leciclo rotinas econdtnicas para lidar com situacdes ¢ demandas familia~ res. Goldberg vé 0 hemislério direito do cérebro como especialmente equipado para lidar com situagdes e solugdes novas, ¢ 0 lado esquerdo do cerebro com tatefas. processosrotineiros. Ht, para ele, um cielo continuo de informacao, de compreensio, do hemisferio direito para o esquerdo. “A ransigao da novidade a rotinizacao”, escreve ele, “€ 0 ciclo universal de nosso mundo interior.” Isto vai contraa nocdo classica de que hemis- ferio esquerdo ¢ 0 “dominante” ¢ o hemisfério direito 0 “menor”, mas concorda com a descoberta clinica de que lesdes no hemis{ério direito poclem ter efeitos muito mais estranhos e profundos do que os efeitos rela tivamente diretos de lesdes no hemisfério “dominante”, Deste modo, ¢ integridade do hemisferio “menor assim chamado, que Goldbergeré ser crucial parao sentido de eu ow identidade —sua integridade, ea integri dade dos lobos frontais, Um outro tema central de O cérebro executivo diz respeite a0 que Goldberg ve como os dois mnodos radicalmente diferentes, mas comple: mentares, de organtzacao cerebral. A neurologta classica (e sua precur: sora, a frenologia) ve o cerebro como consistindo de uma maultidao, um mosaico de areas, sistemas ou mdulos separados, cada um dedicado a ‘uma funcéo cognitiva altamente specifica, ¢ todos relativamente isola- dos, com interagées muito limitadas. Tal organizacao ¢ evidente nas partes ‘mais primitivas do cérebro, tais como o télamo (que consiste de muitos niicleos discretos e separacios) cas partes mais antigas do cértex cerebral — data possibilidade de lesdes pequenas, diseretas, no cdrtex visual, pro: duzindo perdas igualmente diseretas da visto de cores, visto de movi mento, visto de profundidade etc, Mas al sistema, argumenta Goldberg, Preficio W seria rigido, nao flexivel, ¢ teria pouea capacidade de lidar com novidade ou complexidade, de adaptar ou aprender. Tal sistema, sustenta cle, seria inteiramente inadequado para suportar identidade ou vida mental mais clevada, Janadeécadade 1960, quando estudante, Goldberg estava comecando ‘aentrever'um tipo muito diferente de organizagao as partes mais novas ¢ nas elevadlas" do cerebro, o neocortex (que comecaa se desenvolver em imarniferos e atinge sew mats elevado desenvolvimento nos lobos frontais humanos), Una andlise cuidadosa dos efeitos de lesbes no neocortex sugere que nao hé mais midulos ou domfnios isolados aqui, mas sim uma transigao gradual de uma funcdo cognitiva para outra, eorrespondendo a ‘uma trajetoria gradual, continua, ao longo da superficie cortical. Assim, 0 conecito central de Goldberg € 0 de um continuum cognitive, wm gra dliente. Esta ideta radical cativava o jovem Goldberg quanto mais cle pensava nela: “Comecei a pensar em meus gradientes como 0 andlogo nneuropsicologico da tabela periodica dos elementos de Mendeley.” A teo- via gradliencial fol incubada e testada por vinte anos, e somente foi escrita por Goldberg em 1989, quando ele renniu provas macigas para apoi- la Oensoio fundamental no qual ele langou sua teoria fot amplamente ign rado, « despeito do grande poder explanatorio que ele prometia Quanclo escrevi um ensaio em 1995 sobre prematuridade em ciéncia (O.W, Sacks, “Scotoma: Forgetting and Neglect in Science,” em Hidden Histories of Science, ed. R.B. Silver. Nova lorque: New Yorke Review of Books, 1996, pp. 141-187. |*Scotoma: esqueeimento e desatengao em ciencia” em Historias Ocultas da Ciencial), eu citei, entre muitos outros exemplos, o malogro em compreender ou vera relevancia da teoria gra Aiencial quando ela foi publicada; o préprio Luria achow-airicompreens(- vel em 1969, quando Goldberg a apresentou a ele pela primeira vez, Mas hhouve una grande mudanga, umn deslocamento de paradigma (come diria Kuhn) na thtima década, em parte conectada com teorias de fungio cere bral global, tais como a de Gerald Edelman, em parte com 0 desenvolyi- anento de redes neurais como sisiemas de modelaggo, sistemas de compu tador macigamente paralelos, cassim por diante, e oconceito de gradientes cerebrais — a visio de Goldberg quando esiudante—é agora muito mais amplamente aceito. A modularidade ainda existe, enfatiza Goldberg, como um prinefpio persistente mas arcaico da organizacio cerebral, que fot gradualmente suplantado ou suplementado por um prinetpio gradiencial posterior mente em evolugao, “Se isto € assim", observa ele, “entao existe um estra- 18 © CEREBRO EXECUTIVO ho paralelo entre acvolugio do cérebro e aevolucao intelectual de como ppensamos sobre o cérebro, Tanto a propria evolugio do cérebro como & evolugio de nossas teorias sobre o eérebro foram caracterizadas por um deslocamento paradigmatico, do moclular para o interativo.” Goldberg se pergunta se esse deslocamento paradigmatico pode encontrar paralelos na organizacao politica, coma fragmentacéo de gran- des estados "macro-nacionais" para estados menores “microrregionais”, ‘uma mudanga que traz ameaca de anarquia a menos que um novo execu- tivo supranacional — o equivalente politico dos Lobos frontais — possa ‘anergir e coordenar a nova orem mundial, Elese pergunta, tambem, sea -substituigdo dos enormes mas elativamente poucos ¢ isoledos supercom- ‘putadores da decada ce 1970 pelas centenas de milhoes de computaclores pessoais que temos agora, todos com o potencial de interagir, € um para~ lelo ao deslocamento do modular para o imerativo, com dispositives de Dusca como o equivalente digital dos lobos frontais. (0 cerebro executivo termina como comeca, num tom pessoal ¢ intros pectivo, com a lembranga de Goldberg de como quanido menino ele lia Spinoza na biblioteca de seu pai e amava a tranqaila equagao de Spinoza de corpo e mente; ¢ como isto teve um papel cruetal em orienta-lo para a ‘neuropsicologia, e em evitando aquela ruptura fatal entre corpo e mente, 0 dualismo que Antonio Damasio chama de “o erro de Descartes”, Spinoza nao acreditava que a mente humana, com seus nobres poderes ¢ aspira- oes, fosse de alguma forma desvalorizada ou reduzida por ser depen dente das operacbes de um agente fisico, 0 cérebro. Pelo contnitio, dizia ele, deve-se admirar 0 corpo vivo, por sua maravilhosa e quase incom. preenstvel sutileza e complexidade. E apenas agora, na aurora do século XXI, que estamos comegando a perceber a plena medida dessa complexi- dade, a ver como natureza e cultura interagem e como cérebro e€ mente produzem um 0 outro, Ha um punhado, um pequeno punhado, de livros hotavets que tratam desses problemas centrais com grande forga — os de. Gerald Edelman e Antonio Damasio vém logo a lembranca —, € a este seleto nimero o livro de Elkhonon Goldberg, O cérebro executiva, deve ccertamente ser acrescentado, Agradecimentos Assumi eserever este livro, numa linguagem ainda nao inteiramente minha, com hesitagao, Por habito e temperamento, uma prosa mais con- cisa do que o que se espera de um livro semipopalar vem naturalmente & mim, Mas segui os estimulos de varios amigos ¢ fui em frente, por das razoes. A razao mais bem articulada foi a erescente consciéncia de que, para criar um impacto, um eseritor precisaas vezes ir além do formato das revistas clentifieas de citculagao restrita. A razao mais impalpavel fot uma necessidade de reconectar minhas vidas russa e americana (no periodo deste escrito quase exatamente iguais em extensto) por melo de uma nar- rativa intelectual pessoal continua. Tenho uma divida de gratidao para com muitas pessoas. Para com Oliver Sacks, um amigo préximo de muitos anos — a prépria proposia de escrever um livro pata 0 publico em geral provavelmente nao teria me ‘ocortido sem o exemplo de Oliver: Para com Dmitri Bougakov pels edicao técnica, verificaca de fatos e referenciase ajuda as lustracoes, Para com Laura Albritton, que ajudou a editar 0 manuscrito, Para com Fiona Ste- vens, da Oxford University Press, que ajudou a preparar o livro paca publicagéo. Para com Sergei Knyazex, por sua discussio esclarecedora sobre as analogias entre océrebto ¢ os computadores, Paracom Vladimir © Kevin, por me darem ume oportunidade de aprender com suas condlicdes. Para com aqueles chamados Toby ¢ Charlie, bem como Lovell Handler ¢ 20 (© CEREBRO EXECUTIVO Shane Fistell, por compartilhar as historias de suas vidas e permitir-me descrevé-las neste livro, Para com pai de Kevin, por permitir-me escre- ver sobre seu filho, Para com Robert lacono, por compartithar sta expe- riencia com cingwotomia. Para com Peter Fitzgerald, Ida Bagus Made ‘Adnyana, Kate Edgar, Wendy James, Lewis Lerman. Jae Llewellyn-Kitby, Gus Norris, Martin Ozer, Peter Lang, Anne Veneziano ¢ para com os revi- sores andnimnos da Oxford por valiosos comentarios sobre 0 mianuscrito, Para com Brendon Connors, Dan Demetriad, Kamran Fallahpour, Evian Gordon Konstantin Pio-Ulsky, por ajudarem a criar algumas das ima- gens usadas no livro. Para com meus pacientes, amigos, conhecidos, que informaram minha obra com suas vidas, tragédias ¢ triunfos e me deram a permissio de escrever sobre eles. Para com meus alunos, que proporcto- nnaram umaaudiencia cativa diante da qual eu pude recitar partes do livto. Para com os projetistas do computador portatil Psion, que me possibilita- ram escrever olivro inteiro em todos os tiposde lugares improvaveis. O li- ‘to é deilicado a Alexandr Romanovich Luria, que se se referiu aos lobos frontais como 0 “6rgao da civilizacao” € que teve um impacto maior sobre minha carreira que eu pudesse remotamente imaginar enquanto fui seu aluno. Nova lorque, N.I. EG. 1 Introdugao Iniciei este livre tendo em mente um pablico leitor geral, Mas a meio caminho através do projeto, o profisstonal em mim prevaleceu sobre 0 popularizador, ¢ o livro éde certa forma um hibrido, Correndo o risco de ‘ao atrair um nem outro, tentei escrever um livro que atraitia tanto © publico em geral como aaudieneta profissional. Os eapitulos 1, 2,3,9, 10, 11, 12 € 0 Epilogo sto menos técnicos e de interesse geral; seu intuito é avrairtanto oleitor em geral como os profissionais, Os capitulos4,5,6, 7 Bao de certo modo mais técnicos mas, nao obstante, acessiveis a0 leitor cm geral. Eles lidam com questoes amplas de neurociencia cognitiva, de interesse para cientistas ¢ médicos, bem como parao leitor em geral inte- ressado nos [uncionamentos do cérebro ¢ da mente. O livro nao repre- senta uma tentativa de abordagem encielopédiea ou cle manual dos lobos frontats. Ele €, pelo contrario, um relato iiossineratico de minha propria, compreensao cle varias questoes centrais da neurociéneia cognitiva ¢ do contexto pessoal que me levou a escrever sobre isto. Neste livro, ew exploro a parte de seu cérebro que faz com que voce seja quem €e define sua identidade; que abriga seus impulses, suas ambi oes, sua personalidade, sua esséncia: os lobos frontais do eérebro, Se outras partes do cerebro sto lesadas, a moléstia neurologica pode resultar nna perda da lingugem, memoria, percepeao ou movimento, Contudo, a esséncia do individuo, o cerne da personalidade, geralmente permanece 2 © CEREBRO EXECUTIVO intacta, Tudo isso muda quandoa moléstiaataca os lobos frontais. O que €é perdido entao nao é mais um atributo de sua mente, E a sua mente, set. Cerne, seu eut. Os Lobos frontaissao as mais unicamente humanas de todas as estruturas do cérebro e desempenhain um papel eritico no sucesso ou fracasso de qualquer empenho human. (0 “ervo de Descartes*, para tomar de empréstimo a elegante expres- sa0 de Antonio Damdsio!, consistia em acreditar que a mente tem uma Vidla prépria, independente do corpo. Hoje uma sociedade culta nao acre ta mais no dualismo cartesiano entre corpo e mente, mas nos abandona- mos 05 vestigios do antigo equivoco em estigios. Hoje, powcas pessoas instruidas, nio importa o quanto nao informadas em neurobiologia, dvi dam que linguagem, movimento, percepgio, meméria, tudo isto de alguma forma tesida no cerebro, Todavia, ambi¢ao, impulso, previsdo, insight — esses auributos que definem a personalidade e esséncia da pes- ‘s0a— sao hoje vistos por muitos como, digamos, “extracranianos", como se fossem atributos de nossas roupas € nao de nossa biologi. Estas quali- dades humanas evasivas sito também controladas pelo cérebro e, particu larmente, pelos lobos frontais, O cértex pré-frontal ¢ 0 foco da pesquisa neutocientificr hoje, embora seja amplamente desconhecido dos nao- cientistas. Oslobos frontais desempenham as fun¢oes mais avangadas ecomple- xas de todo © cérebro, as assim chamadas fungdes executivas. Eles estao ‘yinculados a intencionalidade, propéstto e tomada de decisoes comple- xas. Eles alcangam desenvolvimento significativo apenas em humanos; pode-se dizer que eles nos tornam humanos, Toda a evolucao humana foi denominada *2 era dos lobos frontais". Mew professor Alexandr Luria chamava os lobos frontais “o 6rgio da civilizacdo”, Este livro ¢ sobre lideranca, Os lobos [rontais sao para o cérebro 0 que um maestro € para uma orquestra, umn general para umn exéicito, 0 diretor-executivo para uma corporacao. Eles coordenam ¢ orientam ou- tras estruturas neurais em aco combinada. Os lobos frontais 310.0 posto de commando do cérebro. Nos examinaremos como o papel de lideranga evoluiu cim varias facetas da sociedade humana — e no cérebro. Este livro é sobre motivacio, impulso ¢ visio. Motivacio, impulso, previsio e visio clara das metas de uma pessoa sto centtais pata o sucesso tem qualquer percurso da vida. Voct descobrira como todos esses pré-re- quisitos do sucesso sio controlados pelos lobos frontais. Este livro val também Ihe contar sobre como mesmo danos sutis nos tobos frontais pro- duzem apatia, inércia e indlferenca, Introdupio 2B Este livro € sobre autoconsciéncia ¢ consciéncia de outros. Nossa capacidade de realizar nossas metas depende de nossa capacidade de ava liar crittcamente nossas proprias agoes e as agdes dos que nos rodeiam. Esta capacidade repousa sobre os lobos frontais, Lesoes nos lobos frontals produzem cegueira debilitante no juigamento, Este livro € sobre talento € sucesso. Nos reconhecemos imediata- mente talento literério, talento musical, talento atlético. Mas numa soci dade complexa como a nossa, um talento diferente vem ao primeiro plano, o talento de lideranca, De todas as formas de talento, a capacidade de liderar, de compelir outros seres humanosa Ihe seguirem, € mais mis- teriosa ea mais profunda. Na historia humana, o talento de lideranga tem Lido 0 maior impacto sobre o destino de outros € sobre o sucesso pessoa Este livro realga uma intima relagao entre lideranga eos lobos fronts. Por certo, 0 inverso disto & que uma funcao fraca do lobo frontal é especial- mente devastadora para um individuo. Portanto, este livro ¢ também sobre fracasso. Este livro € sobre criatividade, Inteligéncia e criatividade sito insepa rriveis, embora nao sejam a mesma coisa, Cada wm de nés conheceu pes: soas que sio brilhantes, inteligentes, atentas — e estéreis. A criatividade requer a capacidade de aceitar novidade. Nos examinaremos 0 papel ert- tico dos Lobos frontais na relacao com novidade Este livro € sobre homens ¢ mulheres. Os neurocientistas estio ape- nas agora comecando a estudar 0 que as pessoas comuns sempre assumi ram, que homens e mulheres sto diferentes. Homens e mulheres abordam as coisas de modos diferentes, eles tem estilos cognitivos diferentes. Exa- iminaremos como essas diferengas em estilos cognitivos refletem as dife rengas de género nos lobos fronts. Este €um livro sobre sociedade c historia, Todos os sistemas comple- xos tm certas earacteristicas em comum, ¢, 20 aprendermos sobre um esses sistemas, aprendemos sobre 05 outros. Vamos examinar analogias entre a evolucio do cérebro ¢ o desenvolvimento de estruturas sociais complexas e derivaremos cerias ligdes sobre nossa propria sociedade. Este livro € sobre maturidade social ¢ responsabilidade social. Os lobes frontais nos definem como seres sociais, E mais do que coincidencia queamaturacdo bioldgica dos lobos frontais ocorrana épaca que tem sido codificada virtualmente em todas as culturas desenvolvidas como ointcio da idade adulta, Mas desenvolvimento fraco ou lesdes nos lobos frontais, podem produzir comportamento desprovido de restrides socinis e senso 4 0 CEREBRO EXECUTIVO de responsabilidade, Vamos diseutir como a disfuncéo do lobo frontal pode contributr para o comportamento criminoso. Este livro é sobre desenvolvimento cognitivo eaprendizado. Oslobos frontais sio eriticos para todo processo bem-sucedido de aprendizagem, para motivacao e atengao. Hoje estamos cada vez mais conscientes de dis- ‘urbios sutis que afetam eriancas eadultos —disturbio de deficit de aten- cao (DDA) e distarbio de hiperatividade de deficit ce atencao (DUDA)? Este livro descreve como DDA e DHDA sio causados por disfungoes sus dos lobos froniaisc astrilhas que os conectama outras partesdo cerebro, Estelivro € sobre envelhecimento, Conforme envelhecemos, preoc pamo-nos cada vez mais com nossa argticia mental. A medida que aumenta ‘preocupacdo popular com o dectinio cognitivo, todos falam sobre perda ‘de memoria e ninguém fala da perda de funcées executivas. Este liveo the mostra o quanto vulneravel os lobos frontais sio ao mal de Alzheimer ea outras demencias. Este ivro ¢ sobre moléstia neurol6gica e psiquidtrica. Os lobos fron- tats sio excepeionalmente frigets, Estudos recentes mostraram que. di Fungao do lobo frontal esta no cerne de disttirbios devastadores, tais como 4 esquizofrenia e trauma da cabeca, Os lobos froniais estao tambem envolvidos na sindrome de Tourette no distirbio obsessivo-compulsivo. Este livro € sobre o reforco de suas fungoes cognitivas ea protecio de ‘tia menie contra 0 declinio. A neurociencia contemporanea esta apenas agora comecande a tratar dessas questées. Algumas das ideias e aborda- ‘gens mais recentes sio revistas aqui Sobretudo, este livro € sobre o cérebro, 0 Orgio misterioso que é parte denés, que nes faz 0 quesomos, quenos dota de nossos poderes nos faz ‘vergar com nossas fraquezas, 0 microcosmo, a ultima fronteira. Ao escre- ver este livro, nao procurei ser imparcialmente enciclopédico. Preiendi, pelo contratio, apresentar um ponto de vista pessoal, originale por vezes provocante de topicos cle neuropsicologia © neurociéncia cognitiva, Em bora muitos desses pontos cenbam ja sido publicados em revistas cientifi- ‘as, eles nao representam mecessariamente a opiniao predominante no ‘campo, e muitosdeles permanecem claramente pantidarias, controversos, de minha lavra. Finalmente, este livro € sobre pessoas: sobre meus pacientes, meus amigos e meus professores, que de varias maneirase de ambos os lados da Cortina de Ferro ajudaram amoldar meusinteresses emninha carrera, (or ‘nando assim ese ivro possivel, Este livro édedicado a Alexandr Romanio= vich Luria, 0 grande neuropsicélogo, cujo legado informou ¢ moldou o Iroc 25 ‘campo como o de mais ninguém. Como me refer ele alhures, ele foi, em ‘epocas diversas, “meu professor, meu mentor, mew amigo ¢ meu tirano”? 'Nosso relacionamento foi proximo e complexo, No Capitulo 2, fornego ‘um relato bastante pessoal de umn dos maiores psicdlogos de nossa epoca e o comtexto extraordinariamente dificil no qual ele trabalhou. Um socialite amigo meu observou, sucintamente e dlireto a0 ponto: “O cerebro &0 maximo!” Entre todos os modismos intelectuais, quase in telectuais e pseuido-intelectuats hoje em di, o interesse popular no cére- ‘bro reina supremo. Fle & compartilhado por um pablico geral esclarecidto, movido por autentica curiosidade sobre a “aluima fronteira da eleneta”, ppor pais ansios0s pelo sucesso de seus filhos € emerasas com a perspec tiva de fracasso;¢ por insaciaveis baby boomers (N. dos T. geracdo nascida aapés a Segunda Guerra Mundial), decididos a permanecer no assento do ‘motorista para sempre, mas aproximando-se cla idade em que © deelinio mental debilitante toma-se uma possibilidade estatstica, Para ix a0 encontro desse interesse sem paralelos, grande quantidade de livros populares fol escrita sobre memoria, inguagem, aten¢ao, emo¢ao, hemis- ferios cerebrais etemas relacionados. Incrivelmente, porem, uma parte do cérebro foi completamente ignorada neste genero: 0s lobos frontais. Este livro foi escrito para preencher esta lacuna © pablico instrusdo ests ficando desitudido com a feliz ilusto car- tesiana de que ocorpo ¢ frigil, masa mente ¢ para sempre. Conforme vive- mos mais tempo, somos mais bem instruidos, ¢ vamos em frente pelo nosso cérebro.em vez dosmusculos, ficamos cresceniemente interessados em nossas mnentes ¢ preocupados em perdé-las. A preocupagio de nossa sociedade autocentr Ia com doengas criou tum complexo emaranhado de realidade, newrose ¢ culpa com tonalidades de Juizo Final. Nunca muito lange do centro de nossa cansciencia coletiva, essaprcocupacio geralimente enfoca uma doenca que abrange todosos nos- 505 femnores, tornanddo-se assim, nas palavras de Susan Sontag’, uina meta fora, Foio ctneer, depois sindrome de imunodeficitnein adquitida (aids) Conforme o valor de choque e novidade da metafora do dia diminuem gra dualmente uma familiatidade alimenta uma sensagio (migiea) de segu- ranga, um novo foco emerge. Durante a déeada de 1990, ceclarada peios National Insticutes of Health (Institutos Nacionais de Satide) como sendo “a década do cerebro”, a demencia tornou-se, apropriadamente, 0 novo foco, A medida que coma idade a demencia atinge uma proporca signifi- cativa da populacio, a preocupacio € basicamente racional, mas, como a ‘maioria dos modisinos, assume tonalidades neur6ticas 26 © CEREBRO EXECUTIVO Como convém a um movimento, a preoeupacdo com a demencia adquiriu sua propria metéfora, uma metifora dentro de uma metafora, por assim dizer, O nome desta metifora é “memoria”. Nasociedade de in- formagao dominada por baby boomers envelhecenco, hd wma crescente preacupacto em prevenir dechinio cognitivo ereforcaro bem-estar cogai- tivo, Clinicas de memariae suplementos fortificantes da meméria prolife- ram. Revistas importantes estao repletas de artigos sobre memoria, "Me- méria" tomou-se 0 nome do codigo para a emergente tendéncia da boa forma mental ¢ da emergente preocupagao com a perda da mente com @ deméncia. Masa cognicao consiste em muitos elementos, sendo a memria ape- nas um deles. A meméria é um dos muitos aspectos da mente centrais & nossa existéncia. O declinio da meméria ¢ apenas uma das muitas manel- raspelas quais amente pode ser perdida, assim como omal de Alzheimer € ‘apenas uuma das diversas demencias ainda incuravels € a AIDS ¢ apenas uma das diversas doengas infecciosas letais ainda incuravets, Embora indubitavelmente fragil, memoria nao € de modoalgum oinico,¢ possi- velmente nem mesmo o mais vulneravel aspecio da mente, e a perda de ‘memoria nao ¢, de forma alguma, atinica maneira pela qual a mente pode ser perilida, As pessoas freqdentemente se queixam de deterioragio da “imeméria” por falta de wm termo melhor ou mais preciso, quando o que afeta, na verdade, € o dectinio de um aspecto da cognigao inteiramente diferente, Como este livro vai mastrar, nenhuma outta perda cognitiva se apro- zxima da perda das fungdes execntivas.em grau de devastagiie que ela pro- ‘ocana mente eno self de uma pessoa, Conforme aprendemos mais sobre moléstias do cerebro, descobrimos que 05 lobos frontais sao particular- mente afetados na demeneia, na esquizofrenia, na testo traumatica na cabega, no distitrbio de deficit de atencao e em uma hosie de outros dis- turbios. As fimoes executivas sao afetadas em demencias com freqiencia ecedo. Quaisquer esforcos futuros para reforcara longevidade cognitiva por meio de farmacologia “cognotdpiea” revigorante da mente, exercicio cognitive ou qualquer outro meio terdo de enfocar as funcdes executivas dos lobos froniais. Este livro passa em revisio os métodos cienttlicos emergentes projetados para proteger ¢ fortalecer a mente em geral ¢ as fungdes exccutivas dos Lobos frontais em particular. Finalmente, iremos tragar amplas analogias entre o desenvolvinnento do cérebro eo desenvolvimento de outros sistemas complexos, como dls: Introdugeo 27 positives computacionais digitais, ¢ a sociedace, Essas analogias estdo Daseadas na suposigao de que todos os sistemas complexos tem certas caracteristicas fundamentals em comum ea compreensao de um sistema complexo nos ajuda a compreender os outros. Acredito que idéias sio mais bem entendidas quando sto considera das no contexto em que emergem. Deste modo, entrelacadas com a dis- ceussao de varios topicos de neurocieneia cognitiva est2o vinhetas pessoais, sobre meus professores, sobre meus amigos, sobre ett mestio e sobre.os tempos em que vivernos. Referéncias e Notas 1. A. Damasio, Descartes! Error: Emotion, Reason ana the Human Brain (Nova Jorque: Puinam Publishing Group, 1984), 2 RA. Baskley, ADHD ond the Nature of Self-Control (Nova lorque: Guilford Press, 1997) 3. E Goldberg, “Tribute 10 Alexandr Romanovich Luria’, em Contemporary Neuropsychology and the Legacy of Luria, ed. E. Goldberg (Hillséale, Nova Jersey: Lawtence Erfbeum Associates, 1990). 1-8 4. S.Sontag, linessas Metaphor and AIDS ands Metaphors (Nova lorque: Dow. bieday Books, 1990). 2 Um Fim e um Comego: uma Dedicacao Afligoes triviais parte, vivemos num mundo clemente, onde a margem de erro ¢ geralmente hem generosa. Sempre suspeitei que, mesmo nos nais altos postos de poder, a tomada dle decisoes é um processo um tanto desleixado. De vez em quando, surgem situagdes na vida de um ser hhumano, ¢ de uma sociedade, que nao permite margem de erro, Essas situacbes criticas sobrecarregam as capacidades do executivo que toma as decisdes a0 seut exttemo, Aos 53 anos de idade, posso pensar em apenas ‘uma situagdo dessas em minha vida, Para mim, na €poca jd um estudioso dlas fangoes executivas, a experiencia teve o duplo significado de wm drama pessoal ¢ de um estudo pratico do funcionamento dos lobos fron- tals — os meus proprios. Meu mentor, Alexandr Romanovich Luria, e eu estavamos imersos ‘numa conversa que haviamos tido uma dizi de vezes. Estavamos passean- do, tendo safdo do apartamento de Luria em Moscow, seguindo a rua Frunze na directo da Antiga Arbat. Caminhavamos com euidado, porque Luria quebrara sua perna e mancava, o que desacelerava seu passo geval mente rapido, Era uma tarde no comeco da primavera, Moscou estava degelando apés um frigido inverno, ¢ a praca estava ficando movimen- tada, Mas Luria estava com uma postura tio professoral comseu casaco da Marina de casimira e gola de asiraca que chegava quasc até o chao e 0 chapéu combinando, que a multidao dava passager. 30 (0 CEREBRO EXECUTIVO (© ano era 1972. 0 pats havia vivido através dos anos assassinos de Stalin, através da guerra, através de mals anos assassinos de Stalin, eatra~ ‘ves do degelo abortado de Krushichey. As pessoas jd nao eran executadas por dissidencia, elas eram meramente encarceradas. O estado de espirito pitblico predominante jé nao era de terror ealafrio nos os50s, mas depri- ido, resignado, desesperancado, estagnado e indiferente, uma espécie de estupor social, Meu mentor tinha setenta anos de idade, € eu 25. Ea estava me aproximando do fim de minha aspirantura, um curso de pos-graduacao geralmente levando a uma posicao na faculdade. Estava- ‘mes falando sobre meu futuro. ‘Como em muitas ocasides antes, Alexandr Romanovich estava me dizendo que era tempo de eu ingressar no partido — o partido, o Partido Comunista da Uniao Sovietica Fle proprio um membro do partido, Luria ofereceu-se para nomear-ne e arranjar uma segunda nomeacio com Ale- xey Nikolayevich Leontyey, também um ilustre psicdlogo e nosso deao na Universidade de Moscou. com quem eu estava geralmente em termos cor- diais, Ser membro do partido eta o primeiro degrau da elite sovietica, um passo obrigatorio para qualquer aspiracio séria na vida. Entendia-se que ser membro do partido era um sine qua non para qualquer progresso na carreira na Unio Soviética. Entendia-se tambem que minha nomeagio para membro do partido era um gesto muito generoso de Luria e Leontyev. Eu era um judeu da Letonia, que era vista como wma provincia indigna de confianca, e eu tinha antecedentes “burgneses”. Mew pai passara cinco anos no Gulag, como um “inimigo do povo". Eu nao aderira exatamente a0 ideal sovietico. ‘VYorando para min, Luria Leontyey, as dias principais figuras da psicolo- gla soviesica, corriamo risco de irritara organizagto do partido da univer- sidade por empurrar" demica soviética, Mas eles estavam dispostos a faze-lo, 0 que significava que eles queriam que eu ficasse na Universidade de Moscou como mem bro da faculdade em inicio de carreira. Ambos haviam me protegido em vvaviassituacdes antes, €estavam preparados para apoiar- Repetidas vezes, contudo, eu disse a Alexandr Romanovich que eu ino iia ingressar no partido. Por uma diizia de ocasiées nos tiltimes pou- 0s anos, sempre que Luria trazia de volta 0 assunto ew 0 descartava, transformando-o numa piada, dizendo que eu era demastado jovem, demasiado imaturo, que nao estava pronto ainda, Eu nao queria um cho- que aberto ¢ Luria nao me forcava, Mas dessa vez ele estava falando com m outro judeu” paraoestratorarefeltoda elite aca jenovamente, Um Fime wm Comego: wna Dedicagio 31 finalidadle. F dessa vez eu disse que nao ia ingressar no partido porque nao queria Poderia ser dito que Alexandr Romanovich Luria era 0 psicélogo sovietico mais importante de sua época, Sua multifacetada carreira inciuia empreendimentos transculturais ¢ estudos de desenvolvimento, princi- palmente em colaboracao com seu mentor, Lev Semyonovich Vygotsky, tum dos maiores psicdlogos do século XX. Mas foi sua contribuicéo a rneuropsicologia que Ihe granjeou verdadeira aclamacdo internacional Universalmente considerado como o paifundador da neuropsicologia, ele estudava a base neutra da linguagem, da memoria e, € claro, das fungoes exclusivas. Entre seus contemporaneos, ninguem contribu para a.com: preensao do complexo relacionamento entre o cérebro e cognigao do que Luria, e ele era revetenciado dos dois lados do Atlantico (Fig, 2.1), Naseiddo em 1902, na familia de um proeminente médico judeu, ele viveu em meio zo fermento cultural do inicio do século, os anos volateis da Revolucto Russa, a guerra civil, os expurgos de Stalin, 2 Segunda Guerra Mundial, uma segunda todada de expurgos de Stalin e, inalmen- te, um relativo degelo. Ele testemunhou os nomes de seus dois amigos mais proximos e mentores, Lev Vygotsky € Nicholai Bernstein, enodoa- rem ea obra de suas vidas ser banida da existéncia pelo Estado. Em varios pontos desua vida ele esteve Abeira de ser encarcerado no Gulag de Stalin, ‘mas, ao contrario de muitos outros intelectuais soviéticos, nunca fot real: ‘mente apristonado, Sua carreira era uma mistura peculiar de uma odisséia intelectual guiada por um autentico desdobramento natural de inquirica0 cientfica e de uma corrida pela sobrevivencia no eampo minadlo da ideo. logia sovietica ‘Tendo vindo da extremidade mais ocidental do Império Sovietico, da cidade baltica de Riga, cresci num ambiente “europeu. Diferentemente ds familias de meus amigos de Moscou, a geracao de meus pais nao cres- cera sob 03 soviéticos. Eu tinha um certo senso de cultura “europeia” ¢ identidade *européia.” Enire meus professores na Universidade de Mos- cou, Luria era um dos muito poucos “europeus” reconheciveis, ¢ esta foi ‘uma das coisas que me levow a ele, Ele era um homem do mundo, poli gota e de muitos talentos, completamente & yontade com a civilizacdo ocidental Mas ele era também um homem soviético, acostumado a fazer com: promissos para sobreviver. Suspeito que nos mais profundos recessos de seu ser havia um medo visceral de repressio fisica brutal. Eu havia conhe ido outras pessoas como ele e me parecen que o medo latente ficou para 32 © CEREBRO EXECUTIVO Fig. 2. Lana Pymenovna Luria, ‘ambos no inicio de seus trinta anos. (Contesia de dr. Lena Moskovieh.) — Alesandr Romanovich Luria © sua espasa, Um Fim e um Comeco: ume Dedicagio 3 sempre com elas, anesmo quando as circunstancias haviam mudado e @ edo ja nao se bascava mais na realidade, até elas morrerem. Esse medo era a cola do regime soviético ¢, ew imagino, a cola cle qualquer outro rejime repressivo, até 0 seu colapso, Essa dualidade de liberdade intelec tual interior, mesmo arrogincia, © acomodacéo cotidiana, era um tanto ccomum entrea intelligentsia soviética, Eu no condenava Luria ser mem bro do partido, mas tampouco respeitava, isto era uma fonte de aborre cida ambivalencia em minha atitude para com ele, Eu tinha uma certa penta dele por aquilo, wm estranho sentimento para um estudante ter em relacao a um reverenciado mentor Minhas relagoes com Alexandr Romanovich ¢ sua esposa, Lana Pymenovna, ela propria uma conhecida cientisia-oncologista, eram vir ‘walmente familiares, Pessoas calorosas e generosas, eles tinhatn 0 habito de trazer seus associados para sua familia, convidando-os paraseu aparta ‘mento €m Moscou e sua dacha no campo, ¢levando-0s consigo a exposi g8es de arte, Sendo 0 mais jovem entre os associados imedizios de Luria, ewera freqtientemente o objeto de sua supervisio semipaternal, que ia de me encontrarem um bom dentista a me lembrarem de engraxar tncus sapatos, Como € normal na vida, ocasionalmente discordsvamos sobre pequenas coisas, mas éramos muito proximos. Agora, quando coloquei definitivamente que nao ingressatia no parti- do, Luria parou no meio da ra. Com um toque de resignacao, mas também uma finalidade prosaica, ele disse: “Entio, Kolya (meu antigo apclido russo), nao ha nada qute eu possa fazer por voc®” E foi assim. Isso poderia ter sido devastador sob um conjuunto diferente de circumstaneias, mas haquele dia sentialivio, Sem conhecimento de Alexandr Romanovich ou de mais alguém, eu ja havia decididlo detxara Unigo Sovietica. Fazendo de ‘meu ingresso no partido uma precondi¢ao para a continuidade de seu patrocinio, cle me livrava de qualquer obrigacao que eu sentisse para com ele, que poderia ter interferido em minha decisao. Depois dessa conversa, a ultima hesitagao havia sido removida, e a questao jf nao era se, mas como. A decisto de deixar 0 pats havia se desenvolvid gradualmente e ‘meus motivos cram complexos. Eu vivia sob umn regime opressor. Cor tudo, minha carreira pessoal nao fora obstruida por isto. © Fstatlo prati- cava anti-semitismo tacito; era sabido que cotas nao escritas existiam nas universidades e, no entanto, eu estucava na melhor universidade do pais. Fra sabido que geralmente os judeus nao exam bem-vindos aos estratos mais altos da sociedade sovietica e, contudo, eu nao vivenciet anti-semi- 34 (0 CEREBRO EXECUTIVO tismo ditigido.a mim pessoalmente. A maioria de meus amigos mais pro zximos era de russos, ¢ em meu cireulo social imediai a questo da etnia ‘simplesmente nao emergia. Ew estava cercado de judeus bemn-sucedidos dda geragio de meus pais, 0 que significava que wma carrcira era possivel ‘na Uniao Soviéticaa dlespeito de restrigdestacitas, Praticasreligiosas eram restringidas e impedidas, mas cresci numa familia nfo-religiosae esta nao cera uma questio de preocupacio pessoal. ‘A maioria de meus amigos compreendia que viviamos numa socie- dade que nao era livre nem afluente. A despeito da posicio sovietiea no ‘mando, havia um sentimento nacional de inferioridade e um sentimento de que o testo do mundo era mais vibrante, mais rico em oportunidades. stivamos isolados daquele mundo, a Cortina de Ferro era uma realidade palpavel, €o mundo mais amplo nos acenava chamando, Tendo creseido na ocidentalizada Riga, eu nao temia aquele mundo: ‘A doutrinacao politica comecava na Unio Sovidtica praticamente no bercario, Mas minha familia era wm pequeno enclave de dissidencia pact- fica cen comeceia receber um antidoto saudavel contra propaganda ofi- cial desde muito cedo na vida, Meu pai fot manclado para um campo de trabalhos forcados quando ew tinha um anode idade. Numa piada sinistra que cireulava pelo pats naquela época, dois prisioneiros conversavamn nur ‘campo de trabalhos forgados: “Quanto tempo voce pegou?” *Vinte anos.” *O que voce fez?” “Eu incendici uma fazenda coletiva.” “E voc’, © que fez?" * Nada.” “Quanto tempo voeé pegou?” “Quinzeanes.” "Bobagem. Por nacka, voce teria pego s6 dez.” Meu pai foi sentenciado a de anos no Gulag no Oeste da Siberia, Ele foicondenado como parte do que eu chameide “sociocidio” um exterm- rio sistematico de grupos saciais inteiros: a intelligentsia, 03 educados no estrangeito, a classe alluente em formacao, Simplesmente pertencer au ‘esses grupos Ihe mnarcava para perseguticao, Meu pai foi mandaco para tum campo de trabalhos forcados, e no corredor de nosso apartamento ‘minha mae mantinha duas pequenas malas prontas, uma para ela mesma ‘ema para mim. Havia eampos separados para as “esposas cos Inimigos do povo", e existiam orfanatos especiais para 0s “fillos dos inimigos do povo", Malas eram feitas e deixadas proniasem muitosapattamentos pelo pats, Os agentes do Estado, & paisana, costamavam ditigir carros pretos sem marca (veronki, “pequenes corvos” em russ0) e, semaviso no meio da noite, tocara campainha ¢ dar as suas vitimas quinze mimutos para esta- ‘em prontas, antes de levé-las por cinco, dez, vinte anos, ou para sempre. Era preciso estar preparado. Um Fim e um Comego: uma Deda 35 Cresci sabendo que meu pai estava longe, nao sabendo onde exa. tamente. © endereco em suas cartas era apenas wma “eaixa postal”, ¢ como ura crianea, eu fieava imaginande por que meu pai havia escolhido morar numa “caixa’, longe. Quando a morte de Stalin foi anunciada em abril de 1953, musica somnbria foi torada pela cidade através de alto-fa- antes. As pessoas choravam nas tuas. Minha mae corre para 0 ap: ‘mento, puxando-me com ela, incapaz de conier sua alegria temerosa cle revelé-la em piiblico. Minha mae sempre fora politicamente sonora, a ponto da imprudéncia. Era petigoso confiar mesmo nos proprios filhos, pois cles eram estimulados a relatar sobre seus pais —e alguns o faziam, Umn deles, un menino chamado Pavlik Morozey, tornara-se um herot nacional, Dentro de meses, mutios prisioneiros do Gulag foram libertados antes do tempo, meu pai entre eles, Lembro-me de minha mae abragando um estranho esqueletico na plataforma da estacto ferroviaria em Riga. EX Lina seis anos de idade e nao tinha lembrancas cle meu pal, $o entzo des ‘cob que “caixa” era um campo de trabalhos forgados, €o que isto signifi cava. Esta fol minha primeira percepcao da verdadeira natureza do Estado ‘em que vivfamos. Muitos anos mais tarde, minha mae lembrou que ett dera um soco de raiva no ar, que a assustou pela intensidade, gritando: “Entao € isso que é na verdade a Uniao Sovietica?™ A vida logo assentou-se na normalidade. Enquanto ew ereseia, nto tinha ilusdes sobre o Estado em que vivia nao tinha ligacdo alguma a cle no sentido patriotico, Longe disto, numa certa dade, desenvolvi um senso razoavelmente bem-articulado de que toda a minha existéncia soviética ‘eraum lamentavelacidente de natureza. Entretanto, no nivel de dia-a-dia, ‘eu me sentia acomodado, ¢ com frequencia contente, eeu “me misturei" Ful aceito pela Universidade de Moscou e estava a eaminho de ingressar na elite academica, Mas, gradualmente, foi crescendo a conseigncia de {que nao havia futuro na Uniao Sovietica, do mesmo modo que nao havi futuro para a Uniao Sovietica, E agora eu estava patado no meio da Arbat, sabendo que a iltima forte de hesitagao havia sido removida. Uma decisio existencial aguan dava agora por uma solugiio executiva, Uma tentativade deixar o pais exi- gia um plano intrincado, ¢ nao havia nenhuma garantia de sucesso. Para sair, eu tina de passar a perna no Estado soviético. Eu sabia que meus lobos frontais estariam pesadamente carregados durante os préximos meses, 36 © CEREBRO EXECUTIVO ‘0 “paraiso dos ‘rabalhadores” era projetado como uma ratoeita, Era mais fii] entrar do que sair: Cidadaos sovieticas nao podiamn deixar o pais 4 yontade, mesmo temporstiamente, Permissao para ir 20 estrangelro como turista ou em missto oficial j4 implicava um status de elite. Ura familia inteira quase nunca obtinha permissao para viajar junta um reféin cera sempre mantido para prevenir defeccao, Emigrar permanentemente era ainda mais dificil, Atéo incoda década de 1970, praticamente nao se outvia falar disso. Ent2o, como conseqiéncia da detente e sob pressie do Congresso dos Estados Unidos, emigracto limitada foi permitida para Jjudeus irema Israel. Restringindo desta maneiraa emigragao, as awtorida- des esperavam que o precedente pudesse ser contido, Na realidade, porém, ‘uma vez fora do pais, os judeus eram livres para irem aonde escolhessem, Muitos, et inclusive, escolheram os Estados Unidos. Isto produziu um irénico momento na historia da Ressia, quando ser judeu subitamente tornout-se uma vantagem. Fu era membro dessa minoria subitamente “pri- vilegiada”, Neste conjunto especifico de circunstancias, mew judasino fornecia um veiculo, mais do que um impeto, pata tentar sair, Como € muitas vezeso caso na vida, arelagao entre um desejo e uma oportunidade cra um tanto circulant, ‘Mas havia mutios obstéculosa serem transpostos. O Estado sovietico cera braalmente pragmitico. Quanto maior o valor percebido do indivé ‘duo, mais diffcil era obter permissio para deixar o pafs. Para os graduados las tniversidades de elite as chances se aproximavam de zero, Como wm graduado da Universidade do Estado de Moscow, a Harvard do Leste, ew ra propriedade valiosa do Estado, Pessoas como et nao eram normal- ‘mente auitorizedas a emigrar. A analogia com a propriedde de escravos ia ‘mais longe. Mesmo sea permissao fosse concedida em principio, oFstado ‘cobrava umm resgate, que era leterminado com base no nivel educacional da pessoa. Meu resgate seria particularmente exorbitante Minha dissertagio dowtoral havia sido escrita e encadernada, © a defesa oral estava programada para dentro de poucos meses, Fstava claro ‘que eu nao podia me candidatar para um visto desafda enquanto estivesse ainda na Universidade de Moscou, Qualquer uum que solicitasse um visto desaidi era tornado imediatamente uaa persona ion grata. Ninguém per- iuiria que eu defendesse minha dissertagio sob tais citcunsténeias. EX imediatamente expulso da universidade, iar minha soliciagao até depois de minha defesa parecia uma coisa logica a ser feita, Mas, ao comecar a planejar meu escape, tornou-se claro {que um grau avancado complicaria minbas chances. Retutantemente, eu Um Fim e um Comeco, wine Deccan a” estava chegando & conclusto de que teria de slguma forma de sabotar ‘minha propria defesa. Fm termos das funcoes co lobo frontal, esse era wm caso extremo de inibir um anselo por gratifieagao imediata, Eu cinha de sactificat algo pelo que lutara por varios anos e que teria sido meu, com tum resultado assegurado, num perfodo de poucos meses. A graifieacto adiada era a perspectiva de sair do pais. Na hierarquia de metas (a priori zagao de objetivos de uma pessoa, uma outra funcio do lobo frontal), esta cera uma meta mais elevada A estratégia nto era desprovida de riscos, Nao recebenddo men dowto- ado, eu estava meramente reoreando minha chance de sucesso, mas de ‘modo algum assegurando-a. A equacio era demasiacio obscura pata com: puta o ganho em probabilidades com algum grau de preeisio. Qualquer que fosse, a probabilidade de que eu nao seria autorizado a partir perma necia ata, Em situagoes como esta, havia pessoas que permaneciam nim Timbo que durava a vida toda, Negada a solicitacao para deixar o pats elas tinham também negada a oportunidade de reentrar na corrente principal da sociedade soviética. Elas eram despedidas dle suas posigoes ¢ torma vvam-se patias pata oresto da vida, condenadasa empregosservisnas fran- jas da sociedade, Mas precisamente por isso o doutorado nao interessava ‘mais, Recusado o direito de partir, eu iria guiar um taxi para ganhar a vida com ou sem meu doutorado, E havia também uma outra razio para nao defender a disseriagao: proteger meus amigos, Meus professores seriam considerados responsi veis pelas autoridades pela “falta de vigilancia politica”, por eviarem um fucuro “traldor da patria”. Bizarra como soava essa linguagem, cla era real mente usada no discurso politico oficial na Unido Sovieties. Como meu mentor, Alexandr Romanovich seria particularmente afetado. Isto tinha de ser evitado, Gradwalmente, wm plano foi se formando em minha mente. Dealgum ‘modo, eu evitaria defender minha dissertagao. Entio eu desapareceria da Universfdadle de Moscouto mais discretamente possiveledetxaria Moscou ao mesmo tempo. Eu iria para minha cidace nativa de Rigae conseguiria 0 éemprego mais baixo possivel. Entao, depois de varios meses, ou um 20, et me candidatatia para um visio de safda. Ai as coisas estariam fora de minhas maos, 0 momento oportuno exato de minha solicitagao teria de depencer de coisas além do meu controle. A détente estava ganhanda vapor. Henry Kissinger entrava € safa do pais. A imprensa insinuava uma iminente visita do presidente Nixon, Nessassituacdes, ossoviéticos teniliam a mos- 38 (© CEREBRO EXECUTIVO trar sua face liberal. Eu estava determinado a calcular euidadosamente a hhora de minha solicitacae para coincidir com esses eventos @ mats preci- samente possivel. Enquanto pensava nos detalhes co meu plano, eu tinha ‘uma estranha sensagiio de despersonalizacao, como se eu estivesse viven- doa trama de um romance sobre a vida cle outra pessoa, Mas esta seria a tinba historia, € fol utto-Imposta Eu estava tentando encobrir meus rastros. Nao que eu acrediasse que, no momento eritico da decisio, as autoridades ignorariam meu pas- sado. Voce nao podia encobrir seus rastros na Unito Sovietica, Sempre jque voce mudava, era preciso registrar-se na police Jocal, Um arquivo interno seguia todo cidadao sovietica a cada momento ao redor do pats. Mas eu estava contando com a natureza indiferente ¢ fandamentalmente sem cérebro da burocracia sovietica, Por volta da década de 1970, resta- ‘vam muito poucos fanaticos dentro do sistema. As coisas eram feitas pelo livro. Olivia dizia que os graduados da Universidade de Moscou e seme- Thantes eram valiosos.e nao podiam serautorizados a sair. Q liveo tambem dizia que varredores de rua, motoristas de taxi e balconistas de armazens ceram dispensiveis e podiam ser autorizados a partir para wnanter as apa- réncias com a detente, Mas o livro nao dizia nada sobre graduados da Uni- versidade de Moscou transformados em varredores de rua, Meu jogo cra de que as autoridades, em seu proceder mecanico, nao iriam ruminar sobre mew arquivo Havia uin outro elemento em meus caleulos, Tacitamente, eu estava comunicandoas autoridades que nao tinha medo delas. Ao abdicar volun- tariamente do prestigio e promessa dle minha posicto na wniversidade assumir un emprego humilde, ew estava, de certo modo, me antecipando aacles. Ewestava me inmpondo deliberadamente tudo 0 que eles me teriam feito, se eu me candidatasse ao visto enquanto ainda na Universidade de Moscow. Roubando-os dos meios de repercussio, ew os roubava de seu controle sobre mim. Prender-me era a tinica coisa que Ihes restava, Nao ssendo tum dissidente ativo, ew nao achava isto provavel. Quanto menos medio cu mostrasse, mais esforgos eles sabiam que teriam de fazer para {ntimidar-mea desistir de meu plano. Coma detente noar esta disposi de parecerem “civis,” o mais provavel era cles conclusrem quesegurarame nao valiao esforgo. Mas nao havia nenhurna garantia ‘Meu primeira impulso era sentar com Alexandr Romanovich e the revelar meu plano, Mas havia duas raz6es impositivas para nao faze-lo. Embora eu estivesse fazendo tudo o que podia para distanciat-me dele, minimizando assim quaisquer possiveis repercussoes de minhas acoes Um Fin ¢ um Comece: uma Dedicagéo 39 para ele, ew nao podia estar cerio de su reacao, Quaisquer que fossem suas verdadeiras.crencas, publicamenie ele sempre fora um cidadao soviético lea, as vezes enfaticamente lel. Seria apenas umn verniz, que cle ccuidava para que nio caisse? Acteditava ele realmente no que dlizia? Eu suspeitava que fosse algo a meio-caminho, que uma dissonancia consciente cconstante entre o que voct diz € 0 que voce sente algo demasiaclo dolo 100 de suportar. Nos muitos anos de nossa associacao intima, cu munca fui capaz de ter uma discussio politica franca com Alexandr Romanovich. Sempre que eu tentava trazé-lo para fora, sua resposta era uma estridente, «quase gélida “linha do partido”. Omaisperto que Luria chegawa de revelar seu descontentamento profundamente enterrado era por meio de um rimuirio obliquo ocasional “Vremena slozhnye durakav mnogo” (“ES- {es sio tempos complexos, muitos cretinos por af"). O que fora inicial- menic adotado como mimetismo protetor, com o tempo transformou-se numa forma de “auto-hipnose’ ronicamente, 0 termo “auto-hipnose” foi proposto em 1990, meio de brincadeira, por ninguem outro que a propria filha de Laria, Lena, num Jantar no Nirvana, um restaurante indiano com vista para o Central Park «em Nova lorque, Conversivamos sobre seus pals, ja ha mito falecidos, € sobre outras pessoas da geracao deles. Assim como eu, Lena era fascinada por auto-hipnose politica como um mecanismo de defesa psicologica sob tirania, A esposa de Luria, Lana Pymenovna, era consideravelinente menos dada & auto-hipnose, e no decorrer dos anos nés tinhamos tido uitas conversas francas sobre assuntos proibidos. Com esses antecedentes, nao havia garantia de que Luria nao comu- nicaria minhas intengoes as autoridades da universidade. De acordo com as regras que governavam o sistema, isto era realmente esperaclo dele, € ignorar a regra seria percebido como uma séria transgressio por wm pro- {essor soviético e membro do partido em bea posigao. Informada de meus planos, a universidade se livraria de mim imediatamente como wma fonte potencial de embarago. Eu me encontraria num limbo impossivel mesino antes de solicitar 0 visto, Isso era particularmente arriseado. Expulso da ‘universidade como “politicamente nao sacio”, eu acharia exiremamente Aificil conseguir um emprego — qualquer tipo de emprego, Dentro dos parametios do Estado-ratoeira soviético, esse era um lugar muito peri- {g0s0 para estar. Uma lei permitia ao Estado deter e aprisionar*parasitas” _pessoas sem emprego. Essa lei raramente imposta era invocada quando 25 autoridades queriam “pegar” alguém — particularmente os “politica~ ‘mente nao sadios” tentando deixar o pats. Em consideracéoao meu plano, 40 (© CEREBRO EXECUTIVO ea alma do meu professor, eu podiaapenas esperar que ele nao me denun- ciasse, mas nao havia nenhuama garantia, E havia ainda uma outrarazio, menos autocentrada, para nao confiar em Alexandr Romanoyich, Posto de maneira simples, et temia que ocho- que das noticias sobre meus planos provocasse un ataque do coracad nele ali mesmo, Fle tinha um coracao deficiente, € 0 medo visceral do Estado poderia leva-lo a uma reacdo emocional desproporcional a realidade da siluacao, Nao importa como vocé visse a situacio, © melhor era que Ale- xandr Romanovich nao soubesse das minhas intencOes. Apenas umas ppoutcas pessoas sabiam de meus planos. Eram amigos muito confidveis, a espeito de suas origens e conviegses bastante diferentes. Entao decidi recorrer & “mentira branca”. Caneelar uma defesa oral programada cra algo inaudito, Inventei uma histéria sobre umia emergen- cia médica na familia ea necessidade premente de conseguir vin emprego imediatamente, Meu plano manifesto era voltar para Riga, arrumar um ‘anprego, sustentar minha familia até que a “crise” estivesse superada & entao voltar para defender —em seis meses ou tumano, com alguita sorte. Luria ficou perturbado pela historia, nas por wneio de um tour de force eu prevaleci, Pude me destigar da universidade sem revelar e, assim, atrapa- har, meus panos. Cheguei a Riga © comecei a procurar um trabalho. Isso se revelow muito dificil, pois eu estava obviamente acima das qualificagées para os cempregos para os quais me candidatava. Finalmente, fai contratado como servente num hospital no Centro da cidade — a figura mais baixa no totem, Fui designado paraa unidade de eudaco intensivo de emergencia s pacientes — vitimas de acidentes de carro, overdoses, ferimentos de faca, stupros — deram-me uma nova perspectiva da cidade de meu nas- cimento. (Os pacientes eram trazidos de ambuléncia no meio da noite, Eu [azia 0s relatorios do trabalho as seis horas da manha, quando alguns deles ja haviam falecido. ldentifiear os mortos nos letos imuindos e conté-tos era ‘meu primeira servico do dia. Seis ou sete eraamédia, Meu dever era entre- gar os cadaveres no nectoterin, Ew os transportava manualmente numa maca pouco segura com minha “parceira®, Mari Maria era uma mulher de quarenta anos de idade, banguela e perpetua- ‘mente bebada que aparentava ter 65 anos. Seu dominio dos palavrdesrus- sos era notavel. Naquetes dias eu mesmo tinha a boca um tanto suja, mas nao chegava aos pés de seu virtuosismo. Todas as manhas, ao chegar, ela conferia as autoclaves médicas para etanol usadas para esterilizar instru- Um Fim e um Comec: une Dedicagéo a ‘mentos inédicos. Esse era seu café da manha. Pelas sete da manha, quando estévamos prontos para carregar nossos cackiveres, ela estava tao bebacla que mal podia andar. Ela cambaleava, tropecava € ocasionalmente cata Entao eu ficava as voltas com dois cadveres, um real ¢ um virtual. O resto das minhasatividades, em comparacaa, era trivial: wanspor- tar vidros com remédios, varrer o chao, transferir pacientes — todas as tarefas habituais que os serventes fazem no mundo todo. Era uma experiéncia surreal. Mas depois de meses de extrema exercio cognitiva as- sociada com tomada de decisoes eriticas (essa deve ter'sido a primeira vez ‘em minha vida em que descobri algo como exergao cognitiva), havia calma,um hiato, umaaparencia de estabilidade, ainda que fragile bizarra, Pelos poucos meses seguintes, ate eu me candidatar ao visto, nao houve Accisoes erfuicas a tomar. E quando me candiatasse, eu nao seria despe- dido, Nao desse emprego! Fu estava descansando meus lobos frontais. No tempo devido, candidatei-me ao meu visto de sida e uns poucos ‘meses mais tarde fui imtimado para receber a resposta. Ela era favoravel. Eu estava livre para ir. A mulher uniformizada que me dew a noticia tinha minha ficha a sua frente, Ela passou os olhos nos papeis e exclamou com incredulidade: “Eles estio Ihe deixando it com antecedentes como estes! Eu me limitei a dar de ombros, Nao havia indignacdo em sua voz, apenas surpress, Nao era decisio dela, ¢ cla ndo se importava, Restavam poucos, fanaticos no sistema. Conforme fui andando pela rua, tive novamente ‘uma sensacio de despersonalizagao, como se aquilo nao estivesse aconte- endo comigo mas com alguem que eu observava de fora. Voei a Moscou para as despedidas. Como centenas de vezes amtes, éstavamos sentados juntos em torno da macica escrivaninha antiga com cabecas de leao de bronze no estudio de Luria, Dois anos haviam se pas- sado desde nosso passeio na antiga Arbat, Nos, Alexandr Romanovich ¢ eu, conversamos por mutias horas, seis, sete ou mais. Lana Pymenovna estava servindo chi e intervinha dle ver em quando. Luria naose ofendera ‘com minha mentira branea, Fle parecia aliviado por ter sido deixado de fora do caso todo, Finalmente, ele disse: “Eu nao aprovo 0 que voce esta fazendo, mas agradeco como voct o fez.” Ficou entendido que eu nunca poderia entrar em contato com ele do exterior, eu era agora una persona dion grata, Esta deveria ser nossa tiltima conversa. Alexandr Romanovich morteu trés anos mais tarde. Ecu vim aos Estados Unidos e comecei do principio. A continuldade intelectual c estilfstica ligando um aluno ao seu mestre foi partida eeu me encontrei em minha nova patria essencialmente no jeu proprio cami- 2 (© CEREBRO EXECUTIVO niho. Isto tommou as coisas mais dificeis no comeco, mas em retrospecto mais gratificantes, Mas a continuidade tambem foi preservaca por meio dos numerosos e duradouros tracos das influéncias de meu professor, que ate hoje permeiam minha carreira de modo sutil ¢ dbvio, Exatamente 25, anos se passaram descle aquela dificil despedida, Meu interesse nos lobos: frontais foi semeado por Alexandr Romanovich e permaneceu entre 05 temas mais persistentes cle minha carreira. E, portanto, este livro € escrito em meméria de Alexandr Romanovich Luria, o homem que influenciou minha vida de maneiras definitivas, e cos tempos complexos em que sua carrcira terminou ea minha comecou, Nota 1. Emseguidaa dissolugto da Unito Soviétia, ras ¢ locas piblices nomeados a partir des semidenses soveticas e datas memoraveis mudaram, na meioria dos casos, para seus nomes pré-revelucionsries. 3 O Diretor-Executivo do Cérebro: os Lobos Frontais em um Relance ‘As Muitas Foces da Lideranga Eles chegam ao trabalho em limusines com vidros fume; sobem aos andares superiores das sedes administrativas das corporacdes em eleva- dores particulares; seus salérios estéo além da imaginacdo da pessoa ‘comm, Umia pesquisa informal sugere que eles sio, em média, alguns cceniimetros mats altos que o restante dle nds. Envoltos em mistério © vistos com admiracao, eles si0 os diretores-executivos — DEs — dos Estados Unidos. Se nos afastarmos um pouco dos arranha-ceus das corporagoes do ‘Centro de Manhattan € subirmos a rua, encontraremos um regente ces- grenhado cnsaiando sta orquestra no Carnegie Hall, Alguns quarteiroes para o sul, nto longe da Broadway, um diretor de teatro exasperado tenta fazer com que os atores compreendam sua interpretacao de uma pec famosa, Eles parecem tet pouco em comum com 0 magnata da eorpora- ‘a0, mas desempenham fungdes semelhantes. Para o observadoringénuo, ODE nao fabrica o produto da compania, assim como 0 regente nao toca inntsica eo ditetor nao atwa. Nao obstante, eles dirigem as agoes daqueles que fabricam 0 produto, tocam a miisiea ou atwam no paleo, Sem eles, nao haveria produto, nem concerto, nei especiculo ‘O papel do lider que impele outras pessoas aagao cesenvolvew-se na sociedade relativamente tarde. & histria dos primeiros estagios da mi 44 © CEREBRO EXECUTIVO sica nao menciona o regente, assim como nao ha mengio de um diretor no teatro grego. Nos primérdios dos conilites armados havia uma coli- ‘sio dle duas hordas, onde cada homem lutava sua propria luta;o general aparecen milénios depois. E € bastante recente na histéria da guerra 0 fato de que o comandante militar supremo nao mai com sua coragem pessoal no front, mas dirige a batalha desde a reta- guard, Afungao de lideranga adquire um statusdlistinto etorna-se tiniea ape- nas quando o tammanho ¢ a complexidade da organizacao (ou do orga- njsmo) atravessam determinado limiar, Quando a fungi da lideranca se lizado,a sabedoriada| inspira as tropas ‘existalizaem um papel es} ideranca consisteem manter um equilibrio delicado e dinamico entre a autonomta das partes do organismo e o controle sobre elas. Um lider critertoso sabe quando intervir impor sua vontade, equando retroceder edeixar queseussubor- dinados tomem suas proprias iniciativas, © papel do lider ¢ indefinivel, mas decisive. Um pequeno lapso do lider, ¢ ocorre um desastre: uma orquestra desafina, a tomada de decisao corporativa ¢ interrompica, ¢ um grande exercito vacila. De fato, alguns historiadores atribuem a derrota decisiva do grande exército de Napoleao em Waterloo lideranga debilitada do imperador, devido a0 agravamento doloroso de uma doenga crdniica’. © papel do lider ¢ decisivo, mas indefinivel. Eu me perguntava, quando garoto, qual seria a necessidade caquele homem engracado no odio, queacenaya com as mios, jé que ele nao fazia nenhuma contribui- jsica criada a minha frente. E me lembro do filho de tres anos de meu amigo descrevendoo emprego do pai: “Sentado no escriterio ‘eapontando o lapis” (seu pai erao diretor de um grande departamernto em ‘uma universidade importante) to audivel An Da mesma forma, os primeiros textos dle neurologia continham des- crigdes elaboradas das fungdes desempenhadas pelas outras partes do cérebro, mas os lobos frontais recebiam apenas uma nota de rodapé. Ficava implicito que os lobos frontais existiam prineipalmente para pro- pésilos ornamentais, Levou muitos anos para que os neurocientistas ‘comecassem a avaliar a importéncia dos Lobos frontais para a cognicao. Mas quando isto Finalmente ocorreu, surgiu um quadro de especial com. plexidade e refinamento, Isto € 0 que examinaremos a seguir. 0 Diretor-Executivo do Cérebro: os Lobos Front 45 O Lobo Executivo Ocerebro humano ¢ o sistema natural mais complexo no universo conhe- ‘aida, sua complexidace equipara-se (ou talvez seja superior) & com- plexidade das estruuras sociais e economicas mais intricadas. Ea nova fromteira da ciéncia. A década de 1990 foi declarada a déeada do cerebro pelo Instituto Nacional de Saude. Assim como a primeira metade do século KX foi aidade da fisica, ea segunda metade foi a idade da biologi, 0 inicio do século XXI éa idade da ciéncia mente-cérebro, ‘Como uma grande corporacao, wma grande orquest n grande exército, océrebro consisic em componentes distintos que desempenkam, diferentes fungdes. E assim como estas intimeras organizagdes humanas, 0 cerebro tem seus DES, seu regente, seu general: oS 10B0s frontal. Para _sermos precisos, este papel ¢ conferido.a apenas umaparte dos obos fron- “ais,o-cortex présfrontal. Entretanto, ¢ comum usar 0 modo de expresso ade, lobes onus Assitm como os louvados papeis de liderancana sociedacle humana, 0s lobos frontais apareceram tardiamente, Na evolugao, seu desenvolvimento comecow a avelerat-se apenas com os grandes macacos. Na condicao de sede da intencionalidade, previsao e planejamento, 0s lobos frontais sao, entre todos os componentes do eérebro humano, os maisespecificamente “humanos”, Em 1928, 0 neurologista Tilney sugeria que toda a evolugao humana deveria ser considerada a “idade do lobo frontal”. As funcdes dos Lobos centrais, assim como as de um DE, resistem a uumna definigéo apropriada. Eles nao sio dotados de nenhumna f Linica, de pronta classificacao. Um paciente com uma doenga nos lobos {rontats mantem a capacidade de mover-se, de usar linguagem, de reco nnhecer objetos, ete mesmo de memorizar informagdes. Contudo, como uum exercito sem lider, a cognigto"desintegiasse e finalmente entra em colapso coma perda dos lobos frontais. Em minha lingua russa nativa, ha uma expressao: “bez tsarya v golovye”, “uma cabeca sem o czar dentro” Esta expressdo poderia ter sido inventatla para descreveros efeitos de uma lesdo dos Lobos frontais no comportamento, Como se a associacao a realeza nao fosse suliciente, os lobos frontais, foram envolvidos também em uma aura divina, Em sew notivel ensaio cultural ¢ neuropsicolégico, Julian Jaynes antecipa a idéia de que os ‘comandos executivos gerados internamente eram erroneamente torades pelo homem primitivo como vozes de deuses originadas externamente’ Fica implicito, assim, queo advento das funcbes executivas nos primeiros 46 © CEREBRO EXECUTIVO estigios da civilizagdo humana pode ter influenciado a formacio ou o desenvolvimento das crengas relighosas, Os historiadores da arte notaram wm detalhie curioso em A criagto de Aad, o grande afresco de Michelangelo no teto da Capela Sistina. O man- to de Deus tema forma precisa do contome do cerebro, seus pés pousam no tronco cerebral e sua cabega esta emoldurada peto lobo frontal, O dedo ‘de Deus, apontado para Adao, e tornando-o humano, projeta-se do cortex ppre-frontal, Nas palavras de Julius Meier-Graefe: “Ha mais genio no dedo de Deus chamando Adio para a vida do que no conjunto da obra de qual- quer precursor de Michelangelo.”* Ningém sabe sea alegorta fot planeja dapor Michelangelo, ou se a semelhanca é mera coincidencia (¢ provavel aque seja a segunda alternativa). Mas ¢ dificil imaginar um simbolo mais poderaso do profundo efeito humanizador dos Tobos frontais. Os Lobos frontais sio verdadeiramente “0 orgio da civilizacao” ‘Como os lobos frontais nao estao ligados a nenhuuma fun¢éo tiniea € facilmente definida, as primeiras teorias da organizacio cerebral nega- ram-lhe qualquer papel importante, De fato, 05 lobos frontais eran ‘eonhecidos como “os lobossilenciosos”, Nas iltimasdécadas, entretanto, ‘05 lobos frontats tornaram.-se o foco de intensas investigacoes clentificas. Contudo, nosso esforgo de compreensii cas fungoes dos Lobos froncais, ¢ particularmente do cortex pré-frontal, ainda prossegue, e, por falta de conceitos mats precisos, com frequéncia resvalamos em metaforas poeti- «as. O cortex pre-frontal desempenha um papel fandamental na formagao de metas ¢ objetivos; a seguir, no planejamento de estrategias cle acao necessérias para a consecucao destes objetivos. Fle seleciona as habilida- des cognitivas tequeridas para a implementacao dos planos, coordena estas habilidades eas aplica enn uma ordem correta. Finalmente, 0 e6rtex ppré-frontal €responsével pela avaliacdo do sucesso ou do fracasso de nos- sas ages em relagio aos nossos objetivos A cognigao humana ¢ progressiva, mais favorivel a agao do que rea ‘glo, E movida por objetivos, planos, aspiragdes, ambigdes e sonhos, € tudo isto pertence 20 futuro € no ao passado. Os poderes cognitives dependem dos lobos frontais e evoluem com eles, Em um sentido mais amplo, 0s lobos frontais sao 0 meeanismo do organismo de liberar-se do passado e projetar-se no fuiuro. Os lobos frontais munem o organismo ca capacidade de criar modelos neurais das coisas como um pre-requisite para fazer as coisas acontecerem, modelos dle algo que ainda nao existe ‘mas que queremos trazer A existencia. © Diroior Execulivo do Cérebror os Lobos Frontais. 7 Para evocar uma representagio intema de faturo, o cérebro precis ter-a capacidade de tomar cerios elementos de experiéncias anteriores & configuré-los novamente de um modo que, em sua totalidadle, nao corses- ponda a nenhuma experiencia passada real, Para que este descmpenho tenha sucesso, 0 organisimo deve ir além da mera capacidade de formar tepresentacdes internas, os modelos do mundo exterior. Ele deve adquirir a capacidade de manipular e transformar estes modelos. Como disse um annigo meu, um matemratico talentoso, o organismo deve iralém da capa- cidade de ver 0 mundo por meio de representagdes mentais; ele deve adquicir a capacidade de trabalhar com representacdes mencais. Podlemos, dizer que uma das caracteristcas distintivas funcamentais da cogni¢ao hhumana, a fabricacdo sistemética de ferramentas, depende desta capaci- dade, ja que uma ferramenta nao existe de uma forma pronta no ambiente natural e tem de ser evoeada para serfabrieada. Para dar um passo além, 0 desenvolvimento de todo 0 mecanismo neural capaz dle eriar e manter imagens do fucuro, os lobos frontais, pode ser visto como ium pre-requ sito mecessario para a fabricagao de ferramentas e, desta maneira, para o avanco do homem e da civilizagao humana, tal como ¢ geralmente defi- ida, Alem disso, o poder generativo dalingutagem de criar novos construe- tos pode depender dessa capacidace tambem. A capacidade de manipular € recombiniar representacdes internas criticamente depende do cortex pré-frontal, ca emergencia desta capacidade corresponde (ou corre para- Ielamente) Aevolucaodos Lobos frontais, Se houveralgo chamado de *ins- tinto de linguagem”®, ele pode ser relacionaco ao aparecimento, tardio na evoluigdo, das propriedades funcionais dos lobos frontais, Portanto, © desenvolvimento mais ou menos contemporaneo das funcdes executivas ¢ da linguagem fol, em termos de adaptacao, alta- mente acidental, A linguagem ofereceu o meio para a construcao de modelos eas fungdes executivas, o meio de manipulé-los e executar ope ragoes nos modelos, Para usar a Tinguagem cla biologia, o advento dos lobos frontais foi necessirio para fazer uso da capaciace generativa ine- rente na linguagem. Para os defensores de descontinuidades drasticas ‘como um fator fundamental na evolucao, a conflueneia entre o desenvol- vimento dalinguagem eas fumcorsexecutivas pode ter sido aforca defini- tiva por tris do salto quantico que foi o advento do homer. De todos os processos mentais, a formagio de objetivos é atividade ais centrada no agente. A formagio de objetivos relere-se a "eu preciso” € nao a “isto”, Entao, a emergencia da capacidade de formulae abjetivos

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