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FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

EWERSON RIBEIRO BRANDINA

NECROPOLÍTICA E O CONTROLE DO ESTADO SOBRE CORPOS


ELIMINÁVEIS: UMA ABORDAGEM A PARTIR DE FOUCAULT, AGAMBEN E
MBEMBE

POUSO ALEGRE
2022
EWERSON RIBEIRO BRANDINA

NECROPOLÍTICA E O CONTROLE DO ESTADO SOBRE CORPOS


ELIMINÁVEIS: UMA ABORDAGEM A PARTIR DE FOUCAULT, AGAMBEN E
MBEMBE

Trabalho de conclusão de curso apresentado como


requisito para obtenção do grau de bacharel em
Direito no curso de direito da Faculdade de Direito do
Sul de Minas.
Orientador: Professor Pós- Doutor Rafael Lazzarotto
Simioni

FDSM – MG
2022
RESUMO
Biopoder, Necropolítica e Vida Nua são conceitos muito importantes com implicações
consideráveis para estudar características políticas do mundo. O erigir quanto a distinção entre
humanos e não humanos, “vidas matáveis” e “vidas vivíveis”, é colocada no centro do debate
da contemporaneidade. O que parece ser mera diferenciação biológica se manifesta como uma
imensurável luta política com graves consequências: é a produção da vida tratando-a com
extrema subjetividade através de um conceito político centrado na produção em massa da morte,
uma crise do capitalismo, o poder exercido pelo Estado nos corpos de determinados indivíduos.
Com o apoio dos filósofos Michel Foucault, Giorgio Agamben e Achille Mbembe, o objetivo
deste trabalho é definir e articular a natureza humana como um campo contestado, que
demonstra a fragilidade do tecido político das democracias. Por fim, apresentará brevemente os
argumentos políticos de Agamben sobre direitos humanos, importantes para a compreensão de
acontecimentos recentes na política brasileira e internacional, apresentando exemplos
relevantes para a melhor compreensão do tema.

Palavras-chave: Necropolítica; Biopolítica; Estado de Exceção; Direitos Humanos; Poder


Soberano.
ABSTRACT
Biopower, Necropolitics and Bare Life are very popular concepts with important implications
for studying political features of the world. The construction of the distinction between humans
and non-humans, “killable lives” and “livable lives”, is placed at the center of the
contemporary debate. What appears to be mere biological differentiation manifests itself as an
immeasurable political struggle with serious consequences: it is the production of life treating
it with extreme subjectivity through a political concept centered on the mass production of
death, a crisis of capitalism, the exercised power by the State in the bodies of certain
individuals. With the support of philosophers Michel Foucault, Giorgio Agamben and Achille
Mbembe, the objective of this work is to define and articulate human nature as a contested field,
which demonstrates the fragility of the political fabric of democracies. Finally, it will briefly
present Agamben's political arguments on human rights, important for the understanding of
recent events in Brazilian and international politics, presenting relevant examples for a better
understanding of the subject.

Keywords: Necropolitics; Biopolitics; Exception State; Human Rights; Sovereign Power.


SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 07

1. MICHEL FOUCAULT: PENSAMENTOS E ANALISES SOBRE RACISMO E


BIOPOLÍTICA .......................................................................................................... 10

1.1. Giorgio Agamben: Política, Campo e Estado de Exceção ......................................... 15

2. A NECROPOLÍTICA E OS CORPOS DEFINIDOS PARA A MORTE ............. 22

2.1. O Sujeito de Direitos Humanos e a Vida Nua ............................................................. 27

3. PODER SOBERANO EM CONTRAPOSIÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS 32

CONCLUSÃO................................................................................................................... 40

REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 43
INTRODUÇÃO

Há um modelo de violência, um tanto quanto comum e silenciosa, que seleciona quais


corpos tornará alvos vitimáveis. É a produção da vida e sua subjetividade por meio de políticas
de morte em massa, reflexo da crise do capitalismo em que alguns são vistos como descartáveis
e dispensáveis.

Usando como desculpa o crescimento da violência no mundo, muitas das chamadas


democracias tornaram seus governos exemplares ao impor regras que violam salvaguardas
individuais e direitos fundamentais, muitas vezes por meio de seus poderes punitivos e
genocidas. Foram desenvolvidos mecanismos e técnicas para instalar políticas de morte
mantidas pelo processo de exploração social para determinados indivíduos que não
encontravam espaço real para permanecerem ligados ao sistema.

O ideal de política, quanto a Necropolítica, a articula, não somente, mas também


estimula a produção de um “inimigo comum” e o Estado de Exceção, constituindo os alicerces
para conceder o direito de matar. Nesta ótica, encontra-se como cerne do debate as diversas
condições em que se exerce o poder de expor à morte, “fazer morrer” ou “deixar viver”.

Quanto a produção do “opositor”, sendo este o ator que recebe todo o fardo da
“ineficiência” do sistema, classe social e etnia entrelaçam-se, produzindo espaços onde habitam
aquelas massas consideradas perigosas, caracterizadas como ameaçadoras para a democracia
neoliberal. Desta forma, fica evidente o fato de que o Estado tente autorizar operações de
exceção, em resposta ao medo gerado pelos “inimigos”, causando intervenções contínuas nos
territórios e nos corpos colonizados, sendo estes explicados mais a frente neste presente
trabalho.

Grande parte dos territórios habitados por negros, favelas e periferias das grandes
cidades, são os enfoques das engrenagens estatais que visam levar pessoas à morte. No Brasil
contemporâneo, as favelas – “campos” – não são puramente resultado de um funcionamento
errôneo do Estado, mas sim a evidência de um projeto, proposital, necropolítico.
Desta forma, pode-se expor a análise explicativa de alguns fenômenos de violência, dos
quais a subjugação da vida é a regra, conforme o filósofo Achille Mbembe. Este inicia tal
discussão trazendo as ideias de biopoder do filósofo Michel Foucault, onde este inicia uma
discussão afirmando que é insuficiente, tal conceito, para entender as formas de submissão da
vida de pessoas marcadas a morte.

O primeiro capítulo, a fim de enquadrar as principais ideias do livro Em Defesa da


Sociedade, analisará os conceitos básicos do estudo do poder de Foucault, sustentado
principalmente na obra mencionada, que o filósofo escreveu em seu curso de 1975 a 1975.
Foucault argumentou que a finalidade do poder no século XVII e início do XVIII era baseada
no indivíduo, e que a partir da segunda metade do século XVIII começaram as intervenções
biopolíticas centradas na massa coletiva.

A soberania baseia-se, portanto, no poder de "fazer morrer" e "deixar viver", enquanto


a biopolítica se constrói no poder de "fazer viver" e "deixar morrer". Ainda no primeiro capítulo,
é apresentada a pesquisa do filósofo italiano Giorgio Agamben sobre o Estado de Exceção. Ele
revela a relação contraditória entre as medidas excepcionais e o direito: o Estado de Exceção é
determinado como uma forma jurídica que não pode ser uma forma legalizada.

Este Estado de Exceção “agambeniano” é caracterizado por uma estrutura política


fundamental em diversas sociedades, incluindo as instituídas sob o fulcro da democracia,
utilizando-se de tal regimento quando identificam, por seus meios, conflitos de cunho mais
extremo.

O segundo capítulo irá trazer, quanto ao filósofo Achille Mbembe, a construção de sua
filosofia, o que se baseia em leituras de Frantz Fanon e o notório Michel Foucault, regressando
à plantation (plantação) nos trechos contidos em sua obra Necropolítica, experimentando neste
momento e época o primeiro, e importantíssimo, experimento notório de biopolítica na
modernidade.

Em seu ensaio, ao vincular colonialismo, racismo, violência estatal e sistema capitalista,


o filósofo, com sabedoria, descreve a Necropolítica como o poder de escolher quem deve viver
e quem deve morrer. Mbembe usa um exemplo muito importante, que é explicado com mais
detalhes e profundidade no Capítulo 3 deste estudo, onde de acordo com o autor, é a forma
contemporânea mais bem-sucedida de Necropolítica.

8
A fim de buscar mais subsídios teóricos para a análise atual, discutem-se alguns
conceitos propostos pelo filósofo Giorgio Agamben, como o Homo Sacer e a “Vida Nua”, que
se inter-relacionam e complementam-se na ideia de necropolítica.

Por fim, buscar-se-á resumir os argumentos políticos de Agamben sobre os direitos


humanos para compreender os acontecimentos atuais na política brasileira e internacional.
Assim, a pretensão do discurso humanitário é uma estratégia para controlar o comportamento
de determinados indivíduos. Ademais, o Estado moderno, como agente, utiliza esse discurso
como técnica para manter sua dominação sobre o comportamento de seu povo, com o objetivo
de ampliar ainda mais sua hegemonia dentro de seu território ou sobre territórios estrangeiros.

9
1. MICHEL FOUCAULT: PENSAMENTOS E ANALISES SOBRE RACISMO E
BIOPOLÍTICA

Desde o século XVIII, o fenômeno de que Michel Foucault chamou de "biopolítica"


apareceu no campo político ocidental. Antes de aprofundar seu significado, é importante
apresentar brevemente a teoria clássica da soberania tendo como principal atributo o direito à
vida e à morte: em outras palavras, o soberano tem o direito de "fazer morrer" e "deixar viver”.

Dessa forma, os conceitos de vida e morte transcendem seu significado como meros
fenômenos naturais e são retirados da esfera do poder político. Nesse caso, o sujeito é um
elemento sem importância, neutro, por assim dizer, que irá viver ou morrer conforme a vontade
de seu governante. Não obstante, tal relação não é equilibrada, e o agir de tal poder soberano
sobre a vida de um indivíduo é exercida apenas no momento em que o soberano pode matar1.
É apenas por esta razão que o monarca exerce o direito à vida, portanto, "deixar viver" em vez
de "fazer viver".

Em 1975, Foucault propôs em sua última aula no Collège de France que, como uma das
maiores revoluções do direito político do século XIX, os antigos direitos soberanos fossem
complementados pelos novos: "fazer viver" e "deixar morrer", sem extinguir ou negar direitos
soberanos anteriores. Isto pois, a segunda metade do século XVIII, surgiu outra técnica,
distinguindo-se da disciplina, mas não a suprimindo, pois além de ser de outro nível era
auxiliada por uma técnica diferente: o mecanismo de intervenção biopolítica tornou-se a base
do governo do estado da época, apresentando-se como componente e parte suplementar da
primeira técnica2.

Como resultado, o "adestramento de corpos" é menos eficaz para o que o sistema


capitalista emergente está buscando. Assim, mecanismos biopolíticos, novos em sua execução,
organizam-se como ferramentas imprescindíveis para a nova gestão estatal e, portanto, para o
crescimento e forma do modo de produção capitalista, uma vez que o crescimento populacional
é essencial para o aumento da produtividade3. Por causa disso, a perspectiva de vida e morte

1
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. 2ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 202.
2
Op. cit. p. 203.
3
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: A vontade de saber. 10ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988,
p. 133.
10
mudou, e os antigos direitos de "fazer morrer" ou "deixar viver" foram ampliados para produzir
o resultado oposto.

A partir desse pensamento, Foucault (2002, p. 303) percebeu que para preservar a
qualidade de vida da população era necessário garantir a sua segurança em relação aos
seus próprios perigos internos e mais do que deixar morrer era preciso “fazer viver”
(2002, p. 294). Para tanto, a biopolítica exigiu a implantação de uma série de
mecanismos voltados ao melhoramento da população. Foram estipuladas políticas de
saúde, normas de higiene pública, sistemas de previdência, educação, cuidados com
as crianças, intervenções nas famílias por médicos, psicólogos, educadores,
assistentes sociais, polícia, entre outras, a fim de tentar controlar todos os aspectos da
vida para se aproximar de um equilíbrio global, de um padrão, da homeóstase.
(FOUCAULT, 2002, p.293)4

A inovação tecnológica proposta por Foucault é aplicável à vida individual em um


ambiente coletivo, ou seja, ao homem-espécie. Os objetos agora não são mais seres individuais,
mas qualidades universais afetadas por ações comuns que fazem parte da vida.

Após a predominância de um poder concentrado em uma única entidade, surgiu um


segundo poder centrado na população, o biopoder. Por exemplo, proporções de nascimentos e
óbitos, taxas de reprodução, fecundidade populacional, incidência de doenças e longevidade
são todos configurados como alvos de controle biopolítico.

Duarte e Simioni acertadamente discorrem quanto ao assunto:

A denominada biopolítica tratava o corpo não como realidade exclusivamente


biológica, mas, sobretudo, política. Essa nova tecnologia de poder preocupava-se com
o homem enquanto espécie, massa e população e, buscava controlar a vida através de
uma série de intervenções corretivas em aspectos biológicos como o nascimento, a
mortalidade, o nível de saúde, a longevidade e em todas as variáveis capazes de
otimizar a vida no interior das populações. (FOUCAULT, 2002, p. 297)
A partir desse pensamento, Foucault (2002, p. 303) percebeu que para preservar a
qualidade de vida da população era necessário garantir a sua segurança em relação aos
seus próprios perigos internos e mais do que deixar morrer era preciso “fazer viver”
(2002, p. 294).5

Portanto, a ação estatal será voltada para o fortalecimento da massa coletiva,


combatendo os danos e males que possam afetá-la, garantindo seu crescimento e fortalecendo
a cadeia produtiva. Acompanhando essa nova estrutura do Estado moderno vem a valorização
do conhecimento, essencial para a gestão estatal nas áreas de estatística e medicina.

A medicina rapidamente se voltou para a saúde pública coordenando o tratamento


institucional e a prevenção de doenças diretamente relacionadas a questões reprodutivas, de

4
DUARTE, Marcela Andrade; SIMIONI, Rafael Lazzarotto. A BIOPOLÍTICA EM MICHEL FOUCAULT E A
SELETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. REVISTA DA AGU, v. 18, n. 2, 28 jun. 2019.p. 280.
5
Op. cit.
11
nascimento e de morbidade. É também por meio dessa ciência que se consolida o conceito de
loucura, doença ou crime6.

Da mesma forma, a velhice parece ser um tema relevante na biopolítica: para enfrentar
esse 'problema', foram criadas instituições, não apenas agências de ajuda que já existem há
algum tempo, mas também mecanismos de segurança, poupança individual e coletiva7.

A governança do Estado está mais alinhada ao conhecimento médico, facilitando


intervenções regulatórias na vida individual em nível coletivo. O Estado investe na vida das
pessoas porque precisa se fortalecer, controlar a possibilidade de imprevistos na vida das
pessoas e compensar o impacto. A soberania expressa seu poder promovendo a morte, enquanto
a biopolítica a expõe elevando a vida da população8.

A biopolítica difere da soberania justamente por possuir tecnologias e organizações


voltadas para estimular e aumentar a vida para controlar suas contingências e falhas. Atua
reduzindo os processos que prejudicam a vivencia desta população em específico, prejudicando
assim a sua produtividade.

O norte da biopolítica quanto ao aumento da vida entende-se como se fosse, mas não o
é, para o bem-estar das pessoas: a verdade é que a tecnologia garante e protege a vida dos
indivíduos enquanto escolhe, subgrupos e subtipos, a preservação de vidas valiosas.

Por meio de alguns questionamentos, Foucault analisa:

Como um poder como este pode matar, se é verdade que se trata essencialmente de
aumentar a vida, de prolongar sua duração, de multiplicar suas possibilidades, de
desviar seus acidentes, ou então compensar suas deficiências? Como, nessas
condições, é possível, para um poder político, matar, reclamar a morte, expor à morte
não só dos seus inimigos, mas mesmo seus próprios cidadãos? Como esse poder que
tem essencialmente o objetivo de fazer viver pode deixar morrer? Como exerce o
poder da morte, como exercer a função da morte, num sistema político centrado no
biopoder?9

A partir dessa reflexão, Foucault enfatizou o conceito de racismo como ferramenta


fundamental do biopoder. Ele argumenta que, em alguns casos, o Estado moderno dificilmente
funciona sem racismo10. Segundo o filósofo francês, o racismo configurava-se então como meio
de instaurar na sociedade uma cisão entre o que “deve viver” e o que “deve morrer”.

6
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 27ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2009, p. 151.
7
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. 2ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 205.
8
Op. cit. p. 207.
9
Op. cit. p. 214.
10
Op. cit. p. 214.
12
As distinções e hierarquias raciais são formas de dividir a biologia, de separar e subjugar
alguns grupos em contrapartida a outros. De fato, uma população pode ser vista como a mescla
de diferentes raças, com hierarquias diferentes, conforme a subdivisão da espécie humana.

Quer dizer, ao falar em raça, Foucault não se limita ao aspecto biológico, estritamente
racial. Pelo contrário, ele entende “raça” de uma maneira abrangente, no sentido de
grupos sociais distintos. É em razão de uma diferença social (política, cultural,
econômica), que se permitiu a inserção do racismo como mecanismo fundamental de
poder. Ainda que os indivíduos pertençam à mesma raça, existe a sensação de
superioridade de uns em relação aos outros por motivos também de origem social e
não apenas biológica.11

O racismo tem um papel baseada em uma relação guerreira com o inimigo, “se você
quer viver, o outro lado deve morrer”, ideia que coaduna com a descrição de biopoder12. Doutra
perspectiva, condiciona uma relação que penetra no meio militar ou guerreira: as biológicas que
ganham benefícios gerais com a morte de raças inferiores, eliminando aqueles indivíduos
"anômalos". Eliminar os "indignos" tornará a vida mais saudável e pura13. A morte tem
permissão no esquema biopolítico enquanto se torna e é uma ferramenta para eliminar os riscos
biológicos com o intuito de fortalecer a população em geral.

Observou-se, portanto, o aparecimento de uma relação de enfrentamento entre as raças


(superiores e inferiores), pautada na ideia de que “a morte da raça ruim”
(FOUCAULT, 2002, p. 305) constitui mecanismo de defesa necessário para deixar a
vida melhor, mais sadia e mais pura. Foi o que aconteceu, por exemplo, no holocausto
na Segunda Guerra, na qual para que os alemães pudessem viver em segurança,
afirmava-se ser necessário que os judeus (considerados subumanos) fossem
completamente exterminados do mundo. Portanto, por razões biológicas e raciais,
legitimou-se uma fábrica de mortes em pleno século XX.14

A realidade de o Estado varrer vidas individuais não está apenas associada ao


assassinato direto, mas também se configura na exclusão, na exposição de certa classe de
indivíduos à morte15, na expulsão do espaço coletivo, o que pode ser chamado de “morte
social”.

Em suma, na visão de Michel Foucault, o racismo reforça o papel da morte na economia


do biopoder, pois afirma a morte, a subordinação e a depravação do outro, produzindo a
segurança da vida coletiva. Com isto, afirma:

[...] A especificidade do racismo moderno, o que faz sua especificidade, não está
ligado a mentalidades, a ideologias, a mentiras do poder. Está ligado a isto que nos
coloca, longe da guerra das raças e dessa inteligibilidade da história, num mecanismo

11
DUARTE, Marcela Andrade; SIMIONI, Rafael Lazzarotto. A BIOPOLÍTICA EM MICHEL FOUCAULT E A
SELETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. REVISTA DA AGU, v. 18, n. 2, 28 jun. 2019.p. 282.
12
Op. cit. p. 215.
13
Op. cit. p. 215.
14
Op. cit. p. 282.
15
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. 2ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 216.
13
que permite ao biopoder exercer-se. Portanto, o racismo é ligado ao funcionamento
de um Estado que é obrigado a utilizar a raça, a eliminação das raças e a purificação
da raça para exercer seu poder soberano. A justaposição, ou melhor, o funcionamento,
através do biopoder, do velho poder soberano do direito de morte implica o
funcionamento, a introdução e a ativação do racismo. E aí, creio eu, que efetivamente
ele se enraíza.16

Cabe destacar o fato exemplificativo demonstrado por Michel Foucault não é o racismo
racial, mas o racismo evolutivo, que isola do meio social os doentes mentais e aqueles vistos
como adversários políticos. Esse racismo leva à morte: no entanto, a morte não é causada pela
força, característica do ato de soberania, mas como forma de fortalecer a vida e a raça da
população. Esse racismo baseia-se na ideia de que para viver ou aumentar a vida, a morte deve
ser intervencionada para colocar o indivíduo abaixo dela.17

Outro conceito importante para as reflexões de Foucault é a norma, que se manifesta


como elemento essencial que circula entre efeitos disciplinares e moderadores, permitindo o
controle simultâneo de corpos individuais e eventos aleatórios que afetam populações inteiras.
Isso significa que todos que vivem em meio social devem aderir para si um padrão visto como
normal. O poder "conseguiu cobrir toda a superfície que se estende do orgânico ao biológico,
do corpo à população, mediante o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das
tecnologias de regulamentação, de outra."18.

O funcionamento das sociedades normalizadas é baseado em dispositivos de segurança


que reforçam a tecnologia de intervenção biopolítica. Esses dispositivos são projetados para
consolidar os aspectos positivos da sociedade, promover a interação social, organizar
adequadamente os edifícios e amortecer riscos que possam afetar a população19.

Cabe destacar que o tipo de controle utilizado no século XVII e início do século XVIII
baseava-se no poder disciplinar, como mencionado anteriormente, utilizando instituições
(escolas, hospitais, quartéis, fábricas) para realizar essa vigilância de forma limitada. À medida
que o foco se tornou mais abrangente quanto se aproximava o fim do sec. XVIII, foi necessário
reger por meio de mecanismos de controle mais requintado.

Foucault sabiamente as traz a luz definindo-as em duas séries distintas: a série "corpo -
organismo - disciplina - instituição" e a série "população - processos biológicos - mecanismos

16
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. 2ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 217.
17
Op. cit. p. 216.
18
Op. cit. p. 213.
19
FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população: curso dado no Collège de France (1977- 1978). São
Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 26.
14
reguladores - Estado"20. Assim, neste segundo momento, fica evidente a importância primordial
do Estado na biorregulamentação.

A disciplina, por sua vez, sempre tende a transcender as fronteiras do âmbito


institucional, e mais tarde adquire rapidamente uma dimensão estatal em certos mecanismos,
como a polícia, que é tanto um instrumento de disciplina quanto um instrumento de controle
estatal sobre o aparato.

Como os dois conjuntos de mecanismos não estão no mesmo nível, existe a


possibilidade de uma conexão entre eles, ou seja, os instrumentos do poder disciplinar e os
instrumentos da supervisão se complementam e vice-versa. As sociedades de controle assumem
que os indivíduos internalizam práticas - ações comportamentais - determinados pelo Estado, e
é nesta ótica que o Estado atua.

De fato, o racismo é o principal culpado por causar guerras contra seus próprios
cidadãos. Segundo os filósofos, isso tem duas intenções: destruir o oponente, destruir a raça
hostil; regenerar a própria raça, levá-la à beira da morte. O problema do crime entra nesse
contexto: nos mecanismos de biopoder, os criminosos são presos, colocados em quarentena ou
sentenciados à morte. O mesmo vale para os chamados lunáticos ou doentes.21

Foucault conclui o curso22 com uma breve introdução ao caso do regime nazista. Para
ele, nenhuma sociedade era mais disciplinada e regulada do que a imposta pelos nazistas. É
uma sociedade geralmente segura, regulada e disciplinada na qual se exerce o pleno poder do
soberano, o poder de matar. Tais poderes de estados e indivíduos coletivamente, por exemplo,
por meio de grupos considerados paramilitares e milícias.

Nesse lugar, todos têm direitos de vida ou morte sobre seus vizinhos. Como resultado,
toda a sociedade está liberando aura assassina.

Complementa sabidamente:

O risco de morrer, a exposição à destruição total, é um dos princípios inseridos entre


os deveres fundamentais da obediência nazista, e entre os objetivos essenciais da
política. É preciso que se chegue a um ponto tal que a população inteira seja exposta
à morte. Apenas essa exposição universal de toda a população à morte poderá
efetivamente constituí-la como raça superior e regenerá-la definitivamente perante as

20
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. 2ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 213.
21
FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população: curso dado no Collège de France (1977- 1978). São
Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 217.
22
Collège de France (1975 – 1976).
15
raças que tiverem sido totalmente exterminadas ou que serão definitivamente
sujeitadas.23

Nessa perspectiva, temos um país absolutamente racista, assassino e totalmente


suicida24. Foucault aponta o racismo de Estado como outra ferramenta biopolítica destinada a
fortalecer determinadas raças e populações, enquanto Giorgio Agamben mostra como a morte
pode ser legalizada sem passar por um processo de legalização. Segundo Agamben, a forma
como a morte é gerenciada e estabelecida em nosso século se dá por meio de exceções.

1.1. Giorgio Agamben: Política, Campo e Estado de Exceção

Existem algumas semelhanças entre os conceitos aqui apresentados pelo Foucault e


Giorgio. No entanto, é necessário descobrir as diferenças entre ambos estudiosos que se
debruçam neste tema do presente trabalho. Para Agamben, as origens da biopolítica não
ocorreram apenas nas transformações políticas que Foucault chama de período de transição do
Ocidente entre os séculos XVIII e XIX.

O filósofo italiano desenvolveu suas próprias ideias após destilar seus conceitos em
pesquisas de diversos autores como Karl Schmidt, Hannah Arendt, Walter Benjamin e,
obviamente, Michel Foucault, compreendendo que a biopolítica se descreve e organiza-se como
um meridiano de toda a política do ocidente25. Ele também acredita que o ápice das figuras
biopolíticas são os regimes extremamente totalitários iniciados no XX, com grande ênfase ao
nazismo.

Agamben propôs pela primeira vez a relação contraditória entre tomadas de decisões
excepcionais e direito em sua obra, Estado de Exceção: este é determinado como uma forma
legalizada que não pode ser uma forma legal. As exceções são incluídas suspendendo os direitos
enquanto estiverem associados a eles. Uma das razões de sua dificuldade de definição é sua
estreita relação com guerras civis, revoltas e resistências26.

23
FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população: curso dado no Collège de France (1977- 1978). São
Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 219.
24
Op. cit. p. 219
25
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o Poder Soberano e Vida Nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2002, p. 15-16.
26
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 15
16
Como exemplo, o filósofo cita o momento após a chegada de Hitler ao poder, quando
emitiu um decreto para proteger o povo e o país. O referido documento nunca foi revogado: o
Terceiro Reich poderia, portanto, ser considerado um Estado de Exceção dentro da lei27.

O termo "Estado de Exceção", comum à doutrina alemã, é estranho na doutrina italiana


e na francesa, chamados decreto de emergência e estado de sítio (político ou fictício),
respectivamente. Na visão doutrinária anglo-saxônica predominam os termos martial law (lei
marcial) e emergency powers (poderes de emergência)28.

Segundo Agamben, tudo isso é insuficiente para delinear a moldura estrutural do


fenômeno, pois requer um complemento “político” ou “ficcional”, o que também é falso, pois
o “Estado de Exceção” não tem ligação com um direito especial e é o direito suspensório da
ordem jurídica própria, definindo seu conceito-limite.29

Como posicionamento recorrente, Agamben acrescentou ainda que o critério para o


Estado de Exceção é o Estado de Necessidade. O termo pode ser entendido em dois sentidos
opostos: "a necessidade não admite leis" e "a necessidade cria suas próprias leis". Em ambos os
contextos, "a teoria do Estado de Exceção é suficientemente abordada na Status Necessitatis,
de modo que o julgamento da existência deste último esgota a questão da legitimidade do
primeiro. Daí a questão da estrutura e do significado do Estado de Exceção, a pesquisa tem
como premissa o conceito jurídico de análise da necessidade”30.

A necessidade, vista sob esse prisma, não é fonte da lei, nem a suspende; limita-se a
retirar a aplicação literal da norma de um caso particular: "Quando necessário, quem age além
do texto da lei, não julga a lei, mas em circunstâncias particulares ele acredita que a lei não
deve ser obedecida”31.

Segundo Agamben, o “Estado de Exceção” como figura necessária, juntamente com o


conceito de revolução e o estabelecimento de uma ordem constitucional de fato, apresenta-se
como medida "ilegal", porém perfeitamente "jurídica e constitucional" nas novas Normas e até
mesmo na criação de novos ordenamentos jurídicos que são estabelecidos e consolidados32.

27
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 13.
28
Op. cit. p. 15.
29
Op. cit. p. 15.
30
Op. cit. p. 40.
31
Op. cit. p. 41.
32
Op. cit. p. 44.
17
O Status Necessitatis se demonstra como "uma área de ambiguidade e incerteza em que
os modus operandi de fato - eles próprios extra ou anti-judiciais - são transformados em direito,
e as normas jurídicas são indeterminadas em mero ato fatídico; portanto, este é um limiar onde
fato e lei parecem que se tornam impossíveis de discernir”33.

Portanto, seu conceito é subjetivo em relação ao que deve ser alcançado. Assim, as
tentativas de resolver o “Estado de Exceção” no “Estado de Necessidade” encontram muitas
dificuldades relacionadas ao fenômeno que se propõe a explicar: “não só a necessidade se reduz,
em última instância, a uma decisão, como também aquilo sobre o que ela decide é, na verdade,
algo indecidível de fato e de direito”34

Em síntese, o “Estado de Exceção” “agambeniano” tem sido descrito como uma


organização estrutural política relevante em várias sociedades, inclusivamente nas chamadas
sociedades democráticas, que utilizam o estudo quando ocorre o conflito e o consideram mais
extremo. Ou seja, na própria natureza do poder, as anomalias estão sempre presentes, mesmo
em tom cauteloso e quase imperceptível.

A teoria que descreve o Estado de Exceção não tende a ser de forma alguma o legado
exclusivo dos antidemocratas. O autor prossegue dizendo que o totalitarismo contemporâneo,
baseando-se e justificado em uma guerra civil legítima, autoriza a eliminação física de inimigos
políticos e classes de cidadãos que não se enquadram nas aspirações do atual sistema político.
Agamben destacou que “o estabelecimento voluntário de um estado de emergência
permanente” é uma das práticas básicas dos estados da contemporaneidade.

O Estado de Exceção passa a não mais representar algo extraordinário e emergencial


para apresentar-se como, de fato, um ponto superior para a não determinação de democracia e
contraposição ao absolutismo35: configura-se sendo uma verdadeira estratégia de destruição
daqueles cuja parte não está no corpo político inteiro, isto é, daqueles inseridos no conceito de
“Vida Nua”.

Um ponto importantíssimo trago à tona pelo filósofo é o elemento biopolítico dos


estados de exceção contemporâneos, que inclui organismos suspensos por si mesmos. Um

33
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 45.
34
Op. cit. p. 47.
35
Op. cit. p. 13.
18
exemplo claro é a ordem militar dos EUA emitida em novembro de 2001, permitindo a chamada
detenção infinita de não-cidadãos suspeitos de ligações terroristas.

Os talibãs, exemplo deste ponto, presos no Afeganistão não são considerados réus sob
a lei dos EUA, além de não usufruírem do status de prisioneiros de guerra sob as Convenções
de Genebra. Nem prisioneiro de guerra, tampouco acusado, encontravam-se em um nítido
estado de incerteza. Essa ordem anula a humanidade dessas pessoas, deixando-as em uma
posição indeterminada de tempo e natureza.36

Diante desse exemplo, é importante analisar a área de pesquisa de Agamben. Os


filósofos analisam o campo em termos de sua estrutura jurídico-política. Olha o campo de outras
perspectivas, eliminando a visão de que sua existência é um fato histórico e apenas passado. O
campo ainda existe - e continua existindo - no espaço político em que vivemos37.

Para fluir o entendimento, aqui está um exemplo de um campo de concentração do


regime nazista. Existe um corpo legal, derivado da lei prussiana de 1851, que trata dos estados
de lei marcial, literalmente "tutela protetora". Juristas nazistas a classificaram como medida
policial preventiva porque permitia a detenção de indivíduos, por conduta criminal ou não, com
o objetivo de evitar “um possível risco à segurança do Estado”38. A ligação entre o estado
anômalo e os campos nazistas é deveras importante para um entendimento mais preciso da
natureza destes locais inumanos de concentração.

Paradoxalmente, a “proteção” do referido Instituto Nazista é uma proteção contra


suspensões legais que caracterizam emergências39. A agência minimizou o status excepcional
em que foi fundada e funciona em circunstâncias normais.

Por isto, “o campo é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a se tornar
regra”40. Como tal, configura-se como “um território ausente do ordenamento jurídico normal,
mas, portanto, não meramente um espaço externo”41. Nele, a lei está suspensa em constante
Estado de Exceção e, como coloca Hannah Arendt, “tudo é possível”. Uma pessoa na condição
de morador rural é privada de qualquer humanidade e direitos42.

36
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 14.
37
AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2015, p. 41.
38
Op. cit. p. 42.
39
Op. cit.
40
Op. cit.
41
Op. cit. p. 43.
42
Op. cit. p. 44.
19
O filósofo italiano referiu-se ao conceito de biopolítica de Michel Foucault, dizendo que
o campo “é também o espaço biopolítico mais absoluto já criado, no qual o poder é confrontado
apenas pela vida biológica pura, sem intermediários”43.

Agamben propõe outra visão, quanto ao campo, além do Estado nazista:

Será um campo tanto o estádio de Bari, no qual, em 1991, a polícia italiana amontoou
provisoriamente os imigrados clandestinos albaneses antes de devolvê-los a seu país,
quanto o velódromo de inverno no qual autoridades de Vichy recolheram os judeus
antes de entregá-los aos alemães; tanto o campo de refugiados na fronteira com a
Espanha (...), quanto as zones d’attente nos aeroportos internacionais franceses, nas
quais foram mantidos os estrangeiros que pedem o reconhecimento do estatuto de
refugiado.44

Além disso, destaca outras realidades contemporâneas que se igualam em semelhança


ao campo. Por exemplo, as áreas circundantes de certas cidades pós-industriais. Então o campo
se move para as cidades, e o que acontece nesse espaço não é mais sob a lei, esta não existe
para essas pessoas. É a polícia que tem o direito soberano de agir como bem entender naqueles
territórios.

De acordo com o consenso, a polícia tem apenas a função administrativa de aplicação


da lei. Na verdade, porém, é justamente na polícia que a violência que caracteriza a imagem do
monarca está muito próxima. A instituição decide e justifica suas ações em nome da "ordem
pública" e da "segurança nacional". A ação policial é simétrica e sustentada pelo poder
soberano. Um exemplo disso é que o extermínio dos judeus pelo Terceiro Reich foi considerado
uma operação policial do começo ao fim45, por isso foi tão mortífera e destrutiva.

Gradualmente, uma força metódica de violência se desdobra através das armas, na


criminalização dos opositores: primeiro excluídos por alguma “ação policial” e finalmente
aniquilados. A soberania desliza para o reino menos conhecido da polícia, no entanto, deixando
os chefes de estado que estão incansavelmente investidos em condenar seus inimigos contra
todas as probabilidades. Quem hoje veste a roupagem de um monarca sabe que um dia poderá
ser considerado um criminoso pelos colegas46.

A polícia opera no espaço ambíguo em que reside a anomalia, recriando a politização


ao incluir determinados indivíduos e excluir outros. Em um contexto democrático, é o próprio
representante do poder soberano. Dessa forma, a força policial de um estado reflete a soberania

43
AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2015, p. 44.
44
Op. cit. p. 45.
45
Op. cit. p. 99.
46
Op. cit. p. 100.
20
que opera diretamente sobre o povo. Formam-se duas vertentes notórias quanto a manutenção
do sistema: de um lado, a politização é eficientemente orquestrada; por outro, o
desconhecimento e ignorância política de determinados sujeitos, indivíduos, é fortificada.

Destaca-se a concepção de polícia de Foucault: para os filósofos, a polícia é plenamente


funcional na arte de governar, e suas preocupações são de várias naturezas (por exemplo,
jovens, filantropia, saúde pública, mercadorias). Em igual momento, juntamente com o
judiciário, o exército e as finanças, constitui a função intrínseca do Estado47.

Ou seja, é identificada semelhantemente a uma instituição atuante sobre no corpo do


indivíduo para possibilitar o cumprimento das disposições do poder soberano e das instituições
disciplinares na sociedade. Por fim, o objetivo das operações policiais é controlar as atividades
humanas, pois essas atividades podem orientar e influenciar o desenvolvimento do poder
estatal48.

A força policial tem autoridade para então usar tudo o que o Estado precisa para atingir
seus objetivos primários. Em outras palavras, pode usar todas as ferramentas necessárias para
adaptar as atividades dos indivíduos à estrutura do Estado e, assim, ser efetivamente útil ao
Estado49.

Usando como desculpa o crescimento da violência no mundo, o estado atual molda seu
modelo de trabalho governamental por meio de seus poderes punitivos e genocidas, fazendo
cumprir regras que geralmente não respeitam as salvaguardas individuais e os direitos
fundamentais.

Assim, na visão de Agamben, o “Estado de Necessidade” é um conceito subjetivo que


pode servir de ferramenta para um “Estado de Exceção” permanente. Nesse sentido, “diante do
constante avanço definido como ‘guerra civil mundial’, o Estado de Exceção adquiri tendencia
a apresentar-se como o modelo dominante de governo na política contemporânea”50.

47
FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população: curso dado no Collège de France (1977- 1978). São
Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 431.
48
Op. cit. p. 433.
49
Op. cit. p. 437.
50
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 13.
21
2. A NECROPOLÍTICA E OS CORPOS DEFINIDOS PARA A MORTE

"O racismo vai se desenvolver primo com a colonização, ou seja, com o genocídio
colonizador"51: Foi assim que Foucault se referiu à escravidão no estado moderno em sua obra
"Em Defesa Da Sociedade", sem descrição detalhada. Partindo desta questão, o trabalho propõe
o conceito de Necropolítica do sociólogo camaronês Achille Mbembe, que ampliaria o conceito
de poder estatal por outro prisma.

Mbembe voltou para a plantation (plantação), onde observou as primeiras experiências


biopolíticas da modernidade. Segundo ele, foi nesse sistema que nasceu o horror moderno 52.
Como estrutura político-jurídica, a plantation é um espaço em que o escravo é propriedade do
senhor, cuja condição inclui uma tripla perda: perda da "casa", perda dos direitos corporais e
perda do status político53. O escravo, como propriedade, está em uma condição de morte-em-
vida 54, e sua presença é a imagem perfeita da sombra personificada55.

Os negros foram capturados, sequestrados da África e escravizados muito anteriormente


aos campos de concentração nazistas, os quais conhece-se. Foi nesse contexto que começaram
experiências como esterilização forçada, proibição de casamentos mistos e genocídio56. As
conquistas coloniais mostraram um potencial de atitudes violentas, as quais não se encontram
precedentes na contemporaneidade.

Os horrores observados na Segunda Guerra Mundial com as pessoas da Europa são


reproduções de métodos antes dirigidos apenas contra "selvagens"57. O escritor das Antilhas,
Aimé Césaire explicou que não é o crime em si, nem a humilhação da própria humanidade, que
causa indignação, mas o crime contra os brancos, a aplicação limitada do procedimento
colonialista, até aquele momento, para árabes, cules na Índia e negros na África58.

Ele acrescentou: “e é a grande acusação que eu lanço ao pseudo-humanismo: de ter por


muito tempo apequenado os direitos do homem, de ter tido, de ainda ter dele uma concepção

51
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. 2ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 216
52
MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3ª ed. São Paulo: Editora N-1, 2018, p. 27
53
Op. cit.
54
Op. cit. p. 29.
55
Op. cit. p. 30.
56
Op. cit. p. 31.
57
Op. cit. p. 32.
58
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. 1ª ed. Lisboa: Sá da Costa Editora, 1978, p.18.
22
estreita e parcial, em suma, sordidamente racista”59. O Estado, modelo de unidade política,
moral, foi concebido como a única organização possível que funcionaria para "civilizar" os
indivíduos que atribuem razão e objetivos específicos aos atos de matar.

Então as colônias são como fronteiras e os estados não reconhecem nenhum poder além
do seu porque são habitados por seres desumanos que são considerados "selvagens". Assim,
aos olhos dos colonos, o acordo de paz era impossível: "A colônia é um excelente local onde
pode ser suspenso o controle e a segurança da ordem judicial - área onde se localiza a violência
do estado excepcional para servir a 'civilização'"60.

Ora, as colônias foram configuradas para que não houvesse espaço para a lei porque
havia a negação de quaisquer laços raciais comuns entre os colonos e os nativos. Aos olhos dos
conquistadores, os nativos eram apenas mais uma modelo de "vida animal", desumana,
incompreensível61. Então, naquele ambiente, o monarca poderia exercer o poder de matar. A
soberania contem em suas entranhas ações violentas que colocam os colonizados na zona entre
sujeitos e objetos.

Essas violências não só existiam como eram permitidas em tempos distantes. Mbembe
apresenta o primeiro exemplo de apartheid na África do Sul, que durou até 1994. A região é
uma forma de controle estrutural: desde restrições rígidas aos negros aos mercados em áreas
brancas, controles sobre a circulação de seres humanos, até o não consentimento,
consequentemente, a não cidadania aos africanos. Assim, a cidade colonizada nada mais era do
que uma "aldeia agachada", uma "cidade ajoelhada"62.

Para Mbembe, o que se chama "negro" é um produto da sistemática capitalista do sec.


XV, pois a exploração da natureza e do ser humano acontecia às margens do Oceano
Atlântico63. Neste momento, "negro" só pode ser coisa, objeto e mercadorias. Provando, assim,
que o poder dos "civilizados" pode massacrar e governar qualquer pessoa ou indivíduo.

Em sua obra, Necropolítica, relacionando colonialismo, racismo, violência estatal e


modelo capitalista, Achille descreve a necropolítica como sendo o poder de fato para escolher
quem vive e quem morre. O retorno ao biológico é uma justificativa para quaisquer tipos de

59
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. 1ª ed. Lisboa: Sá da Costa Editora, 1978, p.18.
60
MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3ª ed. São Paulo: Editora N-1, 2018, p. 35.
61
Op. cit. p. 35.
62
Op. cit. p. 41.
63
MBEMBE, Achille. As sociedades contemporâneas sonham com o apartheid. Revista Mutamba: Sociedade,
Cultura e Lazer, 2014, p. 6.
23
arbitrariedades desumanas e fundadas em vias cruéis. Refere-se ao poder que prescreve o status
político de um ser humano com direitos e garantias e outro sem tais benefícios.

Todavia, este ato de excluir não é injustificadamente presente: mecanismos e


engrenagens se desenvolveram para que políticas de morte, preservadas por meio de um
processo de abuso – exploração – social, sejam instaladas em determinadas pessoas por não
encontrarem espaço real para permanecer no sistema.

Conforme a lógica da exploração do trabalho, o corpo, ao ser despojado de suas


características únicas contidas no sistema capitalista, torna-se um corpo de controle
desnecessário, aniquila sua ação política e acaba por desumanizador e possível vítima. Norteado
por tais ideias, Achille Mbembe estende a discussão da concepção de biopolítica de Foucault
para refletir quanto a vida e a morte, examinando canários coloniais, tal como os neocoloniais.

Assim, surgiu e se consolidou o conceito de Necropolítica como um fato que percorre


um longo caminho para ponderar processos atuais na América Latina, mesmo após a abolição
formal da escravatura, ainda inserido no engenhoso sistema de plantation.

É sob essa luz que o filósofo reflete sobre a maneira que a democracia, mantida de
diversas formas pelo processo colonialista, exerceu a prática da soberania para instrumentalizar
e destruir instituições consideradas redundantes. Desta forma, a Necropolítica, como estudo,
fornece técnicas para analisar a composição do poder durante o processo colonial e os traços
visíveis da colonização que ainda dominavam territórios na África, América Latina e Oriente
Médio.

Doutra forma, o conceito do termo concede que seja realizada uma análise crítica quanto
ao fenômeno da violência típica dos povos da marginalização que sofrem com a mitigação e a
crescente retirada de seus direitos pessoais e políticos. Nessa ótica, o Holocausto não é mais o
modelo dominante para estudar o genocídio: a colonização, tanto quanto a néocolonização,
juntamente com a matança de povos indígenas, sequestro, escravização de povos no continente,
são centrais para o debate sobre Mbembe.

O mais atual é a ocupação colonial da Palestina, que é a forma contemporânea de


Necropolítica mais bem implantada64. Difere da primeira modernidade em vários aspectos e se
configura como uma clara fusão de biopolítica, poder disciplinar e necropolítica.

64
MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3ª ed. São Paulo: Editora N-1, 2018, p. 41.
24
Foi nesta ocupação que Israel, como Estado, consolidou sua legitimidade única a partir
da representação de sua historicidade, consequentemente, identidade. Como tal, concorre com
uma narrativa histórica diversa deste mesmo território. A identidade de um povo é, de modo
necessária, compensada pela de outro, desta forma a convivência é quase impossível.

Partindo do período em que certas áreas foram completamente interditadas, com a


criação de campos voltado aos refugiados, novas colônias foram estabelecidas, assim como o
apartheid na África do Sul ou na América do Norte, podemos ver quão verdadeira e relevante
foi a afirmação desse filósofo:

Tal precisão é combinada com as táticas de sítio medieval adaptada para a expansão
da rede em campos de refugiados urbanos. Uma sabotagem orquestrada e sistemática
da rede de infraestrutura social e urbana do inimigo complementa a apropriação dos
recursos de terra, água e espaço aéreo. Um elemento crítico a essas técnicas de
inabilitação do inimigo é fazer terra arrasada (bulldozer): demolir casas e cidades;
desenraizar as oliveiras; crivar de tiros tanques de água; bombardear e obstruir
comunicações eletrônicas; escavar estradas; destruir transformadores de energia
elétrica; arrasar pistas de aeroporto; desabilitar os transmissores de rádio e televisão;
esmagar computadores; saquear símbolos culturais e político-burocráticos do Proto-
Estado Palestino; saquear equipamentos médicos. Em outras palavras, levar a cabo
uma “guerra infraestrutural65

É de grande importância entender que a divisão dos territórios palestinos começou na


década de 1970 com o estabelecimento de assentamentos coloniais na Cisjordânia, Faixa de
Gaza e Jerusalém Oriental por Israel após sua ocupação militar em 1967, como resultado da
Guerra dos Seis Dias. O governo de Israel retirou a propriedade dos territórios e depois
construiu assentamentos onde os chamados colonos se estabeleceram66.

Diante disso, este governo promoveu a separação dos palestinos e construiu uma versão
da realidade muito semelhante ao apartheid na África do Sul. Com exceção de uma Palestina
quebrada, para conter qualquer forma de resistência, o governo agiu de modo a afirmar sua
soberania. Segundo Mbembe, trata-se de uma clara representação de uma nação constituída
pela prática da Necropolítica:

Atirar pedras contra soldados israelenses: o ato pode custar até 20 anos de prisão para
crianças palestinas. Ayed Abu Eqtaish, diretor da organização não-governamental
Defense for Children International (DCI) — Palestine (Jerusalém), contou ao Correio
que, anualmente, entre 500 e 700 menores capturados na Cisjordânia são processados
por tribunais militares instalados dentro de Israel, depois de serem presos e
interrogados. “Essa é a acusação mais comum. Muitas vezes, as crianças são detidas
em postos de controle, nas ruas ou na casa de familiares”, explicou. De acordo com
ele, os soldados cercam o local nas primeiras horas da manhã. “Uma vez identificada,

65
MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3ª ed. São Paulo: Editora N-1, 2018, p. 47.
66
RUSSO, Guilherme Morgensztern. Palestina partida: os bantustões de Israel - um estudo comparativo entre
as normas institucionais de segregação nos territórios palestinos e na África do Sul do Apartheid. Malala, v. 5,
n. 7, p. 89-110, 2017, p. 99.
25
a criança é espancada ou recebe chutes, antes de ter os olhos vendados e ser
amordaçada. Depois, eles a jogam na traseira de uma viatura militar, onde sofre abuso
físico e psicológico”67.

São duas narrativas totalmente diferentes, suas populações profundamente entrelaçadas:


"Qualquer divisão territorial baseada na pura identidade é praticamente impossível"68. A
identidade de um povo é vista como a de outro povo. Como resultado, "a violência colonial e a
ocupação foram fundadas em um medo sagrado da verdade e da exclusividade (expulsões em
massa, reassentamento de 'apátridas' em campos de refugiados, estabelecimento de novas
colônias)"69.

Para o filósofo camaronês, as propriedades da Faixa de Gaza estão ligadas à formação


concreta do terror da força da morte. O propósito deste processo contemporâneo de ocupação
colonial é duplo: impossibilitar, primeiramente, toda mobilidade, e segregar, em segundo lugar,
conforme o paradigma do estado do apartheid70.

No entanto, as novas formas de governança diferiam daquelas observadas durante o


período colonial. Coadunando com Achille, as velhas técnicas de policiamento e disciplina
inerentes aos ambientes coloniais e pós-coloniais estão gradualmente se transformando em uma
alternativa mais extrema e trágica.

Se o poder ainda depende de um controle estreito sobre os corpos (ou de sua


concentração em campos), as novas tecnologias de destruição estão menos
preocupadas com inscrição de corpos em aparatos disciplinares do que em inscrevê-
los, no momento oportuno, na ordem da economia máxima, agora representada pelo
“massacre”. Por sua vez, a generalização da insegurança aprofundou a distinção social
entre aqueles que têm armas e os que não têm (“lei de distribuição de armas”). Cada
vez mais, a guerra não ocorre entre exércitos de dois Estados soberanos. Ela é travada
por grupos armados que agem por trás da máscara do Estado contra os grupos armados
que não têm Estado, mas que controlam territórios bastante distintos; ambos os lados
têm como seus principais alvos as populações civis desarmadas ou organizadas como
milícias71.

Nessa circunstância, o objetivo da ocupação neocolonial é controlar e vigiar, em


concomitância com a busca da reclusão. Como resultado, as comunidades são construídas de
forma marginalizada, levando à proliferação de locais onde a violência concretiza-se e se

67
CRAVEIRO, Rodrigo. Governo de Israel mantém pelo menos 290 crianças palestinas presas. Correio
Braziliense. 30 jul. 2018. Disponível em:
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/mundo/2018/07/30/interna_mundo,698255/criancas-
palestinas-presas.shtml Acesso em: 25/04/2022.
68
MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3ª ed. São Paulo: Editora N-1, 2018, p. 42
69
Op. cit.
70
Op. cit. p. 43.
71
Op. cit. p. 59.
26
espalha. Esta barbárie – política do ato de morte – parece ser o único modo possível de gerir
socialmente de uma perspectiva capitalista.

Com isso, a Necropolítica se estabelece como um conceito de grande importância, tanto


para uma profunda reflexão dos processos contemporâneos na América Latina e no Caribe, tal
qual os países possuem também elementos da colonização europeia (principalmente devido à
combinação de plantações e escravidão moderna), quanto em cenas mais distantes, como no
caso da Palestina mencionado acima, a neocolonização se firma.

De acordo com o filósofo, a política da morte é racializada, extrapolando essa dimensão


para o fato de que a negritude não é apenas uma condição subordinada reservada as pessoas
negras, mas um destino de martírio que gradativamente se estende para além do negro. Estes,
inclusive desempregados, descartáveis, favelados, imigrantes, indígenas, mulheres, moradores
de rua.

Esta é a generalização dos indivíduos vulneráveis no mundo. Estes três, o capitalismo,


o preconceito racial e o processo de colonização são partes que se fortalecem mutuamente,
tendo suas finalidades as de “coisificação”, subordinação e extermínio de alguns – e
determinados – corpos.

2.1. O Sujeito de Direitos Humanos e a Vida Nua

Com o fito de alcançar mais subsídios teóricos para a análise, é de grande valia debater
alguns dos conceitos propostos por Giorgio Agamben, a saber, Homo Sacer e a Vida Nua – que
se interligam e complementam a natureza do conceito de Necropolítica. O corpo do chamado
Homo Sacer é entregue ao monarca para que ele decida se vale a pena viver aquela vida.

No contexto histórico, quanto ao direito romano antigo, aqueles que eram considerados
santos eram marginalizados, tanto além da jurisdição humana quanto além da divina. Por este
motivo é que a vida do Homo Sacer está contida na forma sacrificial e ao mesmo tempo
apagável72. Sua vida santa implica que qualquer um pode matá-lo sem ser profanado73. No ius

72
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2002, p. 80.
73
Op. cit. p. 81.
27
humanum, a morte tente a ser considerada um crime, enquanto no ius divinum, vida é oferecida
aos deuses, suprimindo assim o Homo Sacer desses dois reinos.

Nessa lógica, fica claro que a vida do santo, nessa relação de desprezo, está
constantemente exposta à morte. Desprotegido e em desacordo com as leis do homem e de
Deus, configurou-se como aquele que todos agiam como soberano74. Assim, a santidade é a
primeira forma de inferência da Vida Nua na ordem jurídico-política75. A matança
incondicional da vida humana é legitimada na ordem política.

Agamben também relata que os gregos no mundo clássico não atribuíam uma única
nomenclatura ao se referir à vida como fazem hoje. Eles usam dois outros termos: zoé e bíos.
A primeira simboliza o simples fato da vida, compartilhado pelos os seres, a própria Vida Nua;
a segundo, a vida dos cidadãos76.

Uma vida em relações de gangue, uma vida de abandono, pressupõe um fluxo constante
entre zoé e bíos. Desta forma, uma vida de abandono não é uma vida de puro isolamento.
Paradoxalmente, a renúncia pressupõe a relação de exclusão que a contém, ou seja, a pessoa
com direito a renunciar está soberana e violentamente associada ao renunciado.

Essa "vida sem valor" está entrelaçada, sujeita à vontade do poder soberano, e até as
sociedades mais modernas designam quem são seus "homens sacros"77. Portanto, o corpo do
santo humano, portador da vida nua, tem valor importante e atual para a pesquisa em questão.

A política neoliberal produz instituições subsidiárias completamente subordinadas a


objetivos soberanos. Se o Estado de Exceção torna-se a regra, a norma constitutiva do
ordenamento jurídico contemporâneo, utilizando tecnologia precisa para atingir sua finalidade,
então é possível que todos se tornem santos78.

Agamben explana que:

A “vida indigna de ser vivida” não é, com toda evidência, um conceito ético, que
concerne às expectativas e legítimos desejos do indivíduo: é, sobretudo, um conceito

74
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2002, p. 92.
75
Op. cit.
76
Op. cit. p. 130.
77
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2002, p. 146.
78
Op. cit. p. 92
28
político, no qual está em questão a extrema metamorfose da vida matável e
insacrificável do homo sacer, sobre o qual se baseia o poder soberano.79

Assim, a imagem do Homo Sacer se move em uma zona de indiferença entre o humano
e o não humano, o participante e o vivente. Ele foi vítima de sua prisão e da violência contra
ele. Embora fosse uma pessoa viva, não era parte integrante da comunidade política. Esse
paradoxo da vida do portador da vida nua é de extrema importância para a compreensão do
lugar desse conceito nos contextos contemporâneos.

Em “O Que Resta de Auschwitz”, Agamben expõe um tema fundamental por meio de


relatos de sobreviventes do Holocausto, qual seja, a importância dos testemunhos como
documentos históricos, quando as referências básicas estão em um lugar de desrespeito quanto
a dignidade da pessoa humana. O relato do sobrevivente de Auschwitz, Primo Levi,
autoproclamado testemunha80, é a estrutura foco de análise por Agamben.

Na segunda parte do livro, a mais relevante para este estudo, aparecem os chamados
"muçulmanos" nos campos. Os prisioneiros não mais em condição humana, nada mais que os
mortos-vivos, são os únicos que podem testemunhar plenamente o terror, porque perderam a
capacidade de observar e interagir; a dignidade foi completamente perdida nesses cadáveres81.

Portanto, a contradição está na afirmação de que não pode haver testemunhas reais
porque os únicos que podem ser considerados testemunhas reais são eliminados - os próprios
"muçulmanos" e muitos outros - ou porque os poucos que sobreviveram as condições de
"muçulmanos" tem a situação como quase indescritível. Assim, é na imagem do "muçulmano"
que os seres humanos são observados e reduzidos à Vida Nua.

“O estágio do muçulmano era o terror dos internados, pois nenhum deles sabia quando
tocaria também a ele o destino de muçulmano, candidato certo para as câmaras de gás ou para
qualquer outro tipo de morte”82. Não se transformar em “muçulmano” ali era concomitante a
tentar conservar a sua vida.

Assim, aos olhos do filósofo italiano, Auschwitz foi apresentado como um lugar de
desumanidade, entrelaçado com a vida e a morte, muito profundo, permitindo uma reflexão

79
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2002, p. 148.
80
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). 1ª ed. São Paulo:
Editora Boitempo, 2008, p. 26.
81
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). 1ª ed. São Paulo:
Editora Boitempo, 2008, p. 67.
82
Op. cit. p. 59.
29
essencial sobre a ética contemporânea. Essa é a ideia do que é um Homo Sacer. Os prisioneiros
nos campos de concentração nazistas são os personagens que vêm à mente quando se pinta um
retrato de alguém que perdeu – ou melhor, foi tirada – toda a sua humanidade e segurança
básicas.

Sejam as manifestações de tortura de suspeitos de terrorismo, como observado em um


relatório do Senado dos EUA sobre o departamento secreto para torturar que a CIA utilizava
durante o governo Bush83, e a imagem dos refugiados, é inegável que a população de todo o
mundo está confinada ao processo de politização e despolitizando a vida. Excluem-se não só os
chamados terroristas, como aqueles também que têm um papel passivo nas operações
humanitárias (ruandês, bósnios, afegãos, sírio etc.).

Deve-se notar, no entanto, a existência de incontáveis exemplos disto nas democracias


contemporâneas: são pessoas que habitam nos campos de refugiados, em uma situação anormal
em outros países, moradores de rua nas capitais do Brasil. Da mesma forma, qualquer ato de
violência contra ladrões e terroristas é justificado.

Especialmente em países de capitalismo periférico, marcados pela fraqueza na


efetivação de direitos fundamentais e por uma profunda desigualdade social, como é
o caso do Brasil, o funcionamento segregacionista e o racismo (FOUCAULT, 2002,
p.304) tornam mais evidente a seletividade das intervenções destinadas ao
melhoramento da vida da população e, também, a cesura social que indiretamente
determina quem deve viver e quem pode morrer, de acordo com a biopolítica de
Michel Foucault.84

Aqueles que são expulsos da esfera social e política são os inimigos políticos da
comunidade, indivíduos que devem ser marginalizados para evitar instabilidade e mudança na
estrutura do Estado. Este agora declara exceções, mesmo dentro das democracias, em certos
lugares "perigosos", para controlar o "caos" social, que são essenciais para preservar o poder
soberano: com o argumento de manter as pessoas seguras e protegidas a todo custo, a tecnologia
do Estado suspende parcial ou totalmente o ordenamento jurídico de uma nação com base em
seus padrões, afirmando que o status excepcional passou a ser a regra, tal como garante
Agamben.

83
SETE métodos chocantes de tortura utilizados pela CIA. O Globo. Disponível em:
https://oglobo.globo.com/mundo/sete-metodos-chocantes-de-tortura-utilizados-pela-cia-14790893 Acesso
em: 28/04/2022.
84
DUARTE, Marcela Andrade; SIMIONI, Rafael Lazzarotto. A BIOPOLÍTICA EM MICHEL FOUCAULT E A
SELETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. REVISTA DA AGU, v. 18, n. 2, 28 jun. 2019. p. 283.
30
Existem muitos exemplos dessa teoria na vida cotidiana. A entrada violenta e a
persistência da gendarmaria na comunidade carioca, justificada para "pacificar"85; os
checkpoints (postos de controle) israelense nos territórios palestinos; imigrante tentando entrar
nos Estados Unidos sob o atual governo Trump, ocorrendo a separação de filhos e mães86; são
os vários muros que ainda existem e continuam a expandir87 que separam e aprisionam as
pessoas.

No Brasil, pode-se observar um declínio na saúde pública quando se observa o


investimento realizado no Sistema Único de Saúde (SUS). Em 2022 o Ministério reduziu cerca
de 22% do orçamento destinado ao sistema supracitado. Enquanto que entre 2019 e 2021 a
inflação acumulada foi de 20,63%, o Ministério da Saúde usufruirá de apenas R$ 22,6 bilhões
a mais do que em 2019.88

O caso da saúde pública no Brasil ilustra os efeitos perversos da dominação social e


do corte social anunciado por Foucault (1999; 2002). De um lado, temos aqueles que
podem pagar por um bom plano particular, que têm a saúde bem cuidada e, portanto,
podem viver, e por outro lado, temos aqueles que não podem pagar, que dependem do
SUS e que por quase não conhecerem medidas preventivas, são vulneráveis e têm a
saúde fragilizada, razão pelo qual, podem morrer.89

Tuberculose, hanseníase, helmintíases, malária, doença de Chagas, leishmaniose e


tracoma são poucos exemplos das doenças relacionadas a pobreza, associadas à falta de
saneamento básico de responsabilidade do Estado. Além de fazer com que a pobreza se agrave,
intensifica um ciclo vicioso. Essas doenças privam os brasileiros de poder, força física e tempo
de trabalho, criam deficiências físicas e de aprendizagem, ambos de impacto seríssimo e
prejudicam suas oportunidades de desenvolvimento humano. Todo este exposto acaba por ir de
encontro com às políticas públicas desenvolvidas e implementadas no Brasil para erradicar a
pobreza, políticas estas que acabam por prejudicar ao invés de resguardar.90

85
APÓS intervenção, número de tiroteios cresceu 36% no RJ. Exame. 17 jun. 2018. Disponível em:
https://exame.com/brasil/apos-intervencao-numero-de-tiroteios-cresceu-36-no-rj/ Acesso em: 28/04/2022.
86
GOVERNO Trump separa mães imigrantes ilegais de seus filhos na fronteira. Folha de São Paulo. 31 maio
2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/05/governo-trump-separa-maes-
imigrantes-ilegais-de-seus-filhos-na-fronteira.shtml Acesso em: 28/04/2022.
87
OS MUROS do mundo: 21 fronteiras históricas. El País Brasil. 25 abr 2017. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/02/27/album/1488207932_438823.html Acesso em: 28/04/2022.
88
O declínio dos investimentos para o SUS pela União. Disponível em: https://academiamedica.com.br/blog/o-
declinio-dos-investimentos-para-o-sus-pela-uniao Acesso em: 06/06/2022
89
DUARTE, Marcela Andrade; SIMIONI, Rafael Lazzarotto. A BIOPOLÍTICA EM MICHEL FOUCAULT E A
SELETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. REVISTA DA AGU, v. 18, n. 2, 28 jun. 2019. p. 285.
90
ARAÚJO-JORGE, Tania; MATRACA, Marcus; NETO, Antônio Moraes; TRAJANO, Valéria; D´ANDREA Paulo;
FONSECA, Ana. DOENÇAS NEGLIGENCIADAS, ERRADICAÇÃO DA POBREZA E O PLANO BRASIL SEM MISÉRIA.
Disponível em:
31
Tanto é assim que até hoje no Brasil existem as chamadas “doenças da pobreza”,
associadas à falta de saneamento básico, de informações, de políticas sanitárias, de
boa alimentação, de prevenções, etc. São doenças que atingem quase exclusivamente
uma camada específica da sociedade, a Ralé. Por se restringirem a esses grupos
considerados irrelevantes e invisíveis, são doenças esquecidas pelos demais,
inclusive, pelo próprio Poder Público que além de não investir em medicamentos para
estas doenças, acaba simplesmente “deixando morrer” aqueles que são por elas
tomados. (SOUZA, 2009, p. 309)91

Observam-se grandes desigualdades no mercado de trabalho entre grupos


populacionais, principalmente na ocupação, educação, forma e remuneração. Em todas as
quatro categorias, os brancos tiveram taxas mais altas quanto a índice de condição de vida do
que os pretos ou pardos, conforme pesquisa realizada pelo IBGE e acertadamente abordada no
trabalho DUARTE e SIMIONI.92

Agamben reflete que a Vida Nua ainda existe nos corpos de muitos, inclusive nas
chamadas sociedades democráticas.

https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/brasil_sem_miseria/livro_o_brasil_sem_miseria/artigo_28.p
df Acesso em: 06/06/2022
91
Op. Cit.
92
DUARTE, Marcela Andrade; SIMIONI, Rafael Lazzarotto. A BIOPOLÍTICA EM MICHEL FOUCAULT E A
SELETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. REVISTA DA AGU, v. 18, n. 2, 28 jun. 2019. p. 286.
32
3. PODER SOBERANO EM CONTRAPOSIÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

Anunciada pelas Nações Unidas em meados de 1948, A Declaração Universal dos


Direitos Humanos tem como objetivo exportar, em formas de código, direitos e garantias
fundamentais, uma constituição projetada para inspirar a maioria dos países a seguir o exemplo.
Ela então lançou as bases para uma disciplina jurídica inovadora: Direitos Humanos
Internacionais93.

No decorrer de 30 artigos, a Declaração enumera os direitos humanos, civis,


econômicos, sociais e culturais para alcançar o respeito pela dignidade humana. Com inspiração
na declaração de cunho francesa, Os Direitos Humanos e Civis de 1789 e a Declaração de
Independência América em 1776, o texto foi feito sob a influência de atrocidades cometidos
durante a Segunda Guerra Mundial.

No entanto, nem mesmo o estado redatores originais do manifesto acima estavam


dispostos a cumprir: sua redação não foi acordada, com 56 países presentes do ocidente, ou
seja, "ocidentalização" dos Estados. Percebe-se, desta forma, que a Declaração dos Direitos
Humanos não era, de fato, tão “universal” igual seu nome induz em sua origem.94

Resumidamente, o conceito de direitos humanos entrou no vocabulário político


moderno ao ser incorporado e estruturado em importantes documentos sobre o processo de
construção dos Estados-nações modernos. De fato, como requisitos normativos, os direitos
humanos compreendem-se dentro dos limites do discurso moral95.

O que os transforma em direitos de propriedade juridicamente efetivos é sua devida


inserção no ordenamento jurídico de cada país. Então é claro ser teoricamente possível que os
seres humanos façam valer tais direitos frente a um juízo, mesmo quando forem pleiteados ante
ao próprio Estado, por meio de seus agentes. Na verdade, este estudo se preocupa justamente
com esta questão: as chamadas democracias são violadoras dos direitos humanos.

93
ALVES, José Augusto. Os Direitos Humanos na pós-modernidade. 1ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2005,
p. 21.
94
ALVES, José Augusto. Os Direitos Humanos na pós-modernidade. 1ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2005,
p. 24.
95
CRUZ, Sebastião Velasco. Notas sobre o paradoxo dos direitos humanos e as relações hemisféricas. Lua Nova:
Revista de Cultura e Política, n. 86, p. 17-50, 2012, p. 24.
33
Ao modelar a relação entre o poder soberano em relação ao Homo Sacer, Agamben
argumenta que os direitos humanos são representantes da imagem primordial da Vida Nua
inscrita na ordem jurídico-política do Estado-nação. Ele citou a situação dos refugiados como
um excelente exemplo de sua análise:

Todas as vezes que os refugiados não representam mais casos individuais, porém um
fenômeno de massa, tanto essas organizações assim como cada um dos Estados,
malgrado as evocações solenes dos direitos alienáveis do homem, demonstram-se
absolutamente incapazes não só de resolver o problema, mas também, simplesmente,
de enfrentá-lo de modo adequado. Toda a questão foi, portanto, transferida, para as
mãos da polícia e das organizações humanitárias.96

Um filósofo italiano em diálogo com os conceitos de totalitarismo, racismo de Estado e


biopolítica de Hannah Arendt, apresentados por Foucault e supra discutidos no presente
trabalho, critica as ações de direitos humanos do Estado e afirma que essas pessoas não
transcendem o conceito de Vida Nua. Assim, a proteção dos direitos depende da relação cívica
entre o indivíduo e o Estado-nação. Dessa forma, aqueles que são privados de sua nacionalidade
e não pertencem a nenhum país são expulsos da humanidade97.

A cessão da verdadeira soberania de origem divina para a soberania do Estado, ou seja,


do estado do súdito ao estado do cidadão, é o momento em que a Vida Nua se torna o “portador
direto da soberania”98. Desta forma, a vida natural completa o núcleo político e passa a ser o
enfoque da soberania da modernidade. Segundo o filósofo, a Declaração de Direitos assegura
“a exceção da vida na nova ordem estatal após a derrubada do antigo regime”99.

Em sua renomada obra “O Aberto: O Homem e o Animal”, Agamben debate justamente


a diferença entre homem e animal e como essa lógica surge no raciocínio ocidental. Logo, disse
o filósofo que na grande declaração dos direitos humanos, o homem é sempre mais ou menos a
premissa fugaz de um cidadão100. Como já foi divulgado, Agamben argumenta em várias de
suas obras que o Estado estabelece critérios para distinguir categorias de cidadãos e não-
cidadãos.

A partir disso, ele fala diretamente sobre as implicações da biopolítica, pois mostra
como os Estados-nação podem criar divisões entre indivíduos humanos e “inumanos”. O

96
AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2015, p. 26-27.
97
CORRÊA, Murilo Duarte Costa. Biopolítica e direitos humanos: Giorgio Agamben e uma antropolítica
evanescente. Revista Profanações, v. 1, p. 22-37, 2014, p. 25.
98
AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2015, p. 29
99
CORRÊA, Murilo Duarte Costa. Biopolítica e direitos humanos: Giorgio Agamben e uma antropolítica
evanescente. Revista Profanações, v. 1, p. 22-37, 2014, p. 27.
100
Op. cit. p. 29.
34
humanismo, quando separado essencialmente da política, deve reproduzir o isolamento da vida
sacra sobre a qual repousa a soberania101. Diante disto, defende uma política em que o viver nu
não seja mais a exceção no sistema estatal, mesmo que pelos “direitos humanos”.

Valendo-se de uma análise da Hannah Arendt, Agamben concorda com o autor, que
aponta que os chamados direitos humanos inalienáveis se mostram inexigíveis "enquanto
aparecerem pessoas que não sejam cidadãs de algum Estado soberano"102. O autor não
menciona apenas os regimes antidemocráticos, mas os eventos totalitários demonstram a
hipocrisia e a covardia que as afirmações de direitos humanos inalienáveis revelam103.

Em última análise, argumenta Agamben, os direitos humanos implicarão


fundamentalmente uma antropologia fugaz e não estável em que a vida humana é abandonada
à morte por uma relação com o poder soberano. A epigrafe da vida biológica no poder estatal
se dá justamente por seu isolamento: o objeto final do maquinário antropológico é a vida
solitária e excluída de si mesma, externa ao reino dos animais ou dos humanos.

Conforme tal afirmativa, os direitos humanos são instrumentalizados para colocar


pessoas abstratas no foco da atividade política nas democracias modernas104. Para Agamben, o
fato de ser possível usar os direitos humanos estrategicamente, em combinação com outras
ferramentas, em programas de obediência individual será um dos desafios mais prementes do
nosso tempo. É impossível negar as conquistas das organizações dos movimentos sociais na
luta pela defesa destes direitos em relação as minorias.

No entanto, o raciocínio contemporâneo, no que concerne à política, precisa inquirir a


dualidade das faces distintas das cartas de direitos humanos redigidas por alguns países105.
Portanto, é preciso encarar as reivindicações do discurso que buscam humanitariedade como
forma de controlar determinados comportamentos individuais. Afinal, o Estado moderno pode
usar esse discurso como uma técnica para manter seu pode sobre o comportamento de sua
população para ampliar a supremacia sobre eles.

101
CORRÊA, Murilo Duarte Costa. Biopolítica e direitos humanos: Giorgio Agamben e uma antropolítica
evanescente. Revista Profanações, v. 1, p. 22-37, 2014, p. 29.
102
NASCIMENTO, Daniel. Biopolítica e direitos humanos: uma relação revisitada guiada pelo cortejo da ajuda
humanitária. Revista Filos nº 37, Curitiba, 2013, p. 135.
103
Op. cit. p. 136.
104
CORRÊA, Murilo Duarte Costa. Biopolítica e direitos humanos: Giorgio Agamben e uma antropolítica
evanescente. Revista Profanações, v. 1, p. 22-37, 2014, p. 36.
105
NASCIMENTO, Daniel Arruda. Biopolítica e direitos humanos: uma relação revisitada guiada pelo cortejo da
ajuda humanitária. Revista de Filosofia Aurora, v. 25, n. 37, p. 131-150, 2013, p. 136.
35
Quando entendemos estes direitos, os humanos, apenas como palavras e não um padrão,
é possível que eles possam ser usados como uma máquina tanto para defender direitos, respeitar
a dignidade humana, diferenciação, princípios igualdade, mas também pode ser usado contra
indivíduos de mesmo valor. A favor da defesa dos direitos humanos, as pessoas invadem e não
respeitam a autodeterminação de um país.

Quanto a isto, segue o exemplo de o Iraque ter sido invadido pelo governo norte
americano, Estados Unidos da América, em 2004, sendo o ponta pé inicial para um conflito de
grande escala, justificado por argumentos principais, tais como:

1.Saddam Hussein era um ditador que oprimia seu povo; 2. possuía armas de
destruição em massa; 3. apoiava a Al-quaeda. Assim, o objetivo declarado do governo
de Georg W. Bush para desencadear a guerra foi bastante convincente: “levar a
democracia, a liberdade e a paz para o povo iraquiano, livrando-o do seu ditador”.106

É claro que os governantes dos EUA não se importam com os povos iraquianos, pois
conforme aponta a BBC, estima-se que aproximadamente 600.000 seres humanos tenham sido
mortos no conflito por causa de seus “humanitarismos”107. Impressionantes são os lucros das
empresas armamentista da américa do norte, as grandes financiadoras do presidente Bush na
época.

O Iraque ainda está passando por uma guerra civil. De fato, as principais razões para a
invasão foram interesses comerciais: o domínio do mercado mundial de petróleo e o movimento
da indústria de armas alimentada por cada guerra.

As violações de direitos humanos também ocorrem na vida cotidiana, nas ações mais
simples, e podem ser invisíveis para a maioria das pessoas. Como exemplo, tem-se no território
brasileiro as forças armadas que são cada vez mais solicitadas a desempenhar funções do poder
de polícia para manter a ordem pública e a segurança nacional.

A política de segurança pública baseia-se, em grande parte, na intervenção policial


militarizada para coibir o tráfico de entorpecentes, que essas autoridades consideram como
problema brasileiro de enorme gravidade na contemporaneidade. Não obstante, esta
“pacificação”, principalmente na comunidade carioca, não é efetiva para o que se propõe
teoricamente.

106
MORAES, Wallace. Perguntas sem respostas: a guerra no Iraque e a possível guerra na Venezuela.
Diplomatique Brasil. 25 fev. 2019. Disponível em: https://diplomatique.org.br/perguntas-impensaveis/ Acesso
em: 28/04/2022.
107
Op. cit.
36
Como forma de exemplificar, em 2015, a polícia militar disparou mais de 100 tiros
contra um carro estacionado por cinco jovens na periferia do Rio de Janeiro108. Em abril de
2019, o Exército efetuou ao menos 80 tiros109 contra outro veículo. Comportamento totalmente
desproporcional e irracional. A grande consideração disto é que as vítimas são todas pretas.
Então, o que esses corpos significam? No significativo necropolítico, vidas passíveis de serem
matáveis110.

Pode-se trazer ao cerne destas atrocidades as condições inumanas dos encarcerados


brasileiros, que acumulam em suas histórias um cânone de atrocidades:

O massacre do Carandiru (1992) e a chacina ocorrida no Complexo Penitenciário de


Pedrinhas (2013), além de terem deixado um saldo de 111 e 17 detentos mortos,
respectivamente, permitiram também que o Estado brasileiro ficasse reconhecido
internacionalmente como grande violador dos direitos humanos dos apenados. (CIDH,
2013)111

Indubitavelmente os fatos supranarrados são de relevante importância para entender-se


que a realidade brasileira tende a ser cruel com as massas indignas da sociedade. Apesar de que
nenhuma dessas barbáries foi oculta, muito pelo contrário, não foram tomadas ações de modo
a punir e suprimir que se repitam.

Embora a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) já tenha se


manifestado algumas vezes e solicitado ao governo brasileiro a adoção de “medidas
necessárias para salvaguardar a vida e a integridade pessoal” dos detentos, a situação
de insegurança dos presídios brasileiros não apresentou melhoras significativas.
(CIDH, 2013) Pelo contrário, de modo geral, o sistema prisional se encontra em um
verdadeiro colapso, em condições absurdamente precárias e indignas.112

O conceito de Mbembe explica corretamente a situação atual do Brasil: as atrocidades


cotidianas atingem cada grupo populacional de maneiras diferentes, indicando claramente quais
vidas estão menos expostas à violência, ou mais. Para os moradores de favelas e arredores, a
intervenção militar é outra ferramenta para aprofundar a violência cotidiana. O mesmo vale
para a população que se encontra encarcerada: a força dada a polícia é diretamente proporcional

108
POLICIAIS deram mais de 100 tiros em carros de jovens mortos no Rio. G1. 02 dez. 2015. Disponível em:
https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/12/mais-de-100-tiros-foram-disparados-por-pms-envolvidos-
em-mortes-no-rio.html Acesso em: 28/04/2022.
109
EXÉRCITO dispara 80 tiros em carro de família no Rio e mata músico. Folha de São Paulo. 8 abr. 2019.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/04/militares-do-exercito-matam-musico-em-
abordagem-na-zona-oeste-do-rio.shtml Acesso em: 28/04/2022.
110
IPEA: taxa de homicídios de negros no país é mais do que o dobro da de brancos. O Estado de Minas. 05 jun.
2018. Disponível em:
https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2018/06/05/interna_nacional,964542/ipea-taxa-de-homicidios-
de-negros-no-pais-e-mais-do-que-o-dobro-da-de.shtml Acesso em: 28/04/2022.
111
DUARTE, Marcela Andrade; SIMIONI, Rafael Lazzarotto. A BIOPOLÍTICA EM MICHEL FOUCAULT E A
SELETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. REVISTA DA AGU, v. 18, n. 2, 28 jun. 2019. p. 288.
112
Op. Cit.
37
a perda da democracia, esta que deveria ser o foco para encontrar-se soluções aos problemas
observados.

Essas são as mecânicas de poder, por meio das quais executa a política de segurança
pública do Brasil, localizando sua geografia inimiga, a periferia. Conforme Foucault defende e
Mbembe aprofunda, há uma criação subjetiva de um inimigo interno a enfrentar. Então, jovens
negros ou pardos são definitivamente grandes alvos. Em sua eficácia e manifestação, este
produto contém as principais técnicas da lógica autoritária do governo para manter a
governança e o controle populacional.

Nesse caso, a criação deste modelo de controlador social tende a permitir o uso
exacerbado da força para a segurança pública, legado de ditaduras devastadoras. Além disso,
incentiva ações truculentas e excessivas dos agentes do Estado. Isso produz: Bons Cidadãos -
Trabalhadores Pacíficos (ou Proprietários); Oponentes: Sem-teto, Loucos, Viciados em Drogas,
Vândalos, Criminosos, Sem-teto, Indivíduos Fora da Permissão da Ordem.113 A criação de um
inimigo se firma em grande parte à continuação e aumento do racismo e do machismo que
fundamentam o regime capitalista.

No cenário instituído pela internacionalização dos mercados e pela privatização do


mundo sob regimes neoliberais, Achille Mbembe aponta que a população sem proteção social
está se proliferando em uma combinação de economia financeira, equipamentos militares e
tecnologia digital.114

Indivíduos submetidos à violência, esta vinda dos agentes estatais, que agem em nome
do Estado, ou não, são um dos projetos do Estado capitalista para selecionar pessoas más,
facilmente abandonadas e marginalizadas pelo mesmo sistema. Então isso é uma generalização
da condição negra, o enegrecimento do mundo, combinado com práticas coloniais que usam a
lógica da escravização e saque e a lógica da ocupação e extração115. Os controles, internos e
externos, regidos pelo pensamento de guerrear contra um inimigo, são solidificados.

113
TELES, Edson. Estratégias da violência se fundam no genocídio de negros pobres e mulheres. Diplomatique
Brasil. 18 set. 2017. Disponível em: https://diplomatique.org.br/estrategias-da-violencia-se-fundam-no-
genocidio-de-negros-pobres-e-mulheres/ Acesso em: 28/04/2022.
114
TELLES, Vera. A violência como forma de governo. Diplomatique Brasil. 31 jan. 2019. Disponível em:
https://diplomatique.org.br/a-violencia-como-forma-de-governo .Acesso em: 28/04/2022.
115
Op. cit.
38
Basicamente, as estruturas coloniais de apaziguamento, militarização, controle e
retenção estão espalhadas pelas geografias criadas pelos estados capitalistas mundiais. Vera
Telles complementa:

(...) tendem a se difundir por todos os lados, nas trilhas do hoje expansivo e altamente
lucrativo mercado da segurança, também ele globalizado, por onde circulam, junto
com equipamentos, dispositivos de vigilância e armamentos, os escritórios de
assessoria, agências de treinamento, manuais e seus protocolos e recomendações para
lidar com a “guerra urbana” e ensinar as forças da ordem a fazer uso das técnicas da
chamada “gestão de multidão”, testadas nos Territórios Ocupados Palestinos. 116

Conforme a Revisão da Situação dos Direitos Humanos no Mundo 2017/2018 da Anistia


Internacional,117 as autoridades da Israel tornaram mais intensas a expansão e os assentamentos
da infraestrutura na Cisjordânia, incluindo Jerusalém. Além disso, eles causaram grandes danos
a propriedades palestinas e despejaram à força aproximadamente seiscentas pessoas.

Da mesma forma, o bloqueio aéreo, terrestre e marítimo de Israel na Faixa de Gaza


reproduz restrições de longa data à circulação de pessoas e mercadorias, reprimindo a população
de toda a região coletivamente. As restrições deste governo provocaram uma crise humanitária,
limitando o acesso a redes elétricas, água potável, saneamento básico e até mesmo a assistência
médica.

Vale a pena mencionar os locais para controlar do governo de Israel. Os serviços de


segurança de Israel mantêm os arquivos dos palestinos e negam aos palestinos trabalho, viagens
e licenças médicas diariamente por razões de "segurança"118. O ponderar da Anistia
Internacional acrescentou que, em relação às prisões israelenses de palestinos:

As autoridades continuaram a substituir a detenção administrativa por processos


penais, detendo centenas de palestinos, inclusive crianças, líderes da sociedade civil
e trabalhadores de ONGs, sem acusação nem julgamento, com base em ordens
renováveis e sonegando informações aos detidos e seus advogados. Mais de 6.100
palestinos, homens e mulheres, entre os quais 441 detidos administrativamente,
estavam encarcerados em prisões israelenses no final do ano. 119

116
TELLES, Vera. A violência como forma de governo. Diplomatique Brasil. 31 jan. 2019. Disponível em:
https://diplomatique.org.br/a-violencia-como-forma-de-governo .Acesso em: 28/04/2022.
117
ANISTIA INTERNACIONAL. Anistia internacional – informe 2017/2018: O estado dos direitos humanos no
mundo. Disponível em: https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2018/02/informe2017-18-online1.pdf
Acesso em: 26 abr. 2019.
118
BOOTH, William; TAHA, Sufian. A Palestinian’s daily commute throught na Israeli checkpoint. The
Washington Post. 25 maio 2017. Disponível em:
https://www.washingtonpost.com/graphics/world/occupied/checkpoint/ Acesso em: 28/04/2022.
119
ANISTIA INTERNACIONAL. Anistia internacional – informe 2017/2018: O estado dos direitos humanos no
mundo. Disponível em: https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2018/02/informe2017-18-online1.pdf
Acesso em: 28/04/2022. p. 172.
39
Quanto a realidade da grande massa carcerárias brasileira, conforme o Relatório
supracitado:

(...) continuou superlotado e os presos eram mantidos em condições degradantes e


desumanas. A população carcerária era de 727.000 pessoas, das quais 55% tinham
entre 18 e 29 anos e 64% eram afrodescendentes, segundo o Ministério da Justiça.
Uma parcela significativa dos internos – 40% no âmbito nacional – estava detida
provisoriamente, situação em que costumam permanecer por vários meses até serem
julgados.120

A deterioração do sistema prisional do Brasil encontra-se diretamente relacionada à


consolidação das forças de paz no entorno. São formas diferentes, mas complementares, de
encarceramento e gestão do corpo. No sistema prisional surgiu o que Foucault chamou de
biopoder, uma força de 'vida' e 'morte'.

Este poder escolhe e impõe uma política de morte, conforme propuseram Agamben e
Mbembe, cuja meta é controlar sistematicamente a instituição "descartável" e "incorrigível" da
morte.

Por meio desses relatos sucintos, pode-se entender que o poder de sobreviver de
determinadas massas e indivíduos está relacionada à resistência a este campo de batalha,
podendo ser entendido como uma guerra não declarada121 do domínio soberano de uma nação.
Sejam negros moradores da periferia do Rio de Janeiro ou jovens palestinos indo ao trabalho,
estão vivendo histórias cotidianas que atestam a suposta falta de consideração, quanto aos seus
direitos humanos, advindo de seus sistemas democráticos.

Além de ser inerentemente característica de operações policiais excessivamente letais,


a Necropolítica também é discreta na prática cotidiana, levando à conclusão de que está
enraizada em procedimentos e técnicas de aplicação da lei que regem o comportamento de vida
ou morte de indivíduos específicos. Uma Necropolítica é traspassada por caminhos de
subterfúgio e superação que indicam importantes formas de resistência, tornando o corpo
agredido um símbolo de confronto e luta no âmbito político. Nestes momentos de turbulentos
e preocupantes conflitos interno e externo que surgem, os conceitos de ação política, resistência
e luta são fundamentais.

120
ANISTIA INTERNACIONAL. Anistia internacional – informe 2017/2018: O estado dos direitos humanos no
mundo. Disponível em: https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2018/02/informe2017-18-online1.pdf
Acesso em: 28/04/2022. p. 90.
121
TADDEO, Carlos Eduardo. A guerra não declarada na visão de um favelado. São Paulo [s.n.], 2012.
40
CONCLUSÃO

Nos complexos cenários em que se vive, a materialidade de ser diagnosticado como


biopolítica e necropolítica combinam-se com graves consequências políticas com base na
justificativa da segurança populacional. Quando o outro é identificado como uma ameaça,
afronta à vida de outras pessoas, concretiza-se uma resposta defensiva em que eliminar o outro
parece necessária e urgente.

Partindo de reflexões mbembeanas, através de divisões entre grupos e raças, uma


abordagem diferenciada é potencializada, permitindo decidir quem morre e vive. Assim, define-
se quais vidas devem ter proteção e quais não; quais corpos que fazem parte do espectro social
e quais corpos podem ser eliminados.

Assim, a política neoliberal opta por instituições fáceis de obedecer. Ele é excluído do
âmbito social e político e se torna o inimigo em comum da sociedade, um ser que toma sobre
si, independente de suas ações ou vontades, a marginalização, sendo assim submetido ao
controle para que não haja qualquer tumulto possível, tampouco alterações quanto a
configuração do Estado. Para controlar a "agitação", os estados declaram exceções - mesmo nas
chamadas democracias - essenciais para manter o poder soberano em certos espaços
"perigosos".

De fato, Mbembe percebeu que o conceito puramente biopolítico de Foucault não era
totalmente suficiente para entender-se as formas em que a vida contemporânea sucumbiu à
força da morte e, portanto, propôs uma análise baseada nos processos de colonização, tal como
os de neocolonização. O conceito do termo Necropolítica nos permite investigar a violência
típica dessas pessoas marginalizadas, que lidam com a cassação de suas prerrogativas pessoais
e políticas, refletindo essa política de exploração.

É através da comunicação entre Giorgio Agamben e Achille Mbembe que se pode


entender a maneira em que o governo administra a vida e destrói alguns - Vida Nua - como não
atacar a organização social. Isto tende a ser visto na ocupação por parte dos militares em
comunidades no Rio de Janeiro, sob o argumento de que ao aniquilar com a guerra às drogas,
por exemplo, negros e pobres são vítimas de desconsideração aos direitos humanos, tal como
acontece na política de ocupação e dominação da Palestina do governo de Israel.

41
A política da morte é racializada, é ser negro, conforme defendido pela visão teórica
mbembeana, que inclui não só os negros, como os desempregados, os imigrantes, os indígenas,
as mulheres e os sem-teto. Esta é a generalização dos indivíduos vulneráveis no mundo. Assim,
a união entre sistemas coloniais, racistas e capitalistas é a conspiração perfeita para fortalecer a
“reificação”, subordinação e eliminação de certas entidades.

Paradoxalmente, algumas democracias que exercem esta violência institucional


concordaram e assinaram várias declarações internacionais sobre direitos humanos. É crucial
entender como a fala humanitária pode ser usada como ferramenta para controlar o
comportamento da população para abranger a hegemonia do Estado.

Os direitos humanos não são necessariamente considerados e respeitados em casa ou no


exterior, então o respeito pelos direitos humanos irá variar dependendo do que se esperar das
metas do regime. Doutra forma, o conceito de assistência humanitária pode ser utilizado tanto
como ferramenta para defender os direitos como também ferramenta contra indivíduos.

No atual cenário de violência, observamos o discurso de segurança para a cidade, como


centro urbano, criando medo e imediatismo para com a violência, o que repercute de maneiras
preocupantes: redução da maioridade penal quanto a delinquência juvenil; proteção de civis
concedendo à posse de armas de fogo; encarceramento da grande população negra; excesso de
punitivismo; uso de forças armadas nos subúrbios das grandes cidades.

De modo efetivo, a expressão da tecnologia de controle social que legitima a política de


excessivo uso da força e incentivo à violência na segurança pública, alguns agentes do Estado
destacaram a retórica beligerante do público, ou seja, segundo a lógica do combate a um inimigo
interno ou externo, promove sociedade em que indivíduos são aqueles que não possuem essa
identidade - os portadores da Vida Nua.

Portanto, este trabalho não pretende ser exaustivo nos tópicos apresentados ou responder
a todas as questões que dele surgem. Pretende-se ilustrar discussões para reconhecer o modus
operandi do Estado, demonstrar sua clara necessidade e impacto na dominação, incitar
discussões e levantar questionamentos quanto ao assunto.

O julgamento de Achille Mbembe coadunando para com o de Giorgio Agamben ajuda


a explicar e contextualizar a estrutura Necropolítica do Estado brasileiro e mundial. As
atrocidades cotidianas atingem desigualmente todos os grupos demográficos, revelando quais
vidas são mais violentas, ou menos, e quais são dignas de solidariedade. Como tal, mostra a

42
fragilidade e a falta de eficiência dos mecanismos democráticos quanto as instituições e a forma
como o Estado age em suas atuações de maneira a preservar a todo o custo a sua supremacia.

43
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