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O BRASIL DE 1930 A

1945 – A PROSA

Prof.ª Karla Karoene


CONTEXTO HISTÓRICO
• Após a crise de 1929 em Nova York, (depressão
econômica) muitos países estavam mergulhados
numa crise econômica, social e política;
• No Brasil, a Republica do café com leite ou
República Velha estava em crise ;
• Revolução de 30 (Getúlio Vargas);
• Revolução Constitucional em 9 de julho;
• Na Europa, o movimento Nazifascista levou à
segunda Guerra (1939 – 1945)
A Prosa ou Romance de 1930
• Faz parte da segunda fase modernista do Brasil;
• Também é conhecida como fase de Amadurecimento
(aprofundamento da conquista da geração de 1922);
• Primeiro Romance Publicado: A Bagaceira (1928) , de
José Américo de Almeida.
Características da Prosa de 30
• Literatura engajada;
• Denúncia social (efeitos da crise econômica mundial e os
choques ideológicos);
• Miséria/ problemática social( seca e retirantes);
• Busca da Verossimilhança (verdadeiro documento da
realidade brasileira);
• Questões ideológicas;
• Tipificação social (marginais: sertanejos, cangaceiros e
retirantes)
• O Regionalismo (região Nordeste “romance do Nordeste”.)
• as obras modernistas se tornaram
• verdadeiros romances-denúncia, em que a dimensão social
assumia o primeiro plano das narrativas.
A principal característica da prosa modernista de
1930 foi o regionalismo, com o relevante destaque
para o “romance do Nordeste”: migrantes,
trabalhadores de eito, beatos, coronéis, senhores de
engenho, cangaceiros, e tantos outros tipos
humanos característicos da região.

“O regionalismo é o pé de fogo da literatura... Mas, a dor


universal, porque é uma expressão de humanidade”.
José Américo de Almeida, abertura do romance A bagaceira
Principais temas
• Regionalismo (cultura, politica, economia e social);
• As regiões de cana, a decadência banguês e engenhos,
devorados pelas usinas;
• Secas acirrando as desigualdades social e gerando
mão de obra barata;
• Movimento migratório;
• Fome e miséria;

Pág. 59. cap. O Brasil de 1930 a 1945 – a Prosa


Principais autores
• José Américo;
• Rachel de Queiroz;
• Jorge Amado;
• José Lins do Rego;
• Graciliano Ramos;
• Érico Veríssimo.
Publicado quando Rachel de Queiroz tinha apenas 20 anos, o romance O quinze
mostra as desventuras da população nordestina com a grande seca que atingiu a
região em 1915.
O enredo se estrutura em duas ações que se interconectam: o drama da família
de Chico Bento, obrigada a errar pelo Sertão em busca de uma vida melhor,
sofrendo todo tipo de adversidades, e a história da professora Conceição, que
vive uma hesitante e fracassada história de amor com o vaqueiro Vicente.
OBRAS
José Lins do Rego
O cenário mais explorado pelo autor não é o da seca;
José Lins retrata a região da zona da mata paraibana,
numa prosa que explora o pitoresco das paisagens em
linguagem simples e espontânea, típica de um inspirado
contador de histórias. O mundo das narrativas de José
Lins é povoado pelos costumes simples do povo, suas
histórias e suas tradições. Mas parte importante de sua
obra é marcada pela melancolia diante da decadência do
universo rural, que tinha nos antigos engenhos a sua
força motriz. Com a chegada das usinas e da produção
industrial do açúcar, os costumes provincianos da região
foram duramente atingidos, incluindo a estrutura de
poder que remontava ao mandonismo dos velhos
senhores de engenho
dos tempos coloniais.

Obras:
O livro Menino de engenho, publicado em 1932, inaugura um ciclo de romances que o
próprio José Lins do Rego batizaria de “ciclo da cana-de-açúcar” e que seria composto
ainda dos livros Doidinho (1933), Banguê (1934), O moleque Ricardo (1935), Usina (1936)
e Fogo morto (1943).
Jorge Amado
• Suas narrativas têm a leveza de explorar dramas humanos marcados pela
opressão social ao mesmo tempo em que desvelam um cenário baiano colorido
e exótico, cheio de mistérios e de lendas, que ainda hoje encantam e despertam
a curiosidade de milhões de leitores.
• Seus primeiros romances apresentam um direcionamento ideológico bastante
claro, vinculando-se ao comunismo como forma de denunciar as desigualdades
sociais de seu estado natal.
• Jorge Amado mostrou a violência e o coronelismo, a força da economia
cacaueira e a vida sofrida dos pobres de Salvador.
• apresentar sempre de maneira muito digna os negros e o rico universo de sua
cultura.
• A partir da publicação de Gabriela, cravo e canela, em 1958, o
• aspecto ideológico de sua obra perde força, ganhando nova dimensão: o retrato
dos costumes da Bahia, numa prosa vibrante e poética, que não se acanha em
explorar a sensualidade de personagens femininas marcantes. A tensão entre o
indivíduo e seu entorno (fosse a sociedade ou a natureza) foi atenuada nesta
fase de sua obra, em nome do exotismo e do retrato pitoresco da realidade
baiana.
•O País do Carnaval, romance (1958) •O menino grapiúna,
(1931) •A morte e a morte de Quincas memórias (1981)
•Cacau, romance (1933) Berro d'Água, romance (1959) •A bola e o goleiro, literatura
•Suor, romance (1934) •Os velhos marinheiros ou o
•Jubiabá, romance (1935) capitão de longo curso, romance
infantil (1984)
•Mar morto, romance (1936) (1961) •Tocaia grande, romance
•Capitães da areia, romance (1937) •Os pastores da noite, romance (1984)
•A estrada do mar, poesia (1938) (1964) •O sumiço da santa,
•ABC de Castro Alves, biografia •O Compadre de Ogum, romance romance (1988)
(1941) (1964) •Navegação de cabotagem,
•O cavaleiro da esperança, •Dona Flor e Seus Dois Maridos, memórias (1992)
biografia (1942) romance (1966)
•Terras do Sem-Fim, romance •Tenda dos milagres, romance
•A descoberta da América
(1943) (1969) pelos turcos, romance
•São Jorge dos Ilhéus, romance •Teresa Batista cansada de guerra, (1994)
(1944) romance (1972) •O milagre dos pássaros,
•Bahia de Todos os Santos, guia •andorinha Sinhá, historieta fábula (1997)
(1944) infantojuvenil (1976) •Hora da Guerra, crônicas
•Seara vermelha, romance (1946) •Tieta do Agreste, romance (1977) (2008)
•O amor do soldado, teatro (1947) •Farda, fardão, camisola de dormir,
•O mundo da paz, viagens (1951) romance (1979)
•Os subterrâneos da liberdade, •Do recente milagre dos pássaros,
romance (1954) contos (1979)
•Gabriela, cravo e canela, romance
Graciliano Ramos

Graciliano é considerado o mais importante ficcionista do


Modernismo, fez parte do grupo de escritores que
inaugurou o realismo crítico, representando os problemas
brasileiros em geral ou específicos de determinada região.
Características
• a literatura que traz para a reflexão problemas sociais
marcantes do momento em que os romances foram
escritos.
• Literatura destinada a provocar a conscientização, o
romance regionalista tem como lema criticar para
denunciar uma questão social.
• A preocupação com a linguagem é o traço peculiar do
escritor. O interesse de sua narrativa está centrado na
problemática do homem
• O interesse está diretamente voltado para o
comportamento, atitudes e conduta humana, e a descrição
da paisagem nasce da própria caracterização psicológica
dos personagens:
Vidas Secas (1938) é considerada a obra-prima de
Graciliano Ramos. Narra a história de uma família de
retirantes nordestinos, que atingida pela seca é obrigada a
perambular pelo sertão, em busca de melhores condições
de vida. A obra pretende mostrar a tirania da terra cruel,
atuando sobre o homem.
Graciliano Ramos escreve também obras autobiográficas,
onde reúne acontecimentos e cenas selecionadas pela
memória, revestidas de extrema subjetividade. Nessa linha
destacam-se Infância (1945) e Memórias do Cárcere
(1953), onde o autor retrata as experiências dolorosas de
sua vida durante os nove meses em que esteve preso.
Graciliano Ramos faleceu no Rio de Janeiro, no dia 20 de
março de 1953.
Obras

• Caetés (1933)
• São Bernardo (1934)
• Angústia (1936)
• Vidas Secas (1938)
• A Terra dos Meninos Pelados (1942)
• História de Alexandre (1944)
• Dois Dedos (1945)
• Infância (1945)
• Histórias Incompletas (1946)
• Insônia (1947)
• Memórias do Cárcere (1953)
• Viagem (1954)
• Linhas Tortas (1962)
• Viventes das Alagoas, costumes do Nordeste (1962)
Erico Verissimo
O escritor brasileiro Erico Verissimo nasceu em 1905 e faleceu em 1975.
Além de romancista, também foi diretor da Revista do Globo.
Fez parte de geração de 30 do modernismo brasileiro.
O regionalismo e a crítica sociopolítica são as principais características de seus
livros.
Sua obra mais famosa é a trilogia O tempo e o vento.
Características da obra de Erico Verissimo

regionalismo;
realismo social;
crítica política;
narrativa dinâmica;
traços deterministas;
linguagem coloquial;
narrador parcial.
O retrato, o personagem principal é o doutor Rodrigo
Em O continente, o narrador mostra a gênese
Cambará (que recebeu o nome de seu heroico
do estado do Rio Grande do Sul com a
antepassado). É início do século XX, e a narrativa está
formação da família Terra-Cambará. Assim, o
centrada nas transformações pelas quais o protagonista
índio mestiço Pedro Missioneiro se apaixona
passa. Além disso, como no romance anterior,
pela jovem Ana Terra, uma das personagens
as questões sociopolíticas têm lugar de destaque na
femininas mais fortes da literatura brasileira.
história.
Desse relacionamento, nasce Pedro Terra.

O arquipélago: Rodrigo Cambará e sua família estão totalmente imersos na política


nacional. Entre outros elementos históricos presentes na obra, merecem destaque a
ascensão de Getúlio Vargas à presidência e o Estado Novo. Nessa última parte, é
relevante também a participação do escritor da família, Floriano Terra Cambará.
Principais obras de Erico Verissimo
•Clarissa (1933);
•Caminhos cruzados (1935);
•A vida de Joana d’Arc (1935);
•Música ao longe (1936);
•Um lugar ao sol (1936);
•As aventuras do avião vermelho (1936);
•Olhai os lírios do campo
Eu não(1938);
dei por esta mudança,
•Saga (1940); Tão simples, tão certa, tão fácil:
•Gato preto em campo— Emde neve (1941); ficou perdida
que espelho
•O resto é silêncio (1943);
a minha face?
•A volta do gato preto (1946);
•O tempo e o vento (1949-1962);
•México (1957);
•O senhor embaixador (1965);
•O prisioneiro (1967);
•Israel em abril (1969);
•Incidente em Antares (1971);
•Solo de clarineta (1973-1976).
A poesia de 30
Características
• O verso livre e o afastamento da mimese tradicional.
• A discussão do papel do indivíduo diante da crise, a oscilação
e a dúvida entre atitudes de engajamento ou passividade são
alguns dos dilemas tratados pela poesia da época;
• Diante de problemas sociais tão profundos, muitos poetas
buscaram abrigo na vertente espiritualista, discutindo o papel
do sagrado na relação do “eu” com o mundo;
• Os poetas adquiriram liberdade para se expressar de acordo
com o que a inspiração de cada um exigia. Assim, muitos
puderam renovar o interesse por formas de expressão
tradicionais, como o verso metrificado ou o soneto, ao mesmo
tempo que ainda praticavam o verso livre.
• Elaboração linguística mais sofisticada.
Principais poetas
• Cecília Meireles;
• Vinicius de Moraes;
• Jorge de Lima;
• Murilo Mendes;
• Carlos Drummond de Andrade.
Cecília Meireles
• Cecília Meireles é uma das poetas líricas mais
relevantes da poesia brasileira.
• Seu estilo é marcado por uma forte musicalidade,
com rica exploração de versos curtos
(notadamente as redondilhas), que lembra a
tradição poética lusitana.

Sua obra tem a singularidade de explorar a precariedade da existência humana


– com a dura consciência da transitoriedade de todas as coisas – por meio de
imagens delicadas, distantes da realidade imediata, repletas de sonho e de
expressões da natureza, como o vento, a sombra, as areias e o mar, símbolos
da vida que passa eternamente.
A poeta também explorou o gênero épico, de maneira muito pessoal.
(Romanceiro da Inconfidência, de 1953.)
Motivo
Eu canto porque o instante existe Retrato
e a minha vida está completa. Eu não tinha este rosto de hoje,
Não sou alegre nem sou triste: Assim calmo, assim triste, assim magro,
sou poeta. Nem estes olhos tão vazios,
Irmão das coisas fugidias,
Nem o lábio amargo.
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias Eu não tinha estas mãos sem força,
no vento. Tão paradas e frias e mortas;
Se desmorono ou se edifico, Eu não tinha este coração
se permaneço ou me desfaço, Que nem se mostra.
— não sei, não sei. Não sei se fico
Eu não dei por esta mudança,
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo. Tão simples, tão certa, tão fácil:
Tem sangue eterno a asa ritmada. — Em que espelho ficou perdida
E um dia sei que estarei mudo: a minha face?
— mais nada.
Vinicius de Moraes
• Primeira fase, temos o poeta espiritualista,
católico, em busca de uma dimensão
transcendental da vida e dilacerado pela noção de
pecado. É o momento em que Vinicius explora
principalmente o verso livre, caudaloso, em
poemas longos, de dicção séria e solene. Contudo,
sua evolução poética o encaminhou para a
superação do idealismo dos primeiros anos.
• Segunda fase de sua obra poética demonstra uma
aproximação maior com o mundo material,
cotidiano, e a consequente abordagem sensual do
amor. Vinicius de Moraes deu novo alento ao
soneto. Além da importância de seu lirismo
amoroso, Vinicius contemplou com profundidade
temas como a morte, a natureza e a denúncia da
opressão social.
Além de sua variada obra poética, não se pode deixar de citar a importância de Vinicius de
Moraes para a música popular brasileira. Ao lado dos músicos Tom Jobim e João Gilberto, ele
protagonizou o movimento da Bossa Nova, estilo de alcance e reconhecimento internacional.
Soneto de separação
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento


Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente


Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante


Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
Jorge de Lima
▪ A obra do alagoano Jorge de Lima
cristaliza rumos importantes tomados
pela poesia brasileira no decorrer do
século XX. O poeta iniciou sua
carreira em 1914, seguindo
estritamente o modelo parnasiano de
Olavo Bilac, com rigor métrico e
sonetos encerrados com “chaves de
ouro”. Na sequência, aderiu ao
Modernismo, aprofundando-se em
temas e imagens memorialistas
relacionadas às raízes populares da
cultura nordestina.
▪ Um traço interessante do Modernismo de Jorge de Lima é a exploração da
temática negra, em que resgata e valoriza a participação do negro na cultura e
na sociedade brasileiras. Ele é também um dos grandes expoentes nacionais da
poesia mística, valendo-se de suas convicções católicas para criar textos
esotéricos que, não raro, aproximam-se de imagens surreais e herméticas.
História
Era princesa.
Um libata a adquiriu por um caco de
espelho.
Veio encangada para o litoral, Capitão do campo a levou.
arrastada pelos comboieiros. Pegou-se com os orixás:
Peça muito boa: não faltava um dente fez bobó de inhame
e era mais bonita que qualquer inglesa. para Sinhô comer,
No tombadilho o capitão deflorou-a. fez aluá para ele beber,
Em nagô elevou a voz para Oxalá. fez mandinga para o Sinhô a amar.
Pôs-se a coçar-se porque ele não ouviu. A Sinhá mandou arrebentar-lhe os dentes:
Navio guerreiro? não, navio tumbeiro. Fute, Cafute, Pé-de-pato, Não-sei-que-diga
Depois foi ferrada com uma âncora nas avança na branca e me vinga.
ancas, Exu escangalha ela, amofina ela,
depois foi possuída pelos marinheiros, amuxila ela que eu não tenho defesa de
depois passou pela alfândega, homem,
depois saiu do Valongo, sou só uma mulher perdida neste mundão
entrou no amor do feitor, Neste mundão.
apaixonou o Sinhô, Louvado seja Oxalá.
enciumou a Sinhá, Para sempre seja louvado.
apanhou, apanhou, apanhou,
Fugiu para o mato.
Murilo Mendes

• Poeta surrealista brasileiros.


• obra mais apegada ao insólito, pois mistura com muita naturalidade o real ao irreal,
o sonho ao concreto, a clareza ao hermetismo.
• une uma expressão coloquial – cheia de humor e de termos típicos da oralidade – a
uma linguagem mais séria e condizente com a profundidade de temas existenciais e
espiritualizantes.
• Murilo Mendes trouxe a religiosidade católica para o centro de sua expressão
poética.

Os dois lados Do outro lado tem outras vidas


Deste lado tem meu corpo vivendo da minha vida
tem o sonho tem pensamentos sérios me esperando
tem a minha namorada na janela na sala de visitas
tem as ruas gritando de luzes e tem minha noiva definitiva me
movimentos esperando com flores na mão,
tem meu amor tão lento tem a morte, as colunas da ordem e da
tem o mundo batendo na minha desordem.
memória
tem o caminho pro trabalho.
Carlos Drummond de Andrade
▪ Considerado um dos maiores poetas brasileiros do século XX.
▪ . O poeta gauche: inadequado, à esquerda.
▪ . Conflito entre província e metrópole.
▪ Seu primeiro livro, Alguma poesia, traz marcas inequívocas do que se considerava à
época poesia modernista brasileira, como o humor e o uso de elementos do
cotidiano, abordados com a leveza da linguagem coloquial.
▪ A maioria dos textos foi escrita em versos livres, mantendo uma relação irônica
com a realidade provinciana do autor mineiro.
▪ . Poesia marcada pela tensão entre o individual e o social.

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)


No meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra.
Sentimento do mundo humildemente vos peço
Tenho apenas duas mãos que me perdoeis.
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos, Quando os corpos passarem,
minhas lembranças escorrem eu ficarei sozinho
e o corpo transige desfiando a recordação
na confluência do amor. do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
Quando me levantar, o céu e não foram encontrados
estará morto e saqueado, ao amanhecer
eu mesmo estarei morto, esse amanhecer
morto meu desejo, morto mais noite que a noite.
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram


que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
Legado
Que lembrança darei ao país que me deu
tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?
Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceu
minha incerta medalha, e a meu nome se ri.

E mereço esperar mais do que os outros, eu?


Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti.
Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu,
a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.

Não deixarei de mim nenhum canto radioso,


uma voz matinal palpitando na bruma
e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.

De tudo quanto foi meu passo caprichoso


na vida, restará, pois o resto se esfuma,
uma pedra que havia no meio do caminho.
Cântico VI
Tu tens um medo de
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.
A poesia de Cecília Meireles revela concepções sobre o homem em seu aspecto existencial.
Em “Cântico VI”, o eu lírico exorta seu interlocutor a perceber, como inerente à condição
humana,
a) a sublimação espiritual graças ao poder de se emocionar.
b) o desalento irremediável em face do cotidiano repetitivo.
c) o questionamento cético sobre o rumo das atitudes humanas.
d) a vontade inconsciente de perpetuar-se em estado adolescente.
e) um receio ancestral de confrontar a imprevisibilidade das coisas.
Confidência do itabirano
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e
[comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres
[e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
ANDRADE, C. D. Poesia completa. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 2003.i

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