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LOGOS

Trois Couleurs: Kieslowski


e a ética dos possíveis
Fernando do Nascimento Gonçalves*


A
são corpos que respiram e têm presença.
migos são unos em três casos: É justamente assim, na ambigüidade do
irmãos diante da miséria, não-dito que não quer interpretações,
RESUMO iguais diante do inimigo, mas a leveza e a sinceridade dos senti-
Até que ponto liberdade, igualdade e frater- livres... diante da morte!” mentos, que o inominável irrompe talvez
nidde são valores naturais e universais? Com Nietzsche com maior força.
a trilogia Trois couleurs, o cineasta polonês Nesta última obra, até as cores da
Krzystof Kieslowski faz um silencioso ques-
As três cores bandeira francesa, união que simboliza
tionamento do sonho europeu da unifica-
ção, a partir da desmistificação dos ideais De um lado, o sonho de uma Europa valores, parecem querer a si mesmas.
da Revolução Francesa. Abre assim espaço unificada, sem fronteiras alfandegárias, Somente os valores são questionados,
para a discussão sobre a ética dos possíveis com livre fluxo de pessoas e serviços e por esta própria união, por serem uma
da realidade. uma moeda única. De outro, sonhos de se construção histórica que se impõe como
Palavras-chave: cinema; ética; devir. continuar vivendo, com ou sem identida- natural e univer­sal. Nos porões mesmo
des. Sonhos e contradições que indicam dessa união que se revela e se denuncia
SUMMARY diferentes formas de estar no mundo e essa fraude.
Under to what extent, are liberty, equality Assim é que cada filme apresenta uma
de perceber a realidade. Este é o enredo
and fraternity natural and universal values? espécie de solidariedade orgânica. Pode-
With the trilogy Trois couleurs, the Polish
de Trois Couleurs, do cineasta polonês
Kzrystof Kieslowski. ríamos dizer mesmo que se entrecruzam
movie-maker Krzys­tof Kieslowski makes a
Trois Couleurs, a trilogia que marcou ou que são simultâneos, na medida em
silent questioning of the European dream of
unification, as from the dysmistification of the o fim da carreira do cineasta, falecido que cenas e personagens dos três filmes
ideals of the French Revolution. It opens, in em 1996, também autor de Decálogo e sempre convergem em algum ponto,
this way, a room for discussion on the Ethics de A Dupla Vida de Véronique, é acima como a lembrar que as cores e os valores
of the possible of the reality. de tudo uma denúncia e um questiona- ocorrem sempre juntos em nossas vidas e
Keywords: motion picture; ethics; devenire. mento silencioso do sonho europeu da não separados, racio­nali­záveis.
unificação, através da desmistificação dos Aliás, esse parece ser mesmo o ponto.
RESUMEN ideais iluministas da Revolução­­ Francesa: Para Kieslowski, existe no homem algo
Hasta que punto libertad, igualdad y fraterni- inexplicável, subterrâneo, o que lhe per-
liberdade, igualdade e frater­nidade.
dad son valores naturales y universales. Con mite uma certa exteriori­dade. Esse “algo”
la trilogía Trois couleurs, el cineasta polonés Nestas obras - A Liberdade é Azul, A
Igualdade é Branca e A Fraternidade é são a intuição e o acaso. São esses ele-
Krzystof Kieslowski hace un silencioso cuestio-
namiento del sueño europeo de unificación, Vermelha -, baseadas nas cores da ban- mentos considerados inumanos, irracio-
a partir de la desmistifición de los ideales de deira da França, Kieslowski questiona o nais, feiticeiros - e que foram confinados
la Revolución Francesa. Abre, por lo tanto, caráter universal dos ideais da Revolução pela razão em temporalidades malditas
un espacio para la discusión de la ética de los e da própria Unificação Européia, por meio do cotidiano - que geram os desencon­tros
posibles de la realidad. da irrupção do devir revolucionário de seus flagrados a todo instante em sua obra e
Palabras-llave: cine; ética; devenir. personagens, que mesmo tendo como que servem de suporte para se questionar
marca o típico individualismo europeu, o que é o homem, o que é natural e o que
conseguem manter uma certa exterioridade é universal.
à aliança, reescrevendo-a à sua maneira e
dando um outro sentido à ética. A Liberdade é Azul
Kieslowski atua por microscopias. Nos Um carro em movimento visto pela
detalhes se concentra o vigor de sua obra. perspectiva das rodas. Um garoto espe-
Olhares, gestos, situações em suspenso, ra carona enquanto tenta sem sucesso
muito mais do que as palavras, têm um acertar seu biloquê, e que só consegue no
peso específico. Na trilogia, jogos de momento em que o carro perde a direção
câmera e luz e, principalmente, a música
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e bate numa árvore. Uma mulher perde o Nenhuma espera. Em uma mala, um por lei, não lhe pertence. Após o “enterro”,
marido e a filha no acidente fatal. homem escondido. ela vai para o hotel, onde Karol-Karol a
Sobreviver é morrer. Como se liber- Karol-Karol é um polonês casado com aguarda. Os dois fazem amor e ele a faz
tar? uma francesa e mora em Paris. Depois de sentir prazer. Karol-Karol se sente aliviado
Depois de ter tentado suicídio no certo tempo, o casamento dos dois fracas- e diz: “você gritou mais alto do que com
hospital, Julie volta para casa, que pre- sa, ou melhor, não se consuma, segundo aquele homem!”. Ele sai enquanto ela
tende vender e, ao entrar, encontra uma a mulher. O homem se sente impotente dorme. Na manhã seguinte ela é presa.
parte da partitura que o marido até então diante da beleza da esposa. Imperdoável. O francês diante do polonês. “Sou cida-
compunha por ocasião dos festejos da Ela pede o divórcio e o expulsa de casa. dã francesa”, argumenta. A embaixada
Unificação da Europa. Começa a tocá-la, Sem ter para onde ir, sem dinheiro e é acionada. Inútil. Será por que ela não
quando, de repente, deixa cair o tampo sem falar direito o francês, já dupla- fala polonês?
do piano, interrompendo violentamente mente impotente, Karol-Karol vaga Karol-Karol sente-se vingado. Mas
a sinfonia ainda inacabada. Uma luz azul pelas ruas da Cidade Luz. Assim fica quem muito odeia, muito ama. Ele se
brilha sobre seu rosto. até o dia marcado para a audiência, sente arrependido, ela também, mas já é
Azul é a cor de sua liberdade. quando o divórcio se consumará. tarde. A igualdade é branca, cor do casa-
Sai. Consegue os originais da partitura No ambiente frio e impessoal, como mento que os uniu e separou.
e os joga fora. Retorna. Entra, abre a bolsa sói à Justiça, o polonês tenta se explicar
e despeja todo o seu conteúdo sobre diante do francês, fazer valer o que é seu, A Fraternidade é Vermelha
o colchão, uma das únicas coisas que o direito. Mas, se não tem sido “marido”, Alguém faz uma ligação telefônica.
sobraram na casa. Encontra um pirulito não tem direito. O francês reconhece o O impulso percorre vertiginosamente os
(azul) que coloca rapidamente na boca. do francês. fios subterrâneos que o separam do con-
Começa a mastigá-lo compulsivamente, Sentindo-se injustiçado e já sem tinente. Atravessa o Canal da Mancha. Do
numa espécie de objetofagia. argumentos que sejam aceitos pelo juiz, outro lado da linha ninguém responde. O
Muda-se, enfim, levando para o novo diante da insistência da mulher que diz impulso retorna, célere.
apartamento somente um lustre de não mais amá-lo, pergunta angustiado
Numa noite, após um desfile de moda,
contas azuis que ficava no antigo quar- pela igualdade: “Só porque não falo fran-
Valentine dirige de volta para casa. Um
to do casal. Pendura-o, não mais como cês?” Bem, ele não falava francês. Ele só a
homem atravessa a rua e deixa cair seus
lembrança a ser afastada, mas como amava. Encerrada a audiência, corre atrás
livros. Um deles se abre numa certa página
símbolo transmutado da liberdade a seu da ex-mulher, tentando ainda alguma
alcance. reconciliação. Inútil. e ele a marca.
Uma velhinha na rua se esforça para Novamente na rua, liga para casa. A Na mesma noite, Valentine atropela
depositar a garrafa de vidro no coletor ex-mulher está na cama com outro. Ela acidentalmente uma cadela. Encontra o
seletivo. Um flautista anônimo toca uma pensa em desligar, mas no momento endereço do dono em sua correia e tenta
canção semelhante à sinfonia inacabada do clímax, aproxima o telefone para que devolvê-la, mas ele não quer o animal de
do marido. Ao ser perguntado de onde ele ouça melhor os gemidos que ele não volta. Um homem misterioso que diz não
conhecia aquela música, simplesmente soubera lhe proporcionar. querer mais nada da vida.
responde que adora tocar, inventar coi- Acaba a noite numa estação de metrô, No outro dia, ela sai de casa, vai a um
sas. Como se a essência dos sentimentos essa casa dos pobres dos países ricos, bistrô, pede algo, joga a sorte na slot ma-
em cada indivíduo não fosse intuitiva e onde conhece um conterrâneo que pro- chine. Perde. Sai contente. Faz uma sessão
singular e, ao mesmo tempo, passível mete levá-lo de volta à Polônia. E ele de de fotos para out-doors de toda Genebra.
de estar no coração de todos como um fato retorna, dentro de uma mala com O fotógrafo pede que pose com um ar
poder intransferível. Mas como se a “Li- apenas um furo para poder respirar. Só muito triste, como se alguma coisa muito
berdade” fosse. que, ao chegar lá, a mala é roubada e ele triste lhe tivesse acontecido. Encontra o
Aliás, cada personagem do filme forja se perde do amigo. Mais tarde, num local tom. Aprovam a foto.
a sua própria. Liberdades. Liberdade do deserto e afastado, a mala é aberta e de lá Ela retorna à casa do homem miste-
múltiplo. A liberdade única é uma farsa, pois, sai Karol-Karol, menos para a surpresa do rioso. Descobre tratar-se de um velho e
afinal, se é livre do quê? que para a decepção dos ladrões. Afinal, solitário juiz aposentado, que espiona
Enquanto a “Liberdade” é defendida dentro nada mais há do que um polonês. a vizinhança com uma aparelhagem
como direito precípuo do indivíduo e se Leva uma surra e é abandonado. especial. Nisto entra uma conversa. Um
discute como esta será prodigalizada pela Volta para casa, num subúrbio de vizinho, casado e com uma filha, conversa
Unificação, beneficiando todos os cida- Varsóvia, onde tinha um negócio. Retoma com o amante.
dãos do velho continente, Julie só quer lentamente sua vida, mas acalenta o plano Ela condena o procedimento do ve-
a liberdade de esquecer o passado para de se vingar da ex-mulher. Elevar-se a seus lho, afirmando que ele não tem o direito
continuar vivendo. Então, que lhe importa olhos, para então rebaixá-la. Ficar quite. de fazer aquilo. Ele responde que fez isso
a Europa e sua liberdade? Isso em nada o Igualdade. durante toda a vida e sugere que ela o
toca. É o primeiro desencontro. Segundo desencontro. denuncie à polícia ou vá à casa do vizinho.
Assim é que se transforma num rico Ela vai. Mas não tem coragem. Retorna. O
empresário e tempos depois simula sua ex-juiz adianta-se e adivinha a situação e
A Igualdade é Branca morte, apostando que a ex-mulher viria lhe pergunta o que seria bom ou mau,
Uma esteira de bagagens em seu “ético”, neste caso: contar a verdade à
em seu encalço. Seu plano dá certo. Ela
movimento. Um saguão de aeroporto.
vem para tomar posse da herança que,
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esposa, destruindo a família, ou deixar a o irmão nos jornais, num envolvimento e o amante e de como anos depois
farsa continuar. com drogas. Entra no bistrô. Joga na slot (a mulher já morta num acidente),
Por fim, Valentine sai indignada machine e acerta. Sai dizendo que sabe na posição de juiz, reencontrou o
dizendo ter pena dele. Fraternidade? O porque ganhou. amante dela no tribunal, acusado de
encontro, porém, a faz repensar uma série Uma velhinha na rua se esforça para ser responsável por um incêndio que
de valores como o bem e o mal, a ética depositar a garrafa de vidro no coletor vitimou dezenas de pessoas. Condena-o,
e a justiça. Pouco a pouco, no entanto, seletivo. Ela se adianta e a ajuda. por rancor, duplamente. Sem dúvida, um
aproxima-se do ex-juiz, do qual se torna O homem que atravessou a rua e crime doloso.
amiga. E a amizade faz com que ela en- deixou os livros caírem é aprovado O ex-juiz se entrega à polícia por es-
tenda melhor sua posição, isto é, daquele numa prova para juiz graças ao ponto pionagem. Valentine lê o caso nos jornais
que não julga mais (está aposentado). Ela sorteado, que corresponde ao da pá- e vai visitá-lo. Pergunta o que pode fazer
então passa a se colocar em seu lugar e gina aberta ao acaso. para ajudar, ao que ele responde: “ser”.
deixa de condená-lo. O ex-juiz conta a Valentine sua O rapaz tornado juiz é traído pela
Terceiro desencontro. história. Conta que se tornou juiz da namorada, que segue com o amante para
A fraternidade é vermelha. Talvez mesma forma. Então, narra uma espécie o Canal da Mancha, num iate. Valentine
estejamos sempre certos só até ouvir o de sonho premonitório que teve com ela, viaja para se encontrar com o namorado
outro. para fugir da questão principal, o seu des-
Nesse momento, ela se refere ao pro- na Inglaterra. O rapaz segue o mesmo
gosto pela vida. Ela percebe, se adianta e destino. Quem sabe ambos os destinos?
blema que tem com o irmão drogado, adivinha tudo. Ele confirma.
ao que ele se antecipa e adivinha toda Uma forte tempestade na região
Ele fala de sua decepção amorosa. causa o naufrágio do ferry-boat em que
a história. Ela vai embora. Mais tarde vê
Do tempo em que perseguiu a mulher viajavam. Entre os sobreviventes, Julie,
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Karol-Karol devidamente acompanhado da relação “credor X devedor”, que ele um novo desejo, uma sede “comum”
da mulher, Valen­tine e o novo juiz. Entre nos remete às formas primitivas de e superior que pa­ra ­Kies­low­­­ski vem a ser
os mortos, sua amante (o namorado terá compra e venda, de câmbio, como a frater­nidade e que Nie­tzs­che­ cha­­­­ma de
morrido)? coloca Nietzsche. (s/d.b, p.62) amizade. Assim é que adquire também
De repente, Valentine, ainda muito Quando esta relação migra do esse estranho poder de intuição, poder
assustada e envolta em cobertores, vira- mercado para a cultura e se instala na simbólico de uma condição inuma­na ou
se e pára na mesma posição da foto do consciência, prejuízo e dor passam a sobre-humana, gerado pelo esquecimen-
outdoor. ser equivalentes e, como todo dano to, inco­mum no homem que julga, que
O ex-juiz, que assiste ao resgate dos (falta) vai pedir compensação, nasce apenas prevê pelo cálculo. Daí que julgar
sobreviventes pela TV, lança um olhar disso a necessidade do castigo, da é atualizar a memória, a moral. Aposen-
profundo... reparação. É que em todo contrato tar-se é esquecer, é cuidar para que haja
outros agen­cia­mentos, talvez inumanos,
A estética do desencontro como quer Lyotard.
Muitas vezes fazemos coisas que,
a princípio, não têm explicação ou
Julie, na solidão de sua liber- As cores unidas da trilogia logram
dade, que na verdade é uma mostrar esta face (oculta?) do desen-
que parecem bastar a si mesmas. Os contro, que constitui uma ética e uma
sentimentos e as coisas nem sempre fuga, experimenta ultrapassar os estética. Mostram como as cores que-
aceitam os significados que lhe são limites de seus valores, ao renun- rem a si mesmas, assim como talvez
impostos. É que o sentido é da ordem ciar a bens, recordações, amiza- as pessoas e os sentimentos querem
do possível, não do real que legitima
o racional. Esta é a origem do que
des, amores, vínculos, que ao seu e precisam de uma autonomia, de um
ver são meras armadilhas. direito que não só não é reconheci-
poderíamos chamar “estética do de­ do como natural, como é negado ao
sencontro”. homem em sua aliança com as forças
Liberdade pelo esquecimento, fracas: o direito de ser.
igualdade pela vingança, frater­nidade O desencontro é, portanto, um
pelo julgamento. há uma promessa e, no casamento, delírio, uma potência de afirmação
Nessas três situações, pessoas ­comuns, instituição esta analisada por Kies- dester­ritorializadora. E é neste sen-
com vidas comuns, des­terri­torializam lowski, não é diferente. Daí a alegria tido, finalmente, que o desen­contro
valores que, cons­truídos para serem de fazer sofrer, o desejo de vingança. remete-nos àquilo que Foucault chamou
universais, são vividos de forma sin- “Ver sofrer alegra, fazer sofrer alegra de “domínio intermediário e obscuro
gular. mais ainda”. Nisto consiste, segundo entre o olhar já codificado e o conheci-
Julie, na solidão de sua liberdade, Nietzsche, uma antiga verdade huma- mento reflexivo”, no qual “uma cultura,
que na verdade é uma fuga, experi- na, demasiado humana. Poderá ela afastando-se insensivelmente das ordens
menta ultrapassar os limites de seus ser corri­gida pelo princípio universal da empí­ricas que lhes são prescritas por
valores, ao renunciar a bens, recorda- igualdade? seus códigos primários, instaurando uma
ções, amizades, amores, vínculos, que E o que é fraternidade? Fazer o bem primeira distância em relação a elas, fá-las
ao seu ver são meras armadilhas. porque se quer compensar o mal pratica- perder sua transparência inicial, cessa
Neste sentido, parece que essa do? (Então seria fazer o bem para o outro de se deixar passivamente atravessar
renúncia opera uma transformação. ou para si mesmo?) Ter piedade para se por elas, desprende-se de seus poderes
A atitude de Julie não se aproximaria sentir superior ao condenado por nosso imediatos e invisíveis, liberta-se o bas-
do fechar as portas e as janelas da julgamento? Ser juiz: decidir o que é e o tante para constatar que essas ordens
consciência, que Nietzsche chamou que não é verdade, o que é certo e errado. não são talvez as únicas possíveis nem
de “faculdade de esquecimento”? Se, Pura vaidade. as melhores: de tal sorte que se encontre
no início, há de fato uma subtração Valentine aventura-se, sai do seu lugar frente ao fato bruto de que há, sob suas
passiva ao sofrimento, percebe-se para vê-lo melhor e decide igualmente ordens espontâneas, coisas que são em
que, pouco a pouco, passa a haver por se aposentar do juízo e dos valores si mesmas ordenáveis, que pertencem a
uma “vontade ativa de guardar im- constituídos para simplesmente “ser”. uma certa ordem muda, em suma, que
pressões” (cena em que pendura o Trans­mutação da ética. Também aí parece há ordem. Como se, libertando-se por
lustre azul no novo apartamento) que reincidir a “faculdade de esquecimento”, uma parte de seus grilhões lingüísticos,
a afasta (não totalmente) da mora­ porém de forma mais nítida e promissora. perceptivos, práticos, a cultura aplicasse
lização dos costumes. O aposentar-se do juízo é esquecer, é sobre estes um segundo grilhão que os
Karol-Karol comprova que o ho- “fazer silêncio e tábua rasa na nossa cons- neutralizasse, que, duplicando-os, os
mem mesmo tendo leis que garantem ciência, a fim de que aí haja lugar para as fizesse aparecer ao mesmo tempo que os
(para quem?) os direitos civis, tidos funções mais nobres para governar, para excluísse (...)”. (Foucault, 1992, p.10)
como naturais, só vê solução para o prever, para pressentir (...)”. (Idem, p.57)
seu caso ao combater a injustiça com De fato, notaremos que quando Por uma ética de possíveis
o rancor, reivindicando à vingança o Valentine põe-se no lugar do ex-juiz e Semelhante ao pacto do Fausto de
estatuto de igualdade. Ora, trata-se deixa de condená-lo, experimenta com Goethe com Mefistófelis, que simbo-
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liza a afinidade entre o ideal cultural causas infini­tesimais. Uma histeria, uma É assim que a ética dos direitos huma-
do auto-desenvolvimento e o efetivo inércia na velocidade, um êxtase, como nos, que se baseia nos ideais iluministas
movimento social na direção do de- diz Baudrillard. Uma ab-reação ao vazio. que inventam o sábio, o homem imu-
senvolvimento econômico e, crente Ora, a ética e os direitos humanos mo- tável, impessoal, ganha força e estatuto
de que a única forma de transformar- dernos inscrevem-se mesmo nesse vazio universal, pois nada mais é do que um
se é a radical transformação de todo (não por desa­parição da presença, mas consenso, uma opinião-doxa que fala de
o mundo físico, moral e social em que por saturação), nesse projeto obsceno e um sujeito que se quer universal e que crê
vive, o homem moderno viu no desen- obeso,”simbolicamente gordo de todos que seu conhecimento é o princípio da
volvimento das forças materiais uma os objetos de que não soube separar-se, vida. Os “direitos humanos” são, portanto,
utopia redentora, que lhe prometia ou daqueles em relação aos quais não en- uma política delineada não a partir das
plenitude e liberdade. controu a distância, para poder amá-los” representações do que as pessoas fazem
O que ele encontra, entretanto, (Bau­drillard, 1990, p.279), que é o projeto de suas vidas e de seus direitos, mas de
é nada mais nada menos do que a si um “consenso planetário” capaz de se dar
mesmo, em um mundo impessoal, por sua imposição.
indireto, mediado por complexas or- Diante da falta de referências, Diz-se, finalmente, que a ética desses
ganizações e funções insti­tucionais, direitos existe para proteger o homem.
capazes de conduzir e atribuir valor à
de valores e finalidades, há uma Porém, do ponto de vista do consenso,
sua própria experiência e de divorciá- exacerbação dos sistemas: uma só há julgamento, e co-incidência, e
lo da totalidade da vida. busca obsessiva da origem, da não afirmação do múltiplo, da vida. Mas
A princípio, para Fausto o que responsabilidade, da referência, é preciso protegê-lo de alguma coisa.
importava era o processo, não o resul- uma tentativa de esgotar os Sem se dar conta de que “o homem é o
tado. Ao final de sua aventura, porém, lobo do próprio homem”, vai-se buscar o
pergunta a si mesmo: “Que serei eu se fenômenos até suas causas infi- inimigo fora, no Mal. Logo, a ética passa
não puder atingir a coroa da huma- a ser concebida como a capacidade de
nidade, que se ri de nossos anseios, distinguir o Mal que prejudica o homem
suplicando inutilmente?”. Ao que de “homem”. e o conjunto de medidas para contorná-lo
responde Me­fisto: “O que você é”. Como já foi dito, o homem, em sua ou, se possível, eliminá-lo. Logo, como su-
O que somos. Esta realidade, in- tentativa de dominação do real, tende a gere Badiou, o Bem se subordina ao Mal, e
suportável para o homem moderno, apreendê-lo quase sempre de forma rea- não o contrário, e os “direitos do homem”
homem da “cultura”, radicalmente tiva, e não ativa, ou seja, não é o homem passam a ser os “direitos ao não-Mal”.
distanciado da “phisis” e que parece quem quer: há uma vontade que atua Mas o homem não é um simples
possibilitar tudo menos a desejada sobre a vontade do homem, que não é vivente que tem por único objetivo so-
plenitude, deixa-o aterrorizado. Tal- de ação, de potência, como diz Nietzsche, breviver, como propõe Badiou. Ele é uma
vez seja por isso que, diante dela, bus- mas von­tade reativa. singularidade imortal, cujo direito “não é
que atualmente novos parâmentos, Segundo Deleuze e Guattari, os direi- mais da vida contra morte, do bem contra
novas máscaras, novos mecanismos tos do homem são axiomas que podem o mal, que o identifica com a vítima, mas
de ilusão que neguem a dor, o sofri- coexistir no mercado com muitos outros com os direitos de um ser imortal, que
mento e a experiência. Esta situação axiomas. Na verdade, afirmam, os “direitos pairam sobre as contingências do sofri-
parece estar especialmente expressa do homem” não dizem nada sobre os mo- mento e da morte”. (1995, p.24) O homem
nas questões da ética e dos direitos dos de existência imanentes do homem não precisa ser salvo.
humanos, espécies de arranjo das provido de direitos, só legitimam o “pen- A idéia do homem como imortal
forças fracas para os fracos, como diria samento-para-o-mercado”, e por que não opõe-se a de um “ser-para-a-morte” e
Nietzsche. dizer, “para-o-Estado”. (1992, p.139) corresponde, em última análise, à afirma-
Na aliança com essas forças, o ho- E o Estado propõe sempre uma doxa ção da vida, como expressa Nietzsche em
mem vem se colocando em posição que reterritorializa a percepção e a refle- Zaratustra, com a pregação do princípio
de eterna vítima. Vítima do destino, xão, de forma a naturalizar uma verdade, da terra. Com esta afirmação, Zaratustra
da história e de si mesmo. Divorciado uma opinião, que em si é tão somente a assume a vida como “fenômeno estético”
da totalidade da vida, o homem con- vontade da maioria (e não do múltiplo), e não moral ou religioso, assume o bem e
temporâneo apenas sobrevive e com- mas que já fala em nome dela (Idem, o mal, o valor da experiência. Ele ri, joga
pensa essa falta fazendo aliança com p.160). A opinião-doxa opera então por e dança, isto é, afirma a vida, o acaso e
seus pares, numa espécie de pacto de co-incidência, adquire uma qualidade o devir. Aceita, como Dio­nísio, o ser do
não-agressão com a morte. intrínseca na medida em que se acopla à devir, a multi­plicidade e a diversidade da
Diante da falta de referências, de necessidade “de pertença” do indivíduo, afirmação de tudo o que aparece.
valores e finalidades, há uma exa- com a qual finalmente se expande para Isso nos remete ao que Nietzs­che cha­
cerbação dos sistemas: uma busca além dos limites de um grupo, para co- mou de “educação superior da humanida-
obsessiva da origem, da responsabi- incidir com a vontade de uma maioria de” (s/d.c, p.90), capaz de tornar de novo
lidade, da referência, uma tentativa cada vez maior, em que se apagam as possível sobre a terra o excesso de vida
de esgotar os fenômenos até as suas singularidades. - negado pelo projeto de “homem” - que
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restabeleça a situação dio­nisíaca, o in-


tempestivo e todas as formas de vontade
de viver, de criar, de amar, de inventar
uma outra sociedade, outra percepção
do mundo, outros sistemas de valores,
de que nos fala Guattari.
Esses novos processos de subje-
tivação, essas novas alternativas de
vida, da existência “não como sujeito,
mas como obra de arte”, como propõe
Fou­cault, sugerem-nos uma estética da
ética, pois não há ética em geral, como
afirma Badiou, mas uma ética de proces-
sos, pelos quais tratam-se os possíveis
de uma situação. E são esses possíveis,
fla­grados em todo desencontro, que nos
incitam a sermos fiéis aos acontecimen-
tos, a perseverar no “ser”, num “interesse
desinteressado” (1994, p.113), no amor
fatti nietzscheano.
Finalmente, se a Razão tem sido, ao
longo de todos esses tempos, o suporte
para a ciência e suas aplicações, de forma
a levar-nos a “bem-aventuranças”, atual-
mente, contudo, perguntamo-nos se de-
vemos ou queremos ser “racionais”. Afinal,
como aponta Tou­raine, em que medida a
Bibliografia
liberdade, a felicidade ou a satisfação das
BADIOU, A. A ética. Rio de Janeiro: Relume-Du-
necessidades são racionais? Na verdade,
mará, 1995.
a perspectiva da racio­nalidade, em que _____. Para uma nova teoria do sujeito. Rio de
se insere a ética tradicional, supõe pro- Janeiro, Relume-Dumará, 1994.
duções de subjetividade, inseridas num BAUDRILLARD, J. As estratégias fatais. Lisboa:
processo de modelização dominante, Estampa, 1991.
contra o qual lutava Nietzsche “a golpes DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Porto: Rés,
de martelo”. s/d.
A trilogia de Kieslowski pode ser vista, _____. Conversações. Rio de Janeiro: Editora.
34, 1992.
nesse sentido, como uma bela coadju-
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O que é a Filosofia?
vante das análises de Badiou, na medida Rio de Janeiro: Editora 34, 1992
em que propõem repensar essa ética e a FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo:
questão dos direitos humanos nela imbu- Martins Fontes, 1992.
tida. A “estética do desen­contro” proposta LYOTARD, F. O Inumano. Lisboa: Editorial Estam-
pelas cores, por sua vez, sugere uma es- pa, 1990.
tética da afirmação da vida, de uma outra NIETZSCHE, F. Assim falava Zaratustra. Rio de
ética, portanto. É assim que, sob o influxo Janeiro: Ediouro, s/d.
_____. A gaia ciência. Rio de Janeiro: Ediouro,
dessa outra ética, a estética, permitimo-
s/d.a.
nos renunciar alegremente às ilusões da _____. A genealogia da moral. Rio de Janeiro:
racio­nalidade para afirmarmos a simples, Ediouro, s/d.b.
porém fecunda, vontade de viver. _____. Ecce Homo. Lisboa: Guimarães Editores,
s/d.c.
TOURAINE, A. Crítica da modernidade. Petrópolis:
Vozes, 1994.

* Fernando do Nascimento
Gonçalves é Professor Assis­
tente da FCS/UERJ e Mestre
em Comunicação e Cultura
pela Escola de Comunicação
da UFRJ.

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